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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.9 n.2 Fortaleza jun. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

As múltiplas faces da homossexualidade na obra freudiana

 

 

Luciana Leila Fontes Vieira

Mestre em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII, Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, Professora do Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. End.: Av. Santos Dumont, 333/903, Aflitos. Recife,PE, CEP: 52050.050. E-mail: lufontesvieira@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo analisa a problemática da homossexualidade no universo freudiano. É evidente que investigar o estatuto da homossexualidade na obra freudiana nos conduz, necessariamente, a uma certa relatividade. Pois, as concepções de Freud não são sempre as mesmas, e por vezes se contradizem. Não pretendemos, no entanto, ordenar as múltiplas faces da homossexualidade descritas pelo fundador da psicanálise, nem mesmo fazê-las concordar entre si. Trata-se, antes de tudo, de fomentarmos um mergulho crítico e renovado do campo da homossexualidade. Para tanto, realizamos, inicialmente, um breve percurso histórico sobre a criação, a apropriação e o esquadrinhamento dessa categoria ao longo do século XIX, momento em que Freud inaugura a psicanálise. De fato, a sexologia, nova ciência do século XIX, esmerada na tarefa positivista de classificar "tipos" e comportamentos sexuais, contribuiu para produção da homossexualidade. O que significou, em grande parte, produzi-la enquanto patológica. Em seguida, interrogamos a própria criação das categorias de heterossexualidade e homossexualidade na obra freudiana, a fim de refletir em que sentido a hegemonia do modelo fálico-edípico produz uma verdade do sujeito forjada pela divisão sexual e binária, com suas implicações hierarquizantes e assimétricas. Neste sentido, o complexo de Édipo/castração passaria a ser problematizado em função da diferença genital entre os sexos, onde a heterossexualidade assume o lugar de referência já que suposta produtora de alteridade, cabendo a homossexualidade o critério da fixação e do narcisismo.

Palavras-chave: homossexualidade, freud, psicanálise, sexualidade, subjetividade


ABSTRACT

The article analyses the topic of homosexuality within the universe of Freud´s work. It is clear that investigating the statute of homosexuality in Freudian theory leads us, necessarily, to some relativity, since Freud's conceptions are not always the same and sometimes contradict themselves. We do not intend, however, to appoint the multiple faces of homosexuality described by psychoanalysis founder, not even to make them cohere among themselves. It is about promoting a critical and renewed dive into homosexuality field. In order to do so, we have initially traced a history brief of the creation, appropriation and investigation of that category along the 19th century - when Freud brings out the psychoanalysis. In fact, sexology, new science from the XIX Century, diligent in the positivist task of classifying sexual "types" and behaviors, has contributed to the production of homosexuality. This meant, largely, to produce it as pathological. After that, we interrogate the creation itself of the categories of heterosexuality and homosexuality in Freud´s work in order to reflect upon in what sense the hegemony of the Phallic/Oedipal model produces one truth of the subject which is forged by the sexual and binary split, leading to hierarchies and asymmetries. The Oedipus/Castration complex would be then questioned in function of the genital difference between sexes. On the one hand, heterosexuality, which is supposed to produce alterity, becomes the place of reference. On the other hand, homosexuality assumes the criteria of fixation and narcissism.

Keywords: Homosexuality, Freud, sexuality, subjectivity, psychoanalysis.


 

 

É evidente que a tentativa de uma análise do estatuto da homossexualidade na obra freudiana nos conduz necessariamente a uma certa relatividade. As concepções de Freud não são sempre as mesmas, e por vezes se contradizem. Não pretendemos, no entanto, ordenar as múltiplas faces da homossexualidade descritas pelo fundador da psicanálise, nem mesmo fazê-las concordar entre si. Trata-se, antes de tudo, de fomentarmos a curiosidade no sentido foucaultiano do termo.

É a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ela assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Mas o que é (...) a atividade filosófica - se não o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (Foucault, 1984/2000, p.15-16).

 

1. As metamorfoses da homossexualidade na obra freudiana

1.1 Da luta pela descriminalização à apropriação médico-moral

Antes de analisar o estatuto da homossexualidade na obra freudiana não poderíamos nos furtar de realizarmos uma retomada da maneira como essa categoria foi investigada e apropriada, no século XIX, data em que Freud inaugura a psicanálise. Até 1892, não existia homossexualidade. Havia, certamente, mulheres e homens que mantinham relação sexual com parceiros do mesmo sexo e que podiam torna-se alvo de reprovação ou punição por transgressão sexual. Porém, esses atos não os marcavam como pessoas inerentemente ou fundamentalmente diferentes das outras. Em suma, a atividade sexual não constituía um marcador ou determinante da identidade.

No final do século XIX, sobretudo pela ascensão de um novo discurso médico-científico preocupado com o estudo e classificação das patologias; eis que surge uma nova espécie: o "homossexual". As primeiras investigações buscavam identificar as manifestações e causas da homossexualidade com interesse na normalização da vida sexual; projeto que fazia parte do movimento higienista dirigido ao controle e a regulação da vida urbana. Vale salientar que não só os homossexuais eram alvo dessa empreitada. De fato, as campanhas de higiene social pertenciam a um momento histórico que apoiava a expressão sexual desde que restrita ao laço matrimonial, ou seja, apenas as relações heterossexuais conjugais vinculadas à reprodução e a transmissão de bens eram endossadas. Em qualquer outra esfera ou contexto a relação sexual era estigmatizava. Praticava-se uma vigilância moral no que diz respeito a todo comportamento sexual "diferente", porém havia aqueles que eram considerados ainda mais transgressores. Desta forma, criavam-se tolerâncias e punições diferenciados que abrangiam questões de gênero, classe e raça. Por exemplo, consentia-se aos homens uma permissão para atividade heterossexual extraconjugal que era negada as mulheres. A prostituição de mulheres de camadas pobres, desde que mantida em certos limites, era nessa época menos preocupante do que a manifestação de um interesse sexual "forte" ou "precoce" numa menina adolescente ou numa mulher de classe média, e tal como a homossexualidade, a sexualidade feminina era sempre susceptível de desconfiança.

A sexologia, nova ciência do século XIX, esmerada na tarefa positivista de classificar "tipos" e comportamentos sexuais, contribuiu para produção da homossexualidade. O que significou, em grande parte, produzi-la enquanto patológica. Todavia, houve uma abordagem sexológica que tentava justificá-la argumentando que se tratava de uma natureza diferente contra a qual não haveria porque lutar. A partir de então se instituiu o homossexual, espécie cuja própria existência e corpo, se tornariam objeto de investigação, escrutínio e vigilância, bem como, de disputas sobre sua representação.

A intensa produção discursiva sobre a sexualidade não era limitada ao domínio da medicina. Karl Heinrich Ulrichs, autor de 12 livros sobre sexualidade, advogado dos direitos das 'minorias' sexuais e fundador, desde 1862, do culto ao uranismo, descreve sua própria condição: uma alma feminina presa num corpo de um homem que expressa desejo e paixão apenas por homens viris. Os "uranistas" não eram doentes, e sim uma variedade da espécie humana. Ulrichs diferenciava-os da devassidão e da pederastia e, ao mesmo tempo, lutava contra a descriminalização. Ele foi pioneiro na elaboração de trabalhos com vistas a obter a abolição da legislação repressiva. Nesse sentido construiu uma descrição minuciosa de um certo tipo de homossexualidade de origem natural, não identificada ao vício e a doença. Tratava-se, efetivamente, de uma forma particular de gozar, inerente aos homens de moral e dignos de estima, em conformidade com a natureza (Lanteri-Laura, G. 1994, p. 30-31).

Segundo Peixoto C. A., Jr., "apesar do fracasso em sua luta pela emancipação do uranismo, Ulrichs obteve enorme sucesso com sua teoria biológica, favorecida pelo crescimento do materialismo e do positivismo da época, ainda que sua adoção por psiquiatras berlinenses tenha levado o uranismo a ser considerado uma condição psicopatológica passível de investigação psiquiátrica" (1999, p.38).

O médico húngaro Karl Maria Kertbeny, um dos primeiros defensores da revogação das leis anti-sodomitas, utilizou numa carta a Ulrichs, datada de 6 de maio de 1868, quatro novos termos: "monossexual", "homossexual", "heterossexual" e "heterogénit". O "monossexual" refere-se à masturbação pelos dois sexos; "heterogénit" alude aos atos eróticos praticados com os animais; "homossexual" concerne aos atos eróticos entre os homens e entre as mulheres e, finalmente, o "heterossexual" descreve a prática sexual entre homens e mulheres. (Katz e Jonathan Ned, 2001, p. 57). Ele considerava a heterossexualidade e a sexualidade normal como expressão natural de satisfação sexual para a maioria da população. Todavia, a heterossexualidade e a sexualidade normal não são normativas e tão pouco sinônimas.

Os homens e mulheres heterossexuais praticam o coito dito natural [procriador], assim como, o coito contra natureza [não procriador]. Eles são igualmente capazes a entregar-se aos excessos com pessoas do mesmo sexo. Além disso, as pessoas que possuem uma sexualidade normal não são menos suscetíveis de se masturbarem, caso as ocasiões para satisfazer suas pulsões sexuais sejam muito raras. Elas, também, são predispostas ao incesto e a bestialidade (...); e até mesmo, a se renderem a atos depravados com cadáveres, caso seus princípios morais não se sobreponham aos seus desejos sexuais. É unicamente nos indivíduos sexualmente normais que achamos o chamado "sanguinário" que é sedento por sangue e só pode satisfazer sua paixão ferindo e torturando os outros (Kertbeny, K. M., apud Katz, 2001, p.57-58).

Sendo assim, percebemos que os heterossexuais e as pessoas sexualmente normais não são modelos de virtude. Porém, à sua revelia, os termos heterossexual e homossexual serão apropriados e transpostos para as áreas psiquiátricas, psicanalíticas e jurídicas, marcados por aspectos binários e hierárquicos. Por conseguinte, as apropriações do termo "heterossexual", como afirmação de uma suposta superioridade da vida erótica entre pessoas de sexos diferentes, será uma das maiores ironias da historia da sexualidade visto que Kertbeny atribuiu aos termos um papel importantíssimo na emancipação do homossexual.

No outono de 1869, num panfleto anônimo desfavorável à lei contra "a fornicação não natural", na Alemanha unificada, Kertbeny utiliza, pela primeira vez publicamente, o novo termo: "homossexualidade". O reconhecimento da existência da homossexualidade foi anterior a revelação pública do termo heterossexualidade. Será na Alemanha, em 1880, no livro de um zoologista sobre "La Découverte de l'Âme", publicado em defesa da homossexualidade, que se divulgará o primeiro emprego público da palavra "heterossexual". Esse termo reaparecerá oficialmente, em 1889, na quarta edição alemã da "Psychopathia Sexualis" de Krafft-Ebing (Katz, J. N. 2001). Em parte influenciados pelos anos de agitação pública em favor da reforma da lei contra a sodomia e pelos direitos dos uranistas, os psiquiatras começaram, em 1869, a desempenhar um papel fundamental na construção oficial de uma teoria da normalidade e anormalidade sexual.

Foucault afirma que o campo da anomalia encontra-se, desde muito cedo, atravessado pelo problema da sexualidade. Em princípio, porque o campo da anomalia será codificado, policiado e analisado através dos fenômenos da herança e da degeneração. Nesse sentido, qualquer avaliação médica e psiquiátrica das funções da reprodução está entrelaçada aos métodos de análise da anomalia. Em seguida, porque no interior do domínio constituído por essa anomalia, serão identificados os distúrbios característicos da anomalia sexual. A anomalia sexual mostra-se, primeiramente, como uma série de casos particulares de anomalia. Mas, por volta dos anos 1880-1890, aparece como o principio etiológico geral da maioria das outras formas de anomalia (Foucault, 2001, p.211-212).

Assim, a homossexualidade, ao invés de ser descrita enquanto uma variante da sexualidade, como, originalmente pretendia Kertbeny, tornou-se, nas mãos de sexólogos pioneiros tais como Krafft-Ebing, uma descrição médico-moral. Por outro lado, a heterossexualidade, até então, precariamente teorizada enquanto termo delineador da norma passa, paulatinamente, a ser empregada ao longo do século XX. Quais são as implicações dessa nova roupagem das categorias de homossexualidade e heterossexualidade? Essa indagação nos remete ao um novo esforço para redefinir a norma. Uma parte importante desse processo centrava-se na definição do que constituía como anormalidade. Os dois esforços - a redefinição da norma e a definição do que constitui a anormalidade - estão intrinsecamente ligados.

A tentativa de definir mais rigorosamente as características do "pervertido" foi um elemento importante na hetero-normalização nos séculos XIX e XX. Essa definição era, em parte, um empreendimento no campo da sexologia que se debruçou em duas tarefas diferentes, ao final do século XIX. Em primeiro lugar, procurou definir as características básicas do que constitui a masculinidade e a feminilidade normais, vistas como características biológicas distintas para os homens e as mulheres. Em segundo lugar, ao catalogar a infinita variedade de práticas sexuais, produziu uma hierarquia na qual o anormal e o normal poderiam ser distinguidos. Para a maioria dos sexólogos, tais análises estavam intimamente ligadas às atividades genitais e conseqüentemente, a escolha do objeto heterossexual. As demais atividades sexuais foram qualificadas como prazeres preliminares ou aberrações.

A prática sexual entre homens e entre mulheres atravessou desde a Antigüidade, todas as sociedades e sob diferentes formas. Porém, como afirmamos anteriormente, apenas no final do século XIX, aparece à categoria de homossexualidade como definidora da identidade sexual. A emergência, na Alemanha e na Inglaterra, nos anos de 1870 e 1880, de escritos sobre homossexuais foi um marco nessa mudança. Ao definir, por exemplo, a "sensibilidade sexual contrária", Westphal, Krafft-Ebing, Havelock Ellis, entre outros, estavam tentando assinalar a descoberta ou o reconhecimento de uma espécie especifica de pessoa, cuja essência sexual era radicalmente diferente do heterossexual. Façamos, então, um breve percurso sobre as principais idéias dos primeiros sexólogos do século XIX.

Em agosto de 1870, o doutor K.F.O. Westphal, nos "Archives de neurologie" adota o termo "sensibilidade sexual contrária" - contrária em relação ao sentimento correto e procriador. Para o autor, a "sensibilidade sexual contrária" tratava-se de uma anomalia congênita o que determinava seu caráter natural e permitia distingui-la da devassidão. Tais 'tipos' eram sempre atraídos por pessoas do mesmo sexo e concebiam a relação com o sexo oposto com acentuada aversão. Outro aspecto de extrema relevância nas mencionadas pesquisas refere-se à demolição de qualquer explicação apoiada na noção de monomania instintiva. Assim, pode-se afirmar que os portadores da "sensibilidade sexual contrária" não eram alienados. (Lanteri-Laura, G. 1994, p.31-32). Essa concepção de Westphal foi uma das mais conhecidas e a primeira concorrente na disputa pela designação das perversões, que ocorreu no final do século XIX.

Entre os trabalhos mais notórios está o livro Psychopathia sexualis escrito em 1894, pelo austríaco de Kraft-Ebing, exemplo da nova perspectiva médica que buscava estudar as condições psicológicas e patológicas da vida erótica. Partia da premissa que o desejo sexual era em si perigoso para a civilização, sempre beirando a patologia e a doença, uma força que se não controlada ameaçaria a ordem social. Como a maior parte dos seus contemporâneos, a homossexualidade era para ele congênita. Mesmo assim, o autor, não deixava de considerar que existiam fatores sociais ou circunstanciais especificas que poderiam conduzir às pessoas as práticas desviantes, mencionando especificamente que as mulheres poderiam ter motivos sociais para não desejar a companhia dos homens. Em 1897, Havelock Ellis, emprega pela primeira vez o termo "inversão sexual", para referir-se à alma ou à sensibilidade feminina dos homens invertidos. Enquanto participante da liberalização da sexualidade, o autor tentou se apropriar de um vocabulário e conceitos médicos para defender a causa sexual.

Anteriormente a invenção da "heterossexualidade", a denominação de "sensação sexual contrária" pressupunha a existência de uma sensação sexual "não contrária"; do mesmo modo o termo "inversão sexual" implicava que existe um desejo não invertido. Desde o inicio dessa medicalização, as "sexualidades contrárias" e "invertidas" constituem um problema. Essa conjuntura inaugurou uma tradição secular, na qual o anormal e o homossexual serão enigmas, enquanto que normal e heterossexual serão aceitos. Em suma, no final do século XIX e começo do século XX, a medicina tinha criado, em definitivo, a homossexualidade e o homossexual. O novo termo de heterossexual será associado a "perversão" não procriadora, como também, ligado à vida erótica "normal" procriadora. A teoria de Sigmund Freud terá um papel fundamental no posicionamento, na propagação e na normalização do novo ideal heterossexual (Katz, J. N. 2001).

1.2 Freud: um militante do seu tempo

Analisar a problemática da homossexualidade no universo freudiano é sempre uma tarefa árdua diante tamanha diversidade e oscilações. É inegável que a Psicanálise contribuiu muito para a mudança do discurso sustentado sobre a homossexualidade na modernidade. Seu arcabouço teórico efetuou uma crítica contundente ao discurso da psiquiatria da época, na medida em que questionou o papel da hereditariedade e da degeneração. Não obstante, uma pequena herança da psiquiatria esboçada nas suas elaborações iniciais sobre a perversão e a sexualidade. De mais a mais, no decorrer da obra, Freud, parece reincidir no modelo positivista utilizado pela sexologia, nas análises das perversões. Neste sentido, enquanto herdeiro da obstinação das ciências médicas e sexuais em descobrir, diagnosticar, tratar e curar as ditas sexualidades perversas, o autor, se aproveitará das mesmas categorias para problematizar a homossexualidade, cometendo alguns equívocos e contradições teóricas.

Retomemos, por um instante, o caminho da invenção da categoria homossexualidade. No final do século XIX, brota um enorme interesse pelas chamadas "sexualidades periféricas". O homossexual será o alvo de uma investigação detalhada e minuciosa por parte da sexologia alemã. Em 1869, o médico húngaro, Karl Maria Kertbeny forjou o termo da homossexualidade e lutou pela abolição da velha lei prussiana contra a homossexualidade. Na mesma época, o magistrado Karl Heinrich Ulrichs, homossexual, faz a distinção entre "uranista" e "pederasta". Inicia-se sutilmente a problemática da identidade. É fundamentando-se nesse paradigma que o psiquiatra Westphal, em 1870, adota o termo "sensibilidade sexual contrária". A partir da definição da "inversão sexual" forjada por Havelock Ellis, Freud inicia seus estudos sobre as aberrações sexuais.

Com a invenção de novos significantes para designar aqueles que se atraem por parceiros do mesmo sexo (o sodomita, o uranista, o invertido), opera-se uma mudança na concepção que se faz da homossexualidade. Mas, ao mesmo tempo inicia-se a luta pela apropriação da categoria "homossexual": apropriação jurídica, médica, social e, porque não dizer, psicanalítica. Porém, é incontestável a radicalidade do pensamento freudiano. Pois, em oposição radical ao seu tempo, Freud, defenderá o aspecto 'natural' e não patológico da homossexualidade posicionando-se, claramente, contra os juízes, contra os sexólogos, contra os médicos enfim, contra a moral do fim do século. Neste sentido, a posição freudiana muda em relação ao método descritivo do final do século XIX, pelo esforço de aniquilar a marca patogênica da homossexualidade forjada a ferro e fogo pela medicina psiquiátrica da época. O autor defenderá suas idéias contra as rígidas e cruéis leis que descriminavam e perseguiam os homossexuais, na Alemanha e na Áustria. 'Militante' dos movimentos homossexuais da época, Freud, nos oferece um rico e surpreendente cenário de sua atuação política.

Em face da apropriação jurídica da homossexualidade, Freud aceita conceder uma entrevista, em 1903, ao jornal vienense "Die Zeit", em defesa de um homem acusado por práticas homossexuais. Em 1930, ele assina uma petição pela revisão do código penal e a supressão do delito da homossexualidade entre adultos que consentem (Badinter, Elizabeth. 1993). Não esqueçamos também que em 1935, ele escreve uma carta endereçada a uma mãe norte-americana que havia lhe solicitado ajuda em relação às condutas e comportamentos que ela considerava anormais por parte de seu filho. Ao que Freud respondeu:

Eu creio compreender após ler sua carta que seu filho é homossexual. Eu fiquei muito surpreso pelo fato que a senhora não mencionou esse termo nas informações que deu sobre ele. Posso eu, vos perguntar por que evitou esta palavra? A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas não há nada do que sentir vergonha. Ela não é nem um vício, nem uma desonra e não poderíamos qualificá-la de doença. (...) Muitos indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram homossexuais (Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci, etc). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime e também uma crueldade. (Freud, 1935/1967, p.43).

O último exemplo, em fim, diante aos psicanalistas: Freud se opõe efetivamente a Ernest Jones que recusa o estatuto de psicanalista a um homossexual. Sachs, Abraham e Eitington tomam o partido de Jones, mas Freud persiste em achá-los neuróticos, na sua idéia de analisar os homossexuais, que são para o autor pessoas 'normais'. Se nos situamos principalmente no nível dessa resposta da teoria freudiana face á controvérsia dos discursos do final do século, nós sugerimos uma hipótese: Freud e seus "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" são fundamentalmente uma refutação à apropriação médica do conceito de homossexualidade. Nessa perspectiva, o verdadeiro escândalo produzido pela publicação dos Três ensaios, em 1905, não consiste de tal modo no fato dele versar sobre as perversões e a sexualidade infantil, mas por ter introduzido, no campo da melhor tradição médica, uma renovação da questão da causa da homossexualidade e sua relação com o mal estar da civilização.

Freud esteve indiferente a 'caça' aos homossexuais que interessam, mais e mais, aos juízes, aos psicanalistas e ao mundo médico-legal? Ele é indiferente ao fato de que os grandes médicos e juristas denunciam que "o vicio tende a aumentar a cada dia e os escândalos públicos levam a uma repressão mais severa da pederastia, violação e atentados ao pudor das crianças", como diz o doutor Tardieu, na França? (Badinter, E. 1993) Freud posiciona-se claramente desde o início de sua obra.

Porém, ao mesmo tempo, a partir da teoria pulsional estabelecida em 1905, a distinção operatória entre objeto sexual e finalidade sexual fazem que o esquema de dedução freudiana se apóie inteiramente sobre os desvios e não mais sobre as supostas normas para a sexualidade; toda ligação com a patologia nos termos postos até o fim do século XIX foi recusada completamente. Mas para Freud, essa recusa não implica que a homossexualidade seja tributaria da sexualidade normal. A partir da reorganização que forneceu ao nível nosográfico em relação aos seus contemporâneos, o caráter patológico de inversão se revela no caso onde existia exclusividade de objeto e fixação libidinal.

Quando a perversão (...) suplanta e substitui o normal em todas as circunstâncias, ou seja, quando há nela as características de exclusividade e fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la como um sintoma patológico (Freud, 1905/1969d, p. 151 - grifos nossos).

Ainda que possamos identificar atitudes contraditórias de Freud em relação à homossexualidade é inegável que sua teoria ofereceu uma grande contribuição para o pensamento crítico. Uma vez que afirma, por exemplo, a necessidade da problematização da própria heterossexualidade1 já que não pode ser simplesmente entendida como resultado natural dos imperativos biológicos: "[...] o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidencia indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química". (Freud, 1905/1969d, p.137).

1.3 A trama conceitual das "aberrações sexuais"

Propomos, neste momento, nos aproximarmos da trama conceitual forjada pela psicanálise a partir da publicação dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905), uma vez que nele encontramos a primeira sistematização teórica da noção de homossexualidade. Freud inicia o primeiro ensaio, denominado "As aberrações sexuais", opondo-se à opinião popular a respeito da sexualidade:

A opinião popular faz para si representações bem definidas da natureza e das características dessa pulsão sexual. Ela estaria ausente na infância, far-se-ia sentir na época e em conexão com o processo de maturação da puberdade, seria exteriorizada nas manifestações de atração irresistível que um sexo exerce sobre o outro, e seu objetivo seria a união sexual, ou pelo menos os atos que levassem nessa direção. Mas temos plena razão para ver nesses dados uma imagem muito infiel da realidade; olhando-os mais de perto, constata-se que estão repletos de erros, imprecisões e conclusões apressadas (Freud, 1905/1969d,127).

Freud diverge do ponto de vista do senso comum em três aspectos capitais, quais sejam: o período do aparecimento da pulsão sexual, o caráter fundamentalmente heterossexual do objeto e a circunscrição do objetivo sexual ao coito.

O marcador conceitual introdutório para a análise das "aberrações sexuais" será a distinção entre o objeto sexual e a finalidade sexual: o objeto é a 'pessoa' da qual emana a atração sexual e a finalidade é ação a qual a pulsão conduz. As "aberrações sexuais" serão definidas a partir dos desvios do objeto e do objetivo. Chama-nos atenção o destaque ao aspecto "desviante" tanto do objeto sexual, quanto do objetivo. Pois, nos parece que lançar mão do aspecto desviante conduz, necessariamente, a idéia de uma suposta norma. Norma que como veremos paulatinamente se transmutará em heterossexualidade.

Retomemos então, as incursões do autor no país das aberrações. Freud não é, seguramente, nem o primeiro, nem o último, a manifestar aguçado interesse pelas "sexualidades desviantes"2.Seu ineditismo situa-se no manejo singular do corpus da sexologia do final do século XIX e nas deduções revolucionárias que obtém de tal investigação. Desta forma, o autor propõe uma diferenciação entre as inversões (desvios quanto ao objeto) e as perversões (desvios quanto ao objetivo). O primeiro gesto teórico e político de Freud é refutar o suposto caráter degenerativo e inato da homossexualidade. O autor ressalta alguns fatores que sustentam a hipótese segundo a qual os "invertidos" não são degenerados, quais sejam: a inversão pode ser encontrada em pessoas que não apresentam outro desvio sério da norma, como também, em indivíduos que possuem elevado grau intelectual e ético. Já a hipótese do caráter inato é rejeitada pela existência de gradações ou variações das "inversões". Pois, como sabemos, haveria os "invertidos absolutos" (seu objeto sexual é exclusivamente do mesmo sexo); os "invertidos anfígenos" (seu objeto sexual pode pertencer tanto ao mesmo sexo quanto ao sexo oposto) e, por fim, os "invertidos ocasionais" (seu objeto sexual pode ser uma pessoa do mesmo sexo, devido à inacessibilidade ao objeto sexual normal). Além do mais, a existência de tais nuances na tessitura das "inversões" faz o autor, neste período, renunciar a validade de uma concepção universal para as suas construções teóricas (Freud, 1905/1969d, p.128-131). As conseqüências que Freud extrai das suas primeiras elaborações são radicais.

Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência (...) nos ensina que há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe (...) entre a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco sua origem deve ser determinada pelos encantos de seu objeto (Freud, 1905/1969d, p.138-139 - grifos nossos).

Podemos perceber o esboço referente à problemática da escolha de objeto. O objeto não é fixo, predeterminado, mas contingente. Esta questão é ancorada, também, na escolha de crianças ou animais como objetos para satisfação sexual. Logo, o autor, concluirá que a "índole e o valor do objeto" são secundários e que o essencial e constante na pulsão sexual é a própria satisfação (Freud, 1905/1969d, p.140). Vale destacar a interessante nota de rodapé, acrescentada em 1910, onde o autor afirma que:

A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antiguidade e a nossa decerto reside em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao passo que nós a colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto (Freud, 1905/1969d, p.140).

Essa breve indicação explicita que as descobertas de Freud em relação às aberrações sexuais efetuaram uma crítica contundente a sexologia da época vitoriana, na medida em que abandonou o esquema da inversão sexual modificando o enfoque da biologia para a cultura.

Em relação aos desvios quanto à finalidade, presente em qualquer prática sexual (o que permite vincular as perversões à vida sexual normal), são classificados em dois grupos: o primeiro refere-se às "transgressões anatômicas" e o segundo a "fixação nos objetivos sexuais provisórios". As primeiras caracterizam-se pela utilização de outras regiões corporais, além da genital, para finalidade de gozo sexual. O autor salienta duas regiões: a boca e o ânus. Esclarece que o 'abandono' destas mucosas se relaciona ao sentimento de repugnância: no caso da boca pela associação aos restos alimentares, e no caso do ânus pelos resíduos fecais. Aqui estão situadas as fetichizações que se patologizam na medida em que ocorre uma fixação excessiva no fetiche, em detrimento do alvo sexual normal e do próprio objeto. Quanto à "fixação nos objetivos sexuais provisórios" são salientadas os pares de opostos: exibicionismo-voyerismo e sadismo-masoquismo; presentes no ato normal enquanto mecanismos preliminares ao coito. Tais atos se transformam em perversões quando, ao invés de anteceder a cópula, substituí-os como finalidade exclusiva, sobrepujando a resistência imposta pela vergonha.

Em suma, Freud utiliza-se dos mesmos critérios para qualificar as aberrações quanto ao objeto e objetivo sexual, ou seja, a fixação e a exclusividade que modificam a meta sexual normal. Além disso, nota-se, cada vez mais, que a repetição do "normal" e das "relações normais", acaba por equivaler à "heterossexualidade ao erotismo normal".

1.4 O recurso à bissexualidade: conceitualização e problematização

Em "As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade", Freud propõe uma complexificação das relações entre a natureza dos sintomas histéricos e o fator sexual. Ele afirma que diversos sintomas possuem "duas fantasias sexuais, uma de caráter feminino e outra de caráter masculino. Assim uma dessas fantasias origina-se de um impulso homossexual" (Freud, 1908/1969e, p.168). Portanto, os sintomas histéricos revelariam, por um lado, uma fantasia sexual inconsciente masculina, e por outro lado, uma feminina. O caráter bissexual dos sintomas histéricos confirma, para o autor, a existência de uma disposição bissexual inata no ser humano.

Porém, o recurso à bissexualidade aparece de forma contundente quando o autor esboça suas primeiras elaborações teóricas acerca da homossexualidade. Assim, nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" afirma que algum nível de hermafroditismo anatômico estabelece a norma: em todos os indivíduos não faltam vestígios do aparelho sexual do sexo oposto, que persistem em forma de órgãos rudimentares, sem nenhuma função ou que se transformaram para desempenhar diferentes funções. Tais fatores, também, auxiliaram Freud a elaborar sua concepção de uma predisposição originária bissexual no indivíduo que se transformaria, ao longo do desenvolvimento, em monossexualidade. Para Freud, parece sugestivo transpor essa concepção anatômica do hermafroditismo para o campo psíquico e explicar as multifaces da homossexualidade como expressão de um hermafroditismo psíquico (1905/1969d, p.133). Assim, numa nota de rodapé acrescentada nos "Três ensaios..." em 1915, o autor reafirma suas considerações ao ressaltar que:

A psicanálise considera que a independência da esco lha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base original da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido (Freud,1905/1969d, p.136).

Nota-se que essas afirmações sugerem a tentativa de Freud de procurar na anatomia a base para explicar o destino das sexualidades. Pois a questão da bissexualidade psíquica parece ser, neste contexto, um mero desdobramento do hermafroditismo anatômico. Um outro aspecto que podemos perceber seria, mais uma vez, a aproximação da sexualidade normal à heterossexualidade o que reforça o hierárquico binarismo sexual. Neste sentido, concordamos com a afirmação do Deleuze de que:

Não basta tampouco dizer que cada sexo contém o outro, e deve desenvolver em si mesmo o pólo oposto. Bissexualidade não é um conceito melhor que o da separação dos sexos. Miniaturizar, interiorizar a máquina binária, é tão deplorável quanto exasperá-la, não é assim que se sai disso (Deleuze, 2002, p. 68).

Mas, afinal de contas, o que significa masculino e feminino para o fundador da psicanálise?

Avancemos, um pouco mais, no labiríntico ensaio sobre a sexualidade. No momento, em que o autor afirma, categoricamente, que a noção de bissexualidade é um fator crucial para compreender as manifestações sexuais no homem e na mulher; remete-nos a uma nota de rodapé, datada de 1915, na qual irá complexificar os conceitos de 'masculino' e 'feminino'. Freud insiste na importância de marcar a diferença entre a simplicidade da opinião comum e o complexo ponto de vista científico. Indica pelo menos três aspectos para abordarmos esta questão: o primeiro relaciona-se a concepção de atividade e passividade; os dois últimos referem-se aos aspectos biológico e sociológico. Esclarece que o primeiro aspecto seria essencial para a Psicanálise, pois dele deriva-se à afirmação de que a libido seja masculina, isto é, 'ativa', ainda que estabeleça para si fins 'passivos'. Finalmente, conclui que o ser humano possui "uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto e uma conjugação de atividade e passividade" (Freud, 1905/1969d, p.207). Se por um lado Freud assume a complexidade da tentativa de definir 'masculino' e 'feminino', por outro parece incorporar os valores em vigor do século XIX, segundo o qual o feminino se identificava com a idéia de passividade e o masculino era associado à idéia de atividade.

No entanto, a partir da problemática da feminilidade nos anos trinta, o autor rever suas observações, pois afirma que "a distinção masculino/feminino associado a homem e mulher, nós a fazemos por mera docilidade a anatomia e a convenção. Não é possível dar nenhum conteúdo novo ao conceito de masculino e feminino. Esta distinção não é psicológica - quando vocês dizem masculino, em geral pensam em ativo, e passivo quando dizem feminino" (Freud, 1932/1969o, p. 142). Deste modo, Freud parece perceber as influências dos costumes sociais nas suas formulações sobre a sexualidade. Os corpos bissexualmente construídos são nada mais nada menos, do que a resposta a uma demanda cultural. A cultura, e não a anatomia seria a base das afirmações referentes às noções de homem/mulher; masculino/feminino; ativo/passivo; heterossexualidade/homossexualidade - divisões naturalizadas do mundo através de um esquema binário com implicações hierarquizantes e assimétricas.

1.5 Narcisos

Tornou-se lugar comum aproximar a homossexualidade ao narcisismo. Nesta perspectiva, nos debruçaremos perante a complexa tarefa de analisarmos os desdobramentos conceituais da introdução do conceito de narcisismo na construção de uma das facetas da homossexualidade no ideário freudiano. O termo narcisismo deriva de um relato clínico sobre perversão sexual produzido por Paul Näcke, em 1899. Ele designa à atitude de uma pessoa quando trata o próprio corpo com todos os "mimos" que são dedicados, freqüentemente, a um objeto sexual externo (Freud, 1916-7/1969h, p./ 485). É uma concepção que assimila o narcisismo à perversão: "Desenvolvido até esse grau, o narcisismo passa a significar uma perversão que absorveu a totalidade da vida sexual do indivíduo, exibindo, conseqüentemente, as características que esperamos encontrar no estudo de todas as perversões" (Freud, 1914/1969f, p.89 - grifos nossos).

No entanto, Freud constata que o estado descrito como narcisismo manifesta-se num grande número de indivíduos. Deste modo, conduz o narcisismo à condição de formação do eu. Em 1914, no artigo "Sobre o narcisismo: uma introdução", o termo é empregado para reportar-se a um certo modo de distribuição da libido que alude, ao mesmo tempo, a uma situação fortuita de perversão e ao desenvolvimento sexual regular do ser humano.

A investigação sobre narcisismo nos conduz, necessariamente, a questão de extrema importância para a problemática que estamos analisando, qual seja: a escolha de objeto. Ela resulta das primeiras experiências de satisfação da criança. Donde decorrem dois tipos de escolha de objetal: anaclítica e a narcísica. A escolha anaclítica refere-se aos primeiros objetos sexuais da criança, ou seja, as pessoas que a alimentaram, cuidaram e protegeram. Quanto à escolha narcísica, Freud elege como modelo paradigmático "às pessoas cujo desenvolvimento libidinal sofreu alguma perturbação, tais como, pervertidos e homossexuais" (Freud, 1914/1969f, p.104 - grifos nossos). Ele afirma que os homossexuais não escolhem seu objeto amoroso posterior, em consonância com o modelo materno, mas de acordo com seus próprios eus. Numa palavra: os homossexuais buscam a si mesmo como objeto de amor. O autor sugere que os dois tipos de escolha objetal (anaclítica e narcísica), estão acessíveis a qualquer indivíduo, ainda que se possa manifestar preferência por um das escolhas. Uma vez que os indivíduos possuem como objeto sexual originário, ele mesmo e a mãe podemos apontar a existência de um narcisismo primário comum que se manifesta ou não de modo preponderante, nas posteriores escolhas objetais.

A despeito de Freud nos apontar que os modelos de escolha de objeto narcísica e anaclítica estão disponíveis a todos os indivíduos, quando há uma dominância da escolha narcísica; tem-se no homossexual o exemplo por excelência. Podemos salientar, por exemplo, o primeiro esboço referente à questão da escolha objetal narcísica, encontrado nos "Três ensaios", numa nota de rodapé, acrescentada em 1910. Neste ponto Freud enuncia que os "invertidos" tomam a si mesmos como objeto sexual, isto é, a partir do narcisismo procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como suas mães o amaram (Freud, 1905/1969d, p.136)./ Além do mais se nos remetermos, a conferência XXVI sobre "A Teoria da Libido e o Narcisismo", veremos que o autor ratifica essa posição.

A escolha objetal homossexual situa-se originalmente mais próxima do narcisismo, do que ocorre com a escolha heterossexual. (...) A escolha objetal, o passo adiante no desenvolvimento da libido, que se faz após o estádio narcísico, pode realizar-se segundo dois tipos diferentes: um, segundo o tipo narcísico, no qual o próprio eu da pessoa é substituído por um outro, que lhe é tão semelhante quanto possível; o outro, segundo o tipo anaclítico, no qual as pessoas que se tornaram valiosas, porque satisfizeram as outras necessidades vitais, são, também, escolhidas como objetos pela libido. Uma intensa fixação ao tipo narcísico de escolha objetal deve ser incluída na predisposição ao homossexualismo manifesto. (Freud, 1916-1917/1969h, p.497 - grifos nossos).

Nesse sentido, o termo da homossexualidade incluído com insistência na teoria freudiana designa invariavelmente a escolha de objeto homossexual: eles procuram a si mesmo como objeto de amor, porque a escolha narcísica de objeto homossexual é sempre mediatizada por sua própria imagem. Essa afirmação levanta os seguintes problemas: O que significa procuram a si mesmo como objeto de amor? Alguém que é igual quanto ao sexo biológico? Se não, por que, cada vez mais, vemos estreitar os laços entre o narcisismo e a homossexualidade? Freud parece nos perguntar: é realmente possível pensar a diferença na homossexualidade?

Ora, as relações entre narcisismo e homossexualidade tornam-se, cada vez, mais complexas e entrelaçadas. Freud afirma que o desenvolvimento do eu requer um afastamento do narcisismo primário. Tal afastamento é provocado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do eu imposto de fora, surge então, uma intensa luta por recuperá-lo. À proporção que o eu investe libidinalmente nos objetos, torna-se empobrecido em decorrência desses investimentos e do ideal do eu. Mas se enriquece, novamente, a partir das satisfações em relação ao objeto e pela realização do seu ideal. Assim, o autor, constata que uma parte do amor próprio é primária, resíduo do narcisismo infantil, a outra parte procede da onipotência confirmada pela experiência (a realização do ideal do eu), e uma terceira parte decorre da satisfação da libido objetal. O ideal do eu inflige rígidas condições à satisfação da libido através dos objetos, pois ele faz com que alguns dos objetos sejam rejeitados, por seu censor, pela sua incompatibilidade. Onde não se constituiu tal ideal, a propensão sexual em questão aparece inalterada na personalidade como uma perversão (Freud, 1914/1969, p.117-118). Diz o autor: "Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no que diz respeito às tendências sexuais não menos do que às outras - isso é o que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade" (Freud, 1914/1969f, p.118). Freud sugere que o ideal sexual pode estabelecer uma relação auxiliar com o ideal do eu: o ideal sexual pode ser utilizado como satisfação substituta quando a satisfação narcísica se defrontar com obstáculos reais.

A partir dessas observações, recorremos à análise do artigo "O ego e id", pois, abarca a elaboração do conceito de "identificação", etapa preliminar da escolha objetal, que é fundamental para compreendermos a descrição freudiana sobre a homossexualidade.

1.6 A antropofagia freudiana

A identificação revela sua importância, pela primeira vez, no quinto artigo da Metapsicologia, denominado "Luto e Melancolia" (1915) onde aparece enquanto mecanismo com implicações patológicas. O modelo da identificação é a incorporação, modo de relação com o objeto peculiar da fase oral ou canibalista, onde o eu deseja incorporar o objeto devorando-o. O objeto introjetado é submetido a uma operação destrutiva, quase canibal; em decorrência da identificação, o eu equiparado ao objeto padece das mesmas violências, resultando nas acusações e lamúrias melancólicas.

No artigo "O ego e id" (1923), Freud amplia o campo de ação da identificação transformando-a num processo capital para a formação de eu e de sua escolha de objeto. De fato, a identificação é a fase prévia da escolha do objeto; o primeiro modo pelo qual o eu escolhe seu objeto. Nas palavras do autor: "Desde então, viemos, a saber, que esse tipo de substituição tem grande parte na determinação da forma tomada pelo eu, e efetua uma contribuição essencial no sentido da construção do que é chamado de seu caráter" (Freud, 1923/1969j, p. 42-43 - grifos nossos). Desta forma, podemos verificar que a identificação adquire o estatuto de processo constitutivo do eu. Tal afirmação é corroborada por Freud ao referir-se ao eu como "um precipitado de catexias objetais abandonadas e que contém a história dessas escolhas de objeto" (Freud, 1923/1969j, p.43).

Nesta perspectiva, podemos observar que começa a ser esboçado o processo para a 'escolha de objeto'. Ao reporta-se à homossexualidade, por exemplo, Freud enfatiza que a identificação "remolda o eu em um de seus mais importantes aspectos, em seu caráter sexual, segundo o modelo do que até então constituíra o objeto" (Freud, 1921/1969i, p.137 - grifos nossos). Ora, se a identificação é, com efeito, a expressão mais antiga de um vínculo afetivo com outra pessoa, os primeiros objetos a serem incorporados por este processo não podem ser outros senão os pais (Freud, 1921/1969i, p.133). A eleição da identificação à categoria de mecanismo formador por excelência do eu aponta, portanto, para a problemática edipiana e para questão da diferença sexual. Porém, a marca triangular da trama edípica e a bissexualidade constitucional dos indivíduos criam dificuldades para explicar, principalmente, a instituição da heterossexualidade. Vale lembrar que, nesta ocasião, o Complexo de Édipo é pensado segundo modelo masculino e generalizado para figura da mulher; basta alterar o sexo do genitor, no caso da menina, e o mesmo arranjo poderá ser confirmado. Num primeiro momento deste labirinto, o menino identifica-se com o pai. Posteriormente, ocorre à primeira escolha de objeto, de acordo com o modelo anaclítico: o menino adota a mãe como objeto. As duas disposições podem coexistir durante algum tempo, mas, diante a intensificação dos desejos sexuais em relação à mãe; o pai passa a ser percebido como obstáculo, dando início ao Complexo de Édipo propriamente dito.

Sua identificação com o pai assume então uma coloração hostil e transforma-se num desejo de livrar-se dele, a fim de ocupar o seu lugar junto à mãe. Daí por diante, a sua relação com o pai é ambivalente; parece como se a ambivalência, inerente à identificação desde o início, se houvesse tornado manifesta. Uma atitude ambivalente para com o pai e uma relação objetal de tipo unicamente afetuoso com a mãe constituem o conteúdo do complexo de Édipo positivo simples num menino (Freud, 1923/1969j, p.46 - grifos nossos).

Sob exigência da realidade, o Édipo deve ser destruído: o investimento objetal na mãe está destinado ao abandono. O resultado desejado seria uma intensificação da identificação com o pai a qual permitiria a preservação da relação afetuosa com a mãe, sob certos parâmetros. Nessa circunstância, a dissolução do complexo de Édipo "consolidaria a masculinidade no caráter do menino". Como os fios que tecem a trama edípica são simétricos3 para os dois sexos, a resolução almejada para a menina seria uma intensificação de sua identificação com a mãe a qual "fixaria o caráter feminino da criança" (Freud, 1923/1969j, p.47).

Entretanto, Freud afirma que essas identificações não funcionam da maneira esperada, pois não introduzem no eu o objeto abandonado. Salienta, contudo, que este desfecho é mais freqüente na menina: forçada a abandonar o pai como objeto de amor, ela pode como ele se identificar, ao invés da mãe, reforçando os traços masculinos do seu caráter, mas o processo não conduz necessariamente a homossexualidade. Tudo dependerá do grau de intensidade da masculinidade em sua disposição. Portanto, a força relativa das disposições sexuais masculinas e femininas parece determinar se o desfecho da trama edípica será uma identificação como pai ou com a mãe. Esta seria, então, uma das maneiras pelas quais a bissexualidade atua nos caminhos do complexo de Édipo. Butler (2003), nos chama atenção para imprecisão de Freud ao referir-se a uma predisposição masculina ou feminina, já que o autor interrompe sua reflexão quanto ao Édipo feminino, com uma dúvida: "seja o que for que isso possa consistir" (Freud, 1923/1969j, p.47).

 

2. A construção do modelo fálico-edípico

2.1 Da teoria do trauma ao Édipo

A teoria psicanalítica se constituiu numa tentativa de solucionar, no plano conceitual, o que se apresentava como obstáculo na clínica. As indagações freudianas surgiam do embate transferencial que funcionava como motor das formulações e reformulações necessárias para a sua construção teórica. Nesta perspectiva, vamos destacar inicialmente que a criação do Édipo só pôde se fazer com o abandono da teoria do trauma. Melhor dizendo, enquanto se mantiver a teoria do trauma, a sexualidade infantil e o Édipo não poderão ser forjados, já que para essa teoria os sintomas neuróticos estariam intrinsecamente ligados a um acontecimento traumático real que os produziu e não às fantasias edipianas da criança. Retomemos, primeiramente, os passos percorridos por Freud na construção da teoria do trauma e da sedução, até a constituição da leitura da sexualidade como algo da ordem da fantasia.

Os estudos sobre as histéricas no final do século XIX se construíram como alicerce da teoria psicanalítica, introduzindo uma mudança radical na leitura da sexualidade, na medida em que a interpreta pelo viés do prazer e do gozo. É importante destacar que até então a sexualidade era definida pela finalidade da reprodução da espécie, sendo o prazer e o gozo a ela submetidos. Com isso, a sexualidade se identificava com a genitalidade e, todas às suas vivências que não visassem à reprodução, seriam consideradas como perversão. Nesse modo de pensar, a sexualidade encontrava-se aprisionada à reprodução, expressando a relação entre sexologia e as normas sociais de controle. A partir desta ruptura entre a sexualidade e o registro biológico, Freud pode pensar o corpo da histérica para além da anatomia. Deste momento inaugural até o seu final, o sexual e o feminino atravessarão toda a obra freudiana.

Segundo Freud, na etiologia da histeria se encobriam as experiências sexuais precoces de caráter traumático. Estando limitado dos prazeres da carne, o paciente produziria sintomas que aludiam às vivências de efeito traumático que se relacionavam com sua vida sexual. O autor pressupõe que a histeria não era ocasionada por qualquer tipo de episódio pertinente a vida erótica, mas por traumas sexuais que acontecem fundamentalmente "na infância precoce, antes da puberdade, e seu conteúdo deve consistir na irritação real dos genitais" (Freud, 1896/1969b, p.188). A teoria da sedução tornou-se a marca originária dessa suposição freudiana. Tal teoria foi igualmente qualificada de traumática, na medida em que a experiência de sedução era concebida como um trauma. Este se daria por uma assimetria entre os parceiros, ora entendida pela diferença de idade, ora pela autoridade. A histeria estaria relacionada, desta forma, a uma experiência precoce de sedução que abalaria, radicalmente, a vida do sujeito. Efetivamente, na cena de sedução, o sujeito é colocado numa posição passiva, frente ao "agressor" ativo. Diante de tal experiência, o sujeito pode conservar-se nessa postura passiva ou se insurgir em seguida contra ela.

Esta teoria foi descartada por Freud, em 21 de dezembro de 1897, numa carta a Fliess, quando afirmou que não acreditava mais na sua neurótica. A teoria da sedução sexual infantil como alicerce da neurose apontava para um complexo e embaraçoso problema, qual seja, admitir a perversão das figuras parentais. Freud viu-se compelido a suspeitar da veracidade da fala dos seus pacientes, uma vez que diante dessa hipótese, "em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido" (1892-7/1969a, p. 280). Sendo assim, o autor declara que a cena de sedução não se relaciona a uma realidade, mas a algo do registro da ficção; uma fantasia que evocava os pais. A entrada penetrante da fantasia na cena da sedução opera uma mudança radical na leitura da sexualidade, isto é, o sexual passa a ser concebido no registro da fantasia. Além do mais, o papel das fantasias na constituição das neuroses conduziu o autor a desconfiar da existência da sexualidade infantil. Desta maneira, nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", em 1905, a vida sexual infantil atingirá um lugar de destaque na teoria psicanalítica. De acordo com Freud, apesar de não existir a maturidade biológica e a produção de hormônios sexuais na infância, haveria uma sexualidade infantil. Ela se constituiria a partir das atividades auto-eróticas, perverso e polimorfas das zonas erógenas.

Retomemos, por um instante, a elaboração teórica freudiana sobre o auto-erotismo. A primeira vez que Freud mencionou o termo auto-erotismo foi numa carta a Fliess, datada de 9 de dezembro de 1899. Neste contexto, tal termo designava o extrato sexual mais primitivo que atua independentemente de qualquer finalidade psicossexual e demanda apenas sensações locais de satisfação. A partir dos "Três ensaios..." Freud aprofunda suas reflexões e define o auto-erotismo como um estado primitivo da sexualidade infantil, anterior ao narcisismo, no qual a pulsão sexual, vinculada a um dado órgão ou a excitação de uma região erógena, experimenta satisfação à revelia do objeto. O fato das satisfações auto-eróticas estarem associadas a um prazer fragmentado, localizado numa parte específica do corpo, conduz Freud a qualificá-las de pulsões parciais. Elas agem de forma autônoma em relação à função biológica e a qualquer objeto específico, almejando o prazer local. Freud qualifica como erógenas, primeiramente, certas regiões do corpo - especialmente as zonas de revestimento de pele ou mucosas, especialmente as zonas orificiais. Porém, em 1915, acrescenta uma nota de rodapé, aos "Três ensaios..." onde começa a considerar o corpo inteiro como erógeno: "Após refletir mais e depois de levar em conta outras observações, fui levado a atribuir a qualidade de erogeneidade a todas as partes do corpo e a todos os órgãos internos" (1905/1969d, p. 188).

Mas o que significa a afirmação que a criança é um perverso-polimorfo? Ora, afirmar que a sexualidade infantil é caracterizada como perverso-polimorfa implica em enunciar que ela desfruta de infinitas formas de existência e manifestação. Portanto, enquanto perverso-polimorfa a sexualidade possui uma pluralidade de objetos possíveis para sua satisfação. O indivíduo do sexo oposto e sua respectiva genitália seria apenas mais um objeto sexual, no imenso universo dos objetos eróticos. Esse novo olhar sobre a sexualidade considerava o gozo e o prazer como marcas indeléveis do erotismo que não se superpõem ao imperativo da reprodução. Assim sendo, a inovadora leitura do erotismo proposta por Freud estabeleceu um corte significativo em relação à concepção da sexualidade vigente no século XIX. Para esta concepção, a sexualidade estaria submetida ao registro instintual e biológico, dependente da maturidade das gônadas e da produção dos hormônios sexuais. Enquanto instintiva, a sexualidade estaria amarrada a um único objeto sexual pré-fixado pela natureza. A eroticidade limitar-se-ia aos órgãos genitais, seguramente, do sexo oposto, na medida em que possibilitaria a finalidade suprema da reprodução da espécie. Neste sentido, concordamos com Neri ao afirmar que:

Freud colocou por terra qualquer ordenação preestabelecida da sexualidade, bem como, a opinião corrente de uma suposta relação natural de atração e complementaridade entre os sexos. Nada na sexualidade está garantida, a pulsão sexual pode investir os mais diferentes objetos que lhe causam prazer, ela é assim variável, múltipla, dissociada da genitalidade (1999, p.178).

Porém, para Freud, o aparelho genital não perdeu seu lugar privilegiado nos contornos eróticos do corpo, pois o ato sexual imperava no cenário lúbrico. Não obstante, é notório que com o advento da psicanálise a genitalidade foi destronada do espaço que detinha no imaginário científico do século XIX. Mas é importante salientar que existe uma sucessão de pressupostos no discurso freudiano que são atravessados pelos valores sociais desse século. Para finalizar, podemos concluir, que a superação da teoria do trauma implicou na descoberta do papel da fantasia, da sexualidade infantil e do Édipo.

2.2 O império do monismo sexual

A primeira referência feita por Freud ao complexo de Édipo foi numa carta a Fliess datada de 15 de outubro de 1897. Entretanto, será nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905) que o modelo Edípico fará sua aparição oficial. Sua teorização se inicia no terceiro ensaio denominado "As transformações da puberdade" onde o autor sustenta a tese da primazia do genital em relação à sexualidade perverso-polimorfa. A pulsão sexual infantil, predominantemente auto-erótica e perverso-polimorfa, encontrará seu objeto sexual através da conjunção das pulsões parciais sob o primado da zona genital. Desta forma, a pulsão sexual coloca-se a serviço da função reprodutora e conseqüentemente heterossexual.

Nesta perspectiva, podemos afirmar que Freud, depois de ter descoberto a perversão polimorfa da criança, inventou o seu Édipo para explicar como o pequeno perverso torna-se unimorficamente um homem ou uma mulher. A fase edípica seria então, o que permite corrigir a dispersão polimorfa das pulsões pelas identificações unificantes, ao preço, entretanto de alguns sacrifícios e perdas. Assim, o autor assevera que a sexualidade infantil se desenvolve a partir das atividades auto-eróticas, perverso e polimorfa das zonas erógenas e demonstra que, neste momento, não existe uma disparidade entre os sexos - a sexualidade da menina tem um caráter masculino - pois a libido "é invariável e necessariamente de natureza masculina", ou seja, ativa. A proposição de uma libido única de essência masculina nos remete a suposição de uma monossexualidade, ou seja, só haveria um sexo - o masculino. Assim, a teoria do monismo sexual faz sua aparição oficial enquanto novo regulador da diferença sexual.

Segundo Neri, o conceito de pulsão sexual perverso-polimorfa funcionaria, plenamente, como um operador que lança a sexualidade humana para além do registro biológico e a da complementaridade na diferença sexual (1999: 178). Se assim é, então por que considerar o monismo fálico como exclusivo ordenador da diferença sexual e, conseqüentemente, da constituição do sujeito? Nas palavras de Freud:

[...] a disposição sexual constitucional da criança é incomparavelmente mais variada do que se poderia esperar, merece ser chamada de 'perversa polimorfa', e o chamado comportamento normal da função sexual brota dessa disposição mediante o recalcamento de certos componentes. (...) A normalidade mostrou ser fruto do recalcamento de certas pulsões parciais e certos componentes das disposições infantis, bem como, da subordinação dos demais à primazia das zonas genitais a serviço da função reprodutora (Freud 1905/1969d, p. 260-261- grifos nossos).

No que se refere à supremacia da teoria do monismo sexual Freud defende a necessidade do recalque da sexualidade perverso-polimorfa em nome de um imperativo normativo. Para Arán, uma das conseqüências desse recorte conceitual é a assunção da idéia do Édipo enquanto garantia de uma determinada ordem exigida pelo universal (2001, p. 57).

Portanto, no nosso ponto de vista, apesar do texto freudiano possibilitar pensar, através do conceito de pulsão, a plasticidade das subjetividades, para além do determinismo anatômico e do binarismo sexual, paradoxalmente, sucumbe ao ditame da reprodução da espécie, ao atribuir aos órgãos genitais, o lugar primordial do destino da sexualidade, expressando assim sua subordinação às normas sociais de controle. Desta forma, o tornar-se mulher ou homem, não esqueçamos, sob os auspícios da "normalidade", encontra-se submetido ao tornar-se heterossexual.

A partir da criação da teoria do monismo sexual, Freud vai desenvolver dois pressupostos que irão nortear vários textos. O primeiro se refere à mudança de zona erógena na mulher. Considerando que na sexualidade infantil, as zonas erógenas correspondentes são o pênis e o clitóris é necessário encontrar "os destinos da excitabilidade do clitóris", para compreender como uma menina se transforma em mulher. Freud pressupõe, então, "uma onda repressiva" da sexualidade masculina, que se daria na fase de latência, para uma posterior transferência da excitação para as "partes femininas adjacentes" - a vagina. O segundo pressuposto referente à diferença é a escolha do objeto. A relação da criança com a mãe é inicialmente marcada como "uma fonte continua de excitação e satisfação", sendo natural, neste sentido, ser o primeiro objeto de amor para a criança. Porém, diante do que Freud denominou de "barreira do incesto" esta relação passa a ser da ordem da interdição, mas permanece como principal influência nos destinos da identificação e da escolha do objeto. "Encontrar o objeto sexual é na realidade, reencontrá-lo". Assim, estas primeiras relações pai, mãe e filho, assumem um lugar central na obra freudiana, como um momento fecundo para a estruturação do sujeito.

A nosso ver, os dois pressupostos são bastante problemáticos. Pelo momento, examinaremos a pleiteada mudança de zona erógena na mulher. De acordo com o Laqueur, foi à primeira vez que um médico supunha existir duas formas de orgasmo e ainda mais que o orgasmo vaginal simbolizaria o princípio desejado para uma menina transformar-se em mulher. A sexualidade feminina emigraria de um lugar para outro: de um clitóris masculino em direção a vagina, incontestavelmente, feminina. Entretanto, o clitóris não perde inteiramente sua função como órgão de prazer, mas torna-se o órgão que transmite a excitação para a vagina, o verdadeiro lugar da vida erótica feminina. Porém, como defende o autor, não há nenhuma base anatômica, nem mesmo fisiológica que nos sirva de fundamento para justificar a migração do erotismo clitoridiano para a vagina. Além do mais, o clitóris não seria, efetivamente, um pênis feminino, e muito menos se contraporia à vagina. "A historia do clitóris faz parte da história da diferença sexual em geral e da socialização dos prazeres do corpo. É a história da aporia da anatomia" (Laqueur, 1992, p. 270).

Estas primeiras elaborações sobre o monismo fálico são retomadas em 1908, no texto "As teorias sexuais infantis", onde o Freud enfatizou suas observações no caráter ativo da sexualidade adotando o menino como referência. O autor vai eleger o pênis como o principal objeto auto-erótico e fonte de auto-estima para o menino. Ele afirma que quando o menino vê os órgãos genitais femininos, em vez de constatar a falta do membro, violenta a percepção, e diz "... ainda , pequeno, mas, quando ela for maior, ele vai crescer, sim". Apenas na ocasião onde às intimidações verbais que visam proibir as práticas masturbatórias da criança e obrigá-la a renunciar suas fantasias incestuosas é que esta visão terá um/ efeito de ameaça de castração. No caso da menina, a anatomia tem demonstrado que o órgão correspondente ao pênis é o clitóris, sede da excitabilidade. Diante da visão dos órgãos genitais masculinos, ela desenvolveria um grande interesse que, posteriormente, seria transformado em inveja. Em suma, existe apenas um único órgão sexual - o pênis - e a conseqüência da visão dos órgãos genitais femininos seria a ameaça de castração, por parte do menino, e a inveja do pênis, por parte da menina que é fundamental, segundo Freud, para a mudança de zona erógena e troca de objeto.

Neste sentido, nos parece incontestável que apesar de Freud reconhecer, claramente, no texto "O Mal-estar na civilização", os dolorosos processos através dos quais se produzem os "corpos dóceis", continua a persistir em moldar as subjetividades para alcançarem o almejado "amor genital heterossexual" (Freud, 1930/1969n, p.125). Deste modo, institui-se uma hierarquização contundente entre a heterossexual e a homossexualidade.

2.3 A cartografia fálica

A partir do texto "A organização genital infantil" (1923), Freud vai demonstrar, em relação à disparidade sexual, que, num primeiro momento, a escolha de objeto pressupõe uma oposição entre sujeito-objeto; numa segunda fase, na organização sádico-anal, se observa à polarização entre ativo-passivo, e no estágio da organização sexual infantil: "há/ por certo algo masculino, mas não há/ algo feminino", a oposição aparece aqui como masculino e castrado. A partir do momento, onde para os dois sexos, um único órgão genital, o órgão masculino, desempenha um papel, Freud, conclui que "não existe, portanto, um primado genital, mas um primado do falo". Diante da visão dos órgãos genitais femininos, ou seja, da falta de pênis, que é concebida como o resultado de uma castração, o menino vê-se obrigado a se confrontar com a possibilidade dele próprio ser castrado, sendo que o sexo feminino não é jamais descoberto.

A partir desta nova formulação sobre a fase fálica, o Complexo de castração adquire mais relevância e passará a ser problematizado em função das diferenças genitais entre os sexos, onde a heterossexualidade assume o lugar de referência já que suposta produtora de alteridade, cabendo a homossexualidade o critério da fixação e do narcisismo primário.

No texto "A dissolução do complexo de Édipo", datado de 1924, o autor demonstra como o complexo de castração se produz/ no menino e sugere alguns caminhos de como aconteceria para a menina. Em relação ao menino, Freud afirma que este vai tendo sucessivas experiências de separação da mãe, mas somente quando ele se depara com os órgãos genitais femininos e passa a representar a possibilidade da perda do próprio pênis, ele dá sentido a esta ameaça de castração, a qual adquire sentido retroativo. Sob o efeito da irrupção da angústia da castração o menino aceita a lei da proibição e opta por salvar seu pênis, mesmo pagando o preço de renunciar à mãe como parceira sexual.Com a renuncia à mãe e o reconhecimento da lei paterna, que constitui o superego, encerra-se a fase do amor edipiano; torna-se então possível à afirmação da identidade masculina.

Butler nos chama atenção que a escolha heterossexual por parte do menino, não decorre do medo de castração pelo pai, mas, simplesmente, do medo de castração, isto é, do medo da "feminilização", identificado nas culturas heterossexuais à homossexualidade masculina. Assim, "não é primordialmente o desejo heterossexual pela mãe que deve ser punido e sublimado, mas é o investimento homossexual que deve ser subordinado a uma heterossexualidade culturalmente sancionada" (2003, p. 94).Porém, independente dos motivos pelos quais o menino repudia a mãe, o aspecto marcante é que tal repúdio adquire o valor de momento fundador do que Freud denomina de "consolidação" da subjetividade masculina.

Diversamente do menino, para quem os efeitos da experiência visual são progressivos, a menina, diante a visão do pênis, reconhece desde logo que foi castrada. Neste sentido, a menina vivência a inveja de possuir aquilo que viu e do qual foi castrada ficando faltando, assim o motivo para interromper a organização infantil e instituir o superego. Tal aspecto representa um grave problema na medida em que o superego é o herdeiro primordial do complexo de Édipo responsável pelas identificações masculina e feminina.

Diante deste problema, a doutrina freudiana sobre a questão do desenvolvimento sexual na mulher, toma outro rumo, que será/ trabalhado no texto "Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica dos sexos", 1925, onde Freud tenta expor como nasce uma mulher. É neste momento, que o autor assinala a forma pela qual o primado do falo se revela, tanto para o menino como para a menina. Para o menino, esta descoberta, como já/ havíamos assinalado, se inscreve no registro da falta, ou seja, existe para ele apenas um sexo, o falo, mas há/ dois modos de manifestação: presença ou ausência. O que significa dizer que a falta de pênis, quando reconhecida é enquanto falo a menos, não enquanto sexo feminino. Para a menina, que igualmente toma conhecimento de seu sexo com a ajuda do significante fálico, vendo-o enquanto falo diminuído ou castrado, também o sexo feminino permanece não descoberto. Mas isto não significa dizer que menino e menina não tenham consciência da materialidade da vagina, mas que esta constatação não é reconhecida ao nível de significante como sexo feminino.

Como podemos ver, o ingresso na problemática da castração ocorre para ambos os sexos, mas não no mesmo nível. O menino quando visualiza, pela primeira vez, o órgão genital feminino demonstra dúvida e interesse; nega esta falta e acredita ver, apesar de tudo um membro. Na menina, a experiência visual tem efeito imediato: "Ela viu, sabe que não o tem e quer tê-lo". Neste momento, a única saída é o complexo de masculinidade, ou seja, a menina crer ter um pênis. Mas, com o passar do tempo e a constatação de que isto é impossível este desejo vai se afastando e "a libido se desliza ao longo da equação simbólica - pênis-filho". Assim, a menina toma o pai como objeto e entra no Édipo. Porém, é preciso saber como e por que, sendo a mãe também objeto original, a menina , é levada a renunciar a ele, para substituí-lo pelo pai.

Para tanto, iremos nos deter aos textos "Sobre a sexualidade feminina", 1931, e "Feminilidade", 1932. Freud inicia descrevendo as mudanças que ocorrem na menina, durante a passagem da primeira, para a segunda fase do Édipo. A menina, diz Freud, é levada a de um lado, abandonar a zona clitoridiana pela zona genital e de outro lado, a trocar de objeto originário materno, pelo pai. A necessidade de mudança de zona erógena, como já/ foi abordada, parte do principio de que o clitóris é análogo ao pênis e neste sentido tem um caráter masculino - o que caracteriza a sexualidade infantil. Assim sendo, torna-se necessário um transporte da zona erógena em direção a vagina, para que a menina entre em outra fase do desenvolvimento sexual e atinja a feminilidade. Não é só a identificação que está em jogo, mas também o gozo que o sujeito obtém do seu sexo.

Com o complexo de Édipo e as diferentes identificações por ele produzidas, Freud confere relevância a outro discurso. Discurso que enlaça suas normas, seus modelos, suas obrigações e seus interditos com a identidade anatômica. E, mais ainda, que impõe uma solução padrão ao complexo de castração: a solução heterossexual rejeitando qualquer outra solução dita atípica ou desviante. Assim, na sua dramaturgia das relações entre os sexos, nos diz o que fazer como homem ou como mulher.

Contudo, Freud esbarra em um novo impasse: a mãe abandonada enquanto objeto de amor permanece presente enquanto pólo identificatório na segunda fase e o clitóris continua a desempenhar seu papel na vida sexual feminina. Fica evidente que nesse plano de gozo sexual, a substituição do clitóris, que está ligado à relação com a mãe, para a vagina, que assume seu valor na relação com o pai não é complemente realizada. O gozo vaginal não substitui o gozo clitoridiano; acrescenta-se ou conecta-se a ele. Assim, as duas mudanças que o Édipo feminino deveria realizar parecem bastante problemáticas. Para Freud, essas passagens, zona erógena (clitóris-vagina) e troca de objeto (mãe-pai), aconteceriam pelo efeito do complexo de castração, ou seja, a inveja do pênis, diante da qual a menina poderia se encaminhar por três vias diferentes que determinam o destino da sua feminilidade. A primeira , a via neurótica da inibição sexual; a segunda a via "caricatural" do complexo de masculinidade, e a terceira a menina entra no Édipo toma o pai como objeto e após um complexo percurso chega a feminilidade. Nesse sentido, ser verdadeiramente mulher implicaria não apenas o reconhecimento de sua condição de castrada, pela ausência do atributo fálico presente positivamente no homem, como também, pela assunção da maternidade. Caso contrário, a figura da mulher estaria fadada à inibição sexual ou guardaria secretamente a pretensão de ter o falo e de ser como homem. Freud introduzirá esta questão do "tornar-se mulher" em 1933, no artigo sobre à feminilidade. Quando ele propõe uma saída para a aceitação da castração, nós vemos surgir uma trajetória em direção a almejada feminilidade:

Se, no decurso desse desenvolvimento, não se perdem demasiados elementos através da repressão, essa feminilidade pode vir a ser normal. O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem dúvida, originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e que agora espera obter de seu pai. No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante à uma primitiva equivalência simbólica (Freud, 1932/1969o, p.211).

Assim, podemos salientar que a concepção de feminilidade forjada por Freud está intimamente ligada à maternidade; o tornar-se mulher se confunde com o tornar-se mãe. Deste modo, poderíamos reconhecer a fotografia da mulher delineada no século XVIII, já que, neste aspecto, Freud manteve intacto o papel das mulheres estabelecido neste século, segundo o qual a elas caberia o destino do privado, da maternidade e da natureza. De fato, no que concerne os textos dos anos 20 e 30, sobre a sexualidade feminina, o autor, elege uma única direção para o se tornar mulher, a saber, a maternidade.

Contudo, é inegável que Freud pôde enunciar a presença do desejo nas mulheres, revelado pelas suas análises das histéricas. Porém, atribuiu a este desejo uma interpretação atemporal, como algo constitutivo da natureza feminina. Essa atemporalidade, segundo Birman (1999), seria o correlato de sua leitura naturalista da sexualidade feminina uma vez que, o autor, não pôde perceber que a sua fotografia da mulher teria sido uma construção histórica da modernidade.

Dissemos há pouco que segundo Freud a mulher viveria dificilmente, de uma parte, a passagem tortuosa da experiência de castração, e de outra parte a implicação posterior e difícil da renúncia ao Édipo. Contrariamente ao que se passa com o homem, a castração introduz a mulher no Complexo de Édipo; para o homem é a angústia de castração que o faz sair do Édipo, para a mulher o Édipo se apresenta e se instala como recompensa. Assim, a mulher deve abandonar sua posição edipiana, a fim de conseguir assumir sua feminilidade. Este autor afirma que a mulher para assumir sua feminilidade deveria efetuar uma "equação simbólica", segundo a qual o desejo de ter um filho seria, então um substituto por deslocamento do falo. A este ela não conseguirá, jamais a renunciar completamente: o falo paterno receberá sua forma no momento da maternidade.

De fato, com a formulação do conceito de organização genital infantil e o lugar concedido ao falo, entre o período de 1925 e 1932, Freud encontrou um argumento poderoso por um lado, para justificar sua teoria do deslocamento do gozo clitoridiano para o gozo vaginal e por outro, para interpretar a inferioridade das mulheres em relação aos homens e suas feridas narcísicas. Nesse contexto, o caminho para se tornar mulher passa pela reinvidicação, diante do pai e dos homens, de uma criança/falo, a fim de superar a ferida de sua condição feminina. Assim, podemos perceber que embora Freud tenha traçado três vias possíveis para o confronto das mulheres com sua castração, elegeu uma única direção para o se tornar mulher, a saber, a maternidade.

Muitas nuanças e precisões seriam necessárias para sermos justos com Freud. Em princípio porque ele está longe de operar com apenas uma noção de identificação, usando antes, em cada caso do trio: pulsão, identificação e escolha do objeto. Em seguida porque ele percebeu o fracasso de sua solução e os limites que ele reencontra na resistência das pulsões recalcadas que não cessam de retornar no sintoma, tanto quanto nas inércias do que ele chama de pulsão de morte. Entretanto, condensado e malgrado as nuanças, podemos dizer que para Freud forjado o mito do Édipo, tornar-se um homem ou uma mulher, com as modalidades de desejo e gozo implicadas é uma questão de identificação edipiana. Nesse sentido, Butler nos alerta que "a resolução do complexo de Édipo afeta a identificação de gênero por via não só do tabu do incesto, mas, antes disso, do tabu contra a homossexualidade. O resultado é que a pessoa se identifica com o objeto amoroso do mesmo sexo, internalizando por meio disso, tanto o objetivo como o objeto do investimento homossexual" (2003, p.98-99).

Quais conceitos psicanalíticos poderiam produzir uma descontinuidade e uma dissonância subversiva entre sexo, diferença sexual e desejo questionando suas supostas relações? Como pensar a multiplicidade e a fluidez das subjetividades, para além da estrutura sexual binária?

Ao privilegiar a pulsão no seu aspecto variável e quantitativo, podemos pensar que o processo de subjetivação se dá a partir da ação. Segundo Birman, no inconsciente o pensamento não separa sujeito e objeto e centra-se no verbo e na ação, isso implica admitir que nele não há dimensão de interioridade da subjetividade. Assim, não haveria um sujeito que antecederia a ação, este se constituiria na própria ação (2001, p.173-198). Portanto, abre-se um caminho para romper com os binarismos e pensar as sexualidades, os gêneros e os corpos de uma forma plural, múltipla e plástica. Evitando operar com os dualismos, que acabam por manter a lógica da subordinação.

Em suma, a positivação do conceito de pulsão sugere a abertura, a desnaturalização e a dúvida como estratégias afirmativas e potentes para pensar as subjetividades. Nas preciosas palavras-afeto de Deleuze: "A sexualidade é uma produção de mil sexos, que são igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem e pelo devir-animal do humano: emissão de partículas" (2002, p.72).

 

Notas

1. Ao mesmo tempo em que Freud afirma a necessidade de uma investigação da escolha de objeto heterossexual; veremos que ela será, lentamente, não apenas transformada em norma, como também, servirá de modelo de pensabilidade para a problemática da homossexualidade.

2. Na primeira nota de rodapé, Freud, faz referência aos autores que colaboraram para construção de seu pensamento. Entre eles, destacam-se Krafft-Ebing e Havelock Ellis. (Freud, 1905, p.127).

3. A concepção de um desfecho análogo, para ambos os sexos, do complexo de Édipo será abandonada por Freud a partir do texto "Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos" (1925).

 

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Recebido em 22 de dezembro de 2008
Aceito em 08 de abril de 2009
Revisado em 18 de maio de 2009

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