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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.3 Fortaleza Sept. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Os embriões congelados: da falta ao excesso

 

 

Simone Perelson

Professora-visitante do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica - UFRJ. Psicóloga colaboradora do Setor de Reprodução do Instituto de Ginecologia - UFRJ. Psicóloga do Centro de Fertilidade Labs d'Or. End.: R. Humberto de Campos 974/1602, Leblon, Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22430-190. E-mail: simoneperelson@oi.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo do artigo é abordar aquilo que as novas tecnologias reprodutivas - com a separação por elas operada entre sexo e reprodução - trazem de inédito para o campo da filiação.
Para isso, em primeiro lugar, serão diferenciadas, as montagens de filiação propostas por essas tecnologias das soluções encontradas em algumas sociedades tradicionais para contornar o problema da esterilidade. Será sustentado que, diferentemente das últimas, que se baseiam em uniões legitimadas pelo social, as primeiras se fundamentam na ficção da existência do ato sexual fecundo.
Em seguida, serão analisados alguns aspectos da relação entre mercado, sexualidade e reprodução no contexto das chamadas "reproduções artificiais", e mais particularmente naquele das questões referentes ao congelamento dos chamados "embriões excedentes". Para isso, será, em primeiro lugar, apresentado o elo entre as evoluções sociais no campo da família e da sexualidade e os avanços científicos no campo da reprodução, e, em segundo lugar, descrito o processo pelo qual passa um casal durante o tratamento para infertilidade.
Enfim, se buscará compreender a circulação destes embriões à luz da noção de "potlatch" analisada por Marcel Mauss, Georges Bataille e Jacques Lacan. Aqui, se destacará a presença, no próprio seio da lógica mercantil e do domínio/controle daquilo que se produz, de uma outra lógica: aquela que gira em torno do desperdício de um excedente.

Palavras-chave: reprodução, sexo, embriões congelados, filiação, excesso.


ABSTRACT

The aim of this article is to approach what the new reproductive technologies - along with the separation operated by them between sex and reproduction - are bringing as novelty to the field of filiation.
To this purpose, the filiation assemblies proposed by these technologies will be firstly distinguished from the solutions found in certain traditional societies to resolve the problem of sterility. It will be maintained that while the latter are based on legitimate unions from the social, the former ones are based on the fiction of the fecund sexual intercourse.
Next, some aspects of the relationships between the market, sexuality and reproduction in the context of the so called "artificial reproductions" will be analyzed, more specifically in that aspect of the issues related to the freezing of the called "exceeding embryos". So, in first place, the link among the social evolutions in the field of family and sexuality and the scientific advances in the field of reproduction will be presented, and secondly, the process by which a couple goes through during the treatment for infertility will be described.
Finally, we will try to understand the circulation of these embryos in the light of the notion of "potlatch" analyzed by Marcel Mauss, Georges Bataille and Jacques Lacan. Here, the presence of another logic, in the midst of the commercial logic and of the domain/control of that which is produced, will be highlighted: the logic that circles around the waste of an excess.

Keywords: reproduction, sex, frozen embryos, filiation, excess.


 

 

Introdução: um pequeno histórico

Em um fórum organizado pelo jornal Le monde no ano de 2000, Monette Vacquin observa que "menos de vinte anos separam o nascimento de Louise Brown na Inglaterra, primeira criança da história da humanidade concebida fora do corpo, das perspectivas anunciadas de clonagem humana" (Vacquin, M. 2001, p. 54). Entre os vários acontecimentos espantosos que se sucederam durante este período e para os quais, como afirma a psicanalista, nos falta tragicamente compreensão de conjunto, destacamos abaixo aqueles que dizem respeito mais diretamente ao tema deste artigo.

Em 1978, nasce, na Inglaterra, o primeiro bebê de proveta. Três anos depois começam os primeiros trabalhos sobre o congelamento de embriões. Em 1984 nasce, na Austrália, a primeira criança na história humana tendo sido um embrião congelado. Em 1985, também na Austrália, nascem os primeiros gêmeos originados da mesma concepção, mas nascidos com dezesseis meses de intervalo. Em 1987, nos EUA, uma sociedade de pesquisa em fertilização e genética se especializa na comercialização de embriões humanos. Seu sucesso é imediato e suas ações serão cotadas na Bolsa.

Em 1989, tem-se o domínio da maturação de ovócitos de fetos não viáveis, permitindo teoricamente a crianças não nascidas terem filhos. Em 1993, médicos da Virgínia fazem o primeiro anúncio de clonagem humana, por cisão embrionária. Como lembra a psicanalista, "a clonagem é também a realização do fantasma edipiano: o pai e o filho são gêmeos, o pai e o filho se confundem" (Vacquin, M. 2001, p. 60).

Em fevereiro de 2004, é anunciado que pesquisadores da Coréia do Sul e dos Estados Unidos teriam clonado um embrião humano e extraído dele as tão procuradas células-mãe embrionárias. Com este passo, a clonagem para fins terapêuticos deixa de ser apenas uma teoria para se transformar em realidade e a viabilidade da clonagem reprodutiva mostra-se assustadoramente próxima de nós. Como sublinha a psicanalista, o congelamento de embriões e a clonagem humana colocam em cena a realização do fantasma edipiano. "O que dizer de tudo isso?, pergunta Monette Vacquin, Derivas? A palavra não é suficientemente forte. Temos antes o sentimento de assistir a um delírio. À presença, no seio da ciência mais sofisticada, do inconsciente mais arcaico" (2001, p. 59). De fato, além de atualizarem as fantasias incestuosas, as novas tecnologias reprodutivas parecem embaralhar as referências fundamentais do homem, que são a distinção entre o animado e o inanimado, a vida e a morte, o humano e a coisa.

 

A separação entre sexo e reprodução em algumas sociedades tradicionais

Uma das formas que se tem encontrado para definir aquilo que de inédito trazem as novas tecnologias reprodutivas é a separação entre sexo e reprodução. Entretanto, segundo alguns antropólogos, essa separação já pode ser encontrada em várias sociedades tradicionais. Em um artigo justamente intitulado Quand la sexualidade e la procréation sont séparées Charles-Henry Pradelles de Latour (2001) nos faz ver de que modo, nas sociedades matrilineares, - onde é o irmão da mãe e não o genitor que ocupa o lugar de pai - essa separação se apresenta. Segundo seus próprios termos:

A filiação matrilinear, que dissocia de forma estatutária a procriação da mãe e a sexualidade da esposa, nos interessa particularmente, pois se aproxima sensivelmente de nossa experiência que, desde a generalização dos meios contraceptivos e o desenvolvimento das procriações assistidas, é cada vez mais marcada por essa separação. (p. 63)

Mas, mesmo nas sociedades de tipo patrilinear, podem ser encontradas também práticas de filiação marcadas por essa separação, práticas essas que vêm sempre solucionar o problema da esterilidade. Recorrendo às pesquisas de Françoise Heritier, Marilena Corrêa, em seu livro Novas Tecnologias Reprodutivas: limites da biologia ou biologia sem limites, cita a esse respeito vários exemplos bastante difundidos em inúmeras sociedades. Destacaremos aqui três dentre eles. Assim, há o caso de mulheres que, casadas com homens estéreis, podem dar a eles filhos provenientes de relações sexuais que estabelecem com outros homens. Como observa Corrêa (2001), "o fato de essa mulher casada ter tido relações sexuais férteis com outro homem não altera a posição de pater ou pai social de seu esposo, determinada pela união legítima entre eles" (p. 172). Uma outra prática social paliativa para a esterilidade indicada pela autora é aquela em que, tendo perdido, por causa de morte, seu marido que a deixou sem descendência, uma mulher tem relações sexuais com um irmão do falecido marido, o qual procria em seu nome. Assim, "as crianças nascidas da viúva são filhos legítimos do homem morto, com todas as consequências socialmente previstas em termos de direitos, dotes etc" (p. 172).

O último exemplo ao qual nos referiremos é particularmente interessante, pois ele não apenas comporta uma separação entre sexo e reprodução, como também apresenta uma nova representação da diferença dos sexos. Trata-se de uma prática social onde se torna possível passar a considerar homem uma mulher estéril. Transformada socialmente em homem, essa mulher pode receber uma outra mulher como esposa, a qual lhe dará filhos por meio de relações sexuais com algum homem, dos quais a primeira mulher será o pai. Como observa Corrêa (2001), "os filhos levam o nome de família desta, chamam-na de pai e não reconhecem nenhum vínculo com o genitor, recaindo sobre a mulher/pai social os direitos e deveres de sucessão e herança" (p. 173). Cabe ainda observar que, embora essa mulher desempenhe o papel de homem e de pai em toda a sua extensão social, a relação entre as duas mulheres não se desdobra em relações sexuais de tipo homossexual. Corrêa cita Heritier para esclarecer o que está em jogo nessa prática; "status e papel masculino são aqui independentes do sexo: é a fecundidade feminina ou sua ausência, que cria uma linha de divisão entre o que seja um homem ou uma mulher" (p. 173).

Segundo Heritier, é possível estabelecermos um paralelo entre essas soluções para o problema da esterilidade e aquelas viabilizadas hoje pelas novas tecnologias reprodutivas. De fato, enquanto o primeiro e o último dos exemplos citados seriam equivalentes à inseminação artificial com doador, o segundo deles corresponderia à inseminação post-mortem. E se nos parece interessante o estabelecimento desse paralelo é, na medida em que ele pode nos levar, a formulação de duas questões. Em primeiro lugar, será que é possível afirmarmos que tanto nestas práticas sociais arcaicas quanto naquelas viabilizadas hoje pelas novas tecnologias reprodutivas, a sexualidade dos pais, a sua relação sexual - ou, em termos lacanianos, o seu desencontro sexual - ausenta-se do lugar de fundamento da filiação? Questão para a qual não temos ainda resposta, mas que julgamos ser fundamental formular.

A segunda questão, para a qual Heritier nos fornece a resposta, é a seguinte: no que se fundamenta essa filiação desancorada, ao menos aparentemente, do sexual, do encontro sexual entre os pais? Sem sombra de dúvidas, nos mostra a antropóloga, ela se ancora no social, isto é, em uniões legitimadas pelo social. Como observa Corrêa (2001), nos três tipos de filiação citados, "a união procriativa legítima antecede a possibilidade de manipulação das posições que vão determinar o papel de mater e de pater de uma criança: é a existência de uniões legítimas, das que chamamos de casamento, (...) que possibilita a legitimidade dos filhos" (pp. 171-72).

Se nos interessa destacarmos esse aspecto dessas filiações é porque ele aponta para uma diferença fundamental entre a montagem da filiação, que se encontra aqui em ação, e aquela que se apresentará nos casos de reprodução artificial, onde é em grande parte no que podemos chamar de uma "ficção do natural", de uma "ficção da presença de um ato sexual, contudo ausente" que se sustenta a filiação. A exigência de anonimato dos doadores de material reprodutivo nos casos de inseminação ou fertilização com doação de sêmen ou óvulo, a recomendação feita pelo Conselho Federal de Medicina para que os doadores sejam semelhantes do ponto de vista fenotípico aos "pais sociais", além, enfim, dos vários escrúpulos ou até mesmo das leis existentes em alguns países, restringindo o acesso à reprodução assistida apenas a casais heterossexuais em idade de procriar são os principais elementos que sustentam essa ficção.

Ao formularmos a segunda questão, tocamos ainda num ponto fundamental no que tange às aproximações e diferenças entre ambas as práticas de filiação. Embora, nas filiações citadas, o ato sexual fecundo dos pais ou até mesmo qualquer ordem de relação sexual entre os pais não se apresente, a criança não deixa de ser fruto de um encontro sexual; em outros termos a sua origem, não como filho, mas como indivíduo, encontra-se remetida, vinculada a um ato sexual fecundo. Podemos, portanto, afirmar que a separação aqui em jogo se dá entre filiação e sexo, mas não entre reprodução e sexo. Assim, se cabem indubitavelmente uma série de aproximações entre essas duas ordens de filiação, e se devemos extrair todas as consequências dessa aproximação para melhor podermos analisar as novas filiações com as quais estamos hoje nos deparando - os filhos das novas tecnologias reprodutivas -, não podemos deixar de marcar as diferenças entre ambas para não perdermos de vista o que hoje está surgindo de novo no campo das relações entre sexo, sexualidade e filiação.

 

A sexualidade liberada dos imperativos da reprodução

É um dado quase inquestionável que o processo propriamente de separação entre sexo e reprodução teria tido início nos anos 60, quando uma série de evoluções sociais - vinculadas à revolução feminista - e médicas - sobretudo a difusão dos métodos contraceptivos - permitiram a liberação do sexo dos imperativos da reprodução. Partindo-se desse pressuposto, é possível afirmar que as demandas femininas de exercício do sexo livre são respondidas satisfatoriamente pela medicina através da oferta de um produto eficaz de controle da fecundidade. Da mesma forma, a oferta e a eficácia desse produto criam novos costumes produzindo transformações sociais no campo da sexualidade. Controle e liberação são os dois termos que se solidarizam nessa nova relação entre sexo e reprodução.

Se não há dúvida a respeito da importância desses termos para analisarmos essa nova relação, é uma leitura ingênua deles que conduz ao que Michel Tort, no livro O desejo frio. Procriação artificial e crise dos referenciais simbólicos (2001), chama criticamente de discurso liberal. Tort propõe que "chamemos de liberal o discurso que apreende o desenvolvimento das novas técnicas de reprodução como efeito inelutável e positivo do avanço das ciências e técnicas biológicas, e que enuncia seu poder liberador sobre as relações entre os homens e as mulheres" (p. 129). Os axiomas básicos desse discurso ingênuo criticado por Tort são, em primeiro lugar, que "uma vez dissociada a reprodução do exercício da sexualidade, esta estaria livre de todo controle" (p. 140), e, em segundo lugar, que a ligação sexualidade-reprodução é natural, sendo a procriação médica o que vem dissociar artificialmente essa ligação. Seria a partir desses dois pressupostos que se construiria a ideia de que a mulher, ao ser liberada do jugo da natureza, poderia exercer de forma livre a sua sexualidade, como se as leis ao mesmo tempo do inconsciente e do mercado não desempenhassem aqui lugar algum.

Se Tort já evoca as leis do mercado ao se referir à sexualidade pós-generalização da contracepção médica - trata-se aqui do mercado de trabalho e da libido, para os quais essa generalização torna a mulher apta - é com o desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas que a relação entre mercado, sexualidade e reprodução passa para o primeiro plano. Analisemos, portanto, agora, alguns aspectos dessa relação.

 

A reprodução agora liberada dos imperativos da sexualidade

Com o intuito de abordar a questão da separação entre sexo e reprodução, fomos conduzidos, no início desse texto, a tratar de algumas práticas sociais presentes em sociedades tradicionais, onde a sexualidade era separada da filiação. Em seguida, fomos levados à sociedade pós-revolução feminista, onde se construiu a ideia de uma sexualidade liberada artificialmente pela contracepção médica dos imperativos da reprodução. Chegamos agora a um terceiro momento: aquele onde a reprodução, e consequentemente a filiação, pode se dar na ausência do sexo, momento, segundo os termos de Marie-Magdeleine Chatel (1998), de uma "revolução irreversível, a de separar o ato sexual da procriação" (p. 5), ou, ainda, momento, nos termos de Tort (2001), no qual "os sujeitos sexuados passaram a se aventurar, de forma calculada, na questão da procriação eventual" (128).

Vejamos de que modo Chatel compreende o corte operado por essa revolução e tentemos precisar o lugar ocupado, dentro dessa nova modalidade reprodutiva, pelo cálculo a que se refere Tort.

Podemos expor a leitura feita por Chatel dessa revolução e do corte por ela operado nos seguintes termos: antes dela, um filho vinha como uma das consequências possíveis do ato sexual; ele vinha do desconhecido, do acaso, do risco inevitável que se corria ao se fazer amor. A fecundação era da ordem do acidente e o filho da imprevisibilidade. Hoje, a vinda de um filho pode ser e é de fato cada vez mais racional, consciente e voluntariamente programada. O lugar do sexo, por sua vez, se desloca: não mais lugar do risco, e sim do meio a que se pode - ou não - recorrer para a realização de um projeto fundado na razão, na consciência e na vontade.

A medicina da procriação teria, então, fornecido, segundo a autora, seu saber e suas competências ao desafio voluntarista moderno e a gestão racional do voto de filho encontrar-se-ia, hoje, com a sua ajuda, em grande parte, realizada. Instaurada, portanto, essa revolução, a mulher passa a acreditar que pode controlar a sua fecundidade, já que pode tanto inibi-la pelos métodos contraceptivos quanto induzi-la pelas técnicas da reprodução assistida. E isso em grande parte é real, de modo que o surgimento do imprevisível, do inesperado, do novo e do impensável vê-se hoje também em grande parte excluído.

O desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida encontra-se, assim, conclui Chatel, numa linha de continuidade com o desenvolvimento de uma medicina que, enquanto representante da ideologia do progresso, se mostra cada vez mais apta a responder eficaz e seguramente à demanda feminina de disjunção entre sexo e reprodução e de junção entre o desejo consciente e a vinda de um filho.

Há, portanto, um laço que une a oferta da contracepção e o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida. Com a contracepção, a experiência da sexualidade pode desvincular-se da reprodução, do risco da fecundação, do surgimento do inesperado, um filho. O desejo de filhos pode ser organizado, controlado. A vinda dos filhos deixa de ser da ordem do acaso. A reprodução pode ser, ao menos em grande parte, regulada sob a forma de uma decisão consciente de ter um filho programado.

As técnicas da reprodução assistida, por sua vez, são oferecidas aos casais ou às pessoas que não obtém êxito em ter filhos através do encontro sexual. Assim, se com a contracepção tornou-se possível o sexo sem reprodução, aqui é viabilizada a reprodução sem sexo, consequentemente, a reprodução, em grande parte, sem o enigma próprio ao encontro entre os sexos. Ao permitir a disjunção entre reprodução e sexo, ela radicaliza a disjunção entre erotismo e fecundação, entre acaso e reprodução.

Se nos alinharmos inteiramente à interpretação de Chatel, tenderemos inevitavelmente a associarmos o cálculo a que se refere Tort, às ideias de controle racional e consciente do desejo, transformado em projeto, de filhos. Entretanto, como observa o autor "este cálculo, submetido à racionalidade mercante da lógica e da 'vontade' livre, em nada implica, por sinal, que eles sejam 'senhores' de seu desejo no que quer que seja" (Tort, M. 2001, p. 128).

A nosso ver, há particularmente uma etapa decisória no processo da fertilização in vitro, onde essa submissão do cálculo à racionalidade mercante é exposta de forma especialmente clara. Trata-se do momento em que os pacientes se veem na obrigação de decidir, em geral através de um documento de consentimento informado, se concordam ou não com o congelamento dos embriões chamados de excedentes ou supranumerários. Descreveremos abaixo o cálculo que se apresenta nesse momento, esperando que essa apresentação possa também indicar o quão, muito mais do que exercerem sua vontade livre, os sujeitos dessa escolha, assim como os desejos que neles se exercem, são arrastados para uma lógica que os coloca, talvez não seja precipitado afirmar, no lugar de objetos.

Para elucidar essa etapa decisória é necessário situá-la dentro das várias etapas que incluem um tratamento de fertilização e indicar que estaremos aqui abordando as especificidades de um tratamento dessa ordem na situação particular do Brasil, onde o descarte dos embriões excedentes é considerado ilegal.

Assim, vejamos. A primeira etapa do tratamento é a estimulação ovariana, que tem como objetivo propiciar em um ciclo a produção de mais de um óvulo ou, mais precisamente, a produção de um bom número de óvulos (algo em torno de uma dezena). Na segunda etapa do tratamento, esses óvulos são inseminados e, tomando-se como base uma média, espera-se ter algo em torno de oito embriões. O objetivo, portanto, da estimulação ovariana, é se poder chegar a esse bom número de embriões, de modo a serem aumentadas as chances de êxito do tratamento. Na terceira etapa, no máximo quatro desses embriões serão transferidos para a mulher, visto que este é o número máximo de embriões que, segundo as normas do Conselho Federal de Medicina, devem ser transferidos de modo a que não haja nenhum risco de gravidez de quíntuplos, admitindo-se apenas o risco, cabe dizer mínimo, de uma gravidez de quádruplos. Posto que se produz um número de embriões superior àqueles que podem ser transferidos, inevitavelmente produz-se uma sobra, um resto, um excesso. E visto que as normas do CFM não permitem o descarte desse excesso, ele deve ser necessariamente congelado.

Voltemos agora à etapa decisória a respeito do congelamento. Essa decisão deverá ser tomada e documentada pelo casal antes da segunda etapa do tratamento, a saber, aquela da inseminação dos óvulos. Isto porque caso o casal não admita o congelamento, o número máximo de óvulos inseminados deverá ser de quatro, pois não se pode correr aqui o risco de produzir embriões que não poderão ser nem descartados nem congelados.

Essa poderá ser uma escolha difícil para o casal diante de todas as implicações de cada uma das opções. Acompanhemos, portanto, essas implicações, começando pela opção pelo congelamento. Nesse caso, como vimos, os embriões excedentes serão congelados. O casal paga, no momento do congelamento, um valor correspondente a esse congelamento e à manutenção, durante um ano, dos embriões congelados. Passado esse ano, o Centro de Reprodução entrará em contato anualmente com o casal, de modo a saber quais são as suas intenções a respeito do destino a ser dado aos embriões e para cobrar, caso eles sejam mantidos estocados, a taxa anual de manutenção . Eis os possíveis destinos ou usos desses embriões: 1) Caso a primeira tentativa de fertilização não tenha êxito, é possível fazer-se uma segunda tentativa descongelando-se esses embriões. Essa segunda tentativa será, em princípio, seguindo-se a lógica médica e mercantil, muito menos custosa - financeira, física e psiquicamente - do que a primeira. Às vezes, tem-se embriões ainda para um terceira tentativa. 2) Caso a primeira tentativa seja bem sucedida e o casal deseje ter outro ou outros filhos, ele poderá também recorrer ao descongelamento dos embriões. 3) Caso o casal tenha tido o número de filhos desejados e tenha ainda embriões congelados estocados, ele poderá escolher entre: a) continuar mantendo esses embriões -- uma das possíveis utilizações deles seria eventualmente no futuro como células tronco ou b) doá-los (de forma anônima e gratuita) para a pesquisa ou para outros casais desejosos de ter filhos, mas impossibilitados de tê-los "naturalmente" e, nesse caso, todo e qualquer vínculo com os embriões é, ou ao menos se espera que seja, desfeito.

Assim, aquilo a que os casais são convocados a se pronunciar é, em primeiro lugar, se admitem ou não a produção de um excesso que, uma vez produzido, não poderá ser descartado. Frequentemente, a primeira questão que surge é a do custo desse congelamento e de sua manutenção, a perspectiva de um 'custo a mais' agindo, em princípio, como um ponto desfavorável ao congelamento. Além disso, quando algo além das questões financeiras pode surgir no discurso dos casais, alega-se que não há desejo ou mesmo que há impossibilidades afetivas e psíquicas de manter esses embriões congelados, cujo vínculo só pode ser desfeito pela doação. Assim, ouvimos, por exemplo, de um homem que, por desejar ter apenas um filho, não quer ter de se haver com a questão, que lhe pode ser anualmente colocada, se deseja ou não descongelar e transferir seus embriões. É preciso observar que subliminarmente essa oferta é aquela de um modo fácil e barato de ter um segundo filho, depois de ter pago tão caro, em vários sentidos, para ter um primeiro. Ao mesmo tempo, ele não se julga preparado para doar esses embriões de modo a não ter de se haver com essa questão - poderíamos mesmo dizer com essa 'sedução' - pois julga - e a esse respeito não está de modo algum sozinho, mas junto com inúmeros homens e mulheres - que esses embriões são, de alguma forma, filhos seus, a doação podendo lhe provocar fantasmas de procurar ou de ver, entre as crianças espalhadas pelo mundo, seus próprios filhos.

Entretanto, quase sempre esses argumentos desfavoráveis ao congelamento tornam-se fracos diante do argumento que faz ver as suas vantagens: a possibilidade do congelamento aumenta de forma bastante considerável as chances de êxito de um tratamento extremamente caro e que ainda encontra taxas de sucesso bastante decepcionantes. Não apenas ele viabiliza para muitos casais uma segunda ou mesmo uma terceira tentativa, caso a primeira não dê certo, como também ele aumenta as chances da primeira tentativa ter êxito. Com efeito, se o casal não admite o congelamento, se o médico não pode contar, em seu laboratório, com uma sobra, com um excesso para trabalhar, as chances do casal concluir seu tratamento com a vinda de um filho tornam-se bastante pequenas.

Como já havíamos indicado, as decisões a serem tomadas aqui são difíceis e o contexto do qual elas fazem parte nos parece indicar de modo claro o quão, como havia observado Tort, face a esse estranho cálculo e leque de opções, muito mais do que sujeitos senhores de seu desejo, vemos sujeitos que nada mais podem fazer senão consentir na produção desse excesso e se incluir numa não menos estranha circulação autônoma e desenfreada desse excesso, circulação que se aproxima em muitos pontos daquela do potlatch descrito por Mauss (1991) em seu célebre ensaio sobre o dom e explorado no livro A parte maldita por Bataille (1975).

Lembrando: o potlatch é uma espécie de dom agonístico onde se dá algo a alguém com o objetivo de colocá-lo em uma situação de dívida permanente, visto que lhe é dado algo que dificilmente ele conseguirá restituir com algum equivalente. Como observa Godelier (2001), no livro O enigma do dom, até o fim do século XIX, o potlatch tinha sobretudo como objetivo a validação da transmissão pública de pais para filhos de posições e privilégios já adquiridos. A aceitação pelos chefes do potlatch que lhe era doado equivalia ao reconhecimento público da transmissão do título. A partir, entretanto, do século XIX, ao invés de servirem para validar essa transmissão, eles transformam-se em um modo sistemático de acesso a novas posições. Como observa Godelier, "foi nesse contexto que o potlatch se exaltou, enlouqueceu (aliás, foi justamente essa loucura que tanto fascinou Georges Bataille no potlatch)"(2001, p. 119). É a partir daí que elas se transformam em um moto perpétuo de cada vez maiores e mais descontroladas dilapidações, ou ainda, segundo os termos de Bataille, em um "movimento de frenesi insensato"(1975, p. 108). Nos termos abaixo, Godelier nos faz ver de que modo, devido ao caráter autônomo desse movimento insensato, os autores do potlatch, de sujeitos se transformam em seus escravos:

"É então que aos olhos dos membros destas sociedades (...) colhidos por este moto perpétuo, sem poder escapar, sair (...), tudo se passa como se as coisas preciosas dadas e recebidas no potlatch (e os próprios potlatch) tivessem uma existência autônoma, que faria com que se deslocassem num movimento sem fim, arrastando com eles os seres humanos que, de sujeitos, se transformariam em objetos e se veriam submetidos, dominados por esta ronda de riqueza que eles mesmos acionaram" (2001, p. 108).

Mas para apreendermos o sentido do potlatch e da aproximação que estamos propondo aqui entre a sua lógica e a lógica que regula a produção, estocagem e circulação dos embriões excedentes, não basta sublinharmos o fato de que seus sujeitos se transformam em seus escravos, pois aqui não há novidade alguma com relação à lógica do consumo. É necessário destacarmos também que aquilo que circula aqui tem um estatuto diferente dos bens de consumo, e serve não apenas à lógica mercantil da acumulação e troca de riquezas, lógica das trocas entre objetos equivalentes, movida pelo que Bataille chama de "emprego servil dos bens" (1975, p. 110), mas também a uma outra lógica, que é aquela que nega esse emprego servil dos bens, que aparece como o seu avesso, lógica que gira em torno do desperdício de um excedente.

É a ambiguidade presente, ou ainda, o nó estabelecido, no interior da lógica que regula a produção, estocagem e circulação dos embriões excedentes entre, por um lado, lógica mercantil e do domínio/controle daquilo que se produz - lógica do ganho - e, por outro lado, lógica insensata - lógica do desperdício e da perda do controle do que é produzido - que nos interessa destacar e explorar quando articulamo-na com a lógica do potlatch. É ainda essa virada que ocorre no final do século XIX, quando o potlatch se transforma em um movimento de frenesi insensato em torno de um excesso, que nos parece particularmente interessante para pensarmos a virada que acontece no campo da medicina reprodutiva, virada que a leva a precisar produzir, junto com um controle cada vez maior do processo reprodutivo, um excesso que ganha autonomia, essa mesma autonomia que as novas tecnologias reprodutivas ofereceriam aos sujeitos que a elas recorrem.

Cabe observar que se, por um lado, a produção dos embriões excedentes é desejável, por aumentar as chances de sucesso do tratamento, por outro lado, ela é absolutamente indesejável, devido não apenas a todos os problemas éticos colocados pela necessidade da gestão de um estranho estoque que tende a ser cada vez maior, como também porque ela aponta para a presença, no seio do processo de um controle cada vez maior da experiência reprodutiva, de algo que é ao mesmo tempo absolutamente precioso - e, por isso, não deve ser descartado, e absolutamente inútil, visto que se recusa a entrar no campo da troca.

Será que a inevitável produção dos embriões excedentes não aponta justamente para o retorno, no "purificado" campo da reprodução assistida - campo do qual se ausenta o sexo, e até mesmo em grande parte a sexualidade - para o retorno do erotismo, no sentido que lhe dá Bataille, a saber, em primeiro lugar, de campo do excesso, e, em segundo lugar, de campo limítrofe entre a vida e a morte, entre a natureza e a cultura, entre o que é o que não é humano? Ou ainda, em outros termos, não apontaria essa produção para uma insistência de um resíduo de gozo, o qual é definido por Lacan como aquilo que ao mesmo tempo não serve para nada, mas sem o que a vida não vale a pena? Eis, a nosso ver, uma via a ser explorada.

 

O corpo fora do corpo: quem é o mostro?

Os últimos desenvolvimentos nos conduzem agora a buscar abordar aquilo que, segundo vários autores, conferiria de fato, às novas tecnologias reprodutivas, o seu caráter inédito, e que vem a ser a exposição e disponibiliza de embriões e gametas humanos no laboratório, fora do corpo. Como vimos, de material restrito originalmente à individualidade do corpo, ele passa a circular no laboratório, a poder ser congelado e manipulado por outros indivíduos - biólogos, técnicos, médicos -, adquirindo, assim, autonomia (Corrêa, M. V., 2001). E, como afirma Monette Vacquin (2001), "nenhuma geração antes da nossa teve o poder de congelar a sua descendência, de estocá-la, de modificar seus caracteres" (p. 56).

Assim, da autonomia reivindicada pelas mulheres nos anos 60 passamos à autonomia do material reprodutivo e de seus resultados. Da reivindicação à autonomia do sujeito (feminino) com relação aos imperativos biológicos do seu corpo, passamos à autonomia dos elementos biológicos e de seus resultados - os embriões - com relação aos imperativos desejantes do sujeito. Ao invés do sujeito, é o objeto que parece aqui ganhar autonomia e quiçá, tal como o monstro de Frankestein, vida.

Como observa a filósofa Ieda Tucherman (1999), "o monstro excede a representação: ele mostra um transbordamento de ser, oferece ao olhar mais do que já foi visto" (p. 151). Cabe nos perguntarmos até que ponto este material, restrito originalmente à individualidade do corpo e exposto atualmente nos laboratórios, oferecendo ao nosso olhar mais do que já foi visto, até que ponto esse material aproxima-se do monstro do qual nos fala a autora. E, mais precisamente, cabe nos perguntarmos até que ponto, na realidade ou fantasmaticamente, podemos ver no embrião congelado a realização deste monstro. Cabe também colocarmos, junto com Tucherman, as seguintes questões: "qual é o limite onde podemos levar os artifícios e as intervenções sem prejudicar a imagem 'natural'? O que é humanóide? Que corpo podemos ter hoje que ainda seja reconhecível como humano?" (p. 149). Enfim, "até que grau de deformação (ou estranheza) permanecemos humanos?"(p. 149).

 

Frosty ou Frankestein?

Como indicam vários psicanalistas, a exposição e disponibilização de embriões e gametas humanos no laboratório relaciona-se a alguns dos fantasmas fundamentais do homem. Na parte de sua tese dedicada à literatura psicanalítica, Corrêa (2001) refere-se à inquietude relatada por Piera Aulagnier em relação a casos como os de "inseminação de uma neta com o esperma congelado de seu avô, uma mãe que empresta seu útero à filha e ao esperma de seu genro, a inseminação de uma mulher pelo esperma de seu marido morto depois de um certo tempo"(p. 180). É a possibilidade de "confronto com a realização de fantasias que fazem parte de nossas representações pulsionais mais arcaicas, mais universais, mais recalcadas, que inquieta a psicanalista" (p. 180). A essa preocupação associa-se a de Monette Vacquin, que afirma que "com as novas tecnologias médicas de reprodução artificial, da mesma forma como ocorreria no prolongamento artificial da vida, se estaria realizando o sonho do homem 'de se constituir fora desses dois limites que são a sexualidade e a morte'" (apud Corrêa, M. V., 2001, p. 180-81). A técnica do congelamento permitiria, por sua vez, a realização do fantasma de suspensão da vida, o que nos levaria a viver hoje, segundo a psicanalista, num mundo de "cadáveres quentes e embriões congelados" (apud Corrêa, M. V., 2001, p. 181).

Sublinhar o aspecto fantasmático das novas formas de reprodução relacionado à suposta autonomização do material reprodutivo implica em ir ao encontro do avesso do processo de autonomização do sujeito, ou ainda do avesso do sentido simbólico daquilo que colocam em cena as novas tecnologias reprodutivas. Explicando: Em sua vertente simbólica, ou ainda numa linha de continuidade com as transformações sociais desencadeadas nos anos 60, aquilo a que nos conduzem os últimos avanços da ciência no campo da reprodução é, como mostra Michel Tort (2001), à colocação em causa da diferença dos sexos e das gerações própria à Ordem simbólica, fazendo emergir novos arranjos familiares até então mantidos no campo do recalcamento. Como afirma o psicanalista, grande parte da fascinação e da indignação provocada pelas novas práticas médicas no campo da reprodução decorre da supressão do recalcamento que representa o exercício das novas formas de parentesco e da ruptura com a 'sacralização cristã do casal monogâmico'.

Entretanto, este processo coloca ao mesmo tempo, em cena, como vimos, a realização de fantasmas fundamentais do homem. E abordar este aspecto fantasmático implica em abordá-lo em sua dimensão real1, posto que, como afirma Lacan, é o fantasma que dá o único acesso possível ao real. É ele que coloca o sujeito em relação com o objeto causa de seu desejo, que nada mais é senão o seu resto, resíduo do gozo. Assim, se a realização dos fantasmas implica, como nos mostra Michel Tort, a vitória do princípio do prazer pela suspensão do recalque, ela implica também no encontro com o objeto, resto deste processo, resíduo do gozo, avesso do princípio do prazer.

Talvez sejam a clonagem, por um lado, e os embriões congelados, por outro, que melhor nos permitam abordar estes dois aspectos das novas tecnologias reprodutivas. Embora não faltem vozes denunciando o risco da clonagem e descrevendo o clone como o grande fantasma assustador deste processo, embora a clonagem seja excomungada como exemplo supremo da deformação humana e científica, o clone é apenas o resultado extremo de uma démarche previsível da racionalidade científica. O clone é, de fato, a expressão da busca da harmonia, da beleza, da imortalidade, da perfeição, da absoluta identidade. Realizando o mito do duplo, o clone conforma-se (imaginariamente, é lógico) ao ideal, ele está referido ao ideal. Além disso, a clonagem, ao viabilizar a passagem da reprodução fora do sexo para a reprodução assexuada, realiza ainda (também imaginariamente, é sempre bom lembrar), o ideal de autonomia. Aqui não se depende mais do sexo, e nem tampouco do material reprodutivo alheio; não se está mais submetido às agruras do acaso, e com isso tampouco da diferença. Seguindo esta lógica, podemos afirmar que é o ideal de pureza que se busca com a clonagem: como dizem alguns, a clonagem seria a realização da "paternidade sem resto".

Mas aquilo que surge como o resto ou transbordamento assustador deste processo, aquilo que nos remete para o verdadeiro encontro indesejável, com algo que não apenas não se encaixa nesta lógica ou racionalidade científica, como também nos coloca face à ausência de representação simbólica, àquilo que escapa à nossa razão, são os embriões congelados, os embriões excedentes, algo entre a coisa e o humano, ou ainda algo que é ao mesmo tempo os dois, nos referindo para a categoria de humanóide, de uma coisa assustadoramente humana ou de um humano assustadoramente coisificado.

Se o clone encontra-se no espaço da purificação, os embriões excedentes vão apontar para os limites desta purificação presentificando-se como sobra, resto, lixo. Eles são literalmente 'aquilo com o que não se sabe o que fazer'. Como observa a psicanalista Geneviève Delaisi (1994), "não há com efeito representação antropológica, representação simbólica para esses 'embriões supranumerários congelados': os pais não sabem aliás que gênero lhes dar; eles dizem frequentemente 'isso' para designá-los." (p. 72). Alguém meio coisa ou algo meio homem, na suspensão entre a vida e a morte, entre a humanização e a destruição - os embriões excedentes são de fato as sobras, o resto inassimilável do processo reprodutivo ou, ainda, os restos humanos do processo técnico-científico.

Transformados em resto, estes embriões colocam necessariamente aos sujeitos que têm com eles alguma forma de relação - de produção, de propriedade ou de afeto (que termos podemos aqui utilizar?) - face ao desafio de sua representação simbólica. Coisa ou humano? A quem pertencem? Podem ser destruídos? Podem ser utilizados para a pesquisa? Podem ser doados para processos reprodutivos envolvendo outras pessoas? Podem ser vendidos? São pessoas humanas em potencial? A questão da dignidade humana lhes diz respeito? São dignos de afeto? Às questões já extensamente discutidas a respeito do estatuto do embrião, vemos somar-se uma série de novas dificuldades quando este é desalojado de seu 'receptáculo natural', o corpo da mãe, e passa a ser estocado no laboratório.

São essas novas dificuldades que vão abrir, para os comitês de 'especialistas', um campo de debates bioéticos, e para os responsáveis por sua vinda ao mundo, muitas vezes um campo de desamparo ético e afetivo de proporções incalculáveis. Abordemos inicialmente estas dificuldades pela ótica dos 'especialistas', para depois vermos a que soluções ou falta de soluções elas podem levar os 'não especialistas'.

Segundo o Warnock Report (1985), primeiro marco na discussão bioética na reprodução assitida, e que servirá de base para os vários outros que se constituirão futuramente em vários países, o embrião humano não pode ser mantido vivo fora do corpo da mulher por período superior a 14 dias de sua existência e a pesquisa realizada além deste limite deve ser considerada crime. O relatório propõe ainda que sejam também considerados crimes a colocação de embrião humano no útero de outras espécies e a venda de embriões humanos sem autorização. Além disso, ele indica a necessidade de criação de lei para impedir o direito de propriedade sobre o embrião humano. Como observa Corrêa (2001), "todas essas interdições indicam as virtualidades visualizadas por aquela comissão" (p. 213).

O relatório propõe, enfim, que o tempo máximo de armazenamento de embriões é de cinco anos. Em caso de morte de um dos parceiros, o outro deve herdar o direito de uso do embrião: se os dois morrem ou se há desacordo entre os parceiros quanto ao destino do embrião congelado, este direito deve passar à autoridade responsável pelo armazenamento.

O que podemos depreender deste relatório é, por um lado, uma reificação do embrião que busca suprimir artificialmente o seu potencial de humanidade, e por outro lado, uma tentativa de regulação absolutamente precisa de algo que, ao que tudo indica, nos levará à defrontação real de situações que até hoje imaginávamos pertencentes apenas ao domínio da ficção científica, e que é a gestão de um estoque de embriões.

Esta tentativa de regulação precisa daquilo que escapa de modo fundamental a qualquer tentativa regulatória é levada ao seu limite na França, através do que ali ganha o nome de projeto parental. Para gerenciar racionalmente o estoque de embriões congelados, chamados de PP (projeto parental), são colocadas aos casais que tem (?) ou que deram origem (?) a estes embriões questões aparentemente simples de múltipla escolha.

"É perguntado ao casal se ele quer: 1) Conservar 'no frio' o seu PP, renovando a sua escolha a cada ano por carta, ou seja, se, segundo os termos da lei, ele deseja: 'prosseguir o seu PP'. 2) Renunciar ao seu PP ao final de um certo tempo (não mais do que cinco anos).

Neste estágio, nova escolha. O casal quer a simples interrupção (ou seja, a destruição do seu PP), ajudar a realizar o PP de um outro casal, ou doar o seu PP à pesquisa científica?" (Delaisi, G. 1994, p. 65)

No entanto, por mais que seja reificado o embrião congelado e racionalizada a gestão do seu estoque, Geneviève Delaisi (1994) mostra, através de alguns casos recentes, os limites tanto desta reificação quanto desta racionalização. Destacaremos aqui dois casos. O primeiro deles é o de um casal, congelado numa espécie de luto impossível. Uma mulher que havia feito várias tentativas fracassadas de FIV, mas tinha vários embriões congelados, vinha, às vezes, autorizada pela equipe do hospital, ver os seus embriões no congelador, "como ela teria feito com bebês numa incubadeira, ou como no cemitério, dizia ela..." (p.75).

O segundo caso é o de um casal rural e católico que havia tido, por FIV, o número de filhos desejado. Eles mal sabem que há embriões congelados quando recebem a carta ritual do banco que estoca seus embriões, lhes perguntando o que queriam fazer com estes. O casal (para quem destruição remete a aborto) dirige-se ao padre, que não sabendo responder, dirige-se ao cardeal, que por sua vez, dirige-se ao seu superior, que afirma, enfim, que 'esses embriões têm um destino absurdo'.

Cabe agora observar que, ao nos trazer estes exemplos, Geneviève Delaisi (1994), de modo algum estaria assumindo uma posição retrógrada ou religiosa contrária aos avanços da ciência e ao nosso direito de congelamento da vida, mas sim buscando mostrar a incongruência da conjugação desta técnica à noção de gestão racional do PP. E isto porque, como ela observa, "os casais não são verdadeiramente ajudados (...) por estas construções médico-sociais, por esses arranjos legais" (p. 76-77).

E é para precisar seu ponto de vista que a autora nos oferece o que ela chama de um "bom exemplo" ou de um "exemplo positivo" do congelamento. Trata-se de uma mulher que após ter duas filhas, faz uma ligadura de trompas. Divorcia-se, casa-se novamente, e entra num programa FIV para ter um filho com seu novo marido. Não tendo engravidado na primeira tentativa, os embriões excedentes são congelados. A quarta tentativa é bem sucedida e nasce John, um menino. Mas o que se passa entre a primeira tentativa e o nascimento do menino, ou seja, enquanto a família o esperava, é absolutamente surpreendente: "as futuras irmãs de John haviam desenhado o pequeno irmão que estava por vir, representando-o em cubas de gelo em um refrigerador" (Delaisi, G, 1994, p. 76). Estes desenhos preencherão posteriormente as paredes do quarto de John. Além disso, Jonh será apelidado, sob a forma de uma simpática brincadeira, de Frosty, apelido que substituirá, até mesmo na escola, o seu nome.

Destino absurdo, como havia dito o superior do cardeal? Sim, entretanto, "tudo isso se passava (...) numa atmosfera lúdica e alegre; demonstração que o psiquismo humano pode se acomodar a situações a priori difíceis se lhe damos a possibilidade de metabolizá-las com os seus próprios meios" (Delaisi, G, 1994, p. 76).

Tendo coisificado John na cuba de gelo e humanizado a cuba de gelo pela perspectiva de vida ao mundo de John, as suas irmãs nos permitem perceber, de um modo divertido, como "as novas tecnologias reprodutivas podem estar representando uma substituição das formas de procriação em nossas sociedades, no sentido da modificação das narrativas sobre a procriação" (Corrêa, M. V., 2001, p. 193), e como também o humano e a coisa podem se diferenciar de novas formas, constituindo o que hoje chamamos de novas subjetividades.

De fato, através deste exemplo, vemos como pode ampliar-se o nosso campo de reconhecimento potencial do humano, a nossa capacidade de reconhecer o humano nas suas novas formas. Ali onde aparentemente há deformação, as irmães de Frosty formam, nos vários sentidos deste termo: dar forma, conceber, imaginar, criar, educar.

Mas sobretudo o que elas nos trazem é o tratamento lúdico do estranho, o encontro alegre com o novo, a leitura criativa do absurdo. Elas não fogem, mas brincam com o estranho, com o novo, com o absurdo. Aceitam alegremente o seu desafio. Inventam novos lugares para o corpo, um modo de acesso afetivo ao desconhecido. Dão conta, porque munidas de afeto, precisam dar conta do novo, do absolutamente novo que se aproxima delas. Transformam essa aproximação numa aproximação afetiva sem destituí-la de seu caráter estranho. Elas humanizam o frio, colocam em cena, de modo leve, divertido e criativo, aquilo que Freud (1919/76) chama de Unheimlich.

Se as novas tecnologias reprodutivas transgridem, como sublinham vários autores, a própria noção de homem, de filiação, de corpo e de sujeito, cabe aqui à fratria de seus filhos transgredir as transgressões, inventando, de modo divertido, as novas narrativas que talvez venham a constituir-se como normas, ditas sérias, que eventualmente virão a ser transgredidas, e, assim, sucessivamente, permitindo-nos que ali onde esperávamos, como fruto da razão iluminista, Frankestein, brindemos a chegada de uma nova razão, vertendo em nossos copos algumas cubas de Frosty.

 

Notas

1. Não confundir esta noção lacaniana com qualquer ideia ligada à essência ou à verdade.

 

Referências

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Chatel, M.-M. (1998). Malaise dans la procréation: Les femmes et la médecine de l'enfantement. Paris: Albin Michel.         [ Links ]

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Delaisi, G. (1994). Enfant de personne. Paris: Odile Jacob.         [ Links ]

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Warnock, M. (1985). A question of life: The warnock report on human fertilization and embryology. London: Blackwell.         [ Links ]

 

 

Recebido em 02 de fevereiro de 2009
Aceito em 27 de fevereiro de 2009
Revisado em 05 de maio de 2009

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