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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.4 Fortaleza dez. 2009

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O ócio como experiência subjetiva: contribuições da psicologia do ócio

 

 

Ieda Rhoden

Psicóloga. Doutora em Ócio e Potencial Humano, Universidade de Deusto/Espanha. Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. End.: Av. Unisinos, 959 Cristo Reio - São Leopoldo RS. Email: irhoden1@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma revisão e síntese de conceitos oriundos da Psicologia do Lazer norte-americana e da Teoria do Ócio, desenvolvida na Espanha. Aborda o ócio como fenômeno psicossocial cujas características diferenciais podem ser percebidas pelo próprio sujeito. Distinguem-se os conceitos de estado de Ócio e experiência de Ócio, diferenciando-os em função da intensidade e profundidade da experiência e dos atributos nela implicados. Destacamos ainda, nas observações sobre os temas, as experiências de pico e de flow, encontrados em recentes estudos norte-americanos, empreendidos por investigadores que se dedicaram ao fenômeno, salientando as semelhanças entre estes fenômenos e as experiências subjetivas de ócio. Por fim, apresentam-se os principais atributos ou qualidades constituintes das experiências de ócio, quais sejam, a percepção de liberdade, significado intrínseco, desfrute, ruptura, introspecção, encontro interpessoal, desenvolvimento humano, relaxamento, desafio, auto-expressão e autorrealização. Para concluir, salienta-se a opção de circunscrever o ócio numa perspectiva humanista e positiva, privilegiando, nesta busca, a experiência subjetiva, por observarmos, a partir do percurso realizado no trajeto investigativo, que as experiências de ócio podem ser facilitadoras da promoção da saúde , qualidade de vida e do desenvolvimento pessoal e tais processos se iniciam no sujeito agente/ator de sua experiência.

Palavras-chave: atributos do ócio, desfrute, experiência subjetiva, ócio, psicologia do lazer.


ABSTRACT

This article presents a revision and synthesis of deriving concepts of the Psychology of Leisure of the North American and the Theory of the Idleness (recreation) developed in Spain. It approaches the idleness as psychosocial phenomenon whose distinguishing characteristics can be perceived by the proper citizen. The concepts from state of idleness or leisure and experience of idleness or leisure are distinguished, differentiating them in function of the intensity and depth of the experience and the attributes in it implied. To follow, the experiences are distinguished peak and of flow, pointing out the similarities between such phenomena and the subjective experiences of leisure. Finally, the main attributes or constituent qualities of the experiences of leisure in a perspective humanist are presented, called here also of constructive leisure perception of freedom, meaning intrinsic, enjoys, rupture, introspection, interpersonal meeting, human development, relaxation, challenge, auto-expression and auto-accomplishment.

Keywords: leisure attributes, enjoyment, subjective experience, leisure, psychology of leisure.


 

 

Introdução

No presente artigo apresentamos uma síntese conceitual e descritiva da experiência de ócio como fenônemo psicossocial elaborada a partir de estudos teóricos e empíricos encontrados na literatura sobre a Psicologia do Lazer e a Teoria do Ócio. Tais estudos abordam separadamente as condições causais do ócio ou o que ocorre, interna e externamente, antes da realização de uma atividade percebida como tal; os atributos da experiência propriamente ditos, quer dizer, ideias, sentimentos e sensações vividos durante a experiência de ócio; e os benefícios do ócio, quer dizer, ideias, sentimentos ou fatos percebidos como consequência direta deste tipo de experiência. Neste artigo, esta diferenciação perde sentido, enquanto cresce a importância da subjetividade e da percepção do sujeito que protagoniza a experiência de ócio.

Embora na literatura internacional proliferem as análises dos usos do tempo e dos hábitos de lazer e ócio, sugerindo tendências e padrões sociais, estas não explicam conceitos nem descrevem a natureza do fenômeno. Por isso, nos propusemos a estudar o ócio como fenômeno psicossocial, o que neste trabalho se desdobrará em três tópicos complementares: conceitos que fundamentam a ideia do ócio como experiência subjetiva; a descrição de processos e mecanismos psicológicos implicados nestas experiências; e a apresentação dos principais atributos ou qualidades psicossociais que definem o que é o ócio na percepção de quem o experimenta.

 

Ócio como experiência pessoal e subjetiva

Muitos autores consideram o ócio uma experiência subjetiva, intra e ou interpessoal mais complexa que a realização de alguma atividade específica ou que a disponibilidade de um tempo livre de obrigações (De Grazia (1966), Cuenca (1995), Kelly (1983), Tinsley e Tinsley (1986), Iso-Ahola (1980), Neulinger (1984) etc.). Tinsley e Tinsley (1986) argumentam que o ócio é uma experiência que reside no indivíduo e não na atividade, podendo estar presente inclusive no trabalho.

Para Trilla, o ócio. ...define-se como uma maneira de fazer e como uma maneira de estar no tempo (...) o essencial do ócio não o encontramos no conteúdo concreto da atividade, mas na atitude com que esta se realiza (...) qualquer atividade será ócio segundo o tempo social em que se produz e a atitude pessoal com que se realiza (1984, p. 283).

Observamos que o autor atribui mais importância à atitude pessoal, aqui entendida como a "dimensão psicológica da experiência de ócio". O ócio como fenômeno tem um caráter psiquicamente dinâmico, como uma via de sentido duplo: por um lado, possui um potencial de introspecção e assimilação do mundo; por outro, resulta em uma singular possibilidade de expressão humana. Portanto, a experiência de ócio é também o intercâmbio do Ser com o mundo. Neste processo, o sujeito muda e muda o seu entorno, realizando naturalmente um exercício de aprendizagem espontânea.

Cuenca (2000) resgata a importância da vivência lúdica e de seus processos de significação e resignificação das percepções. Deste modo, uma experiência de ócio plena deveria proporcionar a autoescuta, a escuta ao outro e ou da natureza e a expressão autêntica de si mesmo, do Self pessoal. Embora isto possa ocorrer sem intencionalidade, em alguns casos, o indivíduo, consciente de potencial de desenvolvimento, poderá escolher voluntariamente realizar alguma atividade que proporcione crescimento pessoal.

A busca da felicidade é uma constante na história humana. Dos filósofos gregos até os dias de hoje se multiplicam formulações e conceitos que visam compreender a felicidade e o sentido da vida. Para Aristóteles, a felicidade é o encontro da beleza, da verdade e do bem; para Freud, o equilíbrio entre a expressão de nossos instintos e o controle de nossos desejos; para Maslow, a autorealização e a transcendência e, mais recentemente, para Csikszentmihalyi, a felicidade se assemelha à experiência do fluxo da consciência.

Neste contexto, o ócio humanista entendido como fenômeno psicossocial e âmbito da vida, apresenta-se como mais um caminho capaz de aproximar o homem de seu projeto existencial. Acreditamos que, numa perspectiva humanista, o ócio pode beneficiar o homem em muitos aspectos: autodescoberta, desenvolvimento psicológico e social, saúde e qualidade de vida.

Um dos principais defensores do ócio nesta perspectiva é Manuel Cuenca, catedrático da Universidade de Deusto (Espanha). A principal contribuição de Cuenca (2000) talvez esteja em identificar e valorizar aspectos humanos próprios da experiência de ócio, os quais o autor denomina "dimensões do ócio": a dimensão lúdica; a dimensão festiva; a criativa; a solidária e a dimensão ambiental-ecológica.

A perspectiva humanista em Psicologia classifica a autorrealização como uma meta-motivação: tornar-se o que alguém pode e deve ser com base na sua condição potencial. Isto converte o ócio em um caminho de construção do Ser humano, de estruturação ou afirmação da personalidade, de modo que o mesmo não seja visto, nem muito menos vivido, somente como um meio para a recuperação de forças, como muitas vezes ocorre com as atividades reconhecidas como lazer.

O primeiro capítulo da declaração da WLRA-World Leisure and Recreation Association: Associação Mundial de Ócio e Recreação (1993) afirma o papel positivo que o ócio desempenha na vida humana, apontando como benefícios do ócio: a satisfação, o desfrute e uma maior felicidade. Concordam com estas ideias tanto Cuenca (2000), ao utilizar o termo "sensação gratificante", como Csikszentmihalyi (1997), ao descrever o "estado de encantamento" próprio de algumas experiências.

Lembramos ainda que, embora não seja o foco deste artigo, o ócio como fenômeno psicossocial pode ser abordado em seus aspectos negativos, tais como sua exploração como dispositivo de consumo. É possível também problematizá-lo a partir da questão das "enfermidades do tempo" (Fernandez-Zoila e Sivadon, 1982). Referimo-nos a comportamentos muito comuns na sociedade pós-moderna, tais como agenda superlotada; ansiedade frente à repentina disponibilidade de tempo; culpa diante de uma suposta ociosidade, geralmente presentes em períodos de férias e feriados. Embora os aspectos negativos do ócio tenham seu lugar na academia, aqui preferimos adotar uma abordagem que valoriza o ócio como experiência capaz de promover o desenvolvimento pessoal, a saúde e a qualidade de vida.

Sabemos que, teoricamente, o ócio comporta mais de uma concepção e que não existe consenso a respeito do tema, apenas tendências que refletem sua natureza transdisciplinar. Apesar disso, este artigo intencionalmente conduz o tema para uma compreensão psicológica e humanista.

Osgood e Howe (1984) propõem que os valores determinam em parte como os indivíduos utilizam seus recursos, quanto tempo dedicam ao ócio em contraste com o tempo que dedicam ao trabalho e à família. Além disso, o ócio pode revelar também personalidades e estilos de vida distintos. Por isso, tona-se interessante aprofundar o tema das experiências de ócio a partir de pressupostos da Psicologia.

Alguns estudos demonstraram que as mesmas atividades podem ter significados variados, para pessoas diferentes, assim como as mesmas pessoas em diferentes situações têm experiências distintas (Horna, 1994).

 

A psicodinâmica do Ócio

Com o objetivo de esclarecer a psicodinâmica do ócio, apresentaremos a seguir alguns aportes sobre fenômenos psicológicos que se manifestam em situações de ócio e ou lazer.

Neulinger (1981), um dos pioneiros em estudar o ócio a partir da Psicologia Social, definiu o ócio como "um estado particular da mente que ocorre em condições de liberdade percebida e motivação intrínseca ou extrínseca e se caracteriza por orientar-se para uma meta ou significado". Segundo ele:

"O ócio, então, tem somente um critério essencial, que é a condição da liberdade percebida (...) O ócio supõe estar dedicado a uma atividade representada como livre e de escolha própria". (Neulinger, 1984, p.197)

A partir destes conceitos, o autor propõe um modelo de classificação do ócio de acordo com a presença ou ausência das condições que considera fundamentais para a experiência de ócio: a motivação e a percepção de liberdade.

O estado de puro ócio, ou o verdadeiro ócio no sentido clássico, além da percepção de liberdade e da ausência de imposição, pressupõe o desfrute procedente da satisfação de recompensas intrínsecas. Conforme Neulinger, a noção de necessidades básicas pessoais está implícita. O estado de ócio-trabalho ou ócio-ocupação consiste em envolver-se livremente em uma atividade que gera uma satisfação relacionada com motivações intrínsecas e extrínsecas ao mesmo tempo.

A pessoa nestas situações percebe a ação como autodeterminada e as recompensas provêm tanto da experiência pessoal como através de alguma recompensa externa: por exemplo, uma premiação. O estado de ócio-emprego radica em envolver-se livremente em uma atividade cuja satisfação provém necessariamente de aquisições externas: por exemplo, praticar exercício para recuperar a forma física ou jogar cartas para ganhar algum dinheiro. A meta ou significado da atividade é instrumental e não final. Segundo o autor, uma pessoa pode deslocar-se de um estado a outro e cada um deles pode durar tanto longos períodos como períodos curtos.

Neste trabalho não nos deteremos nesta classificação, porém é justo deixar claro que o modelo de Neulinger teve grande influência nas teorias do ócio das três últimas décadas. Os indivíduos podem estar conscientes da experiência de ócio várias vezes durante uma única atividade, geralmente por curtos períodos de tempo, flutuando entre a consciência da experiência de ócio e a consciência da experiência de não ócio. Por exemplo, envolver-se com alguma atividade extrinsecamente motivada como um trabalho remunerado.

De acordo com o diagrama proposto por Tinsley e Tinsley (1986), é possível experimentar o ócio sem ter consciência dessa experiência no exato momento em que ela ocorre; entretanto, quando perguntadas sobre os sentimentos e pensamentos vividos, as pessoas descreverão sentimentos e pensamentos típicos das experiências de ócio.

Muitos autores compartilham a importância do caráter individual e contínuo da experiência de ócio, quer dizer, o ócio não deveria ser uma experiência isolada, mas sim, de alguma forma, perpetuar-se na consciência. (Csikszentmihalyi (1997), Iso-Ahola (1980), Mannell (1980) e Neulinger (1984).

Existe algum consenso entre os autores sobre o fato de que a experiência de ócio não é única, mas se caracteriza por uma composição de diferentes atributos que variam quanto aos graus de compromisso, desfrute e durabilidade da experiência. Costuma-se fazer uma distinção entre os conceitos: experiência de ócio e estado de ócio.

A experiência de ócio é um fenômeno pessoal que pressupõe um conjunto de características que costumam acontecer em circunstâncias da vida cotidiana, enquanto que o estado de ócio, embora pressuponha as mesmas qualidades psicossociais - as apresenta em graus muito mais elevados de intensidade -, e tendem a ocorrer em situações de grande impacto, como em viagens de férias, eventos familiares etc.

Conforme Tinsley e Tinsley (1986), a experiência de ócio significa uma experiência subjetiva em qualquer intensidade. O estado de ócio, que é a experiência em potência máxima, é similar no que se refere às propriedades psicológicas, às experiências místicas, experiências pico e as experiências de fluxo da consciência. Dois importantes autores falam de experiências pessoais que se assemelham ao estado de ócio: Csikszentmihalyi (1997) ao referir-se ao fluxo ou experiência ótima, e Maslow (1999) ao referir-se à experiência pico.

Segundo Maslow (1999), a experiência pico se assemelha à experiência da criação, a qual o autor descreve como um perder-se de si mesmo ou um transcender-se a si mesmo em função de uma fusão com a realidade observada e como uma espécie de integração de si mesmo com o outro, quer dizer, uma experiência não dual. Uma das características principais da experiência pico é a fascinação por uma ocupação, o perder-se no presente, desvincular-se do momento ou do lugar. Maslow (1976) deixa muito claro que as "experiências pico" ocorrem sempre que alguma coisa seja suficientemente interessante para manter-nos fascinados, algo que capte por completo nossa atenção.

Um estudo de Daly, Lancee e Polivy apud Argyle (1989) aponta a existência de uma outra dimensão nas experiências emocionais: a profundidade. A profundidade pode surgir através da música, da leitura ou da comunhão com a natureza, e geralmente é descrita como "inspiração, ausência de tristeza e de alegria", "estar profundamente tocado", "espiritual". As características descritas por Maslow (1999) em relação às experiências pico são:

1. Renúncia das preocupações do passado e do futuro; ou seja, estar totalmente envolvido com o presente;

2. Inocência na percepção e na conduta ou estar livre de modelos e expectativas a priori, com ânimo pleno para receber o que ocorre sem indignação, escândalo ou negação;

3. Redução da consciência, o que significa ser menos consciente das relações neuróticas com os outros, dos deveres, dos temores; retirar as máscaras que se coloca para agradar, impressionar, ganhar aprovação;

4. Perda do ego, esquecimento de si e perda da autoconsciência: tende-se a perder a vergonha de adolescente ao mesmo tempo em que se vive uma maior integração consigo mesmo.

5. Os temores e ansiedades desaparecem, a pessoa se torna valente e confiante, aproximando-se de uma condição favorável à ação criativa;

6. Diminuição das defesas e controles de nossos impulsos;

7. Fortaleza e coragem, uma espécie de autossuficiência e força de caráter. Em outras palavras, valorizar-se facilita deixar-se atrair pelo pouco habitual, pelo novo, em vez de recorrer a mecanismos de defesa que aliviam as ansiedades;

8. Aceitação, o que significa que nestes momentos os indivíduos ficam mais positivos e tendem a renunciar à crítica cética;

9. Confiar em si mesmo, na própria capacidade de improvisação, nos permite abdicar temporariamente à tensão, ao esforço para controlar conscientemente a realidade. Este fenômeno está relacionado ao relaxamento;

10. Receptividade taoísta ou deixar que as coisas aconteçam, tratar a experiência como algo per se, não como um meio ou fim distinto, mas uma espécie de deferência perante a autoridade dos fatos;

11. Máxima espontaneidade: deixar que as capacidades aflorem por si mesmas, sem esforços nem vontade ou controle consciente, quer dizer, de forma irrefletida e instintiva;

12. Máxima expressividade da singularidade: implica veracidade, franqueza, naturalidade e uma livre expressão do ser profundo. Os únicos determinantes neste momento são a natureza intrínseca do objeto entre mãos e da pessoa; e, finalmente,

13. Fusão da pessoa com o mundo.

Maslow (1976) sintetiza as experiências pico como os melhores momentos da vida, os mais felizes, provenientes de experiências estéticas, do êxtase criativo, das experiências de amor maduro etc. No transcurso de suas investigações, quando perguntou aos sujeitos em que lhes parecia diferente o mundo durante estas experiências, obteve as seguintes respostas: verdade, beleza, totalidade, transcendência da dicotomia, unicidade, perfeição, plenitude, justiça, ordem, simplicidade, riqueza, ausência de esforço, alegria e autossuficiência.

Após termos estudado algo das experiências pico de Maslow, bastante vinculadas ao processo de criatividade e autorealização, conheceremos um pouco mais profundamente a 'experiência de fluxo' ou experiência ótima, abordada por Csikszentmihalyi. Fruto de investigações com pessoas que desfrutavam livremente sem preocupar-se com o dinheiro ou fama, a experiência do fluir da consciência é descrita por Csikszentmihalyi (1997; 1998) a partir de nove características:

1. Metas claras em cada etapa do caminho. Segundo Csikszentmihalyi, diferente do que ocorre no cotidiano, no fluir a pessoa sabe exatamente o que deve fazer;

2. Resposta imediata às próprias ações (feedback positivo imediato), em contraste com o habitual estado das coisas: "sabe-se quão bem se está fazendo algo";

3. Equilíbrio entre o grau de dificuldade e as destrezas ou habilidades requeridas pela experiência;

4. Fusão da atividade com a consciência, quer dizer, a concentração está depositada no que se faz e a mente está focada em algo bem específico.

5. As distrações ficam excluídas da consciência e só o aqui e agora é o que conta, resultado de uma intensa concentração no presente que alivia o indivíduo de temores habituais;

6. Não há medo do fracasso; no fluir se fica muito absorto para pensar no fracasso, por isso alguns a descrevem como uma situação de controle total. Guarda relação com a adequação das habilidades aos desafios;

7. A autoconsciência desaparece no sentido de que não há uma preocupação com a aparência ou imagem pessoal. Ao sair da experiência ótima, em geral se sai com um melhor autoconceito e se percebe o pertencimento a uma realidade mais ampla. Paradoxalmente o 'Eu' se dilata quando esquece de si mesmo;

8. O sentido de tempo fica distorcido, na medida em que o se esquece que as horas passam. As horas que passam podem parecer minutos e os minutos podem parecer horas; e

9. A atividade se converte em autotélica, quer dizer, quando estas características estão presentes, se desfruta da experiência em si mesma. Não há razão para fazer o que se faz, salvo sentir ou viver a experiência em si mesma.

As últimas publicações de Csikszentmihalyi apud Horna (1994) sugerem a possibilidade de se experimentar o fluxo inclusive em atividades de trabalho e outras não reconhecidas socialmente como lazer, nem como ócio. Csikszentmihalyi apud Cuenca (2000) refere que o ócio pode mostrar a dimensão lúdica da vida ou a habilidade para levar a cabo nossas obrigações como se as tivéssemos escolhido.

Huizinga (1987), internacionalmente reconhecido por suas contribuições sobre a experiência do jogo na cultura humana, fala da qualidade inata dos jogos, utilizando o termo jogo com o mesmo sentido que aqui utilizamos ócio. Afirma Huizinga (1987) que "o homem tem uma natureza lúdica, brincar é uma atividade livre, inútil e passível de ser repetida, e resulta em um estado de ânimo favorável ao bem-estar, como a alegria, proporcionando a consciência de ser de outra maneira, diferente da vida ordinária".

Ao comparar o jogo a uma experiência de ócio, talvez fosse mais adequado falar de um sabor de inutilidade resultante da percepção da ausência da obrigatoriedade, naturalmente presente nas experiências lúdicas. Um aspecto questionável é a afirmação do autor acerca do caráter repetitivo dos jogos, visto que a experiência subjetiva dificilmente se repete. O que certamente se pode dizer a respeito das experiências lúdicas e de ócio é que ambas geram um desejo de repetição na medida em que proporcionam afetos positivos.

Uma boa demonstração das implicações psicológicas do ócio é a investigação realizada por Massimini e Massino apud Csikszentmihalyi (1998) utilizando variáveis que descrevem a experiência de ócio em toda sua magnitude: dificuldade e facilidade de concentração; consciência alheia ao Self e controle da situação; estar alerta-sonolento; feliz-triste; forte-fraco; amistoso-zangado; ativo-passivo; comprometido-afastado; criativo-apático; livre-coagido; excitado-aborrecido; aberto-fechado; claro-confuso; relaxado-ansioso; desejoso de executar a atividade; interesse na atividade; satisfação e percepção da velocidade do tempo. Estas variáveis foram reconhecidas pelos sujeitos pesquisados e expressas nos autoinformes do MME (Método de Amostragem da Experiência), mesmo método utilizado por Csikszentmihalyi (1998) em seus estudos do fluxo.

Com base nos teóricos e pesquisadores estudados, e coerentemente com nossas próprias convicções, resumimos até aqui elementos para uma compreensão mais dinâmica do ócio como fenômeno psicossocial, localizado em qualquer tempo e espaço, por meio do qual se produz a existência e autonomia humana. Exist, do latim, significa sair de si e entrar em contato com o mundo, fenômeno que por sua forma proporciona um conjunto de percepções e sentimentos determinantes do desfrute e da autorrealização. Assim, um ócio construtivo se define como uma experiência pessoal caracterizada por um estado físico e/ou mental gratificante, que envolve necessariamente satisfação pessoal, além de promoção da saúde e desenvolvimento humano.

 

Qualidades ou atributos das experiências de ócio

A partir daqui, apresentaremos as qualidades ou atributos encontrados na literatura e já testados empiricamente, que são percebidos pelos próprios sujeitos das experiências de ócio e que caracterizam as experiências como tal.

Quando falamos de qualidades do ócio como características ou elementos constituintes do ócio, nos referimos tanto a condições causais e benefícios, como a atributos propriamente ditos. Cabe esclarecer que a tarefa de reunir e sintetizar os conceitos apresentados como características subjetivas do ócio não é simples, dadas as limitações que apresenta a teoria do ócio, sobretudo na perspectiva da Psicologia. Nos referimos às limitações relativas à consistência e coerência dos conceitos. Por um lado, quase todos eles adquirem matizes e graus de importância distintos dependendo do autor; por outro, a maioria das publicações não explicitam ou não aprofundam os fundamentos teóricos científicos e filosóficos de ditos conceitos.

Tinsley e Tinsley (1986) produziram uma teoria dos atributos, benefícios e causas das experiências de ócio, em que apresentam uma série de proposições com a intenção de oferecer um modelo para a compreensão do ócio; contudo, admitem que suas proposições ainda carecem de provas e medidas. Ambos advogam a existência de quatro condições para que se possa experimentar o ócio: percepção de liberdade, motivação intrínseca, ativação facilitada e compromisso.

O inegável caráter dinâmico da experiência humana, onde se inscreve a experiência de ócio, implica outra dificuldade importante: delimitar os conceitos, na medida em que os fenômenos psicossociais se apresentam em grande parte superpostos e interdependentes. A título ilustrativo, o desfrute como estado psicológico próprio do ócio, geralmente aparece associado a algum outro atributo que o matiza sem que se esclareça que tipo de relação se estabelece entre eles. Assim, uma pessoa pode experimentar o desfrute: encontrando alguém ou estando com pessoas que aprecia; sentindo alívio de alguma sobrecarga ou tensão, quer dizer, relaxando; ou deleitando-se com uma obra de arte ou paisagem. Essas três situações hipotéticas contemplam, cada uma delas, duas qualidades ou atributos típicos das experiências de ócio sem revelar se existe uma hierarquia, uma relação causal ou de independência entre os atributos desfrute e encontro interpessoal; desfrute e relaxamento ou descanso; e desfrute e apreciação estética.

Considerando esse contexto de limitações e dificuldades de ordem teórica, este estudo parte de investigações sobre as experiências de ócio que permitem afirmar a presença de determinados atributos comuns a elas, em forma de ideias, sentimentos ou sensações, mesmo não estando precisamente conceituados.

Cabe lembrar que, embora reconhecida como elemento presente na fenomenologia do ócio, a dimensão temporal ou o tempo livre constitui apenas o cenário sobre o qual a pessoa "escolhe" o quê, como e quando fazer algo. Em outras palavras, trata-se de uma condição situacional que facilita ou dificulta o ócio, não sendo determinante da qualidade da experiência.

Além disso, a experiência de ócio não é uma situação estática, variando quanto ao grau de intensidade, profundidade e envolvimento durante uma mesma experiência ou de uma pessoa para outra. Independentemente da distinção teórica entre os estados de ócio, como os descritos por Maslow e Csikszentmihalyi, e as demais experiências de ócio, como as experiências cotidianas, muitas vezes não é fácil distingui-las empiricamente, posto que possuem aspectos subjetivos e dinâmicos que se impõem no momento de sua identificação e classificação. O que é possível constatar é que existem distintos graus de intensidade e durabilidade das experiências de ócio.

Procuramos complementar o aporte teórico sobre as qualidades constituintes das experiências pessoais de ócio, apoiados em contribuições teóricas que consideramos pertinentes para uma melhor identificação e compreensão dos fenômenos abordados.

Por isso propomos uma aproximação conceitual aos elementos constituintes das experiências pessoais de ócio, começando pelos mais reconhecidos teoricamente, como a liberdade, a motivação intrínseca, o desfrute e a sociabilidade; chegando aos que têm uma importância teórica relativa dependendo do autor e da especificidade da experiência, como é o caso do desafio, da autoexpressão e da apreciação estética.

Alguns autores se dedicaram a definir e descrever o ócio a partir da experiência pessoal, entre os quais se destacam: Iso-Ahola (1980), Neulinger (1984), Tinsley e Tinsley (1986), Shaw (1986), Mannell (1980) etc. A maioria deles, partindo de uma mesma realidade sociocultural e econômica, que é a realidade anglo-saxônica, coincidem ao definir os principais atributos ou qualidades das experiências de ócio.

Por exemplo, Tinsley e Tinsley (1986) sugerem como principais qualidades do ócio a absorção ou concentração no interior da experiência; o foco fora do Self; os sentimentos de liberdade ou ausência de inibição; o enriquecimento da percepção de objetos e acontecimentos; o aumento da intensidade das emoções; o aumento da sensibilidade para com os sentimentos e diminuição da consciência do passar do tempo. Shaw (1986) considera quatro fatores como determinantes no ócio: a percepção de liberdade, a avaliação social (ou ausência desta), o desfrute e a autoexpressão. Em um de seus estudos, Shaw (1986) encontrou fatores mais evidentes do significado conotativo do ócio: o prazer, a percepção de liberdade e a ausência de avaliação social, compreendendo que a presença da avaliação social é importante na medida em que pode ser uma barreira para a autoexpressão.

Estudos sobre o desfrute na perspectiva de atletas e praticantes de patinação revelaram diferentes fontes para este fenômeno: a emoção da própria atividade, a comparação de habilidades pessoais com as de outros ou competência percebida, a conquista pessoal, o aperfeiçoamento de habilidades, a vitória, pertencer a uma equipe, estar com amigos, receber prêmios, tornar outras pessoas contentes, oportunidades sociais, reconhecimento social e da competência.

Observamos também que algumas pesquisas demonstram que a implicação e o desfrute no ócio estão relacionados com a percepção de competência (Csikszentmihalyi (1997) e Iso-Ahola (1980), no sentido de que as pessoas tendem a escolher atividades para as quais se sentem capazes, e que quando percebem que têm as habilidades requeridas experimentam sentimentos de controle sobre si mesmas, de força, de liberdade, de excitação, de sociabilidade e de prazer).

De um leque de mais de cinquenta qualidades ou atributos mencionados na literatura especializada, depois de identificá-los e organizá-los, selecionamos os que pareceram ter maior aceitação, além de alguma consistência e coerência do ponto de vista da Psicologia e dos estudos empíricos, ainda que não estejam suficientemente aprofundados no contexto dos estudos do ócio. Cabe ressaltar que o fato de que um atributo apresente maior aceitação por parte dos autores estudados não significa que tenha um tratamento teórico de melhor qualidade. Por exemplo, o atributo evasão ou separação de uma determinada realidade, que costumamos chamar de ruptura, aparece em quase todas as investigações como um elemento presente nas experiências de ócio, mas não apresentava até então uma conceituação ou descrição que pudesse ser caracterizada como um fenômeno psicológico, o mesmo ocorrendo com o atributo descanso ou relaxamento.

Finalmente, à luz da Psicologia, somos remetidos a destacar onze atributos ou qualidades do ócio, agrupados segundo suas interações psicodinâmicas e impactos sobre os sujeitos protagonistas das experiências e que os caracterizam e diferenciam: 1) percepção de liberdade; 2) motivação ou significado intrínseco (autotelismo); 3) desfrute ou estados afetivos positivos; 4) desenvolvimento humano; 5) sociabilidade ou encontro interpessoal; 6) descanso ou relaxamento; 7) ruptura ou evasão; 8) desafio; 9) implicação psicológica; 10) autoexpressão; e, finalmente, 11) os estados introspectivos: o encontro consigo, a com a natureza ou com a beleza (apreciação estética). Cabe ainda esclarecer que tais atributos são sustentados pela literatura, incluindo estudos empíricos e científicos do fenômeno, através dos quais se constatou que basta que o sujeito perceba a presença de três ou quatro destes atributos no mesmo contexto para que se afirme se tratar de uma experiência de ócio.

Com esta breve apresentação dos principais atributos psicossociais das experiências de ócio encerramos esta reflexão, sabedores, contudo, de que, do ponto de vista da construção do conhecimento, cada um deles merece ser aprofundado e pode ser confrontado com as diversas realidades.

 

Referências

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Recebido em 16 de março de 2009
Aceito em 08 de junho de 2009
Revisado em 12 de julho de 2009

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