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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.9 n.1 Fortaleza mar. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Aspectos psicodinâmicos em sujeitos que fizeram a cirurgia bariátrica sem indicação médica

 

Psychodynamic aspects in subjects that submitted a bariatric surgery without medical indication

 

 

Thyago do Vale RosaI; Denise Teles Freire CamposII

IPsicólogo pela Universidade Católica de Goiás (UCG). Mestre em Psicologia pela UCG, período em que foi bolsista do CNPq. Docente do curso de Psicologia da UCG. Pesquisador associado do Núcleo de Psicopatologia e Psicologia da Saúde da UCG. End.: Alameda Rio Araguaia, Qd. 08, Lt. 19, Conjunto Aruanã I. Goiânia, GO. CEP: 74740-250. E-mail: thyagovr@yahoo.com.br
IIPsicanalista. Psicóloga. Doutora em Psicopatologia pela Université de Provence, França. Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Goiás. Pesquisadora do Núcleo de Psicopatologia e Psicologia da Saúde da UCG. End.: R. São Luiz, 80, ed. Itaúba, apt. 1401, bl. A, Setor Alto da Glória. Goiânia, GO. CEP: 74815-755. E-mail: phd2001@terra.com.br

 

 


RESUMO

A ocasião de uma preocupação corporal pode funcionar como um estímulo indutor ao sujeito para a construção de uma narrativa sobre seu sofrimento. Baseado nessa asserção o presente trabalho buscou investigar os aspectos psicodinâmicos em sujeitos que fizeram a cirurgia bariátrica sem indicação médica. O material interpretativo é fruto de duas entrevistas do tipo clínico com mulheres que fizeram a cirurgia de redução do estômago. Procedeu-se a reconstrução das entrevistas a partir do material subjetivo e transferencial que emergiu da condição de entrevista e evocado pelos sujeitos ao serem convidados a falar sobre a experiência do ganho de peso e da cirurgia de redução do estômago. A partir do percurso de pesquisa adotado, as entrevistas apontam que a cirurgia se constitui como uma tentativa de mudança, nesse caso, de mudar a sua própria identidade. Contudo, devemos ter a cautela de dizer que se trata muito mais de uma via aberta, para o sujeito, de uma mudança em sua vida que pode ou não se concretizar. Diferentemente de uma tentativa de restituir saúde, ou um estado de coisas anterior (como no caso da doença), os sujeitos antes obesos buscam provocar um verdadeiro corte em sua própria história, buscam operar uma mudança em sua própria identidade inscrita e expressa no visível de seus corpos.

Palavras-chave: cirurgia bariátrica, subjetividade, sofrimento psíquico, obesidade, corpo.


ABSTRACT

The occasion of a corporeal preocupation can carry on as a inductive stimulus to the subject to the construction of a narrative about his suffering. Baseg on this assertion the present work investigated the psychodynamic aspects in subjects that submitted to the bariatric surgery without medical indication. The interpretative material is result of two interviews of the clinical type with women that submitted to the stomach reduction surgery. Proceeded the reconstruction of the interviews through the subjective material and transferential that emerged of the condition of the interview and evoked by the subjects when were invited to talk about the experience of overweight and of stomach reduction surgery. From the course of the adopted research, the interviews show that the surgery constitutes as a change trial, in this case of changing his own identity. Although, we must have the caution of saying that respect much more a open via, to the subject, of a change in his life that can or cannot concretize. Differently of a trial of replacing health, or a state of a anterior things (as in the case of the ilness), the persons previously obese search to provoke a true rupture in their own history, search to operate a change in their own inscribed and expressed identity in the visible of theirs bodies.

Keywords: bariatric surgery, subjectivity, phsychic suffering, obesity, body.


 

 

Introdução

Esse trabalho teve por objetivo apresentar, ainda que de forma exploratória, uma discussão sobre aspectos psicodinâmicos em duas mulheres que se submeteram à cirurgia de redução do estômago. Apesar de existir muitos estudos sobre os aspectos psicológicos em sujeitos obesos (Almeida, Loureiro e Santos, 2002; Fandiño, Benchimol, Coutinho e Apolinário, 2004; Ribeiro, e Zorzetto, 2004; Sargentim, 2005), buscou-se apresentar uma visão diferente. Dois pontos parecem importantes: em primeiro lugar, nem todas as pessoas que fazem a cirurgia apresentam a obesidade de grandes proporções (obesidade mórbida); e, segundo, que o funcionamento psíquico é anterior à realização da cirurgia.

Chama atenção que um grande número de cirurgias é realizado com pessoas que não apresentam problemas graves de saúde, as chamadas doenças do peso. Algo que merece discussão, sobretudo em relação aos aspectos éticos envolvidos, ainda mais que cerca de cinqüenta por cento dos pacientes que se submetem à cirurgia ficam insatisfeitos mesmo após o emagrecimento (Leal e Baldin, 2007). Parecem existir muitas expectativas associadas à perda de peso. Nesse trabalho, a perspectiva adotada é a de que a cirurgia é uma escolha dentro da história e da dinâmica preexistente ao sujeito que, em muitos casos, não se resume ao fato de ser gordo.

Essa idéia parece importante à medida que a compreensão dos aspectos psicológicos presentes no tratamento da obesidade antecipa as tendências e dificuldades que possam se apresentar após a realização da cirurgia. Admitindo que os aspectos psicológicos têm forte relação com os contextos sociais múltiplos - família, amigos, escola, comunidade etc. Mesmo com o avanço das técnicas cirúrgicas gástricas, cada vez mais eficientes e com efeitos indesejáveis mais toleráveis (Oliveira, Linardi, e Azevedo, 2004; Garrido Jr., 2000; Segal e Fandiño, 2002), há importantes mudanças do ponto de vista psicológico nesses pacientes. Fatores emocionais e culturais afetam a motivação do paciente, não é por acaso que entre as pessoas obesas é comum uma intensa peregrinação aos mais variados especialistas (gastroenterologistas, endocrinologistas, nutricionistas, psicólogos etc).

A mudança física imposta pela cirurgia exige uma resposta psíquica. Contudo, não se trata apenas da adaptação à nova rotina alimentar e as suas restrições; mas ao impacto na relação entre subjetividade e corpo nesses pacientes. A mudança no corpo faz eco a sua auto-estima, a sua identidade, a seus mecanismos de defesa, a sua organização psíquica. Trata-se de um fenômeno complexo, que coloca em evidência as noções atuais de saúde e doença e não pode ser visto simplesmente como sintoma do mundo contemporâneo, seja da atual cultura alimentar, do trabalho, do prazer e do lazer sedentário, ou como resultado da herança genética, ou ainda da ansiedade saciada pela ingestão alimentar.

Parece embaraçoso se pensar a obesidade como um problema de genes (Mark, 2005; Uehara e Mariosa, 2005; Veja, 2002), apesar de sua prevalência ter aumentado nos últimos trinta anos. Reconhece-se a gravidade e a urgência de cuidados intensivos com os pacientes que apresentam obesidade grau III (obesidade mórbida); sobretudo porque os chamados tratamentos conservadores nem sempre funcionam. Contudo, deve-ser ter cautela por que as possíveis conseqüências insatisfatórias da cirurgia de redução do estômago são apreciadas de forma bem diferente por cada sujeito, pois se trata de uma construção sobre o seu bem-estar e não de uma constatação técnica de sucesso ou fracasso na perda de peso.

Nessa perspectiva a relação entre saúde e doença demanda uma discussão bem mais aprofundada em que se contemple o entendimento dos processos mentais em sua ligação com o corpo. Além da evidência da existência de uma parte do psiquismo que não se encontra manifesta, consciente, e que impõe uma série de obstáculos ao restabelecimento da saúde do paciente (como a amnésia, a resistência, a transferência e assim por diante).

Não só como um sintoma físico, mas também, a discussão sobre a obesidade não pode se reduzir aos fenômenos socioculturais como o julgamento e a discriminação social sofrida por essas pessoas. É verdade que cada vez mais mulheres acreditam ter "defeitos" no próprio corpo, queixa que pode começar como insatisfação e depois caminhar para um distúrbio mais grave; contudo corre-se o risco de abusar da interpretação sob a impressão de inadequação, muito comum entre os jovens. Apesar da dimensão sociocultural valorizar excessivamente o corpo magro na exposição contínua aos padrões de beleza estampados em jornais, revistas e programas de televisão, ou mesmo em anúncios de medicamentos e cosméticos (Almeida, Loureiro e Santos, 2002); não são todas as mulheres que sofrem por não se adequarem aos padrões atuais de beleza.

Embora a literatura aponte que as normas sociais, com a valorização exagerada do corpo magro, e a valorização da imagem do corpo na gênese do sofrimento psíquico, os casos aqui apresentados indicam outros processos subjetivos. Os dois relatos reconstruídos de entrevistas clínicas indicam pessoas, mulheres, que não apresentam, nem como conteúdo manifesto, nem latente, o desejo de mudar a imagem corporal para ficar mais bela. Nos dois casos, pode-se interpretar a cirurgia como um movimento inconsciente de produção de um corte no real, que venha tamponar um corte (uma falta) no simbólico. Pode-se dizer, sem receio, que a escolha pela cirurgia se inscreve em uma dinâmica subjetiva singular.

A questão da cirurgia bariátrica não pode ser entendida como referente a uma simples técnica operatória. Não se trata apenas de mais um procedimento técnico disponível para o tratamento da obesidade. Como fenômeno, ou conjunto de fenômenos, a obesidade é atravessada por duas questões que não podem ser tratadas tecnicamente, uma que engloba questões ético-valorativas (e que são significados nos adjetivos "sociais") e pontos de confrontação entre diferentes concepções de ciência e entre disciplinas científicas.

A primeira questão refere-se ao conceito de saúde, sua relação com a subjetividade e a qualidade de vida. A segunda questão é relativa à superação do dualismo mente e corpo. De fato, deve-se examinar, ainda que brevemente, estas duas questões a fim de contextualizar nossos objetivos.

Alguns autores (Almeida, Nascimento e Quaioti, 2002; Serra e Santos, 2003) apontam para a influência da mídia e do padrão de beleza marcado pelo corpo magro. Contudo, este padrão é construído histórico e culturalmente e, neste caso em particular, se torna intrigante constatar que o que era considerando como o corpo belo, o corpo opulento, veio a ser, em menos de meio século, sinônimo de feio e "doente" (de não saudável). A participação da pressão social sobre o corpo parece ser melhor estabelecida nos casos dos processos obsessivos com o emagrecer e, notadamente, na anorexia.

Por analogia, deveria se supor que, em alguns casos, as pessoas podem buscar a cirurgia bariátrica como uma forma de emagrecer (com as vantagens e desvantagens de todo processo cirúrgico invasivo), mais ainda como forma de adquirir ou retornar a um corpo magro e belo. Neste sentido, para confirmar esta hipótese deveria se encontrar nas vivências subjetivas destes sujeitos um núcleo de significados organizados em torno da mudança da imagem corporal e da auto-estima, o que nem sempre parece evidente.

Ancorada a este aspecto encontra-se a questão do julgamento de valor acerca da legitimidade (social e moral) de se buscar o padrão de beleza, sob o risco da saúde. A decisão pela cirurgia com critérios estéticos ou subjetivos não contraria os ideais de saúde médica, biológica ou psicológica? A decisão de fazer uma cirurgia se inscreve na história de cada sujeito, se apresenta como anseio, contudo, necessidade ou desejo na subjetividade de cada um. Considerando o risco de morte na cirurgia ou dela decorrente, o sujeito tem o direito de arriscar sua vida em busca de um padrão de beleza?

A questão seria simplória se não considerássemos que a noção de saúde e saudável implica em qualidade de vida e em aspectos subjetivos do modo de vida e da personalidade. Não se pode se esquecer do imperativo ético (para médicos e psicólogos) do consentimento livre e esclarecido. Quando há relações de ganho financeiro envolvidas, pode-se supor que sempre haverá um esclarecimento pleno dos riscos, incluindo o do não-sucesso, seja em termos de perda de peso ou do ganho estético?

O fato é que não há uma regulamentação do Conselho Federal de Psicologia - CFP, nem pesquisas que indicam que as avaliações psicológicas assegurem ao sujeito uma consciência mínima do significado da cirurgia em sua vida. As cirurgias eletivas se multiplicam para aquém dos julgamentos morais e estéticos. Sem pesquisas se está diante de preconceitos: antes de se debater se é ético realizar uma cirurgia de tal porte e riscos por motivações estéticas, é preciso saber se as motivações são puramente estéticas ou ditadas pela pressão social. Reiterando, o problema ao qual este trabalho buscou trazer respostas, ainda que parciais e exploratórias, é do significado da cirurgia bariátrica na relação entre corpo e subjetividade. Deve-se levar em conta que a escolha pela cirurgia se dá dentro de uma história e de uma dinâmica que preexiste ao sujeito e em muitos casos não se resume ao fato de ser gordinho.

Chama muito atenção que parte desses pacientes, emagrecendo ou não, desenvolvem uma série de problemas psicológicos, em parte relacionados com motivações de fundo antes da cirurgia. Como apontam Leal e Baldin (2007), é comum o surgimento de quadros psiquiátricos, tais como: sintomas depressivos, ansiedade, uso de substâncias, dentre outras situações, associadas às mudanças emocionais que o paciente vivencia após a cirurgia, sobretudo em pacientes que apresentavam dificuldades de emagrecer.

O segundo aspecto é o da relação entre corpo e mente. Parte da literatura (Ades e Kerbauy, 2002; Almeida, Nascimento e Quaioti, 2002; Almeida, Loureiro e Santos, 2002) deixa a entender que a obesidade sempre tem causas psicológicas. Ora como resultado de uma personalidade impulsiva, de um modo de agir compulsivo (organizado em torno dos chamados transtornos adictos); ora como resultado de experiências sentidas como traumas, de vivências que colocam em risco sua integridade (como as perdas de entes queridos, casamento, separação e gravidez, por exemplo). Contudo, a interpretação dos aspectos psicológicos, mesmo em autores que alegam usar o referencial psicanalítico, parece abusivo.

Para nós a clivagem entre corpo e psique, expressada na divisão entre patologias orgânicas e mentais, é um verdadeiro atraso na compreensão de fenômenos tão complexos quanto a obesidade. Martins (2003) critica essa visão causalista, onde ora as dificuldades psíquicas levariam à somatização, ora um distúrbio físico levaria ao sofrimento psíquico. Nesse ponto estamos lidando com fenômenos dinâmicos e transitórios, marcados pela equivocidade. Como aponta o autor, dentro do nosso campo de trabalho são justamente os signos psíquicos que muitas vezes definirão a semiologia e a terapêutica utilizada, mesmo que ainda, eles não contemplem a característica objetiva das ciências naturais.

Insistir na divisão entre mente e corpo em função de se pretender estabelecer uma hegemonia de certa disciplina só aumenta a incompreensão do que já é bem complexo. A doença em sua dimensão ética e existencial é produzida e determinada em função do meio, da história, dos signos, do contexto que a produz. A doença é um processo dinâmico e integrado, contemplando os modos de ser e de reagir do sujeito que se queixa de sua enfermidade, como no caso da obesidade.

Deve-se reconhecer o caráter conflituoso e expressivo de uma doença. Vale dizer que, nesse caso, ao falarmos de obesidade, não estamos falando necessariamente de uma somatização, de um distúrbio psicossomático, muito menos de uma doença, mas de uma complexa e singular disposição do sujeito de vir-a-ser-humano (Martins, 1999); marcada em sua estreita ligação e dependência ao aparelho psíquico. Revela a natureza de um sujeito, seus modos de agir e reagir sobre o mundo, denuncia suas respostas, automáticas ou não, determinadas biologicamente ou não, em sua complexa estrutura de regulação das excitações pulsionais, libidinais, agressivas, que o acometem o tempo todo. De certa forma, a obesidade evidencia o caráter expressivo do sofrimento, a partir de um "corpo de vivência, um corpo para o usufruto, um corpo que faz circular a pulsão, um corpo investido, erotizado, permeado pela psique, célula à célula, que existe para gozar" (Souza, 1998, p. 144); ou não.

De acordo com Dejours (1991, 1998), todo acontecimento psicossomático, se assim o quiserem chamar, deve ser reabilitado no contexto em que emerge (grifos nossos), ou seja, no espaço transfero-contratransferencial. Dito de outra maneira, que todo sintoma é endereçado a alguém, produzido e organizado em uma dinâmica relacional. Isso significa que todo movimento psíquico, por exemplo, na escolha e formação do sintoma, do ato falho, do sonho, e assim por diante, não pode ser analisado tomando o sujeito isoladamente, mas deve-se levar em conta o outro, a sua relação com o Outro, que funciona como pretexto, como a oportunidade capaz de revelar ao sujeito suas fragilidades, sua própria dinâmica psíquica. Como aponta o autor, nós adoecemos para alguém, animados na relação intersubjetiva com o Outro.

A obesidade não pode ser estudada estritamente como uma enfermidade física. A dinâmica familiar, da história íntima, dá contornos próprios e específicos à obesidade. O sofrimento psíquico não pode ser reduzido ao fato de ser gordo, nem que dificuldades de ordem psicológica causam a obesidade. A mudança física operada através da cirurgia modifica o desenvolvimento do sofrimento psíquico, mas não o aplaca; como será apresentado e discutido a partir das entrevistas.

 

Percurso de Pesquisa

O principal eixo de reflexão desse trabalho centrou-se na investigação do impacto da cirurgia de redução do estômago na subjetividade das pessoas. Mais detalhadamente, qual o significado da cirurgia de redução do estômago para mulheres que a fizeram sem indicação médica?

Mediante a proposta de Del Volgo (1998), buscou-se propiciar um Instante de Dizer, ou seja, constituir um contexto intersubjetivo que pode servir aos sujeitos como oportunidade de historicizar seu sofrimento. Esse dispositivo se baseia na asserção que a ocasião de uma preocupação corporal, como no caso da cirurgia de redução do estômago, pode se tornar um estímulo indutor à construção de uma narrativa pelo sujeito sobre o seu mal-estar, conquanto que seu relato fique, desde o início, condicionado à capacidade de escutar de seu interlocutor, que nesse caso é o próprio pesquisador.

Como aponta Freud (1937/2004), a construção feita pelo analista não visa à recordação, mas produzir uma experiência singular no sujeito ao ser convidado a associar livremente. Nesse ponto, a interpretação do relato visa desvelar as defesas, desfazer os movimentos defensivos; e, portanto, o dispositivo adotado não visa à interpretação do relato, mas a ativação e exacerbação das vivências transferenciais. Se é a transferência que ativa e precipita na fala os conteúdos inconscientes, como aponta Stein (1988), a entrevista em clínica, quando produzida sob os movimentos transferenciais, por parte do analista e do analisando, pode servir à expressão do inconsciente. Ou seja, todo o relato aqui produzido só pode ser validado dentro do contexto intersubjetivo em que foi produzido (Gori, 1998). Cada palavra, cada sonoridade, só adquire sentido na própria situação de interlocução.

Disso decorre que o material a ser analisado são os efeitos do discurso dos entrevistados no entrevistador. Assim, cada palavra pronunciada pelo entrevistador, gesto, intervenção, tem sua determinação no discurso dos sujeitos entrevistados. Dentro dessa perspectiva, como material interpretativo, dispomos de duas entrevistas do tipo clínico realizadas com duas mulheres que fizeram a cirurgia de redução do estômago sem indicação médica. Elas foram contatadas a partir de uma lista fornecida por um hospital reconhecido no tratamento de pessoas obesas e realização de cirurgias de redução do estômago. As duas mulheres estavam sob acompanhamento médico e, após contato por telefone, marcou-se uma entrevista em que foram convidadas a falar sobre a experiência de ganho de peso e da experiência com a cirurgia de redução do estômago.

Procedeu-se a restituição pelo entrevistador da realidade de pesquisa (da própria situação de pesquisa), e não da realidade do sujeito, como poderia se pensar. Com isso o registro das entrevistas ficou condicionado ao próprio dispositivo e, rigorosamente falando, a análise efetuada é da situação de interlocução enquanto estratégia de pesquisa. Em suma, buscou-se dar lugar à fala e reconhecer a sua importância na construção e expressão do sofrimento nos sujeitos entrevistados e que buscaram a cirurgia bariátrica sem indicação médica.

 

Material Interpretativo - situação de interlocução

Sra. Marta, ou "não quero mais esse fardo"

A entrevista se realizou na casa da Sra. Marta. Ela tem 62 anos. É divorciada. Tem três filhos. É dona de casa, aposentada, mora com dois filhos. O primogênito é casado e mora a alguns quarteirões de sua casa. De acordo com a Sra. Marta, ela toma conta do seu neto durante as manhãs.

Notam-se a arrumação e as muitas imagens, fotos e objetos religiosos espalhados pela casa. Ela convida o pesquisador a se sentar e conversarem na sala de jantar, próximo à cozinha, em meio a documentos e exames médicos espalhados pela mesa. Ela começou a falar diretamente da cirurgia. Disse assim: "olha esses exames aqui, se você achar melhor pode lê-los". Eu olho para os exames e digo que prefiro que ela fale.

"Já faz dez meses..." Ela pára, dá uma pausa, pensa um pouco, faz umas contas em silêncio e volta a dizer: "isso mesmo, vai fazer dez meses nesse mês." (...) "Nesse tempo eu perdi 27 kg. Ainda estou gordinha, mas pelo que eu tava, já mudei muito, se você ver a foto". Eu apenas faço um gesto com a cabeça e espero que ela continue. "O primeiro mês é o que a gente emagrece mais, depois vai diminuindo". Põe a mão no rosto e me diz: "É um regime forçado, não é" (...) "Aqui em casa todo mundo faz regime, a gente faz regime faz tempo." (...) "como você pode ver todo mundo aqui é gordinho." E aponta para a porta do quarto que estava aberta, onde sua filha se encontrava. A Sra. Marta relata que duas pessoas na sua família fizeram a cirurgia. O seu filho mais velho e sua ex-cunhada (que ela chama de "minha cunhada", algo que ficará mais claro durante a entrevista). Ela diz que é uma mulher muito religiosa e que não concordou com a decisão do filho mais velho de fazer a cirurgia: "eu achava que isso não era coisa de Deus. Foi meu filho que fez primeiro, e quando ele decidiu fazer a cirurgia eu fiquei muito preocupada, eu não achava certo".

Eu lhe pergunto porque não achava certo seu filho fazer a cirurgia. Ela responde que "a gente deve usar a medicina para o bem, é uma coisa de saúde, eu não achava certo fazer uma cirurgia para emagrecer (...) Não vou te enganar, todo mundo faz a cirurgia pensando em emagrecer, ninguém gosta de ficar gordinho (...) É muito difícil, ninguém gosta de ser gordinho". A Sra. Marta vai descrevendo regimes, quase sempre "receitas ensinadas pelas amigas". Traz uma história longa de tentativas frustradas e regimes mal sucedidos. Disse que sempre tentou emagrecer, mas não conseguia. E conclui: "mesmo não emagrecendo eu não achava certo fazer uma cirurgia para emagrecer. Se quiser emagrecer tem que fazer regime".

Ela conta que é ministra na Igreja Católica. Durante toda a entrevista diz que é muito religiosa; contudo, teve que deixar a função de ministra na Igreja quando foi cuidar de sua ex-cunhada que fez a cirurgia de redução do estômago depois de seu filho. Ela diz: "eu não podia mais assumir essa responsabilidade". Mas acrescenta que continua a freqüentar a igreja, contudo, já não é mais ministra. Ela relata que foi depois de cuidar de sua cunhada (que mora em outra cidade, distante de Goiânia) que decidiu fazer a cirurgia de redução do estômago. A Sra. Marta pesava cento e doze quilos (ela é uma mulher de baixa estatura), e que todos sempre fizeram regimes em sua casa, mas nunca conseguiram emagrecer. Segundo ela "acho que é de família".

Eu lhe pergunto como foi essa decisão de fazer a cirurgia, pedindo que ela explicasse melhor. Ela diz: "quando meu filho mais velho decidiu fazer a cirurgia, eu fiquei muito abalada, não sabia o que fazer (...) Só pensava que isso não era certo". Quando seu filho foi consultá-la, pedindo sua opinião, ela foi "totalmente contra" e pediu muito para ele não fazer. "Eu fiquei tão abalada que nem acompanhei o processo (...) Eu só rezava". Poucos meses depois sua ex-cunhada liga. Queria que a Sra. Marta fosse cuidar dela pois precisaria de ajuda devido à cirurgia (sua ex-cunhada, irmã de seu ex-marido, é solteira e mora sozinha). "Ela me pediu que eu a fizesse companhia (...) Então, eu fui. (...) E já tinha muito tempo que eu não ia lá, e lá todo mundo gosta de mim". Referindo-se à família de seu ex-marido. Ela conta que nasceu e foi criada na mesma cidade de seu ex-marido. Eles se conheceram, se casaram e depois, devido ao trabalho, se mudaram para Goiânia. Segundo a mesma, "minha família está toda lá. (...) No início foi difícil acostumar com a cidade. Mas, agora meu lugar é aqui. Não consigo viver em outro lugar". E ela acrescenta, "não consigo ficar longe da igreja, eu tenho responsabilidades lá".

A Sra. Marta diz que passou dois meses com sua ex-cunhada, que a acompanhou aos médicos e lhe fez companhia: "nós somos amigas (...) eu fazia a comida dela, que era uma comida especial, ia ao médico com ela, a gente conversava muito. (...) E ela me encorajava sempre. (...) E quando eu vi o tanto que ela emagreceu... ela emagreceu 15kg em um mês. (...) Meu Deus do céu, é difícil fazer regime. No início você pensa que vai ficar louca. (...) Não é fácil". Eu lhe pergunto o que não é fácil para ela. A Sra. Marta diz que tem muita dificuldade ainda, principalmente por causa da restrição alimentar. "Às vezes tenho uma vontade louca de comer (...) Sabe, sobre a cirurgia correu tudo bem, mas tem que se controlar, o difícil é parar de comer". Segundo a Sra. Marta ela vomitou várias vezes. "Meu estômago não aceitava carne de nenhum tipo (...) para amenizar a vontade de comer a gente 'inventa de tudo' (...) Cada dia é um suco diferente". Ela relata que teve que ficar de repouso alguns dias, mas por recomendação do médico, e segundo ela, "foi melhor assim". Eu lhe pergunto por quê? Ela diz que: "na rua a gente vê comida. (...) Se vai à feira vê pastel, e têm as festas da igreja também... ontem mesmo teve uma festinha. (...) Eu coloquei uma colherinha de feijão tropeiro na boca e já comecei a passar mal. Tive que colocar tudo para fora. (...) Carne eu não estou podendo nem pensar." Ela pega seu roteiro alimentar, proposto pela nutricionista, e me mostra dizendo: "veja como é difícil (...) E eles nem explicam direito tudo. O da minha cunhada era bem melhor".

Eu lhe pergunto como começou a engordar, peço que ela me explique. Ela me diz que começou a engordar depois de sua primeira gravidez. Faz contas em silêncio. E conclui, "quando fiquei grávida do meu filho mais velho, eu engordei um pouquinho". Ela ganhou 10kg e não conseguiu perder. Depois aumentou "mais um pouco com a segunda gravidez". Ela tenta se lembrar quantos quilos e faz contas, pára um pouco e diz "não me lembro muito bem, mas engordei mais um pouco (...) na terceira gravidez foi aumentando ainda mais, eu fazia regimes e não conseguia perder peso". Ela diz novamente, "deve ser coisa de família, na minha casa todo mundo é gordinho (...) na família do pai dela todo mundo é gordinho. Acho que é de família" (apontando para a filha que estava em um quarto ao lado e referindo-se à família de seu ex-marido).

Eu lhe pergunto sobre o ex-marido. Ela diz que há muito tempo ela não o vê. Nesse momento sua filha entra na sala, vai até a cozinha e depois volta para o quarto, Sra. Marta fica em silêncio e depois se emociona. Pára de falar por um momento. E diz: "Tudo é Deus, né?" (...) "é Deus que nos dá o fardo que a gente pode carregar". Ela diz que seu ex-marido arrumou outra mulher. "Agora ele tem outra família". Segundo ela, ele vem visitar a filha, ela é a caçula, tem 20 anos. "É Deus que me dá forças para superar isso." Ela fica em silêncio novamente. Nesse momento a filha se senta perto de nós, numa poltrona perto da mesa, o que impossibilitou continuar a entrevista. Parece que o divórcio é um assunto doloroso para ela, talvez para a filha também. Parece que "esse fardo dado por Deus" ainda pesa em suas vidas.

 

Notas interpretativas - Sra. Marta, ou "não quero mais esse fardo"

A obesidade no caso da Sra. Marta não é de desenvolvimento, ou seja, ela não foi sempre gorda. O engordar aqui se inscreve em sua dinâmica familiar, na qual dois aspectos são destacados na entrevista. O primeiro é que a obesidade tem relações com a gravidez e com a dificuldade de perder peso depois de cada gravidez: "fazer regime é muito difícil". O segundo aspecto pode ser interpretado como uma identificação familiar.

Para a Sra. Marta, ser gordinho é de família, há uma sobreposição simbólica: "aqui em casa todo mundo é gordinho" e "na família de meu marido todo mundo é gordinho". Ela fala que "ninguém gosta de ser gordinho", mas parece um processo identificatório que dá sustentação, assim como a religião, à identidade.

É pertinente dizer que a obesidade perde seu lastro por um primeiro corte: o marido tem outra mulher. Desta, a Sra. Marta não diz se ela é gordinha ou magra. Apenas menciona que é um "fardo difícil de carregar". Obesidade e separação parecem enovelados. Assim como é difícil aceitar sua "nova condição", ou seja, difícil aceitar esta mudança carregando o fardo de não ter mais família, também é difícil mudar de identidade: nas falas, a família do marido e a sua família (agora sem o marido) são misturadas, "é coisa de família". A cunhada, que é ex-cunhada, é "uma irmã". Esta por sua vez também procura e produz um corte de identidade: não quer ser mais gordinha. Nesse sentido Sra. Marta parece se identificar à "irmã-cunhada": agora ela também é solteira, "sozinha" e não quer ser gorda. Pode-se pensar que ela encontra na relação com a "irmã" um suporte.

Um segundo corte, este no real, é desejado para marcar que a mudança é sofrida, mas necessária: "não é fácil carregar esse fardo". De qual fardo ela fala agora que já não é mais obesa? Do fardo da mudança de identidade? Não é mais casada? Ela fala que é difícil sair na rua, há muita tentação.

O corte da cirurgia não visa a auto-imagem em busca de uma nova estética; em nenhum momento há um desejo de ficar bonita se reformulando. O conflito inconsciente parece organizado em termos da perda da identidade, de um corte real, a separação que produz um corte simbólico: não mais identificada ao marido e a sua família de gordinhos. O conflito não é de natureza neurótica: o desejo de ficar com o marido e ter sua família de volta é barrado no real. Pode-se pensar em um processo de recolhimento da libido, de reorganização das relações objetais. O cuidado com a "cunhada-irmã" e consigo mesma, próprios à cirurgia, parecem estar misturados. A cirurgia faz parte da elaboração do luto.

Pode-se notar que a cirurgia não responde às preocupações de saúde ou a uma indicação médica, sequer às preocupações estéticas. Ela responde a uma tentativa do Ego de encontrar soluções no real para sustentar uma mudança que escolhe, via renúncia, ao desejo. A renúncia às comidas no real pode estar associado à renúncia libidinal.

As falas encontradas levam a pensar que a obesidade da Sra. Marta está inscrita na história familiar, de relações objetais, na qual ela se reconhece. A cirurgia também se inscreve nessa história como uma tentativa egóica de reorganização. Evidentemente para a medicina a cirurgia corresponde a uma necessidade de emagrecer, necessidade de saúde, de bem-estar, necessidade de quê?

 

Rebeca, ou "idas e vindas... e vai-e-vem"

Rebeca tem 21 anos. Mas tem rosto e jeito de adolescente. Começamos a conversar sobre o convite que havia sido feito para a entrevista. Ela chega até mim após conversar com uma pessoa do grupo de pesquisa e me diz: "tudo já foi explicado (...) Vocês querem conversar sobre o processo de adaptação da cirurgia de redução de estômago, não é mesmo?" Ela já me adianta: "eu não consegui me adaptar". Essas primeiras palavras dizem muito e eu fico imaginando de qual adaptação ela fala, será a "adaptação", aqui, à situação de entrevista? Ou será a adaptação à cirurgia? Ou ainda adaptação à sua vida, em seu caminhar?

Ela continua: "eu não mudei minha vida como eu pensava que ia mudar, a gente faz a cirurgia achando que vai melhorar tudo, eu continuo a comer e parei de emagrecer." Eu lhe pergunto o que ia mudar, o que ela esperava mudar. Ela relata que conseguiu emagrecer no início, mas que ela precisava perder mais oito quilos, pois só assim o seu médico irá fazer a cirurgia plástica. E diz: "Eu cheguei a perder 45kg, mas meu médico me disse que eu tenho que perder mais uns 8kg. Eu já perdi, eu já ganhei, foi um vai-e-vem." Nesse momento ela começa a falar sobre os quilos perdidos e ganhos. Disse que perdeu cerca de 40kg, depois ganhou mais quatro quilos, perdeu novamente esses quatro quilos, depois ganhou mais dez quilos, agora diz que precisa perder oito quilos para fazer uma cirurgia plástica. Contudo, já se passaram três anos e meio de cirurgia e ela me diz que perdeu mais ou menos trinta e sete quilos. Ela faz uma confusão de ganhos e perdas de peso que deixa inclusive o entrevistador confuso. E conclui: "Ah, está tudo um vai-e-vem".

Ela diz: "foi muito doloroso o processo de adaptação à cirurgia (...) não imaginava que ia ser assim. Eu achava que eu ia recuperar logo, que ia perder os quilos rapidinho, tipo acordar magra. Eu não consigo colocar em minha cabeça que não posso comer. Tudo está diferente depois dela. Está confuso, não é?" Maior confusão parece ter sido o casamento de seus pais, que também apresentou marca do "vai-e-vem". O casamento dos pais de Rebeca se deu em meio a idas e vindas. A primeira lembrança que ela traz de sua mãe é sobre o afastamento dela devido às necessidades de trabalho. "Minha mãe é professora, era, agora está aposentada." (...) "Ela dava aulas em três colégios. Fazia jornada tripla, manhã, tarde e noite. (...) Por isso eu a via pouco." Rebeca chegou a dizer que só via sua mãe nos finais de semana. "Ela saía para o trabalho muito cedo e voltava muito tarde (...) Eu estava sempre dormindo." Rebeca foi criada pela avó materna e seu pai estava sempre a viajar. "Meu pai era um viajante. Ele trabalhava de representante comercial. Vendia peças de automóveis em várias cidades (...) Ele fazia um círculo, visitava várias cidades até voltar para casa novamente. (...) Foi assim que meus pais se conheceram, como a vida dos dois era assim, um dia minha mãe decidiu engravidar. Ela escolheu a data, planejou tudo. Minha mãe entendia disso, era professora". Nesse ponto eu penso sobre o que sua mãe entendia. Rebeca parece fazer uma associação entre os estudos da mãe e entender sobre gravidez, sobre como ser mãe. Mas um filho não seria um meio de acabar com as idas e vindas nesse relacionamento? Um filho não seria um forte apelo para que as coisas diminuíssem seu ritmo de 'vai-e-vem'?

Eu lhe pergunto sobre o que ela acha disso, sobre o casamento dos pais. Ela diz um tanto indiferente que: "eu sei lá, o casamento de meus pais sempre foi assim, um vai-e-vem (...) então eu não senti muito". Seus pais se separaram e voltaram muitas vezes e por isso ela acabou sendo criada pela avó materna. Eles também se mudaram várias vezes, moraram em várias cidades. Segundo Rebeca, "eu sempre fiquei sozinha, com minha avó". Apesar da presença da avó ela mesmo assim se sentia sozinha, não tinha a companhia esperada, desejada. Rebeca hoje é estudante, tem vinte e um anos e mora com os primos em Goiânia. Sua família reside numa cidade do interior do estado. Mas quando perguntada ela volta a dizer que: "eu moro sozinha em Goiânia". Parece que sem a presença da mãe e do pai, mesmo com a companhia dos primos, lhe permanece essa marca de ser solitária. Contudo ao falar de sua infância ela diz que: "eu fui uma criança muito mimada (...) eu sempre tive tudo o que eu queria, morava com vó, né (...) Meu poder de persuasão é forte (...) Eu sempre tomei decisões sozinha".

Apesar da ausência da mãe, ela parece ter muita ligação. Rebeca relata que a acompanhava às consultas médicas, sua mãe fazia regime e tratamento para emagrecer. Foi durante uma consulta de sua mãe que Rebeca decidiu, segundo ela, "sozinha", a fazer a cirurgia de redução do estômago. "Eu não pensava em regimes, eu nunca fui ao médico para emagrecer. Eu ia acompanhar minha mãe e tomei a decisão lá mesmo". De acordo com Rebeca em sua casa todo mundo é obeso, contudo ela nunca fez tratamento para emagrecer. Durante a consulta da mãe ela se vira para o médico e diz: "eu quero fazer a cirurgia do estômago, o que eu preciso fazer? O médico se se empolgou (...) Naquele momento a cirurgia estava no auge, era muito popular (...) Ele deu uma aula para mim, explicou tudo, até usou o quadro (...) Ele disse que deveria fazer alguns exames e lhe trazer algumas cartas". Ela deveria trazer laudos de vários profissionais concordando com a cirurgia. "Inclusive o psicólogo", ela diz: "essa foi a carta que mais deu trabalho (...) tive que refazer várias vezes, eles não sabiam como fazer". Segundo Rebeca ela teve que consultar vários psicólogos, porque não sabiam fazer o laudo e lhe era indicado outro profissional. Seu médico lhe dizia que estava errado. Ela continua: "Eu tive que ir a quatro psicólogos e todos erravam as cartas. Eu chegava no meu médico com a carta e ele dizia que estava tudo errado, tinha que refazer". De fato, parecia que existia algo errado em tudo isso. A mãe de Rebeca não se posiciona, não discute com a filha a decisão de fazer a cirurgia. "Eu sempre tomei as decisões sozinha (...) eu sempre começo as coisas, se me deu vontade, eu vou lá e faço." Ela dá uma pausa em seu discurso. Parece pensar no que vai dizer. E retoma: "Mas eu nunca consigo terminar. É por isso que a cirurgia eu vou terminar..."

Fico pensando sobre o que ela me diz, às vezes em tom de queixa, "eu sempre tomei decisões sozinha (...) sempre fui muito mimada, tive tudo o que queria. (...) Minha mãe nunca diz nada, nunca opinou muito (...) eu posso fazer o que quiser (...) quando meu pai foi embora então..." Segundo Rebeca seus pais se divorciaram durante sua adolescência. Ao falar de seu pai, traz uma lembrança importante do período em que ele tinha um supermercado e só podia vê-la à noite. Segundo Rebeca eles se viam somente na ida para a escola e à noite, quando ele já chegava tarde e lhe preparava o jantar. "Ele sempre fazia aquele monte de comida, e sempre era comida gordurosa, com bacon, ovo... eu acho que ele queria fazer algo por mim, já que ele passava tanto tempo fora. (...) Era muito gostoso, eu comia muito e comia tarde, aí eu comecei a engordar (...) naquela época eu era muito magrinha". Rebeca nasceu de parto cesário depois de noves meses de gestação. "Eu demorei muito para nascer... eu passei do tempo (...) Então os médicos tiveram que me tirar." De acordo com Rebeca sua mãe não teve contrações e já havia sofrido um aborto em outra gestação. Rebeca teve que tomar muitos remédios nessa época devido à anemia. Seu pai ficou muito preocupado com sua alimentação, o que gerou uma indisposição entre ele e sua avó materna. "Minha mãe não opinava, mas minha avó brigava com meu pai, ela tinha medo que eu engordasse".

Ao falar da cirurgia, Rebeca alega ter sofrido um grande desapontamento. Seu pai só fica sabendo da cirurgia através de uma tia de Rebeca e já depois de realizada. Segundo consta em seu relato, a mulher com a qual seu pai se casou o proibira de vê-la. Ele só ligou para ter notícias dois anos após. Não é por acaso que, ao ser solicitada para falar da cirurgia, ela diz que "tudo desandou (...) Eu pulei uma parte do tratamento (...) foi muito sofrido". Rebeca ficou 5 dias internada, teve infecção, apesar de ela ter feito a cirurgia em menos de um mês. Nos primeiros dias, foi-lhe recomendado tomar só líquidos, mas devido às dores que sentia teve dificuldades para se alimentar. Rebeca teve hemorragia, pois dez pontos dos vinte e quatro que foram necessários à cirurgia se romperam. Sua recuperação foi lenta, teve que tomar líquido por mais tempo que o previsto. "Tive que pular a papinha em minha alimentação. (...) eu passei do líquido direto para a comida sólida".

Rebeca demorou muito a se reconhecer magra. "Eu não percebi que emagreci, que meu corpo mudou, eu ainda me enxergo gorda (...) caí na real. Agora passei a usar roupas de marcas (...) Eu sempre usava as roupas que minha mãe fazia. Agora eu só uso roupas de marcas (...) Eu uso roupas com decote. As roupas que minha mãe fazia tampavam tudo. Contudo, não era só isso que ficava escondido em sua vida. Como Rebeca disse, "eu não me importava com o peso, eu já não me importava mais". Durante a sua adolescência Rebeca foi ofendida, época que ganhou vários apelidos. "Mesmo que eu tivesse poucos amigos, esses eram sinceros (...) ninguém quer sair com uma pessoa gordinha (...) eu não tinha nada para oferecer (...) Mas eu tinha amigos.

Parece que o fato de ser gorda, significa não ter nada a oferecer, não ter qualidades. Ela relata que não saía de casa, que não tinha namorados e que, dessa forma, só estudava. "Agora que eu emagreci, sei que nem todos têm uma amizade sincera (...) eu não me importava com namorado, eu não pensava nisso (...) Agora eu estou namorando". Contudo, Rebeca se queixa que sua mãe não gosta de seu namorado, o que parece dar motivo para brigas entre elas. "Anteriormente minha mãe me forçava ir para lá" (referindo-se a sua cidade natal) "Agora que arrumei namorado na cidade, ela não quer que eu vá". Ela usa uma aliança de compromisso. Rebeca prefere ficar com o namorado na cidade à ficar na fazenda com sua família, o que agrava ainda mais o relacionamento com sua mãe. Ela fica hospedada na casa de uma tia que mora na cidade para ter mais tempo com o namorado. Depois do início do namoro seus estudos vão mal e disse estar desinteressada pelo curso. "Meu desejo era ficar no interior com o namorado. (...) É difícil ficar indo e voltando. Eu queria ficar lá com ele". Parece que seu relacionamento também tem a marca desse 'vai-e-vem'. "Por mim, ficaria por lá mesmo".

Evidentemente, as coisas na vida de Rebeca estão diferentes. Ela diz que não se preocupava com nada, agora está muito angustiada. "Eu não sei o motivo (...) Quando fico angustiada eu começo a comer. Eu não sou do tipo que fica triste e pára de comer. Aí que eu começo a comer, eu nem vejo". Rebeca iniciou uma psicoterapia, contudo alega que não está dando certo. "Os psicólogos não eram especialistas no assunto". Fico pensando em qual assunto? Será sobre o assunto mãe e filha? Em que a mãe, ou nenhuma figura importante participe da sua vida, já que todas as decisões ela toma mesmo 'sozinha'? "Estou angustiada com tudo. (...) Só como e choro". E acrescenta: "ainda não tomei as medidas compensatórias (...) isso [o choro] não me traz nenhum benefício". Parece que, no caso de Rebeca, nenhuma 'medida compensatória', nem a mais extrema, fez com que seus pais escutassem seu sofrimento.

 

Notas interpretativas - Rebeca, ou "idas e vindas... e vai-e-vem"

Parece que para Rebeca o processo de adaptação que ela fala não é o da cirurgia, mas o de sua própria vida. Ela vai me falar de seus relacionamentos, de seu sofrimento, que encontra no corpo as coordenadas para sua manifestação. Apesar da visível mudança física, as transformações sofridas não parecem ser simbolizadas. Na verdade ela parece usar do próprio corpo para encobrir os conflitos, tirando-os do foco para não entrar em contato com seu sofrimento.

Rebeca dirá suas angústias sob o significante de um movimento de "vai-e-vem". Sobre as "idas e vindas" de cidades, de seus pais, de seu peso, de sua angústia, dos quais é muito doloroso falar. Ela achou que ia se recuperar logo, não imaginava que ia ser assim, que ia sofrer tanto. Rebeca enfrenta um processo de adaptação penoso, doloroso, confuso, que faz eco à ausência dos pais. Ela vive sozinha, toma decisão sozinha.

Ela é jovem, tem vinte e um anos, e faz a cirurgia pensando que tudo vai melhorar, entretanto agora tudo está diferente. Diferente após a separação de seus pais, diferente após entrar no mundo adulto? Sua vida mudou, ela já não é mais a criança mimada que um dia acreditou ser, ou talvez desejou ser. Ela já não pode ser indiferente ao que acontece com ela. Apesar de ela dizer que sempre teve tudo o que queria e que foi muito mimada; parece que lhe faltou algo fundamental, a presença afetiva dos pais. Ela vive em meio à indiferença, sem limites, sem ser contestada, sua mãe nunca diz nada, nunca opina muito. Não é por acaso que mesmo que tenha a presença física da avó materna, ela ainda se sente sozinha. Ela não está completa, não está feliz.

Assim, a desorganização que se instala leva a buscar pela via imaginária uma solução, através de um corte. Contudo, o corte da cirurgia não garante a mudança. A mudança física não lhe dá as coordenadas para o rearranjo subjetivo. Seu discurso não se direcionava para a perda de peso, para a cirurgia em si, mas abria para um relato de sofrimento, que se manifesta de forma singular."É difícil ficar indo e voltando, por mim, ficaria por lá mesmo". Angustiada, ela aponta que ainda não tomou as medidas compensatórias, contudo, eu fico pensando se a cirurgia de redução do estômago não veio a ser uma medida compensatória (pode-se paliativa) para aplacar seu sofrimento?

O olhar dos outros por sobre a mudança radical do corpo de alguma forma se torna a fiança necessária de que alguma coisa mudou. A mudança operada no corpo, no visível da aparência física, parece constituir um emblema significativo de sucesso ou fracasso. Seu relato gira em torno de uma história de sofrimento, de perdas e conflitos.

Os casos clínicos aqui relatados e analisados ilustram a perspectiva segundo a qual o sofrimento de muitos obesos não está na obesidade como excesso de tecido adiposo, para eles o sofrimento do "corpo feio", do "corpo deformado", fora do padrão cultural imposto e o isolamento social do qual são, ao mesmo tempo, vítimas e agentes, são conseqüências de toda uma intrincada relação ente dinâmica familiar e dinâmica psíquica. O emagrecer puro e simples não aplaca o sofrimento, como é evidente no caso de Rebeca. A perda de peso e as mudanças corporais modificam o desenvolvimento do sofrimento psíquico. O corte no real corresponde a um investimento libidinal no imaginário, em busca de solução de um conflito que é de natureza simbólica.

O emagrecer, conseguido através da cirurgia, produz efeitos positivos, fortalece o ego e sustenta, em parte, uma tentativa de mudança, de realização do desejo inconsciente. Pode-se pensar em investimento de libido do Ego. Porém, o conflito não é elaborado, nem suprimido. Nestes casos, parece legítimo inverter a premissa: "o sujeito sofre porque é obeso" para "o sujeito se torna obeso porque sofre".

O estudo aqui apresentado é exploratório, não conclusivo, mas indica claramente que o sujeito está em demanda de cuidado, em busca de tratar o sofrimento psíquico. Rebeca não sabe por que sofre, e não encontra alguém para endereçar esse sofrimento. Ela se depara, pela primeira vez em sua vida, com a angústia. Ela é mobilizada pelo sofrimento, e não encontra recursos subjetivos, familiares e profissionais para lidar com isso. Para onde o sofrimento poderá levá-la? Ela disse que ainda não tomou as medidas compensatórias. O que dá um prognóstico muito ruim, como nos casos em que muitos sujeitos submetidos à cirurgia e se tornam dependentes químicos ou alcoolistas. Em muitos casos não há transtorno pré-existente, mas a cirurgia pode desencadear a emergência de um transtorno no sentido exato do termo. Evidentemente não se trata de uma questão de medicina, mas de uma visão global, holística e humana da noção de saúde. A medicina e a psicologia estão preparadas?

 

Considerações finais

O atual fenômeno da corpulência parece se constituir para alguns sujeitos como uma corrente possível de inscrição e expressão de seu sofrimento. Como um registro visível e bem notável de seus percalços na construção de sua identidade e de sua relação com o Outro. Nos dois sujeitos entrevistados, a obesidade parece funcionar como um aglutinador dos conflitos reunidos assim em torno de significantes, como: "ser gordinho", "ser obeso". Se, como aponta Anzieu (2000), o corpo é a própria história do sujeito, é sua história pulsional, então ele é sua própria identidade. A corpulência parece gerar, para esses sujeitos, uma nova situação pessoal e social em razão de laços complexos de sua construção da imagem corporal, de sua identidade e de sua relação com o Outro, laços difíceis de discernir e descrever.

O corpo tem uma função ordenadora implícita e participa da criação e do restabelecimento de si mesmo para si mesmo. Nossas preocupações centram-se menos na busca de uma causa da obesidade (seja apontada como fruto de um evento traumático, de um acontecimento doloroso; seja apontada como fruto de uma disposição hereditária ou, ainda, de um ambiente favorável) do que na compreensão de como o corpo pode se tornar um verdadeiro operador e desorganizador psíquico.

Nesse sentido, para o estudo da subjetividade de pessoas obesas devemos levar em conta as vivências sociais e seu impacto na constituição do sujeito. Apesar de se tratar de um problema físico, de excesso de gordura corporal, não deixa de ser um fenômeno multivariado com significativa participação de fatores psíquicos e sociais. Sua explicação, sua definição, não é algo simples. Se a expressão do corpo, a expressão das formas corporais, é a expressão de si mesmo, a obesidade não pode ser reduzida a um sintoma, seja de uma disfunção genética, seja de maus hábitos alimentares, ou ainda do estilo de vida contemporâneo, mas se constitui como um sinal ainda maior, sinal do mundo interno e privado da própria pessoa, que faz do seu corpo lugar privilegiado de expressão.

Por outro lado, há uma intensa busca de saúde e bem-estar em nossa cultura; que, em alguns casos, está mais próximo de uma busca pelo corpo perfeito. Essa atual valorização da aparência transformou o corpo em intenso local de injunção, como aponta Ariès e Duby (1992), ele não só será assumido e reabilitado, mas reivindicado e exposto a todos como o novo ideal. Não é por acaso que a mídia toma o excesso de peso como algo a ser combatido, como uma espécie de mal moderno. O atual controle do peso e da estética parece reforçar ainda mais o consumo de produtos alimentícios para o emagrecimento e controle do peso, bem como a valorização de um determinado padrão estético-cultural (Felippe, Friedman, Alves, Cibeira, Surita e Teche, 2004). Paradoxalmente, a mídia é, ao mesmo tempo, em parte, responsável pela divulgação e exposição do assunto às pessoas, e, em parte, pode estar contribuindo para fomentar uma mudança nos hábitos alimentares de crianças e jovens quando da intensa propagação do estilo de vida moderno e dos alimentos fast-food, instaurando uma nova cultura alimentar (Almeida, Nascimento e Quaioti, 2002). Acrescido a isso, a atual ênfase no estereótipo de um corpo ideal, na idéia de um corpo perfeito que se aproxima cada vez mais de um modelo esguio e esbelto, na maioria dos casos reforça a discriminação e o sofrimento das pessoas que não se adeqüam a esses padrões (Fellipe, 2004; Serra e Santos, 2003). Os meios de comunicação e a atual ordem social reforçam a idéia segundo a qual a obesidade se tornou algo vulgar, de certa forma, hoje em dia, ser gordo é algo grosseiro. Interessante lembrarmos que Grossu, em latim, significa algo de grande diâmetro, de volume importante, corpulento.

O corpo parece ganhar destaque em nossa sociedade. Isso pode ser notado pelas mudanças nos hábitos, no vestuário, a atual valorização da aparência, lembrando que cada vez mais temos oportunidades para exibir o corpo (Ariès e Duby, 1992). A importância dada à aparência física chegou ao absurdo de fazer com que a gordura, o corpo opulento, passasse a ser algo depreciativo em nossa sociedade. Nesse ponto parece que as mulheres se encontram em uma situação ainda mais embaraçosa. Agora não só se tornou legítima e autêntica a preocupação com o corpo, mas parece se tornar uma espécie de dever, ser atraente passou a ser é uma obrigação. Nesse contexto, devemos lembrar que a própria ciência tem um importante papel na legitimação dos padrões do que é normal ou do que é cientificamente saudável, que hoje, cada vez mais, se assemelha ao que é tido como belo e desejável. Trata-se da naturalização de um ideal de corpo, de saúde, de beleza. Não é por acaso que as formas corporais são cada vez mais sinônimas de felicidade e bem-estar. Em nossa cultura não só se trata de reabilitar o corpo como possibilidade de expressão do sujeito, mas de tomá-lo ao apoio dos imperativos atuais de gozo, marcados pelo exibicionismo e pelo narcisismo. Em nossa cultura a obesidade é tida como uma espécie de contra-indicação social.

A partir das mudanças sofridas na família e em nossa sociedade (Giddens, 1991), por exemplo, com a ascensão da idéia de vida privada que agora se organiza em torno da premência da vida particular, pessoal; o corpo parece ser reivindicado na contemporaneidade como a via régia para a expressão e inscrição do mundo interno e privado do sujeito. Não existe vida psíquica que não suponha o corpo; e, como aponta Áries e Duby (1992), "'sentir-se bem na própria pele' torna-se um ideal" (p.102). A presença do sofrimento psíquico em pessoas obesas parece reforçar a participação das dinâmicas histórico-sociais sobre as estruturas psíquicas e no corpo dos sujeitos. Se o acúmulo de gordura é relativo às apreciações estéticas de cada época e não só aos padrões de saúde, sua interpretação e reconhecimento têm variado ao longo do tempo, em razão de valores culturais e científicos presentes em cada sociedade (Almeida e Ferreira, 2005).

Dentro desse respaldo social, a obesidade se tornou uma espécie de enfermidade social, adquirindo contornos próprios em cada segmento. No Brasil, a obesidade está cada vez mais presente em estratos sociais menos abastados, sobretudo em mulheres de meia-idade pobres (Ferreira e Magalhães, 2005). Por outro lado, a discriminação e preconceito contra as pessoas obesas (Felippe, 2004) parecem ser reforçados pela legitimação e naturalização de um "ideal de corpo" (inclusive pela ciência). Isso pode ser observado pela busca de um "corpo saudável" (ideal) e o sentimento de inadequação ou insatisfação com as formas corporais cada vez mais freqüentes às mulheres (Camargo, Goetz, Barbara e Justo, 2007).

A beleza física se tornou símbolo de prestígio social. As formas corporais, a questão da aparência sendo sistematicamente investigada durante as últimas décadas, se tornou sinônimo de felicidade e sucesso, embora com os sujeitos entrevistados a insatisfação com o corpo não pareça estar em torno de uma questão de beleza. Como aponta uma das entrevistadas, seu desejo de mudar o corpo parece se associar ao desejo de mudar de vida. Após o divórcio, ela parece querer se desfazer dos laços subjetivos que a ligam à figura do ex-marido. A dimensão individual e singular parece ter um papel preponderante ante o compartilhamento desses ideais. O contexto interacional e familiar dão contornos próprios ao significado do desejo de emagrecer.

O corpo, em seu fundamento biológico, não fornece de antemão as condições necessárias para que o indivíduo se construa como sujeito. Observa-se a dependência mútua de uma gama de fenômenos ligados ao corpo, que não se reduzem às atividades físico-químicas; mas, à expressão complexa da atividade psíquica e simbólica humana. O corpo em nossa sociedade ganha lugar de destaque enquanto objeto de troca, relação, interação. Em sua relação com o meio e com os outros o corpo vai passando por um refinamento e se distancia cada vez mais da natureza, das respostas automáticas e do determinismo biológico. Nesse sentido, a avaliação subjetiva produzida pelos sujeitos tem uma dupla sustentação, tanto no corpo vivo (físico) quanto sobre os grupos familiares. O sofrimento, para eles, se constitui como processo de uma dinâmica integrada, contemplando os modos de ser e de reagir frente à vida e aos percalços inerentes a ela. O corpo é o pano de fundo conflituoso e expressivo de seus desejos.

Nesse ponto, é importante resgatar, dentro dos estudos clínicos da obesidade, a dimensão subjetiva implicada na constituição do sofrimento humano. Apesar da cautela quanto a esses resultados, os "achados clínicos" indicam uma realidade muito mais complexa sobre o atual fenômeno da obesidade, expressando disposições afetivas, e modos de vir-a-ser-humano. Nesse sentido, para a compreensão da obesidade fica evidente que a sobreposição dos fatores somáticos em detrimento dos psíquicos, ou vice-versa, é um equívoco. Em suma, a dinâmica social e familiar, a história íntima, singular, dão contornos próprios e específicos à obesidade.

Com este trabalho começamos a pensar sobre a participação da imagem do corpo na cultura, no seu impacto sobre a subjetividade das pessoas. Pensamos também se existiria um modo de relação ao corpo que seria inerente a uma subjetividade "gorda"; existiria uma subjetividade padrão do obeso? Em suma, esse fragmento visa ilustrar a prudência necessária quanto ao fenômeno da obesidade hoje, quanto aos tratamentos indicados, e, sobretudo, à atitude dos especialistas (médicos, nutricionistas, psicólogos entre outros) com essas pessoas.

 

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Recebido em 20 de maio de 2008
Aceito em 18 de fevereiro de 2009
Revisado em 15 de março de 2009

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