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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.8 no.4 Fortaleza Dec. 2008

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Em busca de novas abordagens para a violência de gênero: a desconstrução da vítima

 

In search of new approaches to gender violence: the deconstruction of the victim

 

 

Marta Quaglia CerrutiI; Miriam Debieux RosaII

IPsicanalista. Mestre pelo Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP e do Núcleo Violência: Sujeito e Política. Membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto SEDES-SP.End.: R. Umburanas, 826, Alto de Pinheiros. São Paulo, SP. CEP 05464-000.E-mail: marta.cerruti@terra.com.br
IIPsicanalista. Professora Doutora do Programa de Psicologia Clínica da USP. Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade da USP. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora do Núcleo Violência: Sujeito e política (PUC/SP).End.: Al. Joaquim Eugênio de Lima, 1041, apt. 72, Jardim Paulista. São Paulo, SP. CEP 01403-000.E-mail: debieux@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo parte do exame crítico dos fundamentos das políticas públicas de assistência ao fenômeno da violência entre homens e mulheres no ambiente doméstico, sobretudo naquilo que se refere às mulheres. Esse exame indica que tais políticas abordam o fenômeno pela via do discurso jurídico, com base em uma concepção de que há uma relação binária agressor/vítima claramente delineada, e na qual a mulher é tida como vítima de condições desfavoráveis e merecedora de uma assistência jurídica específica. Trata-se de interrogar o quanto um discurso articulado em uma lógica binária de opostos - forte/fraco, vítima/agressor - é suficiente e eficaz para a compreensão do fenômeno, bem como até que ponto ele não acaba por perpetuar aquilo que visa combater: a visão da mulher como um ser fraco e vulnerável, que necessita de proteção. Tal inquietação é fruto da experiência de atendimento a mulheres que vêm sofrendo violência física e/ou moral por parte de seus companheiros em uma entidade não-governamental, a Pró-Mulher Família e Cidadania, sediada na cidade de São Paulo. Este artigo visa demonstrar o processo da construção da mulher como vítima por dois ângulos. De um lado aborda, com os instrumentos da psicanálise, a posição subjetiva da mulher, especialmente através dos conceitos de eu, narcisismo, masoquismo fundamental e implicação subjetiva. De outro lado visa examinar o modo pelo qual o discurso jurídico articula-se à dimensão subjetiva, contribuindo para a vitimização da mulher. Nosso intuito é demonstrar a necessidade de agregar ações alternativas às vias estritamente jurídicas que hoje preponderam na abordagem do fenômeno da violência entre homens e mulheres.

Palavras-chave: violência, vítima, mulheres, narcisismo, masoquismo.


ABSTRACT

The goal of this article is to conduct a critical analysis, through theoretical concepts developed in the field of psychoanalysis, of public policies that address the phenomenon of domestic violence between men and women, especially as regards the latter. This examination shows that such policies address the issue based on a legal discourse that presumes that such situations correspond to an aggressor/victim binary relation, on that the woman, considered a victim of unfavorable conditions, deserves specific legal assistance. Our intention is to raise the question of the effectiveness of a discourse articulated around the logic of binary opposites - strong/weak, victim/aggressor - as a tool to understand the phenomenon, and also to discuss the possibility that this approach might contribute to perpetuate a view it aims to fight: women as weak and vulnerable beings in need of protection. This preoccupation arised from the experience of assisting women that suffer domestic violence in a non-governmental organization located in the city of São Paulo called "Pró-Mulher Família e Cidadania" [Pro-Woman, Family and Citizenship]. The approach consists in examining the insights psychoanalysis offers to help understand the construction of the victim from a subjective point of view, especially regarding the concepts of ego, ideal ego, narcissism, repetition, masochism and subjective implication. Our intention is to propose alternative approaches that transcend the strictly juridical approach that prevail today in Brazilian public policies that address the issue of violence between men and women.

Keywords: violence, victim, women, narcissism, masochism.


 

 

Introdução

Pode-se afirmar que a posição da mulher nas sociedades ocidentais em geral mudou muito no último século. O empenho dos movimentos feministas tem sido revelar que os valores atribuídos ao sexo não devem ser considerados inatos, mas sim fruto das mais variadas elaborações culturais. E, como resultado destas lutas, cada vez mais as mulheres vêm ocupando um lugar na vida pública.

Contudo, ainda que a opressão sobre a mulher tenha sido, e ainda seja, insistentemente denunciada, verificamos que perduram algumas dificuldades para que haja uma melhor compreensão das diversas vicissitudes que perpassam tanto a vida pública quanto a vida privada das mulheres. Dentre essas dificuldades sublinhamos o quanto é alarmante a incidência da violência contra a mulher, marcadamente no ambiente doméstico, e por essa razão entendemos que é necessário que seja dado um salto nas investigações sobre as relações de gênero1. Esse salto pode ser iniciado a partir de uma interlocução com a psicanálise, por essa ser uma ferramenta que propicia um olhar singular para cada uma dessas relações, levando em conta e buscando compreender as diferentes posições que os sujeitos assumem nas cenas de violência.

No período entre os meses de janeiro a julho de 2002, nas 125 Delegacias da Mulher do Estado de São Paulo, foram registradas em média 20.000 queixas de mulheres maiores de idade agredidas por seus companheiros por mês, e 2.000 queixas de mulheres menores de idade agredidas da mesma forma, também por mês2. Cabe ressaltar que estes dados não refletem a real incidência de tais agressões, pois é notório o fato de que apenas uma fração desses episódios chega a ser registrado em boletins de ocorrência policial feitos pelas mulheres.

O que tais dados podem nos indicar é que, apesar de iniciativas importantes, como o reconhecimento oficial das Organizações das Nações Unidas (ONU) de que a violência contra a mulher constitui um atentado aos direitos humanos; ou a iniciativa, no Brasil, da criação de delegacias especializadas no atendimento de mulheres vítimas de violência - as Delegacias de Defesa da Mulher -, há ainda hoje, e de maneira bastante freqüente, a expectativa de padrões de comportamento para homens e mulheres assentados em relações assimétricas.

Faz-se necessário analisar criticamente e propositivamente os fundamentos das políticas públicas voltadas para a questão da violência entre homens e mulheres no ambiente doméstico, e o que pretendemos aqui é nos deter mais especialmente sobre a questão da mulher. O que se observa é que as atuais políticas públicas, em sua maioria, vêm contemplando a questão da violência entre homens e mulheres pautada em uma visão dicotômica vítima/agressor, e vêm priorizando uma assistência jurídica exclusiva às mulheres. Tal abordagem, advinda de importantes lutas políticas do movimento feminista a partir da década de 1970, acaba por difundir uma interpretação generalizante para o fenômeno, em uma perspectiva que define o masculino como agressivo e o feminino como passivo, reproduzindo uma lógica adversarial que confere à mulher a posição de vítima de circunstâncias desfavoráveis. Esta posição reduz, a nosso ver, as possibilidades de análise política, social e subjetiva do fenômeno da violência de gênero, assim como paralisa homens e mulheres na elaboração e superação dos conflitos3.

As teorizações iniciais do conceito de gênero, no campo feminista, são as que ainda hoje preponderam como norteadoras para a assistência prestada às mulheres que sofrem violência. Tais teorizações buscam explicar a subordinação da mulher como efeito da dominação patriarcal, ou ainda, em uma tradição marxista, como efeito da divisão sexual do trabalho. São concepções que estabelecem uma linha de continuidade entre a identidade e seu submetimento a identificações culturalmente normativas, conferindo à cultura um caráter patologizante4.

Sabemos que não é possível falar de um movimento feminista único e homogêneo, tal o número de tendências e correntes diversas de pensamento hoje nele presentes. Contudo, não é equivocado supor que o cerne do conjunto dessas tendências, para além de suas diferenças, é o fato de suas práticas se basearem na convicção de que é necessário que sejam eliminadas as relações de poder e autoridade masculina que incidem sobre as mulheres. Dessa maneira, o elemento que conjuga as diversas tendências é a noção de que a relação entre os sexos é assimétrica - uma assimetria construída social e culturalmente, que resulta em que a mulher é subjugada. Nesse modelo o que prevalece é o entendimento da violência, entre homens e mulheres, como o paradigma de uma relação hierárquica culturalmente estabelecida, que se reproduz no núcleo familiar.

As ativistas feministas da chamada corrente radical, que têm Catharine Mackinnon (1980) como sua representante de maior peso, consideram a heterossexualidade como uma prática violenta em si mesma, uma vez que é construída em torno do prazer masculino. O homem impõe sua sexualidade como sendo a sexualidade per se.

Para esta corrente do movimento e do pensamento feministas, a heterossexualidade nunca é igualitária, e a experiência de prazer que as mulheres experimentam nas relações heterossexuais é de ordem fictícia, bem como um índice do sucesso da total hegemonia masculina: a mulher internaliza a sexualidade masculina como sendo a sua própria sexualidade.

Chauí (1985) aponta que, mesmo naquilo que se refere à violência praticada pelas mulheres, entre elas ou com seus companheiros, ou ainda com seus filhos, a ênfase recai sobre questões ideológicas. O olhar feminista considera tais atitudes por parte das mulheres como expressão de sua resistência à subordinação, ou ainda como a reprodução de padrões violentos instituídos por modelos externos impingidos às mulheres pelos costumes e tradições.

Não pretendemos negar a vital importância dos estudos feministas no cenário das humanidades, tampouco desconsiderar a incidência do patriarcado sobre os usos e os costumes. É inegável a importância desses estudos nas mudanças históricas e políticas do ocidente nas últimas décadas, e a conseqüente inauguração de novos paradigmas. Além disso, há hoje um intenso debate, sobretudo entre os estudiosos do construcionismo social, que busca historicizar os termos das diferenças sexuais, o que abre campo para o potencial analítico do conceito de gênero5.

Ao indicar não apenas as categorias sociais impostas sobre corpos sexuados, mas também a imposição da diferença, a historicização do conceito de gênero busca dar significado às relações de poder, relações nas quais as subjetividades adquirem sentido nas interações sociais. O gênero, como categoria de análise, deve levar em conta o contexto intersubjetivo. No que se refere à questão da subordinação da mulher, esta categoria analítica pretende buscar não apenas uma explicação significativa em termos dos comportamentos das mulheres, mas também o sentido que tais comportamentos adquirem em sua interação social.

Contudo, tais debates estão circunscritos, em sua maioria, ao meio acadêmico. E isso porque o que observamos é o quanto tais debates não têm acompanhado os dispositivos públicos de atenção aos impasses relativos à violência entre homens e mulheres, por esses serem dispositivos nos quais prevalece a preocupação de conferir um status político à mulher - tornando-a um sujeito de direito - e que, por essa razão, acabam por desembocar em uma atuação de cunho predominantemente jurídico. Tal atuação acaba por difundir uma visão maniqueísta desses impasses, e isto porque tende a sedimentar padrões de conduta específicos para homens e mulheres: os homens são agressivos, agem, são violentos; as mulheres são passivas, sensíveis e frágeis.

Isso não significa, em absoluto, negar que existam vítimas. Sabemos que o corpo da mulher sofre os maiores danos, o que revela a arbitrariedade e a desigualdade de forças. E isso se dá pela ruptura de um pacto simbólico que supõe a igualdade de direitos.

As mulheres que são agredidas física e/ou moralmente por seus companheiros, ou ex-companheiros, se encontram em uma situação na qual se vêem privadas de garantias às quais teriam, antecipadamente, direito. Há uma dimensão fortemente plausível na denúncia de discriminações, humilhações e injustiças. Não se trata de acreditar que há, por parte das mulheres, a expectativa de gestos e manifestações agressivas por parte dos homens. A pretensão dessa reflexão não é, em absoluto, converter os versos da canção de Chico Buarque, "Mil perdões", de "te perdôo por te trair" em "te perdôo por te bater, te humilhar, te ofender". O propósito é, sim, fazer forte oposição à violência.

Contudo, nossa questão é examinar se o caminho mais fecundo para combater a violência entre homens e mulheres é perpetuar uma visão dicotômica vítima/agressor. Consideramos necessário ressaltar o quanto a resignação a uma condição vitimizada, acompanhada de uma proteção dos dispositivos judiciários que reforça uma posição maniqueísta, pode acarretar justamente uma situação da qual as mulheres procuram sair: a de serem tratadas com objeto. É verdade que é o corpo da mulher que padece, mas a sua vitimização, de forma paradoxal, é o que a aprisiona a uma queixa infinita.

A experiência de atendimento a mulheres de baixa renda, que sofrem violência física e/ou moral por parte de seus companheiros, ou ex-companheiros, em uma entidade não-governamental, a Pró-Mulher Família e Cidadania, sediada em São Paulo, foi o que nos motivou a colocar em questão uma visão dicotômica vítima/agressor.

A entidade foi fundada em 1977 por um grupo de feministas. Nos primeiros anos de seu funcionamento oferecia um serviço de assistência, prioritariamente às mulheres, mediante ações judiciais. Assim, a atuação da instituição voltava-se basicamente para a luta contra preconceitos e discriminações que as mulheres sofriam e seu objetivo era a garantia dos direitos delas.

Nesse sentido, a assistência prestada pela instituição estava marcadamente voltada a um atendimento jurídico especializado, cujo enfoque era a defesa da mulher como vítima. Para tanto, a instituição contava com uma equipe de advogados que atuava junto ao poder judiciário, e o atendimento prestado era exclusivo às mulheres. Contudo, ao longo dos anos verificou-se que havia um alto índice de evasão das mulheres, seja pelo fato de elas desistirem do processo judicial, seja porque muitas vezes elas reincidiam em relações violentas.

A entrada de psicanalistas na instituição, somada aos estudos mais recentes da teoria de gênero sexual, foi tornando claro para a equipe da instituição que a condição de opressão da mulher não se modifica ao se realizar, apenas, um trabalho de conscientização, que teria como conseqüência a separação do homem violento. Isto porque se evidenciou que as mulheres vivem das mais variadas formas o fato de serem oprimidas, revelando o equívoco de se supor uma assistência pautada em uma categoria por demais abrangente: a opressão. As mulheres - como constatamos a partir do atendimento a mulheres em grupos de reflexão na Pró-Mulher Família e Cidadania - vivem em relação e sua identidade se cria e se recria em múltiplos espelhamentos e contrastes. Reconhecer este fato implica reconhecer que não há como definir uma categoria que molde o perfil dessa identidade.

Foi assim que, a partir da década de 1990, a instituição passou a incluir os homens em seu atendimento. Essa abordagem mostrou-se prontamente mais eficiente, pois o nível de evasão do atendimento caiu significativamente após a sua implantação: de uma média anual de 79% de desistência, ocorreu uma queda para 18% em apenas um ano.

Essa queda do nível de evasão das mulheres requer uma atenção especial, pois indica a validade de que sejam implementadas novas práticas que sejam alternativas às vias estritamente jurídicas. Afirmar isso não significa dizer que se possa prescindir das vias jurídicas, mas apontar o quanto se faz necessário que seja realizado um trabalho interdisciplinar. Apontamos neste artigo as elucidações teóricas e clínicas da psicanálise úteis para esta questão e ressaltamos como fundamental trabalhar sobre o posicionamento subjetivo e intersubjetivo dos envolvidos no conflito.

 

A dicotomia vítima/agressor em questão

Como foi apontado acima, partimos da verificação de que as leituras que norteiam a execução de políticas públicas responsáveis pela assistência à questão da violência entre homens e mulheres acabam por estabelecer uma linha de continuidade entre a identidade e seu submetimento a identificações culturalmente normativas, ou seja, acabam por conferir à cultura um caráter patologizante. Vamos nos servir de uma formulação proposta por Costa (1984) para interrogar essa premissa.

Segundo Costa (1984), a formação da identidade está submetida a identificações culturalmente normativas, uma vez que toda cultura confere, em um determinado período histórico, padrões de conduta e aspirações ao ser humano. Contudo, adverte que é necessário haver cautela em tal suposição, pois ela pode induzir ao equívoco de afirmar que toda cultura é um fator patológico em si, e estar ou não em consonância com os padrões normativos de uma época não pode ser traduzido como ter uma conduta normal ou patológica, ou seja, a cultura se apresenta como uma cartografia que modela os sujeitos, e faz com que esses assumam diferentes posições em suas relações com outros sujeitos e com o mundo. O que irá modular aquilo que pode ser considerado como sendo da ordem do patológico é a existência de uma assimetria entre, de um lado, as exigências culturais e, de outro, os recursos que a cultura coloca à disposição para o cumprimento de tais exigências. Essa concepção ilumina o percurso a ser trilhado: trata-se de examinar essa assimetria, pois o que se verifica é o quanto as atuais políticas públicas, em sua tentativa de dar autonomia à mulher, a partir de medidas jurídicas específicas, acabam justamente por confiná-la novamente a um lugar de ser fraco, vulnerável, frágil e vitimizado.

A proposta que será perseguida ao longo deste artigo é a de elucidar o processo da construção da mulher como vítima por dois ângulos. De um lado abordamos, com os instrumentos da psicanálise, a posição subjetiva da mulher, especialmente através dos conceitos de eu, eu ideal, narcisismo, repetição, masoquismo fundamental e implicação subjetiva. De outro lado visamos apontar o modo pelo qual o discurso jurídico articula-se à dimensão subjetiva, contribuindo para a perpetuação da condição vitimizada da mulher.

Vamos aprofundar as conseqüências que a posição de vítima conferida às mulheres, presente na grande maioria dos serviços de assistência judiciária, pode ter na vida daquelas que vêm sofrendo algum tipo de violência no âmbito doméstico. E, indo mais além, considerar se essa situação não reitera um campo no qual a proteção e o amparo só se realizam desde a posição vitimizada. Ou seja, a posição de vítima, que é o que legitima um pedido de auxílio e proteção externos, oferecidos pelos dispositivos jurídicos, pode desembocar numa situação em que a mulher surge no lugar de vulnerabilidade.

O percurso a ser trilhado focaliza as diferenças entre dois sujeitos e os impasses na relação entre eles, impasses esses relativos aos ideais, às frustrações, e dos quais a violência e seu castigo são sintomas. A intervenção psicanalítica permite abordar a questão de modo a elucidar identidades imaginárias, ambivalências, feridas narcísicas. Desta posição a psicanálise pode, em muitos casos, auxiliar a composição de acordos e arranjos alternativos à violência. Nesse sentido, a questão centra-se em deslindar quais os efeitos que um discurso socialmente compartilhado - o da mulher tida como vítima - comporta. E isso conseqüentemente interroga uma intervenção articulada em termos de uma resposta às condições impostas pela hegemonia masculina. Trata-se de tentar percorrer aquilo que da psicanálise é o avesso do discurso jurídico, que prepondera, como já foi dito, na maioria das políticas públicas voltadas para a questão da violência entre homens e mulheres.

 

A construção da vítima

As queixas que as mulheres trazem de seus relacionamentos amorosos são, na grande maioria das vezes, relatos dos infortúnios sofridos. O que se observa é tratar-se de uma narrativa que se constrói ancorada em fatos que visam delinear os personagens implicados na cena relatada, que ocupam posições diametralmente opostas: na cena surgem claramente delineados um eu vitimado e um outro culpado. Os fatos são evocados freqüentemente com o intuito de que se reconheça a verdade do relato do narrador, a de que existe uma relação dual cujos termos estão em posições opostas. O narrador, vítima de circunstâncias que se armam e baseado na integridade de seu ser, tenta compor um cenário no qual atos arbitrários e agressivos se contrapõem à perfeição de sua conduta. É bastante comum que o paradigma da virtude se expresse em declarações do quanto são boas mães, dedicadas ao lar, ou ainda dos enormes sacrifícios feitos em nome da harmonia conjugal. Além disso, há claramente uma reivindicação do reconhecimento da cena relatada: elas buscam evidenciar sua inocência, ancoradas na integridade de seu ser - são boas mães, esposas dedicadas, tolerantes - e a compensação almejada é a exclusão do outro que as fez sofrer. As queixas são infinitas, os relatos são dramáticos, e a cena se constrói independentemente da ação de quem narra.

Tomando a definição de vítima em um aspecto mais genérico, podemos identificá-la como a condição daquela que atribui a outro a responsabilidade por aquilo que a faz sofrer. O outro é identificado como responsável por um fracasso, é apresentado como alguém que não cumpriu uma promessa e cuja ação é sempre arbitrária.

Não pretendemos aqui colocar em dúvida a veracidade factual de tais relatos, mas sim apontar a maneira particular pela qual se arma essa narrativa e as conseqüências disso para as próprias mulheres. Isto porque, ao falarem sempre de si mesmas através das cenas nas quais surgem vitimizadas, elas acabam por encobrir qualquer outro traço de sua singularidade. É terrível ser vítima de um infortúnio, como também o é agir para reiterar uma situação tão danosa. O que nos parece necessário enfatizar é o equívoco presente na tentativa de reduzir a dor do sujeito a uma condição vitimizada, pois tal atitude pode vir a cooperar para a emergência de um sujeito que, fixado e enrijecido em uma posição, acaba por ficar apartado de qualquer implicação com sua própria narrativa.

Podemos supor que a narrativa da cena, e sua incessante repetição, têm o intuito de reunir mais e mais fatos que efetivamente denunciem a deslealdade do outro, levando-nos a inferir que a vítima carrega um valor já antecipado e garantido pelo Outro. Tal adesão a um discurso que se repete a cada vez que a cena é relatada, e que por sua repetição indica se tratar de uma eterna demanda de reconhecimento, nos parece se configurar como uma tentativa de confirmar a existência de um bem natural, capaz de reencontrar uma harmonia perdida.

A psicanálise está, de fato, muito distante de uma noção de que há uma relação plena e natural entre corpo e objeto, ao conferir estatuto de verdade ao campo da representação. Entendendo que a condição humana é marcada estruturalmente por uma assimetria, que supõe a constituição do sujeito como sujeito desejante, parte da premissa de que há uma fratura no percurso dessa constituição que impede qualquer auto-regulação natural.

Ao recusar qualquer ordem prévia, natural, a psicanálise postula a existência de um corpo desde sempre submetido à ordem simbólica. A impossibilidade de completude é mediada pela linguagem, o que supõe não sustentar a idéia de que há uma posição de objeto capaz de obturar a falta do Outro, uma vez que entre o corpo pulsional e o objeto encontramos o desejo e suas fantasias. Trata-se de um vazio em torno do qual se articula a rede de significantes. É por esse vazio que surge a condição desejante; é esse vazio que indica a presença de algo jamais reencontrado, que não alcança o objeto entendido como objeto absoluto.

Assim, fica clara a impossibilidade de que a psicanálise busque estabelecer uma conduta homogeneizante, que não leve em conta a condição subjetiva em sua radicalidade. Isso porque ela aborda, desde sempre, um sujeito dividido, submetido à linguagem diante da falta de um objeto capaz de promover uma satisfação plena. O que vai modular a formação do psiquismo é a busca de satisfações substitutivas - na articulação entre o campo pulsional e a rede de significantes - de satisfação, sempre parciais.

A rememoração incessante da cena, sua monotonia discursiva e seu intuito de sustentar uma posição fixada na vitimização podem ser tomados, como bem aponta Laurent (1999, p.07), como o "inverso do estatuto dado à subjetividade: ser um sujeito que corre riscos". Ainda que, de fato, o outro tenha causado danos, a insistência queixosa e o apelo aos fatos tornam difícil a tarefa de o sujeito poder se deslocar da posição de vítima. Isso pode ser constatado, mais amplamente, como um impasse que grupos reconhecidos socialmente como vítimas de injustiças e discriminações vivem, como aponta Kehl (2004): tais grupos criam um campo de crenças compartilhadas que materializam, imaginariamente, a queixa, deixando opacas as manifestações do sujeito do inconsciente.

Na busca por uma compreensão psicanalítica de como se pode considerar a construção da vítima do ponto de vista subjetivo, temos como ponto de partida a radicalidade do questionamento que a psicanálise realiza quanto à solidez do conceito de identidade. A concepção da realidade psíquica implica o deslocamento de um ser naturalizado para um ser de desejo, motor de toda afetividade humana. A identidade, para a psicanálise, é entendida como uma ficção necessária à ação. Uma vez diluídas as exigências pragmáticas a identidade não pode mais ser tomada como uma certeza, mas sim como uma interrogação. Sendo assim, o que a psicanálise coloca em evidência é a impossibilidade de que se possa estabelecer uma verdade última acerca do sujeito. Daí o risco da tentativa de definir uma identidade específica de vítima às mulheres, estabelecendo um discurso socialmente compartilhado, que limita em muito a capacidade de ação das mulheres que vêm sofrendo violência.

Para esclarecer os pontos em que se ancoram os discursos da vítima e suas implicações percorremos as articulações de conceitos psicanalíticos como eu, narcisismo, repetição, masoquismo e implicação subjetiva.

O conceito de narcisismo (Freud, 1914/1980a) confere ao eu, ou podemos dizer, à identidade, o caráter de ser um depósito de mal-entendidos. Pelo pronome pessoal eu o sujeito designa algo que o identifica enquanto uma imagem ideal específica, necessária diante de qualquer exigência pragmática.

Freud nos revela, a partir dos seus estudos sobre os sonhos, os chistes e os atos falhos, que uma vez diluídas as exigências pragmáticas, descortina-se a precariedade do enunciado "eu sou isso". O conceito de narcisismo, dessa maneira, confere ao eu uma categoria ficcional, que por isso não pode ser considerado o lugar da verdade do sujeito.

O mito de Narciso versa sobre o amor a si mesmo, um amor que, por rejeitar o outro, conduz à morte. Inicialmente Freud retomará a metáfora mítica como uma ferramenta para a elucidação das escolhas homossexuais de objeto (1910/1980); posteriormente ela utilizará a metáfora, também, como ferramenta para a compreensão do delírio persecutório (1911/1980). Contudo, ancorado em sua prática clínica, Freud se depara com a insuficiência de supor que a libido, primariamente fragmentada em um conjunto disperso de zonas erógenas (auto-erotismo), poderia encontrar no objeto sua via de integração, a partir da assunção da fase genital da organização libidinal.

O eu passa, então, a ser considerado passível de ser também um objeto de satisfação, e assume o lugar de unificador das pulsões fragmentadas (Freud, 1914/1980b). Diante da impossibilidade de satisfação pulsional plena, há um movimento de busca de objetos substitutos, dos quais o eu é um deles. Dessa forma, o narcisismo se define como um fenômeno inerente à própria constituição do eu, e adquire o estatuto de ser um fenômeno estrutural, pois é um estágio necessário entre o auto-erotismo e o amor objetal.

O narcisismo é considerado por Freud um fenômeno que se inscreve em uma cadeia geracional, pois se configura a partir da renúncia narcísica efetuada pelos pais, em função das exigências impostas pela realidade. Os pais, em um movimento compensatório ao fato de terem que abandonar uma imagem ideal, conferem a seu bebê a realização de uma perfeição perdida, condensada na famosa expressão freudiana: "His Majesty, the Baby" (Freud, 1914/1980c).

Este investimento dos pais deixa sua herança, o ideal do eu, e é a projeção desse ideal a ser alcançado que substitui o narcisismo da infância. Trata-se de uma fratura estrutural do eu, e que irá delimitar os campos do narcisismo primário e do narcisismo secundário. Dito de outra maneira, há uma divisão estrutural do eu entre o eu ideal, momento de coincidência do eu com o ideal de onipotência narcísica; e um ideal do eu, um lugar que o sujeito irá ocupar com o intuito de corresponder a uma expectativa. Como conseqüência, a busca de um ideal acarreta um empobrecimento do eu, uma vez que a libido é dele destacada e dirigida aos objetos ideais. Contudo, é também por este redirecionamento da libido que o eu se enriquece, na possibilidade de encontrar satisfação, tanto nas relações objetais como nas realizações de um ideal.

Tal proposição evidencia o ideal do eu como um curso da libido narcísica a algo externo ao sujeito, que cria exigências que reivindicam sua satisfação, e que irão modular traços do sujeito a normas e leis que lhe são exteriores. É dessa maneira que podemos compreender a afirmação freudiana de que o desenvolvimento do eu acarreta um distanciamento do narcisismo primário, uma vez que esse distanciamento se dá pelo deslocamento da libido "para um ideal do eu imposto desde fora" (Freud, 1914/1980d, p. 112).

Três anos após essas elaborações, o ideal do eu, tido como instância proveniente do narcisismo, é retomado em Luto e Melancolia (Freud, 1917/1980), em seu novo estatuto: uma instância autônoma e crítica, o supereu. O supereu se articula como fruto de uma clivagem entre uma parte crítica do eu e o próprio eu, a partir da diferenciação do luto e da melancolia e suas modalidades de escolha objetal. Posteriormente o supereu adquire seu estatuto de uma instância autônoma.

O eu sofre uma clivagem entre uma parte crítica e o próprio eu. O supereu, definido como instância autônoma e como agente crítico, é o fruto dessa clivagem, e se constrói sob a égide da primeira e mais importante identificação do sujeito: a identificação com o pai em sua pré-história pessoal. De um lado, o supereu se estabelece como o herdeiro do complexo de Édipo e condensa as moções pulsionais do Isso; de outro, enquanto ideal, exige que o eu assuma características do objeto perdido, forçando-o ao Isso como objeto de amor. Se o ideal do eu torna-se essa instância autônoma e crítica é por ser o que vem a substituir os investimentos libidinais incestuosos, em decorrência do declínio do complexo de Édipo. Opera-se, assim, uma substituição que encontra suas garantias na formulação de um ideal, ainda que se trate de uma substituição incompleta e interminável, uma vez que as substitui e também as interdita.

Dependente da libido do Isso, necessária para sua própria manutenção, e ameaçado pela tirania do supereu, o eu busca ser amado oscilando entre as posições de ser dominador ou dominado.

Essas formulações podem auxiliar uma melhor compreensão do que identificamos como a fixidez em uma cena de caráter acusatório, presente no discurso vitimado das mulheres, que impede que o companheiro seja reconhecido como parceiro, falível e impotente. E isso vale também para os homens. Se a relação conjugal não pôde realizar os desígnios impostos por um ideal, as mulheres que se ancoram na posição de vítimas mantêm essa relação vociferando a favor de sua integridade absoluta e contra a arbitrariedade do outro, impedindo seu ingresso na ordem do possível. Como exemplo, podemos citar os casos em que os homens são alcoólatras, um fenômeno bastante freqüente. Em seu discurso, é bastante comum que elas relatem o quanto tentaram auxiliá-los a superar esse vício, oferecendo-lhes amor e cuidados, sobretudo cuidados domésticos: a casa sempre limpa, organizada; o sustento garantido por seu trabalho. Sua convicção, conforme afirmam, é que esse amor e cuidado deveriam ser suficientes para que eles abrissem mão do álcool. Assistimos, então, ao movimento em que, diante da frustração gerada pelos fracassos em sustentar objetos privilegiados de amor, caem na posição narcísica de vítimas, ficando assim subordinadas aos mandamentos de um ideal que impede a relativização de uma postura adversarial. A posição de vítima pode ser entendida como uma exaltação narcísica do eu, uma tentativa de preservar um projeto soberano do eu.

E é desse ponto de vista, na figuração obscena e fascinante da vítima, que podemos articular os desígnios do ideal do eu como operador permanente do masoquismo primordial, e que carrega todas as suas terríveis conseqüências: recusa à cura e compulsão à repetição, ou, mais especificamente no caso desta reflexão, a monotonia discursiva do relato de uma cena (este ponto será mais detalhado adiante).

Para melhor elucidar essa argumentação as contribuições lacanianas, que enunciam a não coincidência entre o eu e o sujeito do inconsciente, são de grande valia. Isso porque são articulações que permitem que se compreenda o caráter imaginário da posição da vítima.

O eu entendido como uma produção imaginária revela que devemos considerá-lo uma cristalização de imagens do próprio corpo do sujeito, bem como de auto-imagens refletidas para ele por outros. Tal postulação, que tem como ponto de partida a concepção freudiana de que o eu é o resultado de sensações corporais, uma projeção da superfície do corpo (Freud, 1923/1980a), indica a via através da qual Lacan (1949/1995a) irá operacionalizar a metáfora do espelho: momento em que, ao se deparar com sua imagem em um espelho plano, o infans jubila-se pelo reconhecimento de sua própria imagem. Trata-se do lugar do eu ideal, modelado por uma relação dual imaginária. A assunção dessa imagem inscreve-se na lógica de se apresentar como o falo para o Outro, condição que é produzida pela identificação com uma imagem totalizada do próprio corpo. Segundo Lacan (1949/1995b, p. 97): "Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido que a análise atribui a este termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem".

Essa relação dual imaginária se esgota na própria especularidade, trazendo em si a marca de uma alienação. Isto é, a relação do infans com seu semelhante tem como conseqüência uma demarcação de seu próprio corpo, imagem com a qual se identifica e na qual se aliena. Lacan (1949/1995c) utiliza-se da concepção hegeliana da dialética do Senhor e do Escravo como um modelo para apreender com mais precisão essa relação dual imaginária: no campo da relação do Senhor e do Escravo só existe um ou outro, Senhor ou Escravo. Trata-se de um campo no qual o desejo de reconhecimento se aliena no desejo do outro, pois não há a encenação de dois desejos, de dois sujeitos, donde a intersubjetividade é ilusória. Isso porque apenas o Senhor se afirma como sujeito, e seu reconhecimento como Senhor se dá a partir da existência de alguém que, reduzido à condição de Escravo, se dá a reconhecer apenas em sua condição de objeto.

A relação das mulheres com as cenas que relatam parece obedecer a essa lógica que oscila entre, de um lado, a posição de se fazer objeto, submetendo-se ao homem - ancoradas em sua integridade moral e sacrifícios em nome do amor, ou ainda na dedicação incondicional aos filhos - e, de outro, uma posição adversarial e ressentida que pretende punir e eliminar quem lhes causou tanto mal. Isso revela tratar-se de um cenário que se constrói sobre a base de um ou outro. Nesta posição as mulheres demandam reconhecimento de uma identidade que, marcada pelo ressentimento, obscurece os movimentos desejantes, a implicação subjetiva de cada um na historização dos acontecimentos, bem como perpetua uma posição de assujeitamento.

Em síntese, tanto a concepção freudiana, de que o eu é uma projeção da superfície do corpo, como a lacaniana, de que o eu é uma imagem especular, tal como uma miragem, revelam a radicalidade do campo fictício que o enunciado "eu sou isso" comporta. Nesse sentido, o eu não pode ser considerado o lugar da verdade do sujeito.

O risco, aqui, é que a condição de vítima leve o sujeito a buscar uma proteção absoluta, obedecendo à gramática do narcisismo primário (Freud, 1914/1980e). Busca essa que Freud (1919/1980) condensa na construção da fantasia bate-se em uma criança6, na qual o filho se assujeita à imagem do pai soberano em nome da garantia ilusória de ser mais amado que os irmãos. Visamos demonstrar os impasses da perpetuação da fantasia na gramática bate-se em uma mulher, cena que, como nos depoimentos das mulheres, se constrói independentemente do narrador. Como, então, do ponto de vista psicanalítico, pode-se elucidar o que leva um sujeito a assumir a posição de assujeitamento?

 

Por que o assujeitamento? O masoquismo em questão

O termo masoquismo é adotado por Kraftt-Ebing, em seu compêndio sobre as perversões, Psychopathia Sexualis (1886), para descrever o que o autor considerava uma anomalia de natureza congênita e degenerativa daqueles que sofriam com prazer. A designação dessa perversão se serve do nome do autor Sacher-Masoch, em cujas novelas os personagens têm inclinações eróticas que vão desde desejar ser atado, ser vítima de castigos e de intensas dores físicas, até o estabelecimento de contratos nos quais a mulher amada deve prostituir-se. O enredo das novelas fala da escravidão de um homem a uma mulher, freqüentemente envolta em peles, e a dor ou a punição são condições indispensáveis para se obter prazer. Os personagens das novelas de Sacher-Masoch fornecem ao campo médico-legal, assim, a imagem paradigmática dessa perversão.

Para a psicanálise, o masoquismo denuncia, por sua ocorrência, um paradoxo na suposição inicial freudiana de que o princípio do prazer é o fundamento dos processos psíquicos. Tal ocorrência enuncia a questão de saber como é possível que um semelhante obtenha prazer no sofrimento, uma vez que consente em seu suplício e dele obtém satisfação. Freud, ao desvendar esse paradoxo, interrogando seus fundamentos, vai do estatuto inicial perverso do masoquismo até a estrutura propriamente dita.

No início de suas conceitualizações sobre o masoquismo Freud considera que há uma simetria entre o sadismo e o masoquismo, uma concepção que se baseia nas já mencionadas noções de Kraftt-Ebing. Trata-se, no caso do masoquismo, de alcançar a voluptuosidade através da dor, em um cenário de degradação e horror. Em seu trabalho Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1980a, p.160), Freud define o masoquismo como: "[...] a designação que abarca todas as atitudes passivas em relação à vida e aos objetos sexuais, a mais extrema das quais é o padecimento de uma dor física ou anímica, infligida pelo objeto sexual".

Ainda no primeiro dos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, dedicado às aberrações sexuais, o masoquismo é apresentado como o reverso do sadismo. Nesse sentido, o masoquismo se define em referência, ou até mesmo em subordinação ao sadismo. O que Freud postula nesse momento é que no sadismo encontra-se uma forma ativa de manifestação de um excesso pulsional não domesticado, a partir de um desenvolvimento exacerbado do componente agressivo da pulsão sexual. O masoquismo, seu oposto, caracteriza-se por ser uma forma passiva de expressão desse componente exacerbado. Freud considera que um sádico é sempre masoquista, e que o que determina um movimento ou outro é a característica dominante que surge na atividade sexual da pulsão, cuja expressão pode ser ativa ou passiva.

A partir de 1920, Freud irá se debruçar sobre a tarefa de conceitualizar o aparelho psíquico consoante a segunda tópica, e sua tentativa será a de incluir o fenômeno da repetição nas instâncias do sujeito. Dito de outra maneira, seu objetivo será o de incluir o princípio desse fenômeno nas instâncias do sujeito, perseguindo suas conexões com a pulsão de morte. O eu é descrito por Freud em O Ego e o Id como "uma pobre criatura que deve serviço a três senhores, e é conseqüentemente ameaçado por três perigos: o mundo externo, a libido do Id e a severidade do superego" (Freud, 1923/1980b, p.50), assertiva que já indica o caráter que posteriormente será dado ao masoquismo: o de um fenômeno implicado na própria constituição do eu.

É assim que, em 1924, com a publicação de O Problema Econômico do Masoquismo, Freud postula que o masoquismo, o retorno da pulsão ao próprio eu, revela o retorno a uma fase anterior, uma regressão. Tal concepção impõe uma retificação na teoria, pois o masoquismo assume um caráter originário na vida psíquica. Tal formulação acompanha a elaboração do conceito da pulsão de morte, pois o masoquismo surge como um "resto" desta que permanece interno no psiquismo, tal como uma estase da pulsão de morte. Ou seja, um resíduo que representa uma maneira de preservar a destrutividade no interior do psiquismo e a enlaça às pulsões eróticas.

O que vai se delineando, dessa forma, é que mais e mais o fenômeno do masoquismo se distancia do campo do pacto perverso apenas para revelar, em termos da fantasia inconsciente, uma forma de satisfação pulsional paradoxal. Se por um lado o masoquismo encontra sua expressão erógena radical no dispositivo de gozo próprio da perversão, por outro lado o masoquismo primário revela a possibilidade de gozo de cada sujeito nessa posição em seu caráter originário, e não apenas sintomático. O masoquismo torna-se, assim, um dos argumentos privilegiados para a reflexão sobre a coalescência entre as pulsões de vida e de morte.

O masoquismo, ao ser considerado como algo constituinte e estruturante, revela a existência de uma disponibilidade do eu em se posicionar como uma representação de objeto de gozo do Outro. O masoquismo perverso, pode-se dizer então, denuncia, de maneira radical e com um realismo apavorante, o engodo da completude, pois sua cena revela um sujeito que se faz de objeto, submetido incondicionalmente ao desejo do Outro. O masoquista perverso anseia dar consistência a um Outro completo, reduzindo-se à miserabilidade de um objeto destacado da cadeia significante.

É a partir do entendimento de sua condição estruturante que podemos compreender como o gozo masoquista opera uma forte resistência ao processo analítico, tal como descrito por Freud sob a denominação de "reação terapêutica negativa". Analogamente, podemos evocar o apego da vítima ao seu sofrimento, suas reiteradas acusações e queixas contra quem a fez sofrer, e sua relação monótona com a queixa, como uma expressão dessa resistência.

É assim que - na lógica dessa proposição de que o masoquismo, e não mais o sadismo, assume uma função estruturante - as pulsões não podem mais ser articuladas como uma expressão própria do ser humano, mas sim passam a ser articuladas sempre na relação do sujeito com seu objeto. E é a partir dessa vertente que Lacan irá considerar o masoquismo originário como efeito da alienação radical do sujeito na linguagem.

Nesse sentido, para Lacan o masoquismo primordial está estreitamente vinculado à precedência da ordem simbólica, uma vez que esta antecede o sujeito, é transindividual, e é a condição para que ele se constitua como sujeito humano. Dito de outra maneira, o sujeito, antes mesmo da aquisição da fala, já possui um lugar marcado simbolicamente, já é de alguma maneira "falado" pelos outros. O que é importante demarcar aqui é que o fenômeno do masoquismo se refere a uma modalidade de relação com o outro, e apenas em sua categoria perversa ele pode ser entendido como algo referido a uma estrutura individual.

Cabe ressaltar que o fenômeno do masoquismo, em sua condição constituinte e estruturante, refere-se a uma modalidade de relação que o sujeito irá estabelecer com o outro, uma vez que o masoquismo se inscreve no cerne da constituição do campo fantasístico no qual o sujeito irá operar suas relações. Trata-se de uma distinção fundamental para a reflexão que propomos, pois interroga incisivamente a versão corrente de que a mulher é vítima de violência por parte dos homens porque, ao fim e ao cabo, "gosta de apanhar". Se, como dissemos, o masoquismo revela sua condição de estrutura pelo fato de o sujeito ceder diante da antecedência do simbólico, algo bastante valioso ficará perdido se considerarmos o fenômeno da violência entre homens e mulheres sempre circunscrito a uma modalidade patológica perversa. Mais ainda, deslocamos a banalização de tomar o ato de apanhar como masoquismo, no sentido popular do termo, para focar no discurso sobre o ato: o discurso da vítima como alienante e perversor da condição desejante.

 

Por que o assujeitamento? O discurso jurídico em questão

Seguindo em nossa proposta de demonstrar o processo da construção da mulher como vítima, e tendo abordado os impasses da posição subjetiva da mulher e especialmente as vicissitudes da implicação subjetiva, vamos demonstrar o modo pelo qual o discurso jurídico articula-se a estas dimensões, contribuindo para a vitimização da mulher. Para tanto, vamos recorrer aos estudiosos deste tema.

Foucault (1986/2005a) traz elementos importantes para abrir a discussão sobre o discurso jurídico. Ele esclarece como um discurso que modula a interação social apresenta seu testemunho sobre o sujeito. Em linhas bastante gerais, para Foucault os novos mecanismos de poder que se instauram nas sociedades Ocidentais acabam por fazer prevalecer um discurso jurídico de ordem normativa.

Em seu livro A Vontade de Saber (1988), Foucault discorre sobre a passagem de um tipo de poder soberano - cuja principal característica é possuir direito sobre a vida e a morte de um súdito - para um poder que se exerce positivamente sobre a vida. Tal passagem inaugura, segundo o autor, a época do bio-poder. A conseqüência histórica de um poder que se centra na vida é a emergência de uma sociedade normalizadora que, longe de deixar de lado as leis, vai gerar uma intensa proliferação delas, com a intenção de distribuir os corpos vivos em termos de seu valor e de sua utilidade. O campo jurídico integra, cada vez mais, uma série de saberes das áreas da medicina, da administração e da educação, cujas funções são eminentemente reguladoras dos corpos. A docilidade dos corpos é considerada, pelo autor, como elemento indispensável do regime capitalista, que passa a ser garantido pela inclusão controlada dos corpos no aparelho de produção.

Nesse sentido, entende-se que a norma é o que viabiliza o campo social, sendo aquilo que articula o saber como uma espécie de linguagem comum, em uma tentativa de homogeneizar este campo. É a própria disciplina que fabrica padrões de comportamento que visam ao adestramento dos corpos, bem como à criação de uma norma, vista como uma medida que corrobora tal posição ao instituir uma concepção de que há um ponto comum para o qual todos os comportamentos devem convergir.

A compreensão de como o discurso normativo se instaura é importante para que possamos apreender de que maneira, na história do Ocidente, as práticas jurídicas são o que vem pautando novas formas de subjetividade, tal como o autor aponta em A Verdade e as Formas Jurídicas (1986/2005b, p.11):

As práticas judiciárias, a maneira pela qual, entre os homens, se atribuem os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras - ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história - me parece uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade.

O discurso jurídico, por ser normativo, trabalha sempre com categorias pré-existentes, e se operacionaliza a partir de um saber sobre o sujeito, já de antemão inscrito em seu próprio código. Trata-se de um saber que procura ordenar aquilo que se apresenta como puro não-senso. Segundo Kelsen (Kelsen apud Clauvreul, 1983, p. 74) é um discurso que se dirige a uma categoria do dever-ser e, assim, parte da premissa da existência de um homem capaz de ser razoável, segundo uma determinada norma. Vemos um campo no qual a dor de existir não é considerada, uma vez que esse discurso é dirigido ao futuro homem são, e não àquele que sofre.

Ao trabalhar com a categoria do dever-ser, o campo jurídico estabelece normas. É um discurso normativo, tal qual nos aponta Foucault, por ter como princípio a noção de que aquele que se afasta da norma instituída deverá receber uma sanção, cujo intuito é fazê-lo retornar ao interior da norma.

Como psicanalistas sabemos que é própria da linguagem a sua variação de sentidos. O campo jurídico, então, ao estabelecer posições definidas - no caso aqui discutido, definindo a priori vítimas e culpados - acaba por tornar opaca essa multiplicidade de sentidos e por dar lugar a um único sentido, passível de ser generalizado. O que se observa é um movimento que procura transformar os significantes da fala do demandante em signos que possam ser traduzidos apenas nos termos jurídicos. É dessa maneira que podemos supor que a queixa é tomada como um indício, e uma prova, a ser inscrita em um discurso específico.

Trata-se de um discurso que opera na gramática do registro do imaginário, no qual as palavras são tratadas como imagem e assim fixadas em uma certeza absoluta, e que supõe uma relação simétrica entre significante e significado. Ao supor que detém as ferramentas necessárias para que o sujeito alcance o seu bem-estar, o discurso jurídico acaba por excluir o caráter enigmático do desejo. E isso por sua conduta se pautar no dever-ser, corolário de um eu ideal, isto é, corolário desse outro imaginário.

É bastante conhecido o problema do acúmulo de processos que assoberbam o judiciário, e isso devido ao fato de que os litígios se arrastam por anos a fio. Podemos supor que isso ocorre porque os mais diversos sofrimentos, não traduzíveis no vocabulário jurídico, são tomados como reivindicações permanentes, frente às quais nada mais resta a fazer senão abrir mais um processo.

Se entendermos, como Lacan postula, que o vislumbre de alguma possibilidade de significação advém da relação dos significantes entre si, constituídos como uma cadeia significante, fica evidente o quanto algo bastante valioso se perde quando se supõe uma ordem já pré-determinada. A fala, tomada como uma informação que a coloca em relação a uma ordem previamente articulada, transforma o sujeito em um processo. A concepção lacaniana de que o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante supõe que cada escolha significante se faz na própria relação dos significantes entre si. Isso se traduz em dizer que a cada escolha significante assiste-se uma transformação no modo de representação do sujeito, constituindo, a cada vez, uma nova cena na qual se equacionam os elementos que a habitam. O discurso jurídico, ao conferir uma ordem prévia a esta cena, toma-a em sua materialidade, com o intuito de dar conta do que se passa a partir dos operadores de seu próprio discurso.

Em suma, o que se constata é a construção de um cenário no qual não se dá a palavra ao sujeito, uma vez que toda a tentativa é de articular a demanda a algo que possa ser inscrito no vocabulário jurídico. Um cenário no qual esse campo assume a posição de suposto saber, que é justamente o oposto da posição do saber do psicanalista.

A psicanálise, em sua tentativa de buscar subsídios para compreender o que modula as relações entre os sujeitos, parte do que diz respeito às regras mais fundamentais do laço social: seu ponto de partida é a interdição do incesto, e todas as outras interdições lhe são correlatas. O psicanalista não se encontra, de forma alguma, na posição de legislador, mas na posição de quem busca os efeitos da lei, pois é do desejo que a lei advém. A interdição, ao barrar o acesso do sujeito ao objeto que ele supõe ser o primeiro de seu desejo, confere à satisfação inalcançável o estatuto de causa que irá promover múltiplas inscrições, derivações e substituições que são possíveis pela via dos significantes, e que colaboram para a construção do eu.

Aqui deparamo-nos com uma armadilha: o discurso jurídico se pauta em uma crença de que existe uma uniformização possível, na qual o sujeito pode caber. A adesão a um saber já produzido (as certezas do Outro do direito) torna opacas as possíveis produções de saber do sujeito, e o confina ao beco escuro da repetição e ao gozo masoquista, uma configuração tal que leva os operadores da lei a poderem se acreditar aptos a fornecer condições que podem promover a sutura de um sujeito estruturalmente dividido. É justamente essa armadilha a que pode ser advertida pela psicanálise, pois para ela trata-se da busca de uma resposta impossível.

 

A desconstrução da vítima

Diante dessas considerações nos perguntamos: quais são as possibilidades para que o laço com o outro se instale de maneira alteritária, e não referido ao assujeitamento? A resposta certamente se refere a uma questão ética: não assumir um discurso em que o sujeito seja colocado como vítima passiva do que lhe fizeram e que a lei soberana irá reparar, fixando-o eternamente neste laço alienante. O sujeito deve ser convocado a se responsabilizar por seu desejo, desbancando o sujeito suposto saber do discurso jurídico e assumindo a falta, o vazio no qual supunha haver um saber do Outro.

Como psicanalistas acreditamos que é a palavra aquilo que oferece uma possibilidade de saída de uma relação dual imaginária: o campo simbólico, ao aprisionar o imaginário a uma cadeia metonímica infindável, é o que gera condições para que o objeto do desejo possa vir a assumir as mais variadas formas. Isso evidencia a importância de que se busque uma abordagem para o fenômeno da violência de gênero na qual a palavra recupere seu caráter polissêmico e cambiante e, nesse sentido, em nada atrelada ao empirismo da imagem.

Trata-se de uma proposta que caminha no avesso da maioria das políticas públicas - que, como vimos, definem a priori vítimas e culpados. Isso porque tal definição, já pré-estabelecida, tem caráter normativo, na medida em que estabelece um ordenamento imaginário no qual a vítima se vê destituída de ferramentas que possam lhe propiciar uma reflexão sobre qual a sua responsabilidade pelo que lhe aconteceu. Diante desse quadro, a vítima recorre à justiça, demandando o que lhe é devido. A imagem funciona, em tal ordenamento pré-estabelecido, e por isso imaginário, como um atestado de virtude: há apenas uma única versão possível para o que ocorreu, e essa certeza, do ponto de vista da psicanálise, perverte o circuito pulsional, pois a satisfação inalcançável deixa de funcionar como causa que coloca o desejo em marcha.

A proposta de que cada cena relatada possa ser escutada em sua função significante, ou seja, pela relação que essa cena tem com outras palavras, e não presa a uma única possibilidade de significação, abre brecha para que se possa produzir a dúvida onde só havia a certeza. E esta é uma escuta que pode permitir que a mulher se interrogue nos pontos em que, presa na dimensão imaginária da vítima, supunha tudo saber. Em suma, trata-se de instaurar a dúvida no campo das certezas que regem a vida imaginária. A psicanálise nos adverte que a demanda de amor, a demanda de um olhar soberano e protetor, acaba por se revelar uma forma de sucumbir à repetição, descortinando os efeitos deletérios do masoquismo originário. É necessário, então, partir em busca de uma prática na qual a palavra possa circular, criando campo para uma constante construção e reconstrução de uma narrativa individual, através da interrogação sobre o lugar que se ocupa na cartografia de poderes que modulam o laço social.

A assimetria entre as exigências de emancipação da mulher e a oferta de um serviço de assistência que lhe confere uma posição vitimizada é um dos campos nos quais a psicanálise pode e deve se pronunciar. Isso não se traduz em pregar que apenas a psicanálise está habilitada a enfrentar a questão da violência entre homens e mulheres, tampouco corresponde a pregar a exclusão das vias jurídicas. Trata-se de enfatizar a importância de que seja realizado um trabalho interdisciplinar.

Nesse sentido, a psicanálise pode ser parceira dos operadores jurídicos, sustentando a definição de um sujeito marcado pela falta, que o define em sua condição desejante, e também alertando para os riscos da pretensão de suturar essa falta com modos uniformizados de resposta. No que se refere ao tema que vimos discutindo, questionando a eficácia de políticas públicas que conferem à mulher uma posição vitimizada.

O reconhecimento da condição de vítima não se esgota em si mesmo: é apenas o início de um percurso que busca, a partir de abordagens alternativas a apenas as vias estritamente jurídicas, que cada mulher possa reconhecer as raízes da violência, ou, quando isso não é possível, que elas possam reconhecer as conseqüências que a violência tem para a mulher. Acreditamos que é a partir dessa condição que se pode criar a possibilidade de que o âmbito privado possa migrar para o público, convertendo o testemunho dos danos sofridos em ferramentas contra outros danos que possam vir a se produzir.

Isso nos leva a pensar que o apelo à lei, a depender da escuta oferecida, mostra duas saídas possíveis: ou a adesão a um discurso jurídico incondicional, no qual o sujeito do desejo se perde, pois a oferta de uma resposta possível à dor de existir - no caso, o nome "vítima" - aparta o sujeito de sua condição desejante, bem como o afasta de qualquer possibilidade de se separar de uma solução fantasmática repetitiva, limitada e previsível; ou o caminho que a psicanálise abre, e que tem como base um saber que não é mais que suposto. Tal saída, ancorada na falta radical de um significante unívoco, indica a possibilidade de se contornar o vazio com um objeto inventado, com as palavras, nas relações amorosas e na realização dos, ainda que ilusórios e cambiantes, ideais.

 

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Recebido em 10 de julho de 2008
Aceito em 9 de outubro de 2008
Revisado em 29 de outubro de 2008

 

 

Notas

1. O conceito de gênero tem sido objeto de muitos debates no campo do construcionismo social. Não é nosso intuito, aqui, aprofundar estes debates, mas sim demarcar este conceito como aquele que expressa a produção, na cultura, de sentidos atribuídos aos comportamentos, crenças, valores, ideologias e práticas humanas a partir de um determinado contexto histórico, social e cultural. Nesse sentido, no curso deste trabalho iremos operar com o conceito sob a perspectiva dos estudos de gênero, em que as categorias "homem" e "mulher" devem ser apreendidas dentro de seus contextos sociais e culturais. Isto implica não considerar apenas a constituição biológica de cada um dos sexos, mas também, e sobretudo, a maneira pela qual se articulam o corpo biológico, o desejo sexual e as práticas de homens e mulheres.
2. Dados obtidos no site do Conselho Estadual da Condição Feminina: http://www.conselhos.sp.gov.br/condicaofeminina/dados/violência_contra_mulher.html.
3. Remetemos o leitor ao trabalho completo de argumentação e intervenção: Cerruti, M. Bate-se em uma Mulher: Impasses da Vitimização. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica pelo Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (IPUSP). Dezembro de 2007.
4. As teorias que explicam a subordinação feminina como uma decorrência do patriarcado entendem que tal regime se baseia na "necessidade" masculina de dominar, e seu empenho é demonstrar, historicamente, as origens do patriarcado com vistas a colocá-lo em questão. As teóricas marxistas não só admitem o patriarcado como condição explicativa para a subordinação como também buscam uma explicação na divisão sexual do trabalho imposta pelo capitalismo, sugerindo que é necessário eliminar a divisão sexual do trabalho para eliminar a dominação masculina. Ver: Scott, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Lopes, E.; Teixeira, M. Educação e Realidade, número especial Mulher e Educação. Porto Alegre, vol. 15, número 2, jul./dez. 1990 pp. 5-22.
5. Ver Gregori, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993; Moore, H. (1997). Compreendendo Sexo e Gênero. In: Gold, T (ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge, 1997 (pp.813-830). Tradução de Júlio Simões, exclusivamente para uso didático; Paiva, V.. Cenas Sexuais, Roteiros de Gênero e Sujeito Sexual. In: Barbosa, R., & Parker, R. (orgs.). Sexualidades pelo avesso. São Paulo: Editora 34, 2000, p.248-289; Petchesky, R. P. Direitos sexuais: um novo conceito na prática política internacional. In: Parker, R. & Barbosa, R. (orgs.). Sexualidades brasileiras (pp. 16-36). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
6. Optamos pela tradução "Bate-se em uma criança", em lugar de "Uma Criança é Espancada". Apesar de a segunda tradução ser a que consta das edições brasileiras das Obras Completas de Sigmund Freud, e de ser a que aparece como título em nossa bibliografia, consideramos que a primeira, por ser mais fiel ao título original, evidencia melhor a complexidade do lugar do sujeito na fantasia, aspecto que iremos desenvolver ao longo de nossa argumentação.

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