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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.8 no.4 Fortaleza Dec. 2008

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Música, indústria cultural e limitação da consciência1

 

Music, cultural industry and conscience limitation

 

 

Ari Fernando MaiaI; Deborah Christina AntunesII

IProfessor Doutor do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências na Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho/ Unesp - Campus Bauru. End.: R. Aviador Mário Fundagen Nogueira, 1-43, Jardim América. Bauru, SP. CEP: 17017-324. E-mail: arimaia@fc.unesp.br
IIFormada em Psicologia pela UNESP - Bauru. Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Doutoranda em Filosofia pela UFSCar. End.: Al. das Rosas, 270, apt. 28, Cidade Jardim. São Carlos, SP. CEP: 13566-560. E-mail: deborahantunes@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A partir de uma pesquisa empírica que buscou estudar as relações entre sujeitos e música, no que tange a predileções e rejeições referentes a estilos, este artigo faz uma análise sustentada teoricamente em trabalhos de Theodor W. Adorno sobre música. Para isso recupera, inicialmente, o conceito de indústria cultural e de música como mercadoria. Realiza análises referentes à parte dos dados coletados na pesquisa por meio de entrevistas com 16 sujeitos, músicos e não-músicos divididos de modo proporcional. Apresenta ainda uma tipologia relacionada às justificativas de adesão a estilos por parte dos participantes da pesquisa, e posteriormente, com base em textos adornianos, uma tipologia referente à conduta musical, realizando uma reflexão a respeito da relação entre ambas e da utilidade da tipologia para a crítica social. Aborda a rejeição a estilos musicais e o esvaziamento da sua justificativa, que se baseia em estereótipos criados socialmente e introjetados pelos sujeitos. Considera a função da música como cimento social e ideologia que se constitui base de ressentimento e fixidez cujos resultados transparecem tanto na economia psíquica dos indivíduos, quanto na esfera pública.

Palavras-chave: indústria cultural, música, limitação da consciência, tipologia, Theodor Adorno.


ABSTRACT

This article has carried out a study which was theoretically supported on the pieces of work by Theodor W. Adorno about music, concerning one empirical study between individuals and music, when it comes to likes and dislikes in reference to music styles. Initially the article brings back the concept of cultural industry and also the concept of music as a commodity. According to the presented methodology, the article has carried out analyses based on some of the collected data. It also presents a typology related to the justification for the support of music styles by some of the individuals who took part during this research, and later, with support on the texts by Adorno, a typology related to individuals behavior towards music styles, promoting a discussion with respect to the relationship between both and the use of typology to social critic. It is also about the rejection towards some music styles and the lack of justification of some individuals, which is usually based on stereotypes. The research also considers the function of music as a means of social control and ideology that forms a basis of resentment and fixation whose results are shown as much in psychological economy of individuals as in the public sphere.

Keywords: cultural industry, music, conscience limitation, typology, Theodor Adorno.


 

 

Fundamentos teóricos

Embora se possa afirmar que a situação da música na indústria cultural, criticada radicalmente por T. W. Adorno, persista em nossos dias, os fundamentos objetivos que correspondem à situação que foi criticada são, hoje, mais disseminados e mais abrangentes do que na época em que Adorno os analisou, e assim, embora as características de estandardização, facilitação, banalidade e vulgaridade ainda persistam, talvez existam características a serem aduzidas, assim como novas conseqüências no âmbito da audição regredida. Se a música, segundo Adorno (1932/2002a), expressa claramente as contradições que existem na sociedade, talvez o surgimento de novas técnicas para a produção, a difusão e o consumo de mercadorias musicais impliquem também novas características para a sensibilidade dos ouvintes que podem ser investigadas, já que a ideologia presente na indústria cultural acaba por produzir nos sujeitos uma sensibilidade adequada aos seus produtos.

Assim, na tentativa de contribuir para compreender as contrapartidas subjetivas do contato com os produtos da indústria cultural no âmbito musical, este texto toma como base uma pesquisa que procurou analisar a relação estabelecida entre sujeitos músicos profissionais e não músicos com a música, especialmente no que tange a suas justificativas de adesão e rejeição aos estilos musicais, no caso, concernentes à música na forma como é apresentada pela indústria cultural. É importante frisar que o que se pretende não é uma crítica aos sujeitos, mas à sociedade que se encontra sedimentada neles, assim como à relação entre os sujeitos e a sociedade.

Alguns conceitos são fundamentais para a crítica em questão, em especial o conceito de indústria cultural. Sem pretender esgotar a questão, pode-se compreender a indústria cultural a partir da incorporação dos bens culturais à lógica da mercadoria e das conseqüências mais amplas dessa incorporação, tanto para a cultura quanto para a consciência dos indivíduos. Ela integra o cinema, a televisão, o rádio, revistas, entre outros meios, e o modo de operar a produção, a distribuição e o consumo em todas essas esferas, além das tecnologias que são peculiares a cada uma delas, e culmina na oferta de produtos padronizados.

O vínculo entre o desenvolvimento tecnológico e a dominação, que ocorre no âmbito da indústria cultural, se reflete no adestramento do homem por meio da técnica, e abrange praticamente a totalidade da vida cotidiana. Pela oferta ininterrupta e abrangente de produtos padronizados - distinguíveis entre si pela estratificação em diferentes estilos ou níveis de qualidade que, no entanto, é mera aparência -, a indústria cultural tanto produz novas necessidades quanto padroniza a sensibilidade dos espectadores, e assim produz uma adesão voluntária à lógica da dominação (Adorno, 1967/1994).

Um exemplo notório dessa realidade é apresentado por Adorno em várias de suas análises da música na indústria cultural. Adorno e Simpson (1941/1994) revelaram que a música popular apresenta como características principais a padronização, a pseudo-individuação e a facilitação. Desta forma, as músicas veiculadas pela mídia de massa e produzidas pela indústria cultural são semelhantes em sua estrutura, o que caracteriza a padronização, ao mesmo tempo em que possuem detalhes que as diferenciam, como um ritmo ou uma letra, e aqui é facilmente identificada a pseudo-individuação a partir do momento em que estas canções apresentam-se novas na aparência, porém iguais em seu conteúdo musical. Se a música, mesmo sob pequenos novos "enfeites" é a mesma em todos os hits, ela é facilmente identificável pelo ouvinte, por isso sua audição é facilitada, já que é de fácil reconhecimento, não requerendo esforço ou atenção concentrada no seu processo de escuta, excluído o esforço - que não é pequeno - necessário para aderir a um material musical sem sentido.

Ao ser exposto exaustivamente a este produto da indústria cultural o indivíduo não desenvolve a faculdade de ouvir de maneira estrutural, na medida em que dele é requerido apenas o reconhecimento de uma música que há muito é conhecida, e desta forma, ele não aprende a analisar o material, a estar atento a ele, já que isso não seria necessário. As capacidades que possibilitariam a leitura do material musical, a experiência, o contato com o novo, lhe são negadas na medida em que o novo não ocorre, e o indivíduo permanece passivo, apenas consumindo aquela mercadoria que lhe é oferecida pela mídia como um suvenir (Adorno e Simpson, 1994).

No contato com o material presente na indústria cultural é negada também a possibilidade de escolha, pois como Adorno (1962/1976a) citou, a composição escuta pelo ouvinte2. Já que a música apresenta as características mencionadas, e o indivíduo não tem autonomia para escolher, é problemático afirmar que se tem um gosto por determinado estilo, uma vez que o valor da música não está mais no próprio material musical, mas em sua popularidade, em seu reconhecimento (Adorno, 1969/1998b). Tal popularidade ocorre devido ao que Adorno e Simpson (1994) chamaram de "plugging", na verdade um complemento da padronização, ou seja, uma técnica de promoção musical que impõe a música ao ouvinte pela repetição, que rapidamente torna a música conhecida e aceita, fazendo com que a relação entre o reconhecimento e o novo seja destruída e o simples reconhecimento passe a ser a finalidade da escuta musical e não o meio para o surgimento de algo realmente novo. O potencial destrutivo da cultura administrada acaba por inviabilizar práticas emancipatórias ao exterminar a reflexão crítica, na medida em que mina as bases sociais objetivas que permitiriam aos indivíduos realizá-la. O que se põe no lugar desta é a passividade, reforçada no âmbito do entretenimento, que se estende ao pensamento e à conduta social (Adorno, 1994).

A oferta de padrões, consubstanciados nas marcas ou estilos musicais, é oferecida substituindo a experiência e o pensamento. Ao se relacionar com um objeto os indivíduos possuem idéias, percepções e conceitos que, ao mediar esta relação, são fundamentais para a experiência e conseqüentemente para o conhecimento. Crochik (1995) evidencia diferentes modos pelos quais os sujeitos podem se relacionar com os objetos, dois deles típicos do preconceito, outro próprio de uma experiência autêntica em relação ao objeto. A primeira forma seria através da eliminação de toda experiência e conceitos anteriores, reproduzindo o objeto sem qualquer reflexão, a segunda seria ignorar ou deturpar as características do objeto fazendo com que suas idéias iniciais permaneçam, e a terceira seria relacionando seus conceitos anteriores com os objetos e diferenciando-os na medida em que a experiência ocorre. A reprodução irrefletida e a deturpação acontecem quando não ocorre experiência e reflexão. Esta ausência caracteriza o preconceito, uma forma de agir de maneira irrefletida e fixa perante um determinado objeto. A conduta rígida frente aos objetos ocorre com base em estereótipos criados pela cultura e apropriados pelos indivíduos, e desta forma a atitude preconceituosa do indivíduo pode variar, dependendo do processo de socialização, da cultura em que se desenvolveu, e do momento histórico em que ele vive. É importante ressaltar que o preconceito não existe apenas quando há rejeição ou aversão de forma irrefletida, ele ocorre também quando a adesão aparece com estas mesmas características.

Não se deve perder de vista, no entanto, que o alvo da reflexão crítica é a relação entre o indivíduo e a cultura, compreendendo que o primeiro é a parte mais fraca, que a ele são dadas formas estereotipadas de pensamento e de sensibilidade na indústria cultural que o forçam a adotar atitudes também estereotipadas e adequadas à manutenção da ordem capitalista. É importante considerar, além disso, que o processo de produção e reprodução da sociedade capitalista ocorre numa contradição em processo, e nesse movimento novas formas de justificação para a manutenção dessa sociedade são continuamente produzidas, assim como novas formas de resistência. Assim, com o intuito de investigar a situação atual do vínculo dos indivíduos com o material musical veiculado pela indústria cultural, foi realizada uma pesquisa empírica com músicos e não músicos, de acordo com os procedimentos descritos a seguir.

 

A pesquisa

Foram entrevistadas dezesseis pessoas, de ambos os sexos, divididas em dois grupos, de forma proporcional. O primeiro grupo foi composto por músicos profissionais (doravante identificados pela letra M), com formação superior em música ou curso equivalente, com especialização em algum instrumento musical. No segundo foram entrevistadas pessoas sem nenhuma formação musical formal (identificados pela letra N), com no mínimo o ensino médio completo.

Foram utilizados para a coleta dos dados: um mini gravador de fita cassete, fitas cassete de sessenta minutos cada, pilhas no tamanho AA, papel, caneta, o termo de esclarecimento e o de autorização e um roteiro de entrevista (semi-estruturado) com as seguintes questões: 1) Qual o seu estilo musical predileto?; 2) Por que você considera esse estilo o seu predileto?; 3) Qual o primeiro artista ou estilo que você gostou na infância?; 4) Em que época da sua vida esse estilo de música tornou-se importante para você? Por quê?; 5) Diga três palavras que definem o seu tipo de música predileto; 6) Quais são seus autores (artistas) preferidos? Há mais identidade com o estilo ou com um artista específico?; 7) Como ouve (rádio, internet, Cds, etc...)?; 8) Você tem alguma educação musical? Especifique sua formação.; 9) Você toca algum instrumento? Se sim, como aprendeu? ; 10) Em que situações (momentos) você ouve música ou toca?; 11) Quanto tempo, diariamente, você calcula que passa ouvindo ou estudando música?; 12) Você tem amigos que ouvem e gostam do mesmo tipo de música que você? Houve alguma influência (obra, professor ou colega de profissão) importante, durante sua formação, na determinação de suas preferências musicais?; 13) Você tem amigos que ouvem músicas diferentes do seu estilo predileto? Como você julga os estilos musicais que não são os seus prediletos?; 14) Como você conheceu seu estilo musical predileto? Em que época? Quantos anos você tinha?; 15) Há algo na sua forma de ser (ver o mundo, se comportar, se relacionar com outras pessoas) que tenha relação ou influência desse tipo de música? E em relação à música em geral?

As pessoas do primeiro grupo foram contatadas em escolas de música e universidades de uma cidade do interior do Estado de São Paulo; as pessoas do segundo grupo foram contatadas no ambiente universitário. Todas as pessoas participantes foram esclarecidas sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa conforme um termo de esclarecimento elaborado especificamente para esse fim. A coleta de dados foi realizada mediante um roteiro de entrevista elaborado e testado em sua funcionalidade em situação piloto com sujeitos similares, visando à elaboração de uma versão final da entrevista. A gravação foi transcrita na íntegra para efeito de análise.

 

Análise das entrevistas

A análise das entrevistas resultou em uma categorização realizada a partir das justificativas apresentadas pelos sujeitos para a adesão ou rejeição aos estilos musicais. Observando as respostas, foram elaboradas as seguintes categorias: justificativas que se embasam em critérios lógico-racionais, e justificativas que se embasam em critérios morais. Dentro da categoria moral foram identificadas quatro sub-categorias: emocional, situacional, tradicionário e consumista. Fragmentos de algumas respostas serão apresentados a seguir, primeiramente aqueles relativos à adesão e posteriormente os relativos à rejeição, visando a ilustrar as categorias e a apresentar questões que serão analisadas mais pormenorizadamente na discussão.

Considerando que o nível de profundidade obtido nas respostas não permite conclusões peremptórias, foram identificadas na categoria lógico-racional as respostas que apresentam como justificativas para a escolha aspectos relativos ao material musical, partindo de sua análise técnica ou de sua articulação com o momento histórico ou seu papel social. As respostas enquadradas nesta categoria, então, revelam conhecimento das técnicas, dos critérios estéticos ou de outros elementos constituintes da arte musical, além de indicarem critérios que são essenciais para uma audição ativa, essencial para a realização da análise crítica. Exemplos das falas identificadas neste critério, justificando a adesão, aparecem apenas entre músicos. Algumas, bastante significativas, são as seguintes:

...eu costumo dizer que quando eu era criança eu não aprendi, eu não sabia o que era tocar piano, então eu repetia o que estava na partitura, só com os estudos universitários, filosofia, entendendo toda essa parte que eu vi que o universo da música não é só aquele visível que a partitura lhe dá, né, o universo musical está além do visível (M 4). Lógico-racional

...estilo barroco é muito difícil de se trabalhar, parece com uma obra arquitetônica, tem muitas polifonias, muitas linhas, muitas vozes, mas para mim foi sempre muito curioso entrar no, no, nós falamos, na textura, no estilo barroco, como uma, uma partitura adentro por conter tantas coisas, não, tem a ver com, com, ou seja, as características mesmo do, do estilo e eu, o que para muitos era uma forma sobrecarregada de trabalhar, para mim era prazeroso, para mim era gostoso, entrar nele, descobrir que cada linha falava isso, outra linha falava aquilo, outra linha aquilo como todas elas juntas davam uma mensagem emocional tão forte (M 6). Lógico-racional.

...se você pegar a evolução da música e ver lá na época da Idade Média, o Cantochão, ou o Canto Gregoriano, como muita gente conhece, era um sistema musical instituído pela Igreja e que tinha uma função, 'se' entendeu? O que a gente chama de Ethos musical, então para cada ofício divino eles utilizavam um modo diferenciado, o que era... hoje nós queremos que todos saiam do ofício divino, que seria a missa daquela época, culpados, então eles usavam um sistema musical, um modo musical, que mexesse com eles dessa maneira, ou, hoje nós queremos que todo mundo doe dinheiro para a Igreja, então eles usavam uma outra, um outro sistema de modo mais exuberante, mais atraente, mais vivo pra que todo mundo ficasse feliz e... e fizesse esse tipo de doação de dinheiro pra Igreja... (M 4). Lógico-racional.

Nos três exemplos, a despeito do tom coloquial, há claramente referências diretas ao material musical ou a aspectos concernentes à prática do músico. No primeiro caso, a exortação à necessidade de compreender filosofia para ler bem partituras parece indicar que o músico admite que a execução de uma obra envolve não apenas aspectos técnicos, mas que o seu sentido é revelado por estudos de filosofia, por exemplo. A compreensão de uma obra musical implica, não obstante, atentar fundamentalmente para os aspectos imanentes à música, como a forma musical e as técnicas musicais e não musicais inerentes ao material, pois o locus no qual se consubstancia objetivamente o possível conteúdo de verdade de uma obra de arte é a relação tensa entre forma, conteúdo e sociedade que a obra mimetiza de forma crítica pela expressão do sofrimento e de sua superação. A descrição da forma musical isoladamente, entretanto, resultaria também em uma avaliação parcial. A caracterização do estilo musical barroco, feita pelo entrevistado no segundo exemplo, destaca a textura musical composta a partir de várias vozes, focando uma característica intrínseca a várias obras deste estilo, mas tanto elide questões sobre a forma que são também essenciais, por exemplo, sua história e sua Aufhebung3 pelas formas musicais posteriores, como não avança a análise para fatores não musicais. A discussão sobre o uso funcional da música pela Igreja e as diferenças entre os vários estilos quanto ao seu uso chama a atenção para o fato de que a música foi utilizada com a finalidade de controle social muito antes do desenvolvimento da indústria cultural, evidenciando na análise que compreender a música implica considerar seu papel social. Não é uma novidade histórica essa utilização, mas a forma como se dá a manipulação dos ouvintes parece ser diferente no ambiente da igreja e na indústria cultural.

Já as falas classificadas no critério moral relacionam-se às justificativas de adesão que se deram de acordo com um hábito estabelecido no cotidiano do sujeito. Assim, os ouvintes apresentam justificativas para sua adesão fora do âmbito musical, ou então destacam certos aspectos da música isoladamente, como seus efeitos emocionais, a interpretação virtuosística de uma peça musical ou a função prática de determinado estilo. Uma vez que as respostas se deram predominantemente nesta categoria, e várias justificativas distintas foram apresentadas, ela foi desdobrada nas quatro subcategorias já citadas, que podem ser especificadas pelas seguintes características: moral emocional: o vínculo do indivíduo com a música ocorre, essencialmente, devido aos 'efeitos' emocionais por ela provocados; moral situacional: a música é ouvida de acordo com o ambiente, sendo explicitamente "fundo" para outras atividades; moral tradicionário: as respostas revelam que a adesão a determinado estilo musical se deve a uma tradição, vinculada a experiências infantis com a família ou com um ideal de nação; e finalmente, moral consumista: o vínculo está relacionado diretamente com o consumo da produção de determinado artista, marca, estilo ou imagem; neste caso, especificamente, não há vínculo com a música. A seguir, alguns exemplos de respostas dos músicos, relativas à adesão, identificadas na categoria moral:

...eu acredito que seja mais pelo, pelo... o caráter emocional da canção né? A música erudita, ela transpõe o espírito, ela é calma... Simplicidade, paixão e... amor, eu não sei... (M 1). Moral emocional.

...quando preciso dormir ou ouço determinada música, quando eu preciso acordar porque eu to muito cansada e na hora de trabalhar eu tenho que pôr determinada música pra acordar (M 8). Moral situacional.

Eu acho que desde quando eu era pequena, sempre, sempre curti esse estilo de música, me formei e faço esse estilo de música hoje, então acho que em todos os momentos, ela não se tornou especial, ela sempre foi (M 3). Moral tradicionário.

A MPB, ela sempre foi importante, porque eu sempre tive contato com a música popular brasileira. Eu tenho um lado, um lado musical que desde criança eu mexia com instrumento, brincava, gostava, né, me foi oferecido quando criança, então já vinha de família também (M 7). Moral tradicionário.

Emocionalmente muito forte e virtuoso, técnica, interpretação, tudo e parecia, parecia coisa de anjos, não me parecia um ser humano tocando e me impressionou mesmo. Parecia uma coisa sobrenatural, até hoje fico apaixonada pelo que ele faz (M 6). Moral emocional.

Em todos os exemplos citados as falas remetem a aspectos específicos da música sem que, no entanto, as justificativas sejam lógica ou racionalmente coerentes como tais. No primeiro exemplo o importante para o músico é o sentimento, a emoção que a música nele desperta; ora, provocar emoções é um efeito inseparável da audição de qualquer música e, no entanto, é insuficiente para justificar por si só a adesão ou rejeição à mesma. Mas o que este sujeito afirma vai além; ele identifica determinado estilo - a música erudita - como aquele que produz emoções como a paixão e o amor, ou estados de espírito como a calma, desprezando a possibilidade de que outros efeitos emocionais, que talvez sejam considerados "negativos", possam ser tão importantes quanto os citados para compor o conteúdo de verdade de determinada obra musical, principalmente se pensarmos na música que Adorno (2002a) chama de séria4. Aderir à música erudita justificando tal adesão por esta ser uma música "calma" implica, no mínimo, dois problemas: o primeiro é um desconhecimento da própria música erudita, da música séria, que revela contradições humanas, sociais, como uma arte que denuncia o sofrimento buscando superá-lo. Jamais uma arte, com essas características, pode ser total ou simplesmente "calma", induzindo ao "deleite", ao "prazer", uma vez que o próprio sofrimento gera angústia, estranhamento, talvez por ser para nós por demais familiar. O segundo é que definir a música erudita como uma música calma corresponde exatamente ao estereótipo dado a ela pela indústria cultural. Assim, a caracterização apontada acima se baseia em conteúdos advindos de uma visão estereotipada do estilo, por desconhecimento de suas características (o que é estranho, por se tratar de um especialista) e pela introjeção, sem qualquer reflexão, da visão fragmentada veiculada pela indústria cultural, o que dificulta a possibilidade de uma experiência real do sujeito em relação ao objeto de adesão.

No segundo exemplo, a música parece ser utilizada como um remédio, uma droga que deve ser ministrada em determinados momentos do dia para permitir ao sujeito realizar suas atividades rotineiras. Sem dúvida, também serve como "fundo" para tais atividades. No terceiro e no quarto exemplos, a justificativa para a escolha do estilo é a de que ele fez parte da vida do sujeito, evidenciando que a adesão se dá pelo hábito. Além disso, não há nenhum questionamento sobre o estilo "MPB", ou seja, não há a preocupação em delimitar o tipo de música contida nesse rótulo, o que seria sem dúvida uma tarefa inglória, mas por outro lado, a ausência de qualquer justificativa ou explicação indica uma aceitação do rótulo como se fosse natural e suficiente. Não se está defendendo aqui que tal classificação deva ser ignorada, uma vez que isso seria do mesmo modo problemático, pela negação da cultura e da sociedade, mas sua aceitação sem qualquer tipo de análise implica em desistir de qualquer autonomia, e a idéia de uma análise musical crítica não pode prescindir do reconhecimento da dialética presente na relação entre indivíduo e sociedade.

No quinto exemplo o entrevistado evidencia sua adoração por determinado músico, deixando em segundo plano as propriedades da música que ele executa. Evidentemente, não é possível separar completamente qualquer música da interpretação específica que se dê a ela a partir de uma determinada partitura, mas focar primordialmente a interpretação ou o virtuosismo do músico, no limite, significa desistir da própria música.

Nos exemplos citados, a adesão a determinado estilo parece ser justificada como uma paixão, uma tradição familiar, uma necessidade orgânica próxima ao vício ou a partir de aspectos fragmentados da música, ou melhor, de um determinado estereótipo a respeito do estilo musical, e este impede a construção de uma experiência em relação ao objeto. Se não há referência à arte musical, perdem-se de vista as mediações teóricas, técnicas, estéticas e críticas que são importantes para compreender uma obra musical, mas tão importante quanto o domínio técnico é a possibilidade de perceber a angústia, eventualmente provocada pela escuta.

A seguir estão as falas produzidas por sujeitos não-músicos que dizem respeito às justificativas para aderir a determinados estilos musicais que se enquadram na categoria moral, com seus desdobramentos.

Depende do meu estado de espírito, se eu to mais calma, MPB assim, o toque da música, as letras também, eu gosto muito das letras, daí se eu to mais agitada tal, animada, eu já coloco um "pop rock" nacional, as batidona (...) Alegria, sentimento, estado de espírito. Tudo depende do meu estado de espírito, a música que eu vá ouvir (N 8). Moral emocional.

como eu jogo basquete, é a preferência de quase todo público que joga basquete, me interessou também (N 6). Moral situacional

eu gosto de escutar no trabalho assim, uma música ambiente, e quando eu saio com o carro coloco som, se eu tou na Internet eu coloco som... (N 8). Moral situacional.

...desde pequena porque em casa todo mundo sempre ouviu, aí, já cresce ouvindo, vicia (N 3). Moral tradicionário.

como influência, meus pais. Porque eles também gostam muito dessa música eu aprendi com eles a gostar dessas músicas (N 5). Moral tradicionário.

...músicas mais comuns assim, eu não sou daquelas de gostar de uma banda e ser fanática pela banda, eu escuto o que toca na rádio, o que todo mundo escuta (...) Rádio, eu não sou de comprar CDs, eu ponho o rádio e escuto o que tiver tocando (N 1). Moral consumista.

Nos vários exemplos apresentados é possível notar que não há nenhuma referência a critérios musicais para a adesão. No primeiro exemplo, de modo muito evidente, a música funciona como apoio para os estados emocionais que o sujeito experiencia. No segundo exemplo, a escolha musical está vinculada à companhia do grupo de amigos que jogam basquete e, pelo relato do sujeito, a música acompanha a atividade de jogar, ou talvez, é um meio a mais para construir uma identificação com o grupo. Também no terceiro exemplo a música acompanha as outras atividades realizadas pelo sujeito sem que exista uma atenção específica voltada para ela. No quarto e no quinto exemplos é possível notar que, também entre os não músicos, a influência da família é grande quando se trata de escolher estilos musicais. O penúltimo exemplo é de um sujeito que não se vincula a estilo algum, mas consome qualquer música que seja oferecida pela indústria cultural. Esse sujeito deixa evidente sua abstenção em relação à escolha da música que ouve e, além disso, não apresenta nenhum constrangimento quanto à falta de critérios porque a escolha, assumidamente, não existe. No último exemplo fica explícita a presença e a influência da indústria cultural e de seus meios de difusão, a exemplo da rádio, como mediadores da relação dos sujeitos com a música, uma vez que o aparato técnico citado é assumidamente o principal meio para a escuta.

Essa forma de relação com a música corresponde às características essenciais desse objeto em sua forma alienada, e os estilos refletem essa alienação. Longe de ser um agrado ao ouvinte, a música, atualmente, passou a estar subordinada à dominação na esfera da sociedade administrada, com a ajuda do desenvolvimento técnico e científico, perdendo seu caráter qualitativamente diferenciado, sua subjetividade e especificidade, passando ao status de uma mercadoria industrializada que envolve multinacionais e um mercado em expansão, o que engloba técnicas, tecnologias e mercado consumidor amplo (Dias, 2000). Sua vinculação ao entretenimento e seu uso como fundo para outras atividades é compreensível na medida em que a música tem uma imagem vinculada à diversão e esta está ligada ao tempo livre, que por sua vez, como Adorno (1938/1998a) denunciou, aparece como apêndice do trabalho, de modo que a própria diversão se torna um momento também administrado pelos hábitos de consumo de mercadorias padronizadas no qual ocorre a reprodução do processo de trabalho. O estranhamento em relação ao trabalho abrange também o tempo livre e os objetos que o preenchem.

Aquela música que se caracterizava pela expressão, pela subjetividade que trazia consigo, passou também para área do que é administrado, e embora tenha perdido sua subjetividade, não perdeu com isso a imagem que tal subjetividade lhe atribuía. Os estilos, no âmbito da música séria, foram construídos com base na própria realidade social, com o que era valorizado na época de seu aparecimento e de acordo com o desenvolvimento teórico e técnico da arte musical. Entretanto, num dado momento, esta realidade, agora administrada, acaba por referir-se a eles para se definir, mesmo que já estejam (e inevitavelmente estão) totalmente esvaziados de seus sentidos estéticos originais, passando os estilos a serem tratados como se fossem dotados de uma força mágica, transcendente. Desta forma encontram-se fetichizados, e prometem preencher o vazio do sujeito por meio das imagens vinculadas a eles, mas frustram-no na medida em que representam justamente o contrário do que é procurado pelo indivíduo, já que, como apenas mais um produto da indústria cultural, não possuem nada além das imagens sobre as quais foram criados. É dessa mesma maneira que Fontenelle (2002) caracteriza a marca que "...usa elementos da realidade social para construir a sua imagem, e em um outro (momento), é essa própria realidade social que se refere à marca para definir a si mesma (Fontenelle, 2002, p. 280)".

Neste emaranhado a adesão aos estilos ocorre na busca por uma identificação, por uma marca, por se diferenciar do todo, como uma fuga (ainda que problemática e administrada) à massificação. Aderir a um estilo significa aderir, ou se identificar, com o estereótipo vinculado a ele. Parafraseando Adorno, os estilos pensam pelo ouvinte. Os estereótipos, criados pela cultura, são nada menos que generalizações que reduzem os objetos a determinadas idéias, esquecendo suas inúmeras características individuais. Se a adesão se torna obrigatória para a aceitação social, ou seja, se aos sujeitos é imposto o imperativo da adaptação a qualquer custo, a cultura torna-se idêntica a um ritual de passagem e a violência exercida sobre os indivíduos se reflete em sua incapacidade neurótica de pensar a cultura, assim como sua própria condição. No caso específico da música popular, Adorno (1976a) já apontava que o seu papel social poderia ser compreendido como o oferecimento de padrões de identificação por meio dos quais os sujeitos conseguem dar vazão a alguns dos seus impulsos; com isso, entretanto, desvela-se o caráter repressor da indústria cultural, uma vez que a realização desses impulsos se dá em uma direção prevista pelo aparato tecnológico.

Em relação à rejeição, somente metade dos indivíduos entrevistados (quatro músicos e quatro não músicos) apresentou argumentos que continham rejeição explícita a determinado estilo musical. Além disso, os entrevistados foram mais lacônicos nas respostas em que rejeitaram estilos do que naquelas em que explicaram os motivos de sua adesão, talvez devido à estrutura da entrevista ou ao fato de que fazer críticas é mais difícil - ou não é tão bem aceito - do que apresentar motivos pelos quais se gosta de algo. Os estilos rejeitados foram: sertanejo, axé, funk, rap, rock "pesado" entre os músicos, e pagode, rock "pesado", heavy metal e sertanejo entre os não músicos. Todos os estilos citados estão presentes na indústria cultural, ou melhor, foram produzidos em seu meio, e em muitos casos a rejeição, que tem ótimos argumentos em seu favor, se torna vazia de conteúdo crítico porque não se produz com base em critérios estéticos e/ou críticos, mas em estereótipos sobre a qualidade musical ou sobre a conduta dos sujeitos que aderem a determinado estilo. Entretanto, é difícil decidir com base nas entrevistas realizadas, em alguns casos, se o que ocorre é preconceito ou um protesto legítimo provindo de indivíduos que ainda dispõem de uma sensibilidade, ao menos em parte, preservada. De qualquer modo, a apresentação dos exemplos seguintes, de músicos justificando sua rejeição a determinados estilos, talvez permita avaliar melhor essas questões.

Pela qualidade. Porque se você for ver, no desenrolar da história, da evolução da música, mesmo que seja lá dos tempos pré-históricos, ou depois, passando pra compositores como Bach, Beethoven e Mozart, você vai ver que faz muito tempo que eles se foram, e eles marcaram presença na história, mas eles continuam sendo muito executados no mundo até hoje, então se identifica qualidade, não é uma coisa passageira, e eu tento, mesmo na música que não é erudita, aquilo que eu tenho na minha casa e que eu gosto de ouvir, é aquilo que apresenta um certo grau de qualidade, na letra, na métrica, na melodia e na harmonia. Acho que não tem outras questões, sabe? (M 4).

... nem julgo, bem, eu... se eu tiver que trabalhar e trabalhar com, por exemplo, um estilo que não é predileto meu, a música sertaneja, eu vou trabalhar, com a música sertaneja, com um arranjo mais delicado possível e sem, de forma nenhuma, procurar imitação, né? Porque eu acho que a mídia ta aí, ela é suficiente pra jogar o som no mercado (M 1).

...realmente o que eu não gosto, apesar de que sempre fala-se: gosto não se discute, lamenta-se, né, mas realmente essa, essas músicas que, que estão aí na rádio, sabe, tipo, sei lá, axé music, bate-estaca, né, coisa assim que realmente, eu não sei, não falo nada contra, mas, eu, eu não gosto. O que eles mudam geralmente é a letra porque o estilo da melodia, o ritmo, é tudo a mesma coisa (M 5).

...pela minha formação eu sou obrigada a ouvir todos e a aceitar todos, mas assim, se não for para eu estar trabalhando, pra ensinar o aluno, pra tocar em algum lugar, eu não tocaria música sertaneja, nem esse funk que a gente conhece aqui né, a não ser o funk original que é perfeito, mas essas de "Bonde do Tigrão", é rap, eu não ouviria e não tocaria, nem rock pesado. Eu acho que algumas são muito agressivas, outras são extremamente limitadas, eu acho que não vai trazer nada pro meu raciocínio, as letras são muito chulas, então eu acho que não engrandece, não acrescenta nada pra mim (M 8).

No primeiro exemplo o sujeito apresenta como argumentos para a rejeição a qualidade de alguns elementos como a letra, a métrica, a melodia e a harmonia. Além disso, parece sugerir que há um critério histórico: a permanência no tempo de algumas músicas seria um indício de sua qualidade. Apesar disso, os critérios musicais não são explicitados, isto é, como é possível dizer o que é uma melodia ou uma harmonia de qualidade segundo esse sujeito? Seria pela permanência na história? Esse é um critério ambíguo porque corre o risco de entrar em contradição com o outro critério apresentado, ou seja, será que tudo o que sobreviveu à história tem por isso qualidades melódicas, harmônicas, na letra e na métrica, incontestáveis? Ora, os esquemas padronizados utilizados na indústria cultural são, também, bastante antigos, isto é, permaneceram, sem que isso possa ser identificado como sinônimo de qualidade. Os argumentos apresentados são frágeis porque não há uma explicação mais pormenorizada sobre essas questões.

No segundo, no terceiro e no quarto exemplos aparecem manifestações críticas em relação à música de massas. Os sujeitos criticam a repetição e a imitação, típicas do material musical padronizado que é apresentado pela indústria cultural aos ouvintes, e também, no quarto exemplo, existe uma crítica à agressividade e à limitação que parecem caracterizar o estilo rejeitado. Sem dúvida há boas razões para essas rejeições, mas é preciso lembrar que as críticas adornianas à música popular, por exemplo, não se baseiam numa rejeição à música popular em si mesma, mas numa crítica radical a sua apropriação pela indústria cultural. Tampouco se trata, nesta crítica, de uma adesão desmemoriada à música erudita, que nem sempre é musica "séria" na avaliação de Adorno, e mesmo quando o é, não está livre de contradições, além disso, mesmo a música séria pode ser agressiva na medida em que fere a ordem existente, em especial ao revelar, em seu potencial de emancipação, as contradições sociais e impulsionar algum movimento de reflexão. Assim, não é possível desconsiderar a possibilidade de as justificativas estarem baseadas em estereótipos, porque as rejeições não são fundamentadas numa análise mais pormenorizada dos estilos musicais citados e porque os motivos que levam à rejeição não são suficientemente explícitos. Por exemplo, excluir uma música por sua suposta agressividade pode denotar resistência a determinado aspecto rude e idiossincrático suscitado por ela. Além disso, a rejeição ao estilo como um todo, sem considerar possíveis nuances ou contradições, também respeita, sobremaneira, a lógica própria à indústria cultural, que encaixa toda a realidade em categorias prévias para melhor administrá-la.

Entre os não-músicos, as justificativas apresentadas para a rejeição não tangenciam critérios estéticos em nenhum momento. Os estilos foram rejeitados, em alguns casos, juntamente com os ouvintes que a eles aderem, o que denota, no mínimo, ressentimento do sujeito em relação ao esforço implicado na adesão. Alguns trechos das respostas são apresentados abaixo.

Eu só não ligo muito pra pagode assim, praqueles rock muito pesado (N 1).

Meus amigos gostam muito de Heavy Metal assim maior gritaria, essas "vozinhas" fina eu não gosto, muito agressivo (N 3).

Olha, o que eu não gosto mesmo é sertanejo e pagode, acho que é um negócio muito, muito fútil, sabe? Muito superficial, muito assim, um pouco até sem cultura, esse sertanejo novo sabe, não a música sertaneja de raiz, a de raiz eu acho até legal. Mas eu acho que falta um pouco de cultura, um pouco de conteúdo. Tipo sertanejo, o cara, ele começa a ouvir sertanejo, ele vai ter que pôr um chapéu, uma botina e ficar dando coice em alguém na praça ali (ri), e da mesma forma o pagode e várias outras, eu acho que define um pouco o estilo da pessoa, sabe que nem o próprio rock, tem muita gente que ouve rock e ta lá com uma, com uma camiseta preta, um cabelo comprido, ele é o cara agressivo, ele é o cara revolucionário, ele às vezes tenta ser diferente, não que sejam todos assim, mas algumas pessoas, acho que influencia (N 7).

Eu, pra mim, assim é um estilo que eu não gosto, que não compraria um CD, que não colocaria pra ouvir, entendeu? Mas a pessoa tá ouvindo, é gosto dela, gosto é gosto, vai em frente, não 'crucifixo' ninguém também. Porque eu não gosto, eu acho que a letra é uma porcaria, a melodia é uma porcaria e não me agrada em hipótese nenhuma (N 8).

No caso do primeiro exemplo, o sujeito parece querer se esquivar da questão da rejeição. Ao invés de apontar suas rejeições diz "só não ligo muito...". Essa parece ser uma tendência nos indivíduos consumistas, para os quais a escolha parece ser sistematicamente evitada, afinal, rejeitar implica, de certa maneira, estabelecer algum critério. No segundo, novamente a agressividade aparece como justificativa para a rejeição. Sem dúvida a sociedade é suficientemente violenta, de modo que ouvir músicas "agressivas" pode ser desconfortável por remeter ao cotidiano alienado do qual o sujeito quer escapar, mas é difícil acreditar que essa condenação não tenha, ela própria, a marca daquilo que o sujeito quer evitar, uma vez que se toma por demais seriamente as categorias dadas pela indústria musical para proceder a rejeição.

Uma contradição curiosa acontece quando os sujeitos citados acima condenam a música sertaneja dizendo faltar a ela "cultura"; nos dois casos há uma identificação imediata entre o ouvinte desse tipo de música e um tipo de conduta, e essa referência ocorre de forma pejorativa. Mais ainda, há indícios de agressividade, ou no mínimo desprezo, em relação a esses ouvintes, uma vez que eles seriam como burros, que dão coices, ou "gosto é gosto", e não se pode "crucifixar5" ninguém! Nesses casos, de forma mais evidente, ocorrem falas em que, embora os sujeitos possam tangenciar uma visão crítica em relação à música oferecida pela indústria cultural, condenam-se os ouvintes e não a indústria. Essa condenação não exclui a pena, pois os ouvintes dos estilos proscritos são também discriminados.

Além disso, pode-se verificar no penúltimo exemplo que aquilo que o sujeito rejeita no outro, a agressividade, é o que busca para ele mesmo, pois num outro momento da entrevista ele define seu estilo predileto por meio das seguintes palavras: "agressividade... poder... e... irreverência". A contradição explicitada nesse caso revela a atuação de um mecanismo de defesa típico do preconceito, mecanismo que, segundo Adorno e Horkheimer (1944/1985), consiste em seu fundamento psíquico e que foi chamado por esses autores de falsa projeção. Sua característica essencial é a incapacidade dos sujeitos de diferenciarem, no material projetado, quais características são de fato suas e quais não são, revelando ainda, de acordo com Amaral (1997), que o afastamento necessário ao processo de identificação, que contempla a consciência de si e a consciência moral, está ausente. Este processo, conseqüente da submissão a um padrão autoritário de cultura, gera a repulsão de características que o sujeito não admite como sendo suas, atribuindo-as de forma fantasiosa a um outro que, visto como inimigo imaginário, foi, nesse caso, "apenas" rejeitado.

 

Indústria cultural e tipologia

A produção de qualquer tipologia a partir de um estudo sobre a consciência ou as ações dos sujeitos em relação à indústria cultural corre o risco de reproduzir aquilo que quer criticar na medida em que, a partir da tipologia, se despreze a diversidade existente entre os indivíduos. No entanto, segundo Adorno, Frenkel-Brunswik, Leveinson e Sanford (1950/1969):

The reason for the persistent plausibility of the typological approach, however, is not a static biological one, but just the opposite: dynamic and social. The fact that human society has been up to now divided into classes affects more than the external relations of men. The marks of social repression are left within the individual soul (Adorno et al, 1969, p. 747)6.

Em outras palavras, a individualidade continua em declínio justamente por conta da configuração objetiva da sociedade que impede aos sujeitos o desenvolvimento das características que correspondem à individualidade: a autonomia, a auto-reflexão e a singularidade. Justamente por essa razão a tipologia pode tomar um sentido de crítica da sociedade a partir da constatação de padrões na conduta ou na consciência dos indivíduos, ou seja, a constatação da existência de tipos permite compreender a ideologia e a sociedade que os produzem no sentido de uma crítica aos traços estereotipados do homem.

Procurando refletir sobre a sociologia da música, Adorno fez uma tipologia categorizando os modos de conduta dos sujeitos frente aos materiais musicais. O alvo desta tipologia é a situação social específica da relação entre os ouvintes e a música na indústria cultural, e esses modos de conduta denunciados na tipologia são meios para compreender e criticar a sociedade. Assim, Adorno (1962/1976b) estabeleceu tipos ideais, baseados no que seria adequado ou inadequado na audição musical, cujos perfis possuem características qualitativas que, além de defini-los, evidenciam seus determinantes. Os oito tipos - expert, bom ouvinte, consumidor de cultura, ouvinte emocional, ouvinte ressentido, fã de jazz, ouvinte de entretenimento e amusical - se estendem desde o tipo com a audição completamente adequada até a completa incompreensão e indiferença.

O primeiro tipo, o expert, é definido por uma audição estrutural e totalmente adequada, o que permite a ele ter plena consciência do que está ouvindo. Portador de conhecimentos técnicos, históricos e lógicos, é capaz de ouvir toda a seqüência musical, o que inclui passado, presente e momentos futuros, cristalizando-a num contexto repleto de significados. Sua lógica é técnica, a capacidade de ter experiências está preservada e o contexto do significado do material é totalmente revelado para ele por meio da análise crítica. Este tipo, já naquela época, era para Adorno um tipo em extinção, e necessariamente encontrado apenas entre os músicos profissionais. O bom ouvinte é aquele capaz de ouvir os detalhes da música, fazendo julgamentos pautados em boas razões, embora não seja consciente das implicações técnicas e estruturais. Sua lógica foi formada de maneira inconsciente, como alguém que entende a própria língua sem ter domínio da gramática e da sintaxe, sendo também um tipo raro que tende a desaparecer. O consumidor de cultura entende a música como um bem cultural, é bem informado e geralmente colecionador de discos. A experiência e a compreensão da música é substituída pelo acúmulo de informações sobre dados biográficos dos intérpretes. Sua escuta é atomista, espera sempre por elementos específicos, e por grandes momentos. Seu prazer em ouvir é mais importante que a própria música como arte. Possui valores conservadores e rejeita a música popular, julgando-se superior aos que consomem as músicas veiculadas pela indústria cultural.

Para o ouvinte emocional sua relação com a música é essencial por disparar sentimentos que são temidos ou reprimidos em outros momentos. A música é, para ele, uma fonte de irracionalidade. É ingênuo e facilmente influenciado, utilizando a música como um recipiente onde coloca suas angústias, onde pode libertar suas emoções ou encontrar aquilo que perdeu dentro de si mesmo, utilizando-a como meio de pura projeção. O ouvinte ressentido possui uma audição musical estática, e como um tipo reativo, despreza a música, mas não vai além de uma crítica vazia. Sua rigidez o leva ao encontro da reificação à qual ele mesmo se opõe. Joga fora todas as esferas musicais onde a percepção seria crucial. A música o incomoda por suscitar tabus e sua percepção e suas atitudes em relação a ela resultam do conflito entre posição social e ideologia. O fã de jazz tem algumas vezes um entendimento adequado de seu objeto, mas compartilha a falta de reatividade. É freqüentemente progressista e se divide em vários grupos, tentando diferenciar o "jazz puro" do comercial. O ouvinte de entretenimento é quantitativamente mais significativo e é para quem são feitas as músicas da indústria cultural, pois ambos (indústria cultural e audiência) têm uma função complementar na sociedade atual, sendo que a produção e o consumo estão totalmente ligados. A música é também, para este tipo, uma fonte de estimulação, como um vício, a escuta é definida mais pelo desprazer de desligar o rádio do que pelo prazer sentido quando ele está ligado. Ele se comporta dessa maneira com a finalidade de agüentar a situação de pressão social, de sua solidão, recorrendo à música como um reino onde tem a ilusão de que pode ser ele mesmo, sendo esta relação obviamente enganosa. Ajudada pelo material, sua escuta ocorre simultaneamente à realização de outras atividades. São passivos e opostos ao esforço que uma obra de arte demanda. O "amusical" é alguém com uma mentalidade patologicamente realística que provavelmente sofreu com a severidade dos pais na infância, e tem grandes talentos para campos técnicos.

É interessante notar que algumas das categorias que refletem as respostas dadas às perguntas feitas no questionário sobre a escolha musical estão bastante próximas das categorias adornianas, enquanto outras apontam, talvez, uma configuração distinta na relação com os produtos da indústria cultural. As duas grandes categorias, relacionadas à adesão e à rejeição, são: lógico-racional e moral, estando esta última dividida em situacional, consumista, tradicionário e emocional. Ao que parece, na categoria lógico-racional, as respostas, embora estejam próximas da caracterização do expert, tal como feita por Adorno, não podem ser identificadas numa categoria idêntica porque não incluem o elemento crítico que é essencial ao expert. Em outras palavras, as respostas incluíam um verniz técnico, mas essa técnica não era mediada pela consideração conjunta das condições sociais, éticas e estéticas que necessariamente estão incluídas numa análise crítica. É importante frisar, outrossim, dois aspectos importantes: a) somente os músicos profissionais forneceram respostas que se enquadraram na categoria lógico-racional, mas nenhum dos entrevistados teve todas as suas respostas alocadas nela, o que indica contradições no discurso desses músicos; b) não encontramos respostas entre os não-músicos que caracterizassem o chamado bom ouvinte, ou seja, o sujeito que, sem ser músico profissional, se mantém atento ao que ouve e não se furta a fazer julgamentos a partir da própria experiência.

Em relação ao primeiro aspecto apontado acima, algumas contradições são flagrantes: um dos sujeitos, bastante eloqüente ao descrever o estilo barroco, por exemplo, denotava uma relação fetichista com a música produzida por determinado intérprete, além de qualificar a música erudita como superior, abstraindo a situação social da música atualmente e as aporias correspondentes. Segundo Adorno (1969/2002b) nenhuma análise tem valor se não revela o conteúdo de verdade da obra, conteúdo que é, por sua vez, mediado pela própria estrutura técnica da música. Escolher requer compreensão a respeito tanto do que foi escolhido, quanto do que foi, necessariamente, rejeitado. A compreensão advém da análise musical, cujos elementos seriam proporcionados pela formação dos músicos. Entretanto, parece que a formação musical que os músicos entrevistados tiveram foi um elemento importante, mas não suficiente para que realizassem uma análise musical adequada, ou seja, para que tal análise fosse constituída de uma experiência viva, numa relação com a música mediada não apenas pelo conhecimento, que sozinho é estéril, mas pela reflexão. Estes músicos deixaram explícitos seus conhecimentos sobre a teoria, a técnica, a lógica e a história da arte musical. Tais elementos são, inegavelmente, pré-requisitos para uma análise crítica, capaz de revelar o conteúdo de verdade das obras. Mas, embora o domínio desses conhecimentos tenha ficado explícito, a capacidade de realizar este tipo de análise, não foi constatada nas entrevistas. Assim, estes conhecimentos se tornaram estéreis, na medida em que a análise a partir deles é rígida, e não revela o conteúdo de verdade presente na própria música, perdendo esta sua legitimidade, que só se revela pela análise de ouvintes críticos. Relatar uma preferência pela música erudita e reconhecer a sua utilização como controle social num determinado momento histórico, se remetendo a este fato sem que a análise crítica avance até nossa época, evidencia tanto uma ausência de reflexão como uma fetichização do material musical. Os músicos se afastaram do tipo expert ao priorizarem o conhecimento dos padrões estabelecidos e das informações em detrimento da reflexão sobre a própria música. Uma análise lógico-racional não constitui em si uma análise crítica.

Em relação ao segundo aspecto, o desaparecimento do bom ouvinte pode indicar o declínio de uma relação não inteiramente administrada com o objeto. Esse declínio coloca questões importantes sobre a abrangência da indústria cultural atualmente, pois, ao que parece, mesmo pessoas que, em tese, têm tempo livre ou mesmo disposição para desenvolver uma escuta musical atenta, não o fazem, seja porque não há educação musical disponível - somente a massacrante mesmice da indústria cultural - seja porque rejeitam neuroticamente essa possibilidade. A recusa em escolher, presente em algumas respostas, indica esse movimento, embora não sem contradições, uma vez que de fato não há como escolher entre os iguais; no entanto, a afirmação irrefletida da pura igualdade, tal como a consideração, comum atualmente, da originalidade intrínseca a cada produto cultural, é falsa por desconsiderar as - poucas, é verdade - lacunas ainda presentes na sociedade administrada.

A categoria moral, com suas subdivisões, merece mais algumas considerações. Ao tipo ouvinte de entretenimento, tal como identificado por Adorno, correspondem características atribuídas, a partir das entrevistas, a dois tipos: o situacional e o consumista. Talvez a generalização de novas tecnologias, que permitem a audição de músicas em lugares antes inusitados, enquanto se caminha, por exemplo, ou a generalização do hábito de preencher o vazio e a solidão em lugares públicos com música, tenha levado à identificação de duas categorias em relação a um único tipo de relação com a música, aquele caracterizado pela desconsideração pelo material musical. Talvez igualmente importante seja a crescente segmentação do mercado musical, que produz músicas distintas para "tribos" distintas, assim como para situações distintas. São conhecidas as coletâneas de fragmentos de obras eruditas voltadas para situações específicas, como: Mozart para crianças, Bach para o almoço, Debussy para devaneios entre outras manifestações de barbárie da indústria cultural. Do mesmo modo, diferentes grupamentos sociais elegem, ou são agraciados, com uma trilha sonora para acompanhar suas atividades, tal como a música para jogar basquete, citada por um dos entrevistados. Em todos os casos, trata-se do consumo irrefletido de mercadorias padronizadas produzidas sob o primado do efeito visado, qual seja, proporcionar um "clima" adequado à realização de determinada atividade ou a consolidação de uma identidade grupal. O tipo consumista identificado nas entrevistas não tem exatamente as mesmas características do consumidor de cultura descrito por Adorno. Neste caso trata-se de um sujeito que procura saber a biografia dos músicos, coleciona discos e, ilusoriamente, se apropria do material musical; o consumista encontrado nas entrevistas esgota sua relação com o objeto no consumo, no exato momento em que ele ocorre, sem que permaneça um vínculo com o estilo ou o autor.

Ao tipo moral emocional correspondem diretamente as características atribuídas por Adorno ao tipo de mesmo nome segundo sua classificação; ele é imaturo e sua relação com a música pressupõe, nela, aspectos românticos que estão em franca contradição com sua função social atualmente. Em alguma medida é possível pressupor uma vinculação emocional com a música também no tipo tradicionário, mas de modo distinto, já que nesse caso trata-se de um vínculo mediado pela família ou, pelo menos, por pessoas que representaram alguma autoridade no passado. As respostas encaixadas nessa categoria denotam uma relação com a música que discrimina o bom e o ruim segundo experiências passadas, em especial aquelas ocorridas na infância; em praticamente todos os casos o estilo predileto é a música popular brasileira, a chamada MPB. Neste caso, a mediação da família pode colaborar tanto para a ocorrência de reflexão quanto como modelo para uma adesão ausente de experiência entre sujeito-objeto. Talvez esse tipo de relação com a música represente alguma resistência ao mercado, uma vez que este não pode sobreviver sem induzir ao consumo de suas pretensas novidades, mas é difícil decidir a partir dos resultados de uma única entrevista. Além disso, é evidente que, no Brasil, a chamada música popular representa um dos fatores mais importantes para a construção da identidade nacional há várias décadas e, portanto, remeter a escolha à tradição familiar sem considerar esta no âmbito mais amplo da sociedade brasileira, na qual este estilo cumpre essa função, seria descabido.

Discutir o lugar da música popular brasileira em relação à indústria cultural demandaria outro artigo, mas, pelo menos, é possível dizer que, sejam os pais ou a pátria, é no mínimo plausível que a identificação com essas figuras de autoridade cumpra um papel importante nesse tipo. Assim, os tipos emocional e tradicionário teriam em comum a construção de um vínculo com a música baseado na identificação com ideais infantis, embora o primeiro não estabeleça um estilo único como o predileto, enquanto o segundo eventualmente adota uma ideologia nacionalista vinculada ao estilo escolhido. Enquanto os ideais românticos apreciados pelo tipo emocional podem apontar contradições importantes em relação à música, com a condição de que o sujeito possa experienciar a grande distância que existe entre esses ideais e a sua realização no contato com a música na indústria cultural, é difícil imaginar algo produtivo provindo de uma ideologia nacionalista. Por isso a sugerida infantilidade do tipo emocional parece ser menos perigosa do que o realismo nacionalista do tipo tradicionário.

Dois tipos identificados por Adorno não foram distinguidos a partir das entrevistas: o fã e o ressentido. É notório que os entrevistados foram muito mais eloqüentes ao falarem sobre suas escolhas do que quando se referiram à rejeição, mas num e noutro caso as vinculações foram mais frias do que se esperaria de um fã e as rejeições menos enfáticas do que se esperaria do resultado de uma escolha consciente; isso pode refletir uma pauta ideológica típica de nossa cultura que nos define a partir da tolerância com as diferenças: raciais, socioeconômicas, culturais etc.

Mas, olhando com mais atenção, é possível perceber que se trata de outra coisa: o receio em ferir suscetibilidades resultou num esforço notável para produzir uma rejeição politicamente correta, isto é, cheia de ressalvas, embora o ressentimento aparecesse sob a forma de menosprezo, alusões a desvantagens culturais do material desprezado ou utilização de um tom jocoso na referência a ele. Os sujeitos se expressaram como se a possibilidade de escolher, o que sempre implica rejeitar o que não foi escolhido, pudesse ser completamente inócua, ou em outras palavras, como se fosse possível escolher sem a responsabilidade que isso implica, tanto no âmbito pessoal quanto político. De fato, isso expressa uma característica da sociedade administrada, uma vez que as escolhas estão, em grande medida, determinadas de antemão, mas novamente é preciso não jogar a criança com a água do banho; assumir as escolhas e as rejeições não implica desprezo pela diversidade se o contato com o objeto é mediado pela experiência e se faz no tempo com consciência, porque, neste caso, o sujeito reconhece o caráter provisório e, eventualmente, parcial e precário de suas escolhas. Em especial os músicos profissionais foram vítimas dessa ideologia, cujo resultado é camuflar conflitos e, mesmo eventualmente, impedir a produção de uma experiência no contato com a diferença, uma vez que se supõe que ela, apesar de existir, não deve ser considerada. O resultado é um menosprezo mudo, que por isso mesmo cala o diferente.

Mas, nesse ponto, é importante relembrar a finalidade desta classificação. Esta tipologia pretende não meramente classificar os indivíduos, considerando a enorme pressão que existe na sociedade para produzir uma tipificação, mas a definição de tipos ideais pode permitir descobrir o que os diferencia, o que os determina e seus modos característicos de conduta, visando uma crítica à sociedade e à indústria cultural. Se esta análise só pode ser realizada com base nos próprios sujeitos, porque a sociedade é imanente a eles, não é lícito, entretanto, identificar uma esfera à outra sem mediações. Nesse sentido, é interessante frisar que em nenhum dos casos, seja na categoria lógico-racional, seja na moral, todas as respostas dos sujeitos se encaixaram num único tipo. Em outras palavras, os tipos que encontramos caracterizam mais especificamente diferentes formas de relação com a música, típicas da semiformação, do que uma organização de personalidade identificada com determinada pauta ideológica única e coerente. No mesmo sentido, o título do artigo no qual Adorno (1976b) expõe seus tipos é: Types of Musical Conduct, ou seja, trata-se de diferentes formas de relação com a música e não de diferentes tipos de personalidades, embora não seja possível isolar uma instância da outra uma vez que, tanto a subjetividade é construída e se apresenta por mediações objetivas, como não é possível separar o objeto das projeções subjetivas. Isso implica encarar a tipologia de modo distinto, tendo em vista as contradições que permeiam a vida e a constituição da subjetividade dos indivíduos em nossa sociedade. Outrossim, nessas contradições que se sedimentam nos indivíduos existem índices de resistência, ou núcleos de experiência que resistem à dissolução, mesmo que eventualmente se manifestem como ressentimento.

 

Música, subjetividade e ideologia

O predomínio das sensações visuais em nossa sociedade torna as nossas relações com a música, ou talvez mais apropriadamente, com os ruídos, sons e silêncios que nos cercam, mais próximas das reações inconscientes. É significativo que, para alguns dos entrevistados, a música seja fundo para outras atividades, ou seja, ela não é apreendida conscientemente. Apesar disso, há um tipo de relação com ela que, sem ser consciente, tampouco pode ser caracterizado como inconsciente no sentido psicanalítico; ela caracteriza-se mais propriamente pelo predomínio de reações estereotipadas e irrefletidas, sentidas pelos sujeitos, entretanto, como se fossem reações adequadas e normais em relação ao objeto.

Observando as respostas de praticamente todos os entrevistados, parece muito natural, para eles, que a música cumpra uma função normatizadora, assim como é natural o fato da música existir e ocupar o espaço, o tempo e o status que lhe é conferido na indústria cultural. Além disso, parece natural que se tenha opiniões sobre ela. Segundo Adorno (1962/1976c): "Because, as we said, music must be, most people have their own views of it. Depending on the circles interested in its various types, there exist several tacit but nonetheless effective public opinions on things musical7 (Adorno, 1976c, p. 142)". A presença cada vez mais constante da música como mercadoria, possibilitada por novos meios técnicos, assim como pelo progressivo barateamento dos meios mais antigos, sufoca a crítica justamente por impedir que sobre algum momento em que se produza uma experiência, no lugar desta, os sujeitos produzem opiniões. Em correspondência à estereotipia musical, estas também são estereotipadas.

Assim, a irracionalidade na música se deve a tendências sociais que se expressam, também, nos indivíduos. O uso da música como cimento social, como ideologia, exemplifica a interpenetração de racionalidade e irracionalidade, e também de objetividade e subjetividade, que caracterizam o capitalismo monopolista, e seu uso visa a manter a ordem tornando a irracionalidade funcional. Mas esse não é o destino inescapável da música, pois ela pode também expressar o sofrimento, recompor a sensibilidade e produzir experiências. A arte musical, segundo Adorno (1976c), só é autônoma numa relação negativa em relação à sociedade, e se essa negatividade desaparece, a música faz apologia da onipotência do contexto social e se entrega a ele, fazendo parte do aparato de controle social mobilizado na indústria cultural.

Se a música séria não cabe bem em conceitos estáticos, a música produzida e disseminada na indústria cultural reproduz incessantemente representações repetitivas, relacionadas a formas típicas de reação. Entre essas reações encontra-se o ressentimento, e este está entrelaçado a uma concepção intolerante de normalidade. O ressentimento, nas respostas obtidas nas entrevistas, apareceu sob a forma de ironias, chistes e alusões. Se, de um lado, as opiniões sobre o baixo nível de certos estilos na indústria cultural não deixa de ser verdadeira, esse seu elemento de verdade se perde e é negado pela fixidez e independência em relação ao objeto da opinião apresentada. Se, em relação aos músicos, ainda podemos constatar certo nível de informação, embora suas opiniões muitas vezes se aproximem mais da repetição de conceitos prontos do que da expressão de uma experiência musical, entre os não-músicos o que há é a expressão de uma falsa coletivização, uma aparência de democratização do acesso à música, quando na verdade os sujeitos não foram preparados para isso por uma educação adequada.

A problemática da opinião pública remete a uma questão que é importante para a vida em sua dimensão política na sociedade moderna: sem que os indivíduos possam julgar livremente, não há sociedade, isto é, a sociedade se torna uma máscara do poder do capital, expresso na oferta abundante de mercadorias fetichizadas, distinguíveis entre si pela aparência ou pelo valor de troca que nelas se consubstancia. Formalmente, a oportunidade de julgar sobre assuntos musicais foi democratizada, mas essa liberdade formal em relação a mercadorias padronizadas, culmina num descompromisso em relação ao que é julgado - e também em relação à vida pública - minando as possibilidades de uma experiência mais democrática, pois se enfraquecem as bases objetivas que permitem formar uma opinião de fato. Todos podem julgar tudo, mas sem que existam condições para que esses sujeitos julguem de fato, a opinião pública é tanto amorfa quanto inválida.

A reação dos entrevistados quando as perguntas diziam respeito à rejeição, entretanto, demonstra ainda uma outra face da questão: a inexistência dos fãs mais exaltados e partidários de determinado estilo corresponde a uma opinião apaziguada, e transforma as eventuais contendas em mera escolha entre mercadorias culturais, âmbito no qual, de fato, não há razões objetivas para considerar determinada escolha melhor que outra. A convivência de opiniões nuançadas deve-se à superficialidade e à rapidez com que os produtos e suas propagandas se modificam, e isso produz a idéia de uma sociedade plural e em movimento. No entanto, ao contrário dos defensores da ideologia pós-modernista, Adorno não considera esse fenômeno uma expressão do predomínio da individualidade mas, antes, um sinal de sua dissolução. O que declinou foi a base material que permitia uma distinção entre as opiniões impostas e aquelas formadas pelo sujeito; a interioridade não se constitui mais porque suas bases objetivas foram erodidas. Trata-se do triunfo da semiformação no âmbito da indústria cultural. As respostas dadas pelos sujeitos entrevistados confirmam essa avaliação crítica feita, em vários momentos de sua obra, por Adorno.

Se a ideologia contemporânea se resume à afirmação de que o meramente existente não poderia ser diferente, essa afirmação se sustenta na criação de condições objetivas nas quais se tornam preponderantes a ausência de crítica, a superficialidade dos julgamentos, o relativismo e a concordância dócil e leviana com as tendências da moda. Estas se modificam com uma velocidade vertiginosa, criando a impressão de que existe uma grande diversidade. Contra essa aparência Adorno, em várias oportunidades, denunciou a ausência de fundamento do juízo de gosto expresso pelos sujeitos, assim como, paralelamente, apontou que as contradições presentes na subjetividade estavam suficientemente próximas da consciência para que esses sujeitos pudessem produzir, ao menos, uma experiência da pobreza do mundo que os cerca e da vacuidade do juízo que, eventualmente, são convidados a exprimir.

O fato de que a subjetividade se constitui por meio de contradições, a partir da relação com os objetos fornecidos pela indústria cultural, significa mais que simplesmente constatar a intensa crise pessoal vivenciada pelos sujeitos; significa que neles ainda persistem possibilidades de emancipação, possibilidades de que talvez eles não desconfiem, mas que são suficientemente visíveis para representarem o índice de algo melhor que o meramente existente.

 

Referências

Adorno, T. W. (1976a). Popular music. In Introduction to the sociology of music (E. B. Ashton, Trad., pp. 21-48). New York: Seabury Press. (Originalmente publicado em 1962).        [ Links ]

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Recebido em 23 de outubro de 2007
Aceito em 13 de maio de 2008
Revisado em 12 de novembro de 2008

 

 

Notas

1. Este artigo é fruto de um trabalho de pesquisa desenvolvido, entre os anos de 2004 e 2005, como Iniciação Científica durante o curso de Formação de Psicólogo na Unesp/Bauru, com apoio da Fapesp (Fundação de amparo à pesquisa do Estado de São Paulo - processo nº04/07642-9). A pesquisa obteve parecer aprovado pelo comitê de ética em pesquisa com seres humanos da mesma instituição.
2. "The composition listen for the listener" (Adorno, 1976, p. 29) - ou seja, a própria música antecipa as sensações que devem ser sentidas e ao ouvinte não cabe fazer esforço algum, não precisa/não deve ter reflexão e autonomia.
3. Expressão essencial nas obras de Hegel e Marx e de difícil tradução para o português. Segundo o dicionário Langenscheidt Taschenwörterbuch Portugiesisch, o termo Aufhebung pode ser entendido como abolição, anulação, suspensão. Porém, dentro da teoria, implica uma lógica da superação de forma dialética, assim, a abolição de algo se daria a partir de sua superação que, não obstante, carrega consigo algo do que foi superado, e ao mesmo tempo guarda, revoga e encerra a forma social que o antecedeu, ou seja, significa um processo histórico de transformação social que envolve ao mesmo tempo a conservação, a eliminação e a renovação.
4. A separação entre uma música repetitiva e estandardizada e o que Adorno chama de música séria não é, ela mesma, um cânone rígido, mas se produz a partir de critérios estéticos tomados da arte musical em sua relação com a sociedade. Assim, na música séria haveria uma relação viva e significativa entre as partes e o todo, enquanto a música estandardizada resulta de um padrão sobre o qual alguns detalhes são modificados; a defesa de uma música em que a relação parte-todo se dá de modo vivo e dinâmico deriva, por sua vez, de uma opção estética pelo modernismo musical presente na Segunda Escola de Viena, que Adorno defende enfaticamente, sem no entanto deixar de apontar suas contradições.
5. Curioso neologismo chistoso, dito pelo entrevistado, que mescla crucificar com fixar, uma condenação cuja característica distintiva é permanecer imóvel. Talvez seja uma imagem adequada para identificar o que a indústria cultural faz com os ouvintes...
6. "A razão para a plausibilidade persistente da proposição tipológica, entretanto, não é aquela estático-biológica, mas exatamente o oposto: dinâmica e social. O fato de que a sociedade humana tem estado até hoje dividida em classes afeta mais que as relações externas entre os homens. As marcas da repressão social são deixadas na alma individual." Tradução dos autores.
7. "Porque, como dissemos, a música deve existir, a maioria das pessoas têm sua própria visão sobre ela. Dependendo dos círculos interessados em seus vários tipos, existem várias opiniões tácitas, embora não efetivas, sobre os fatos musicais". Tradução dos autores.

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