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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.3 Fortaleza set. 2009

 

RELATOS DE PESQUISA

 

O aborto é uma dor narcísica irreparável?

 

 

Teresa Cristina G. FreireI; Daniela S. ChatelardII

IPsicóloga (Universidade de Brasília). End.: Cond. Estância Jardim Botânico cj. C1, cs. 29. Brasília- DF. Cep: 71680-365. E-mail: teresa.guedes@uol.com.br
IIPsicanalista. Docente no Departamento de Psicologia Clínica/ e do Programa de Pós-Graduação na/ UnB. Membro da/ Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano e da Álgebra do Campo Lacaniano/ em Brasília; membro fundadora da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê. Doutorado pela Universidade de Paris 8. End.: R. SHIN QL 11 conj.06 casa 03. Lago Norte. Brasília-DF Cep: 71515-765. E-mail: dchatelard@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo nasce de uma experiência de atendimento psicanalítico em grupo com grávidas que realizam pré-natal no HUB, Hospital Universitário de Brasília, por 18 meses totalizando 53 atendimentos. A escuta objetiva oportunizar, a partir da fala, um reposicionamento subjetivo. O texto gira em torno de alguns conceitos psicanalíticos como narcisismo, ambivalência, investimento no objeto, luto, melancolia e angústia, correlacionando-os com a gravidez e o aborto. O artigo narra algumas experiências de grávidas que, no passado, vivenciaram a dor narcísica do aborto e discute como a grávida pode superar o luto e tonar-se apta a investir em uma nova gravidez. Como investir num filho que remete aos abortos anteriores, que significam a impotência e o fracasso destas mulheres? Como ajudá-la a sonhar, a conceber uma representação deste filho para dar a ele a oportunidade de viver? Como ajudá-la a sustentar este desejo essencial? Os atendimentos pretendem ajudá-las a sonhar, a conceber uma representação do filho e a sustentar este desejo essencial de vida. Diversos casos clínicos são apresentados, contemplando mulheres em diversas fases da gestação. Cada uma delas descreve como enfrenta a possibilidade do aborto. Este artigo investiga a relação da grávida, em repetido risco de aborto, com o seu bebê. É possível a mulher superar a dor do aborto e tornar-se apta a investir em uma nova gravidez que chegue a termo?

Palavras-chave: gravidez, aborto, narcisismo, luto, ambivalência.


ABSTRACT

The article results from an experience involving psychoanalytic sessions with a group of pregnant women undergoing pre-natal care at the University of Brasilia Hospital during 18 months, a total of 53 sessions./ The objective of the listening sessions is to allow the subjects to reach a better understanding of their subjectivity./ The text approaches psychoanalytical concepts such as narcissism, ambivalence, investment in the object, mourning, melancholy and anguish, relating them to pregnancy and miscarriage./ The article describes experiences with pregnant women who, in the past, experienced the narcissistic pain of miscarriage and discusses how pregnant women can overcome their mourning and become apt to invest in a new pregnancy./ How can these women invest in new children who remind them of previous miscarriages that symbolize their impotence and failure? How to help this woman dream, develop a representation of her child, so as to give him the chance of living? How to help her keep this essential desire? The sessions intend to help the women dream, develop a representation of the child and sustain this essential desire for life. Several clinical cases are shown, including women in different phases of pregnancy./ Each one describes how to deal with the possibility of miscarriage. This article investigates the relationship between pregnant women, who present/ repetitive risk of miscarriage, and their child./ Is it possible for a woman to overcome the pain of/ miscarriage and be ready to invest in a new successful pregnancy?

Keywords: pregnancy, abortion, narcissism, mourning, ambivalence.


 

 

Introdução

Muitas pesquisas têm sido realizadas sobre gravidez e perdas fetais. Todavia, a maioria ocorre na perspectiva das instituições, como hospitais e universidades. Poucas são realizadas na perspectiva da mãe sobre sua gravidez e seus sentimentos em relação à gravidez e às perdas fetais. Este estudo baseia-se nas falas das grávidas de alto risco que fazem acompanhamento pré-natal no Hospital Universitário de Brasília, HUB. Em dezoito meses foram realizadas 53 sessões em grupo, com a participação de cerca de cem grávidas de alto risco.

Na sala de espera a palavra se faz circular no grupo. Numa visão psicanalítica a palavra é entendida como ideias, representações e afetos inconscientes. Este espaço no HUB pretende ajudar as grávidas a se tornarem mais conscientes do seu funcionamento emocional e desenvolver uma capacidade maior de tolerância e convivência com uma gama mais ampla de experiências emotivas inerentes a este momento específico de suas vidas: a espera de um bebê. A escuta quer oportunizar, a partir da fala, um reposicionamento subjetivo. Nestes encontros, a fala de uma grávida oportuniza a outra a verbalizar e elaborar suas perdas anteriores e lidar com a gravidez atual.

As grávidas falam de suas experiências e sentimentos em relação à gravidez: surpresas, alegrias, inseguranças, temores e dificuldades. As mulheres que possuem gravidez de alto risco contam sobre suas perdas anteriores e compartilham com outras que já passaram pela mesma dor ou que temem vivenciar tal experiência, nos casos de primeira gravidez de alto risco.

Estar grávida envolve muito mais que sentimentos prazerosos em relação à vida. É uma experiência única que pode ser vivenciada de infinitas formas, o momento em que, certamente, há espaço para o desenvolvimento da mulher e da família. Porém, é também o momento das regressões, dúvidas, dores, inseguranças, condição física desfavorável à mobilidade e à sensualidade. Estar grávida não é apenas flores, há também espinhos.

Um tema recorrente nos encontros é ambivalência. Em geral, as grávidas sentem-se constrangidas ao falar da ambivalência que vivenciam. Mas sempre há uma ou outra grávida que fala: "não gostaria de estar grávida... ainda não aceito o bebê" ou, mais explicitamente: "Eu gostaria que a gravidez fosse interrompida". Outras dizem que parecem viver um pesadelo "carregando este fardo". Quando isto acontece, há sempre uma grávida disposta a criticar, dizendo que isto não é certo.

Nossa fala se dá no sentido de ajudá-las a elaborar melhor a ambivalência, como algo natural, inerente ao ser humano, já que toda relação é feita de ambivalência. Reconhecer tal ambivalência não as torna monstros, ao contrário: as humaniza. Aos poucos elas vão admitindo sentir raiva e carinho, incômodo e prazer, alegria e tristeza, rejeição e aceitação em relação ao bebê. Ao acolherem a própria ambivalência elas passam a aceitar melhor seus sentimentos e a se relacionar melhor com este objeto que suscita tanta contradição: o bebê.

Grávidas que nunca sofreram aborto interagem com o feto de forma distinta das mulheres que já vivenciaram a dor do aborto espontâneo. A possibilidade de ter a gravidez interrompida estabelece uma nova interação entre a mãe e o bebê. Uma relação objetal, baseada em inseguranças, medos e defesas, resultará em uma estruturação psíquica do objeto, o bebê, distinta dos bebês de mães que não sofreram perdas fetais. Para desenvolver este tema seria interessante a realização de um estudo longitudinal. Este artigo pretende apenas estudar a relação da grávida, em repetido risco de aborto, com o seu bebê.

Algumas gestantes ficam preocupadas com a frequência com que seus bebês se movimentam. Para Klaus e Kennell o bonding "é uma relação específica e privilegiada que é caracterizada do lado da mãe e ligada a acontecimentos tanto bioquímicos quanto sensoriais. Segundo eles, os movimentos-intrauterinos do bebê também preparam a sincronia que então reina" (como citado por Lebovici, 1987, p. 65).

 

Conceitos importantes

Para tentar compreender a relação da grávida com o feto é necessário comentar alguns conceitos psicanalíticos. O narcisismo, segundo Freud, é um estágio do desenvolvimento da libido, posterior ao autoerotismo, no qual ocorre a primeira escolha objetal, sendo o próprio Eu o objeto escolhido (Freud, 1914/1989). O narcisismo é a forma como um adulto trata seu corpo com os cuidados que usualmente seriam dedicados a um objeto sexual externo (Freud, 1916/1997c). Posteriormente, a pessoa será capaz de escolher outros objetos, que não o seu EU. O narcisismo é muito importante no contexto de uma gravidez, pois não se pode falar que o amor e outros sentimentos direcionados ao feto não sejam narcísicos, pois o bebê não é um objeto exterior à mulher que está grávida. Considerando o feto parte do corpo da grávida, conclui-se que a ocorrência de um aborto provoca uma profunda dor narcísica.

Algumas mulheres não viram nem tocaram seus filhos abortados. Como explicar a perda de um objeto tão "concreto", tão internalizado, mas tão imaterial? Poderíamos dizer que, no caso específico do aborto, há um enlutamento melancólico. A partir do texto de Freud, Luto e Melancolia, o que se observa no período após o aborto é que a mulher apresenta traços atribuídos à melancolia e perda da autoestima, aliada ao luto, à dor narcísica. Há um momento de melancolia, mas não uma estrutura melancólica.

Para Freud o luto é a reação à perda de um ente querido. O luto não é uma condição patológica, é um sofrimento legítimo por alguma perda, considerando desnecessária a ocorrência de uma intervenção no período do luto, pois o próprio organismo se readapta à perda (Freud, 1917/1997b). A melancolia apresenta desânimo, falta de interesse no mundo externo, perda da capacidade de amar, diminuição dos sentimentos de autoestima e desejo de autopunição dentre outros. Segundo Freud as mesmas características são encontradas no luto, com exceção da perda da autoestima. Porém, quando uma mulher vivencia um aborto espontâneo, ocorre o que poderíamos chamar de luto narcísico, pois ocorre perda de autoestima.

Ambivalência é um termo que pode ser usado para designar ações e sentimentos que resultam de um conflito defensivo, no qual entram em jogo motivações incompatíveis: o que é agradável para um sistema é desagradável para outro. Ambivalência se dá quando ocorre a presença simultânea, na relação com o mesmo objeto, de sentimentos antagônicos, como o amor e o ódio (Laplanche, 1988).

Certas grávidas apresentam uma fala repleta de fantasias. O termo fantasia nos remete à oposição entre o que é imaginário e o que é realidade, que é percebido pelos sentidos, que pode apresentar-se como consciente ou inconsciente. A fantasia pode ser a realização de um desejo inconsciente (Laplanche, 1985). Será que uma grávida que fantasia um bebê morto desejaria inconscientemente a sua morte? Qual lacuna precisa ser preenchida para desviar do caminho do aborto? Qual o novo caminho a ser trilhado?

 

Casos ilustrativos

Observou-se repetição na fala e atitudes das grávidas, como é o caso de N, que ilustra alguns pontos relevantes. N, 30 anos, empregada doméstica, há cinco anos perdeu o seu primeiro filho, com 36 semanas de gravidez. Ela é casada com um primo de primeiro grau e atribui a isto o fato de o bebê não ter sobrevivido. No hospital quiseram realizar biópsia no bebê, mas o pai e a família não permitiram. Eles não sabem explicar o que levou o bebê a óbito. Durante dois anos ela evitou engravidar, nos últimos três anos não evitava, a pedido do marido, mas demorou 3 anos para engravidar.

Em nosso primeiro encontro, com 24 semanas de gravidez, N chora e demonstra uma dor, ainda não cicatrizada, ao falar do bebê. Fala da perda do primeiro filho como algo recente. Ao perguntarmos sobre quais são os sentimentos em relação à gravidez atual e ao bebê ela diz, entre lágrimas, ter medo de acontecer tudo outra vez. Mostra vários exames e diz que os médicos garantiram que o bebê está bem, mas não acredita neles. Não quis saber o sexo do bebê, diz: "eles podem estar enganados, você não acha?... O bebê da minha cunhada mexe e o meu não".

N possui fantasias em relação à formação do bebê e conta que após ter visto um homem sem orelha ficou dias pensando que seu filho poderia nascer sem braço, sem mão, sem orelha ou nariz. Ela não consegue assistir TV, pois tem pesadelos com certos personagens. Quando assistiu a um programa com vampiros e mutantes humanos sonhou várias noites seguidas com o nascimento de um bebê deformado. N não consegue conversar com o bebê, disse que o marido conversa bastante com o bebê e que "ele está muito feliz e ansioso". Mas não compreende porque ela pensa tais "besteiras".

Orientamos N a evitar certos tipos de programa e conversar com o marido de forma franca sobre seus temores, pedindo que ele a compreenda e a apoie. Quanto ao bebê, sugerimos a ela que tentasse conversar com ele e falasse sobre seus sentimentos: medos, angústias, fantasias e alegrias. Nos encontros seguintes N disse que pensou que não conseguiria conversar com o bebê. Surpreendeu-se: começou a falar com ele na semana do nosso primeiro encontro. Afirmou que estava conversando com o bebê todos os dias no horário em que a família assistia ao programa com monstros. Também conversou com o marido e ele pediu desculpas pelas críticas que fizera e disse que, como ela, também tinha medo. Parece, pela forma como ela narrou, ter sido um momento especial para o casal.

Por volta da 36ª semana N está muito mais confiante. As fantasias diminuíram, ela raramente narra alguma fantasia em relação ao bebê e já quer saber o sexo do bebê. A intimidade com o bebê é crescente e já o nomeia: Vitória. Neste período ela já conta sua história de perda do primeiro filho como um evento passado, não chora mais ao relembrar. Ela disse a outra grávida que também perdera o primeiro filho: "... eu sei como é, eu sofri muito, mas agora eu já contei tudo pra neném e evito pensar nas coisas ruins". Com 41 semanas de gestação N dá à luz uma menina saudável e perfeita: sua Vitória.

Outra grávida nos chama a atenção: L está na 3ª gravidez, abortou espontaneamente nas outras duas aos seis meses, agora no sétimo mês de gravidez conta que acaba de comprar a primeira peça de roupa para seu filho, "não quis comprar (roupinhas para bebê) antes, pois não sabia se chegaria até o fim e não queria me decepcionar, aliás, ainda não sei se este nascerá". Quando uma grávida prepara o enxoval de seu filho, como descreveu Mathelin (1999), ela "fabrica, para além da roupa, os braços, as pernas, a imagem do corpo do bebê na cabeça da mãe ... o que lhe permite conceber uma representação de seu filho" (p. 66). A criança toma corpo, cresce, cria formas, não só no ventre da mãe, mas na sua fala, no seu desejo. Quando uma grávida, como L, não elaborou as perdas passadas fica difícil criar este corpo de bebê em seu fantasma. Por defesa a grávida nega ao bebê a sua existência quando, para não se apegar, para não sofrer ela não se permite sonhar com as formas deste filho.

J está com 43 anos, disse que este era seu terceiro filho. Quando questionada sobre a idade dos filhos disse que havia perdido os dois primeiros no quinto mês de gestação. É interessante notar que, mesmo tendo dois abortos, ela considera que está tendo o terceiro filho. Talvez este filho nunca seja o primogênito, mas o filho caçula dentre três irmãos.

Nos primeiro encontros J só falava quando solicitada, só ouvia, sempre com a cabeça baixa. Ao completar sete meses de gestação J estava mais falante, talvez mais esperançosa. Disse que agora, fazendo o pré-natal corretamente, estava mais segura: "esta é minha última chance" (referindo-se ao fato de estar com 43 anos). J, como outras grávidas, não conversa com o bebê, mas diz que gostaria que ele aparecesse logo, pronto, perfeito no seu colo. Sugerimos a ela falar com o bebê sobre sua vontade de ver o seu rosto, ouvir seu choro, tocar o seu corpo e sentir o seu cheiro. Em nosso último encontro J está radiante, diz que está ansiosa para "ver a carinha dele" e que conversa com o bebê. Na semana seguinte nasceu seu primogênito, ou filho único, ou quem sabe seu filho caçula.

X, 34 anos, chegou para sua primeira consulta pré-natal com 10 semanas, encaminhada por outro hospital, onde ela já havia sofrido três abortos. Ficou calada todo o tempo, quando questionada se estava grávida ela disse: "infelizmente estou". Logo em seguida começou a chorar e pedia desculpas ao grupo por estar chorando. Em sua primeira gravidez o bebê nasceu com 29 semanas de gestação, Ana Luíza sobreviveu por 9 horas e veio a óbito. X não viu a criança viva, os familiares registraram e enterraram a menina.

Na segunda gravidez ela começou a perder líquido, como na primeira, e ficou internada dois meses até que uma médica resolveu fazer outra cesariana, o bebê morrera em seu ventre. "A médica disse que o bebê ia morrer de qualquer jeito". Ela não quis ver o bebê, era outra menina, teve que dar um nome. Disse ao marido: "Põe qualquer nome nessa coisa, tá morta mesmo". No mesmo dia morreu uma tia, ela ficou três dias no hospital enquanto a família organizava os dois enterros. Na maternidade X compartilhou o leito com mulheres que tiveram seus filhos saudáveis, observava as outras amamentando seus filhos, ouvia o choro de bebês "...foi horrível, eles não poderiam ter feito aquilo comigo", referindo-se aos profissionais que a assistiam.

Após esta perda X ficou muito deprimida, pensava em morte todos os dias. Seis meses depois adotou um bebê com 16 dias. Quatro meses após a adoção engravidou novamente. Logo depois o marido foi preso. Ela ficou só, com um bebê adotado e uma nova gravidez. "Não queria, mas pego gravidez muito fácil".

Na terceira gravidez X perdeu o bebê com 25 semanas, natimorto. Ela disse: "Só faço filho morto". O médico, querendo confortá-la disse: "Só outra gravidez, vamos tirar este bebê logo". Ela queria que tirassem logo, não aguentava saber que "estava com um morto dentro da barriga". O parto foi induzido e a necroscopia realizada, o laudo: Corioamnionite aguda (um processo inflamatório agudo das membranas extraplacentárias, placa coriônica da placenta e cordão umbilical) e Hipóxia intrauterina, o bebê morre por asfixia devido à falta de oxigênio em função do rompimento da placenta.

Com o marido preso, seus pais enterraram o bebê contra sua vontade. Ela ficou com muita raiva dos pais, disse que não queria que participassem de sua tristeza. "Se não posso trazer alegria, vida, não quero trazer tristeza... temos que nos ocupar dos vivos, deixar os mortos pra lá". Nesta fala nota-se uma profunda dor narcísica, ainda não cicatrizada. Dois anos e quatro meses depois ela engravida pela quarta vez.

X, com 11 semanas, conta que tudo transcorre normalmente em suas gestações até o quarto mês, quando ela começa a perder líquido. "Esse também vai morrer, é o que eu acho. Não quero falar com o bebê, não quero me apegar pra depois perder". Depois do terceiro encontro X abandonou o grupo e recusou o atendimento individual, ficava no corredor, não entrava na sala em que as outras grávidas participavam do grupo. Quando convidada a entrar disse que era um fardo que ela não queria dividir com ninguém.

 

Discussão

Quando uma mulher dá à luz um filho saudável ela vivencia um luto em relação ao bebê imaginário (Lebovici, 1987). Uma grávida, que já é mãe, disse sobre o nascimento de um filho: "você espera uma coisa e quando nasce é outra". O nascimento de um filho saudável renarcisa a mãe, enquanto o aborto a fere narcisicamente. No caso de vários abortos seguidos o luto é ainda mais difícil, é quase impossível curar esta ferida aberta. A grávida, que esperava um bebê idealizado, volta para casa sem ele nos braços e terá que conviver com esta falta para sempre. O sentimento de incompetência que a mulher carrega é muito forte. Porém, quando o bebê está em perigo e a medicina não pode lhe dar a segurança desejada, a grávida reencontra o fantasma (Mathelin, 1999) e o trauma se instala ou é revivido. Se a grávida não se sente apoiada, estando narcisicamente frágil, ela se coloca em perigo (Mathelin, 1999) e vivencia o desamparo. Para que o bebê deseje viver é preciso que sua mãe o deseje primeiro.

Há uma diferença entre uma vontade declarada e o desejo que esta vontade esconde. "A vontade pode desconhecer o desejo, negá-lo, caricaturá-lo, às vezes revelá-lo" (Chatel, 1995, p. 21). O caminho para a instalação do desejo deve ser aberto na castração. A castração é essencial para a grávida sustentar seu desejo, a castração teria sido a "interdição salvadora que separa a criança do gozo da mãe e caracteriza a transmissão necessária realizada pela função paterna de modo a abrir o caminho para a instalação do desejo" (Petri, 2008, p. 45). A análise cria condições para que a grávida possa atravessar a castração e esvaziar-se do gozo, através do discurso.

A proposta de Françoise Dolto é "inserir a criança na estrutura desejante da família" (citado por Petri, 2008, p. 29). Como ajudar a grávida e a família a sonhar, a conceber uma representação deste filho para dar a ele a oportunidade de viver? Como ajudar a grávida a sustentar este desejo essencial? O desejo é essencial, pois o desejo do Outro, da mãe, será sempre o desejo deste bebê. Um sintoma se dá quando inicialmente ocorre uma separação entre ideia e afeto, há uma tentativa de tirar da consciência alguma ideia incompatível. A ideia é recalcada, porém o afeto tenta voltar, reaparecendo. O sintoma se mantém como um substituto de um conflito, ele surge para tamponar a angústia, porém é necessário passar pela angústia para se chegar ao desejo. A grávida que não consegue passar pela angústia não pode sustentar o desejo de ter o filho.

O desejo diz respeito à falta que se faz presente, só então a angústia se faz presente. Como transpor o luto e estar apta a investir neste novo filho? Como investir em um filho que remete aos abortos anteriores, que significam sua impotência e fracasso? (Mathelin, 1999). Há uma impossibilidade de sustentar esse desejo: um filho. Teria sido esta grávida desejada por sua mãe? A este respeito Winnicott escreveu: "... uma mãe tem sempre o sentimento de que sua mãe lhe exige um filho, de modo que seu filho é produzido para que ela se concilie com sua mãe" (como citado em Mathelin, 1999, p. 15).

Ao engravidar, a mulher projeta no bebê suas esperanças de realização e perpetuação, identificando-se com este objeto. Identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal (Freud, 1917/1969). Quanto ao fato de o Eu desejar incorporar o objeto, na gravidez o objeto já está, literalmente, incorporado. Após identificar-se com o bebê a grávida passa a investir de forma mais consciente no objeto, depositando sua libido neste objeto. A grávida ama este objeto que não lhe é externo, sendo assim um amor narcísico. A mulher constrói um vínculo com o bebê imaginário durante a gestação, bonding, ao perdê-lo ocorre ao mesmo tempo um verdadeiro luto, uma perda objetal e uma profunda dor narcísica.

Um dos fatores que influencia o aborto parece ser o fato de a grávida não se autorizar a ser mãe. A gravidez não pode chegar ao final esperado, quando a mulher não tem condição psíquica, pois está narcisicamente abalada, fracassada. Mathelin cita Winnicott:

"Uma mãe é naturalmente boa. Se fracassar como mãe, é que traz em si uma ferida bem mais antiga que jamais se fechou. Às vezes trata-se de uma grave ferida materna de sua infância. Nem mesmo se trata mais para ela "de animalidade"; ela não busca nem devorar nem preencher o filho, ela não quer ser perfeita. Esse bebê lhe cai literalmente nas mãos, ela não pode carregá-lo nem física nem moralmente" (Mathelin, 1999, p. 16).

A medicina luta para manter o filho vivo no ventre da mãe, enquanto a morte quer tragá-lo. Entender e aceitar este desejo de destruição é complexo, não apenas para a medicina. Parece estranho pensar que o aborto espontâneo seja um sintoma, pois um aborto quer dizer algo para além dele. Para Freud, o instinto de morte opera em silêncio no interior do organismo visando a sua destruição, para ele Eros e instinto de morte estão mutuamente mesclados em proporções diversas (Freud, 1940/1997a). Esta parceria pode ser percebida na gravidez de alto risco: ali o Eros é tão evidente quanto a morte é iminente.

Quando ocorre o aborto a mulher se sente profundamente abalada, narcisicamente ferida. A morte de uma parte de si, a morte de um amor idealizado, a morte de um ideal, de uma esperança, a morte da possibilidade de eternizar-se, de apresentar à sociedade a sua competência de procriar. A repetição do aborto poderia ser uma forma que a mulher encontrou de vivenciar a falta.

Em uma nova gravidez, após ter vivenciado um aborto, em geral, a mulher não está livre para investir em um novo objeto. Observa-se, nas falas das grávidas, sentimentos de fracasso e incompetência, abandono do investimento no feto, luto, melancolia, vergonha e medo de jamais poder gerar uma vida. Há uma desistência da relação com o bebê, o objeto é abandonado juntamente com o Eu, elas apresentam um discurso que denuncia sua baixa autoestima, consideram-se incompetentes para gerar uma nova vida (Papp, 2001). Não querem que os familiares participem de sua dor, isolam-se, por não poder partilhar a alegria de gerar um novo bebê para a família.

Por defesa, medo de reviver a perda anterior, estas mulheres não apresentam envolvimento afetivo com a gravidez, com os bebês e consigo mesmas. Tais mecanismos de defesa estão acompanhados de sintomas como: fantasias em relação ao bebê, baixa autoestima e traços melancólicos (Freud, 1917/1997b). Encontramos várias mulheres nesta condição, observou-se que inicialmente elas não se envolvem com o bebê, não conversam com ele, algumas se negam a comprar o enxoval ou escolher o nome. Há uma explícita falta de investimento neste objeto: o bebê. Por necessidade de defesa do Eu elas fazem uso de vários mecanismos de defesa, como: negação, formação reativa e racionalização. Para que, nestas condições, a gravidez chegue a termo é necessário, além dos cuidados médicos, que este bebê seja inscrito numa fala desde o ventre.

No caso de N ela não conversava com o bebê, não escolheu o nome e fantasiava sobre a má formação do bebê. Em função de abortos anteriores, algumas grávidas fantasiam que seus bebês são deformados, que nascerão deficientes, sonham com um bebê monstruoso, se acham incapazes de gerar um ser perfeito. Enquanto falava com seu bebê, em casa e na sala de espera do hospital, N trouxe afeto para sua fala, que é a base que permite a significação, seguido da redução do sintoma: as fantasias e o aborto. Ao inscrever o bebê que carregava numa fala, N deu-lhe a oportunidade de nascer e viver, de obter Vitória.

Se, durante a gravidez, o bebê é sensível ao que ocorre com a mãe é porque ele compartilha do inconsciente materno. Logo, é a partir do inconsciente materno que o feto começa a construir seu psiquismo, ele ainda está à espera de inscrições, está aberto para a mãe. Talvez pudéssemos dizer que tais abortos sejam manifestações do inconsciente da mãe, os bebês abortados teriam o papel de carregar, em sua presença real, o que não foi simbolizado pela mãe. Monique Bydlowski, 1988, descreveu transferência psíquica como afluxo regressivo e rememorativo de representações (citado por Bernardino, 2004). A grávida está sensível ao que acontece com o bebê e ao que este desencadeia de sua história passada. Assim como o feto é sensível ao que ocorre com a mãe, de acordo com as experiências de Marie-Claire Busnel o feto já é sensível à fala, ao afeto que sente pela linguagem (como citado por Mathelin, 1999).

 

Considerações finais

Propõe-se que após uma perda fetal a mulher tenha a oportunidade de um acompanhamento terapêutico. A análise irá ajudá-la a reestruturar o seu Eu para poder investir em uma nova gravidez de forma mais livre. De acordo com Freud o tempo se faz necessário, para que o domínio do teste de realidade seja levado a efeito para que assim o Eu consiga libertar sua libido do objeto perdido (Freud, 1917/1997b). Apesar de Freud considerar desnecessária a ocorrência de uma intervenção no período do luto, no caso de luto por perda fetal, é essencial esta intervenção, dado o seu caráter singular.

Sugere-se que, em uma nova gravidez, após perda fetal, a paciente esteja em análise, o que favorecerá o novo investimento no feto e uma gravidez mais elaborada, pois mais falada. Este é o novo caminho a ser trilhado: a passagem para a linguagem e para a palavra falada. Esta passagem leva à perda do gozo e dá à mulher o direito ao simbólico, abrindo a possibilidade de que a próxima gravidez possa vir a termo.

O analista "introduziria aí um trabalho de simbolização no real desta clínica, na qual muitas vezes a morte está presente; ou ainda a perda, e com ela a necessidade de elaborar um trabalho de luto" (Chatelard, 2002). Observou-se nos grupos que as mulheres que falavam mais livremente sobre os sintomas, fantasias, angústias e ambiguidades passaram a ter uma gravidez mais elaborada, todavia, constatou-se que as grávidas que se recusavam a falar ou insistiam na negação dos sentimentos ditos negativos, não aceitando a ambivalência de sentimentos, acabaram saindo do grupo, não puderam tentar um novo caminho.

O aborto é, certamente, uma profunda dor narcísica. Todavia, não é uma dor irreparável. Se a mulher entra em análise após a primeira perda fetal ela poderá investir de forma mais livre em uma nova gestação. O que trará benefícios para a mulher, o bebê e toda a família. O analista, como terceiro, em sua escuta, convida a mulher à simbolização, permitindo que ela ressignifique suas experiências passadas e invista em um novo objeto, abrindo passagem para que este filho nasça e renarcise sua mãe.

 

Referências

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Recebido em 07 de janeiro de 2009
Aceito em 11 de abril de 2009
Revisado em 09 de maio de 2009

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