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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.9 no.4 Fortaleza Dec. 2009

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Graffiti e cidade: sentidos da intervenção urbana e o processo de constituição dos sujeitos

 

 

Janaina Rocha FurtadoI; Andréa Vieira ZanellaII

IMestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). End.: R. Laurindo Januário da Silveira, 2230. Lagoa da Conceição-Canto da Lagoa. Florianópolis-SC. Email: janarf1@yahoo.com.br
IIDoutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). End.: Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Campus Universitário - Trindade Florianópolis-SC. CEP: 88040-500. Email: azanella@cfh.ufsc.br

 

 


RESUMO

O graffiti se apresenta como forma de intervenção urbana e expressão estética recorrente em cidades do mundo inteiro. Objetivou-se, a partir de entrevistas com seis grafiteiros da cidade de Florianópolis, investigar os sentidos atribuídos ao graffiti e os percursos de vida que os levaram à atividade do graffiti urbano. Para análise das entrevistas, utilizou-se análise de discurso com referencial teórico de Bakhtin e Vigotski. Foi possível constatar que, da pichação-diversão na juventude em que vislumbravam maneiras outras de viver no urbano, os jovens aproximaram-se do graffiti. Graffiti para eles é lazer e meio pelo qual se comunicam com a cidade e com seus transeuntes; buscam reconhecimento social e protestam contra as condições de vida da população com uma atividade reconhecida, por muitos deles, como arte. Foi possível observar que graffitar para eles é permeado por sentidos que se diferenciam dos já conhecidos, denotando pessoas que se relacionam com o mundo significativamente, constituindo-se sujeitos possíveis no urbano por meio desses sentidos muitas vezes revisitados. Sentidos construídos pela e nas suas histórias particulares.

Palavras-chave: cidade, graffiti, arte urbana, sentidos, constituição do sujeito.


ABSTRACT

The graffiti present itself as a form of urban intervention and aesthetics expression very that appears frequently in cities of the whole world. This article objected, from six interviews with graffitists of Florianópolis' city, to investigate the senses attributed to the graffiti and the life courses that took the graffitists to the urban graffiti activity. To analyze the interviews, was used the speech analysis, from Bakhtin´s and Vigotski´s as theoretical referential. It was observed that, of the graffiti-amusement in the youth, in which they glimpsed another ways of live in the urban, the young people got closer to the graffiti. For them, graffiti is also leisure and a way to communicate with the city and with the transients; they look for social recognition and they protest about the conditions of life of the population with an activity identified, for many graffitists, as art. We can observed that the activity that the graffitists accomplishes have singulars senses, denoting individuals that have a significant relation with the world, being constituted possible individuals in the urban for middle those senses revisited. Senses that are built in the peculiar histories of the investigated graffitists.

Keywords: city, graffiti, urban art, senses, subject constitution.


 

 

Introdução

A vida nas cidades é marcada pelos afazeres e transações econômico-comerciais nas quais as ruas, estradas e avenidas se apresentam como meios de conexão onde o vai-e-vem, de lá-pra-cá de uma e outra atividade, são intensos e constantes. Algumas vezes sobra tempo para os divertimentos e lazeres, frequentemente bastante custosos. Isto quando os citadinos, e não são todos, possuem o devido acesso aos equipamentos culturais ou de lazer e podem usufruir as produções culturais contemporâneas e bens coletivos nacionais e internacionais, locais ou globais. De modo geral, encontram-se imersos na característica e costumeira fragmentação urbana na qual alguns se reconhecem e outros não.

Embora possamos dizer que está cada vez mais dura, a cidade não está morta. Constitui-se espaço geográfico significativo de ação e possibilidade social de engajamento. A cidade é universo de relações, de encontros, vive, pulsa, e as relações que ali se delineiam vão muito além do desempenho de atividades prático-utilitárias, no interlúdio entre casa e trabalho, casa e escola. Do caos imagético, da fragmentação territorial, do acúmulo e superficialidade de signos, a cidade se ergue em suas pungentes possibilidades. Nela sensibilidades recriadas se inauguram e nela atuam vários grupos heterogêneos que criam, renovam, implicam-se e resistem ao instituído, buscando potencialidades outras de viver e reencantar o cotidiano. É preciso que se pergunte por esses grupos e se pergunte sobre os tantos processos criativos que têm a cidade como contexto e como lugar de atuação, de constituição de práticas e de redes coletivas de significação, que permitem ultrapassar e questionar o que se apresenta inventando uma outra cidade.

Nossas indagações se estendem justamente sobre os modos como estes espaços vêm sendo produzidos continuamente e as maneiras possíveis de resgatar/instituir valores que possibilitam outras formas de existência, calcadas na produção do coletivo e do bem-comum. Consideramos o graffiti1 e a pichação urbana manifestações emergentes de grupos e pessoas que, ao intervir na cidade, produzem uma cidade outra. Entre vários aspectos, seja pelas imagens figurativas, palavras de ordem, nomes de grupos, pelas intervenções em lugares inóspitos, desacreditados, os grafiteiros e pichadores irrompem a ordem do discurso urbano, criando e recriando a/na cidade.

Se é difícil encontrar uma cidade sem graffitis e pichações, não se pode falar o mesmo de artigos em periódicos nacionais que tratem do tema. Em pesquisa realizada em periódicos nacionais no Portal da Capes2 foi possível encontrar apenas três artigos que tratam do tema: questões de gênero em grafittis de banheiro (Teixeira & Otta, 1998), opinião dos alunos de Direito de Recife sobre a pena de açoite para pichadores (Oliveira, 1999) e sobre violência escolar no Brasil (Sposito, 2001).

Em Florianópolis/SC é possível perceber as marcas de graffiti em várias localidades, delineando um movimento que propõe vários questionamentos sobre as relações entre seus habitantes e a cidade, sobre os grupos que nela transitam e dialogam com o espaço e com os objetos cotidianos. No sentido das reflexões que vêm sendo realizadas sobre esta temática, neste artigo nos propomos a responder às seguintes perguntas: Quais os sentidos desta criação para os seus criadores, ou seja, os grafiteiros? Quais são suas histórias, condições e motivos que os levam a grafitar e/ou pichar os espaços urbanos?

 

Graffiti e constituição dos sujeitos

O costume de escrever nomes ou fazer desenhos em lugares e propriedades públicas é muito antigo e acompanha a história da humanidade. Na Arqueologia, como se pode observar nas análises de Funari (1999) sobre as inscrições pompeianas, utiliza-se o termo graffiti para referir-se aos riscos, desenhos e sulcos nas paredes de pedra. Estes traços antigos diferem profundamente dos graffitis contemporâneos que apareceram inicialmente na Europa no auge do movimento estudantil da década de 60, espalhando-se posteriormente por diversos países. A utilização de outros materiais na produção do graffiti, como sprays, pincéis, tintas e giz, configura, nas sociedades atuais, novas formatações estéticas, objetivos políticos e aspirações culturais.

Com frases demarcadamente poético-ideológicas, as escritas urbanas feitas com spray nos muros das cidades européias, no decorrer da década de 60, eram ousadamente contestadoras e se posicionavam contra o sistema político vigente por meio de frases lúdicas, sutis e plenas de criatividade libertária. Sem predominância multicolorida e muitas vezes com letras e desenhos abstratos, em forma de palavras, frases e slogans, estes graffitis continham críticas ao contexto industrial e impessoal dos grandes centros urbanos, à falta de interesse político na resolução dos problemas sociais e as demais agruras da vida na sociedade moderna.

No Brasil, o graffiti apareceu há quase cinquenta anos, tal como na Europa, como forma de inscrição política e crítica à repressão imposta pela ditadura militar dos anos 60 do século XX. Buscava, com sua estética própria, por meio de fortes representações visuais urbanas, instituir novas liberdades democráticas e opinar sobre o sistema e sobre a realidade vivida. Constituía-se, então, como um movimento de contracultura, invertendo e transgredindo os espaços oficiais de exposição artística, de diálogo e discussão no interior das cidades.

Nos Estados Unidos e na Europa o termo graffiti refere-se, comumente, a toda escrita urbana, aos rabiscos nos metrôs, banheiros, nomes de gangs, tags que são assinaturas em spray dos writers ou escritores de rua, imagens elaboradas e, em alguns casos, à arte de rua ou muralismo. No Brasil, no entanto, configurou-se uma diferença entre atividades de graffiti e pichação e alguns autores apontam essa distinção (Gitahy, 1999; Lara, 1996; Lodi, 2003; Ramos, 1994). No campo das contradições e pluralidades entre escrita e desenho figurativo, o graffiti pode ser considerado tanto como uma forma de "pichação evoluída", como uma modalidade de expressão estética sem territórios pré-fixados e que não exclui a pichação, mas que pode se diferenciar dela como prática urbana.

Segundo Lara (1996), aos poucos a pichação deixou de ser sinônimo de graffiti e passou a cunhar um estilo próprio, espalhando-se por toda a cidade de São Paulo na década de 90. Novos grupos foram surgindo, usando a pichação como uma forma de identificação que diferenciava suas próprias inscrições das feitas por outros grupos.

O desenvolvimento da pichação teria se dado por imitação dos grupos que tentavam conquistar territórios no meio urbano. Já o graffiti apareceu em São Paulo na década de 70, mais ligado aos grupos de artistas plásticos e ganhou as características iconográficas que marcam a grafitagem realizada e difundida no Brasil, com as tendências artísticas trazidas por Alex Vallauri dos Estados Unidos. Suas criações, feitas com máscaras nos arredores da cidade de São Paulo, privilegiavam os contornos das figuras e brincavam com os objetos do cotidiano.

A partir da década de 90, o graffiti e a pichação, com suas letras desenhadas, dispersaram-se por vários espaços da cidade e foram abertamente disseminados por movimentos como o Hip Hop. Segundo Lara (1996), aos poucos o graffiti e a pichação foram saindo de certa clandestinidade e ganhando novos adeptos, geralmente jovens de camadas populares, e assumindo novas configurações e outros códigos de linguagem. Esta terceira geração do graffiti, mesmo utilizando as referências do graffiti iniciado por Vallauri, enxerta conteúdos diferentes e se profissionaliza cada vez mais com o acesso a novas tecnologias, utilizando vídeos, fotografias, filmes, entre outros recursos, para elaborar uma confecção diferenciada de graffiti. Da ironia e ludicidade do graffiti da década de 80, o graffiti dos anos 90 valoriza a rapidez e facilidade das cópias, priorizando o aspecto ilustrativo, divergindo da proposta de Vallauri nos anos anteriores.

No graffiti palavras desenham palavras, imagens usam e abusam do espaço urbano e o corpo se enlaça em uma coreografia diferente. Reencantam-se os espaços, recriam-se sujeitos e as possibilidades do diálogo entre expressões artísticas, cidade e vivência cotidiana. Das palavras às imagens super elaboradas, o graffiti impõe uma nova apreensão ética-estética da cidade e reclama novos sentidos. Novos sujeitos são constituídos via atividade criadora que, ao mesmo tempo em que transformam muros, paredes, ruas e avenidas, transformam os próprios sujeitos da ação.

Nestes diferentes momentos em que aparece na história humana, o graffiti reflete contextos diversos nos quais se implicam as condições sociais específicas de sua produção. Isto porque os sujeitos que o realizam são sujeitos históricos, que criam balizados pelas determinações políticas, sociais, econômicas e estéticas de sua época.

No movimento da atividade criadora, os sujeitos atuam sobre a realidade e modificam suas relações com o contexto na mesma medida em que se transformam enquanto sujeitos, apropriando-se de novas formas de se relacionar com o mundo, consigo mesmos e com os outros. A atividade humana sobre a natureza no processo de produção de cultura objetiva o ser humano e ao mesmo tempo o subjetiva, tornando a realidade humanizada e humanizando o sujeito que nela se empreende (Zanella, 2004). Trata-se de sujeitos inexoravelmente sociais que, inseridos historicamente em uma cultura, singularizam-se e humanizam-se continuamente no movimento de apropriação dos modos sociais e coletivos nela existentes.

Para a Psicologia Histórico-Cultural, os processos psicológicos se constituem via relações sociais que, propriamente humanas, são mediadas pela linguagem, ou seja, por processos de significação plurais, contraditórios, polissêmicos que possibilitam sua constituição. Grafitar/pichar a cidade são atividades que objetivam/subjetivam seus criadores, ao mesmo tempo em que, como signos linguísticos, se apresentam à leitura de transeuntes que podem, com estes, vir a se relacionar e subjetivar.

 

Método

O presente artigo resulta de uma pesquisa de mestrado realizada nos anos de 2005 a 2007, na qual objetivávamos compreender como ocorre o processo de criação no graffiti urbano de Florianópolis (Furtado, 2007). Neste período, a pesquisadora entrou em contato com grafiteiros por meio de uma loja de roupas que estava localizada no centro da cidade e era ponto de encontro de muitos grafiteiros. Neste local, conhecemos os primeiros sujeitos da pesquisa, Lui e Alan. Irmãos e donos da loja, eles apresentaram a pesquisadora a outros grafiteiros, com os quais também foram realizadas entrevistas.

Constituíram material analisado as entrevistas abertas realizadas com seis grafiteiros da cidade de Florianópolis, todos do sexo masculino, com idades entre 20 a 29 anos e pertencentes a diversas crews, denominação esta utilizada para designar os grupos ou galeras de graffiti da cidade. Todos eles nasceram e viveram parte de suas vidas em outros municípios ou estados e, na época, estavam morando em Florianópolis há alguns anos. Quase todos trabalhavam no comércio, e o salário era utilizado para pagar suas despesas mensais. Um deles, Ner, estava cursando o ensino médio; outros já haviam terminado os estudos. Grafitavam em diversas localidades da cidade, geralmente no centro, mas também em outros bairros, inclusive nos quais moravam.

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas com a devida autorização dos participantes3. Foram marcadas por telefone ou pessoalmente no momento em que a pesquisadora foi apresentada ao grafiteiro. Estas entrevistas ocorreram em diferentes lugares, conforme a escolha dos sujeitos entrevistados, mas geralmente na própria rua onde eles realizavam seus trabalhos.

O processo de análise aconteceu desde o primeiro contato que a pesquisadora estabeleceu com os sujeitos da pesquisa. Segundo Oliveira, "a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo" (Oliveira, 2000, p.19). Buscou-se, a partir de regularidades e diferenças nas respostas dos sujeitos às entrevistas e das observações realizadas, identificar temas, relações e dimensões, configurando unidades de análises que me permitiram descrever e compreender as atividades dos grafiteiros, os sentidos a elas atribuídos e as características das relações interpessoais ali estabelecidas.

O procedimento utilizado para interpretação das entrevistas foi a análise do discurso, partindo das teorias de Bakhtin (1990) e Vigotski (2000). Optou-se por esta perspectiva metodológica porque ela possibilita investigar a materialidade discursiva a partir de suas condições de produção.

Para os autores, a palavra resulta sempre da interação de sujeitos, devidamente localizados numa determinada situação social, e opera na realidade e nos sujeitos ali envolvidos. Os diversos sentidos nela implicados, por ser a palavra sempre polissêmica, só podem ser compreendidos, portanto, dialogicamente, dentro do contexto em que são proferidas. Assim sendo, a análise é realizada a partir dos sentidos produzidos entre os sujeitos pesquisados e o sujeito pesquisador, não estando em um nem em outro, mas na relação entre eles, no entre. O que define a especificidade dialógica do discurso é que ele sempre se constitui nesta relação de alteridade, refratando e refletindo uma dada realidade onde eu/outro se interpenetram, se definem, sem, no entanto, se fundirem.

De forma geral, a análise realizada buscou compreender os diversos enunciados que aparecem no processo de enunciação dos sujeitos, assim como as condições materiais que fazem emergir tais enunciados e não outros. Procurou também os sentidos que são produzidos no processo de interação dos sujeitos e deles com a pesquisadora, descrevendo os diversos gêneros discursos que inscrevem a fala e também caracterizam o lugar social destes mesmos sujeitos e as criações que realizam na própria língua. Essencial enfocar que tais interpretações precisam sempre partir dos textos e de suas evidências, sendo o texto, nesse sentido, ponto de partida e de chegada.

 

O tornar-se sujeito possível no graffiti e os sentidos da atividade

Ao iniciar as entrevistas perguntando como começaram a grafitar, almejávamos compreender as condições que atuaram como determinantes na formação dos sujeitos grafiteiros. Não pretendíamos encontrar nas suas falas enunciações de episódios definidores, originários, nos quais o graffiti tenha se apresentado como uma opção de vida inquestionável. Dentre tantos acontecimentos diversos e, por vezes, confusos, desejos e afetos implicados e implicantes do estar vivo, deparamo-nos muito mais com contingências de vida, acontecimentos que contagiam, implicam-se e se impregnam na vida de cada um, agindo como materialidade potencializadora de sujeitos em devir, em contextos singulares de existência.

Foi na pichação, como atividade constituinte e constituidora dos espaços urbanos em que estes sujeitos experienciavam suas próprias juventudes, que se delinearam os processos de identificação possibilitadores da constituição do ser futuro grafiteiro. Esse grafiteiro que, ao narrar sua história, a ressignificou e a reorganizou ao mesmo tempo em que se ressignificou nela. Fundamental esclarecer que os sentidos do grafitar aparecem na interlocução com os sentidos da pichação. Tais sentidos primeiros se reforçam, se ampliam ou se modificam na relação com esta última, em condições intercambiantes e interdependentes de composição nas quais estes mesmos sujeitos oscilam entre uma e outra atividade.

Na idade entre onze e quatorze anos, quando estar em grupo e sair com os amigos se tornou necessidade imperativa e a cidade praticamente não oferecia opções de lazer ou entretenimento para a juventude das classes sociais desfavorecidas, é que as latinhas de spray ganharam vida, animando-se nas mãos desses jovens ansiosos por alguma espécie de diversão. Todos narram esse primeiro momento como uma busca por divertimento, divertimento coletivo e compartilhado pelo grupo de amigos do qual faziam parte.

Lai descreve esse contexto quando fala de suas primeiras experiências na pichação em São Paulo. Diz:

Lá em São Paulo é muito complicado porque é uma cidade em que você tem que ter dinheiro pra fazer tudo. Tudo. Eu trabalhava de office boy, meus amigos também, e a maioria, por incrível que pareça, era de pais separados. E a gente pegava a nossa grana e, ao invés de curtir uma balada que é entrar e só, não podia fazer mais nada porque não tinha muita grana. Então, a gente comprava umas latinhas e saia arregaçando, era a nossa diversão. Era pura diversão, não tinha opção de lazer.

Lai relata como, aos quatorze anos de idade, trabalhando como office boy durante o dia, a pichação se apresentava como um entretenimento pouco oneroso. Segundo Bakhtin (1990, p.109), o ato de fala, ou, mais exatamente seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como ato individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir de condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.

De modo que, ao falar de si, Lai reflete uma realidade social mais ampla que opera na produção do seu discurso: o fato de a cidade, grande e populosa, apresentar-se restrita nas suas possibilidades de lazer para um contingente urbano que não possui as condições necessárias para usufruir dos serviços disponíveis; cidade onde o acesso a esportes, cultura e outras opções de lazer não é possível aos moradores das periferias urbanas.

Alguns pesquisadores (Abramo, 1994; Vianna, 1997) apontam também que o surgimento de muitos grupos juvenis urbanos, nas últimas décadas, articula-se fundamentalmente às dimensões ou redes de sociabilidade, somada à busca de certa inovação estética por parte desses grupos, como meio para a elaboração simbólica e crítica de seu tempo. Isto acontece à medida que estas manifestações se apresentam como uma forma de resposta à organização social que delimita e estrutura o universo juvenil. Muitos almejam uma via alternativa para a constituição de si, o que frequentemente ocorre nas atividades de lazer (Magnani, 1996), nas quais encontram espaços para tal manifestação.

Japão igualmente se referiu ao início na pichação como um período de diversão. Havia sido convidado pelos primos que moravam em São Paulo para pichar quando ele fosse para lá visitá-los e, não querendo ir sem nunca ter pegado em uma latinha de spray, começou treinando no papel e depois nos muros do bairro em que ainda mora em Florianópolis. Afirma: "Na época eu não pichava, só fazendo papel. Eu comecei fazendo aqui pra chegar lá não tão sem saber nada. Começamos então, era só zoeira, curtição. Não tinha nada sério. Eu era um molecão também, tinha onze ou doze anos"

Pelas entrevistas, compreende-se que a pichação não surgiu de uma hora para outra na vida desses sujeitos, mas foi se delineando como opção dentro dos contextos em que, de certa forma, ela já era reconhecida ou compartilhada. Japão citou os primos que já pichavam, e Lyn mencionou a pichação como uma atividade do bairro: "Comecei com a pichação, né? Onde eu morava, quando a gente cresceu, a galera cresceu fazendo a pichação, que era um negócio do bairro"

Nos espaços em que viviam, transitavam e partilhavam experiências, a pichação se apresentava como um fato do cotidiano e tornar-se pichador, como para os outros jovens, era tornar-se partícipe de um costume local e identificar-se com práticas sociais específicas de determinados grupos, estabelecendo outras relações com a própria cidade. A pichação fazia parte da realidade vivida, experimentada e ocupada, e a partir dela esses jovens se apropriaram de possibilidades de ação e diversão no urbano, manifestando-se por meio de intervenções, ditas ilícitas, seus processos particulares de ser jovem e de apreender-se como sujeito citadino.

Com os discursos é possível afirmar que, ao mesmo tempo em que o sujeito habita a cidade, a cidade também o habita, pois ambos se constituem mutuamente. As vivências urbanas e as relações possibilitadas pela cidade participam do processo de construir-se sujeito nestes espaços, a partir de certas condições específicas de existência. De um contexto mais geral, Lara (1996) situa a pichação na década de 80 como ficando restrita ao público de periferia, aos office boys, bandas e turmas de bairro que buscavam formas de diversão e de identificação grupal.

Contudo, se as condições sociais dos moradores das periferias urbanas se constituem como condições de possibilidade do tornar-se pichador, uma vez mesmo que a pichação é ali uma atividade reconhecida e, segundo Gitahy (1999), pela qual se pode expressar o descontentamento social vivido nestes lugares, a escolha de tornar-se pichador e filiar-se a grupos de pichação não está exclusivamente relacionada ao desfavorecimento social experimentado por grande parcela da população brasileira.

É possível afirmar essa asserção ao se analisar o discurso de Lai, quando reivindica sua posição de escolha de sua condição ao afirmar: "Eu sempre trabalhei mesmo sendo pichador. Tem uma frase que eu gosto bastante que é eu sou vândalo por opção, não por escassez. É por opção mesmo, porque eu quero. Não é revolta".

Ao enunciar que escolheu ser vândalo porque quis e não por escassez e nem por revolta, Lai defende para si um lugar de sujeito ativo, responsável por suas ações, suas escolhas, e pelo seu modo de existência. Entretanto, consideramos que esse mesmo discurso refere-se a um contexto que possibilitou, enquanto materialidade apropriada e significada, a sua escolha. Circunscrita também pela necessidade de, sendo jovem no urbano, agrupar-se a outros jovens, identificar-se e participar de atividades de lazer, onde o tornar-se vândalo, pichador, é também estar junto e, junto com outros jovens, romper com uma dada ordem estética e simbólica dos espaços urbanos, promovendo para si e para seu grupo novos espaços nos quais, ao modificar a realidade vivida, esses mesmos jovens transformaram-se ao mesmo tempo enquanto sujeitos, em devires pichadores, em devires jovens, construindo uma cidade sempre em devir.

O enunciado de Lai também faz um pedido: o pedido de não ser visto como uma pessoa sem qualificação para escolher por condições de vida desfavoráveis ou por carência que o levaram, em uma relação causal e direta, à revolta social. É claro, em relação a isso: sempre trabalhou e em casa nunca lhe faltou nada. Neste sentido, a pichação se configurou para ele como uma opção de vida deliberada. Um lazer, uma diversão, que o lança no mundo e que, para além do que está explícito no seu enunciado, mas a partir de sua própria práxis, o faz ser apreendido como sujeito de reivindicação, que se implica sim em práticas de revolta, resistindo a uma dada ordem social que organiza o universo juvenil no urbano.

Na medida em que a pichação passa a fazer parte cada vez mais de suas vidas, à atividade são atribuídos outros sentidos. A diversão não é uma diversão por si mesma, mas porque implica outros afetos, outros sentimentos, apóia-se nestes outros sentidos que vão constituindo o desejo de continuar a pichar e, num momento posterior, para a maior parte dos grafiteiros entrevistados, desenvolver o graffiti como outra forma de intervenção urbana. O sentido da pichação como diversão precisa ser compreendido, também, a partir de um ato de fala em que o sujeito se revisita no que antes realizava, denotando-lhe um sentido a partir de outro lugar, o atual lugar de grafiteiro em que os sentidos daquela atividade se reconfiguram na interlocução com os sentidos da atividade atual.

Na sequência da fala em que se reporta à pichação como opção de divertimento, Lai reitera dizendo que:

Depois começou o lado do ibope que é de levantar o nome Nada Somos e vamos mostrar aqui pra cidade a nossa cara. Mostrar que tem um monte de poluição visual aí, McDonalds, Bob's, porque a gente não pode fazer a nossa? Era o grito dos jovens implorando por cultura, arte, era pichação.

Na pichação, há os grupos, crews (galeras ou grupo de escritores de rua) aos quais os pichadores aderem e a partir das quais o pichar configura-se como uma atividade autoral filiada: quem picha assina nos muros, paredes, portas, os nomes de suas crews. Os pichadores criam letras diferentes para bombardear a cidade com o nome da crew a qual pertencem. Quanto mais tal nome aparece, nos lugares mais diversos, inóspitos e difíceis de pichar, mais reconhecimento social tem a crew. Se, por um lado, Lai reafirma a deficiência no acesso ao lazer, à cultura e à arte; por outro, ele coloca a pichação e as disputas internas por reconhecimento, entre as crews, como um movimento de resistência aos modos como os espaços da cidade são utilizados e por quem são utilizados.

"Por que a gente não pode fazer a nossa?" Lai se pergunta por que grandes empresas podem poluir a cidade com cartazes, outdoor's e propagandas na busca de vender mais os seus produtos, e eles, jovens que fazem da inscrição urbana uma arte, não podem preencher a cidade com suas assinaturas. Assinaturas que lhes promovem, porém não resultam no reconhecimento social da maioria da população, das instituições governamentais e dos planejadores e arquitetos urbanos, que partem de princípios padronizantes, homogeneizantes e racionais em relação aos modos de organização e estruturação urbana. Ao buscar reconhecimento dentro de seus próprios grupos, atuando na cidade, reivindicam espaços que também são seus, aos quais pertencem e nos quais afirmam suas próprias existências. Na busca de marcar no espaço a sua própria autoria, e, de certa forma dizer, "eu passei aqui, eu existo e esse é meu grupo", o sujeito se constitui sujeito agente na cidade, demarcando seus territórios.

O reconhecimento se define tanto pelo ibope da crew, como pelo reconhecimento do trabalho de cada pichador ou grafiteiro, uma vez que cada um cria sua forma singular de fazer a assinatura. Conforme as letras ou cores usadas, são os outros grafiteiros e pichadores que reconhecem quem fez o trabalho. Muitas dessas letras apresentam-se ilegíveis para quem não faz parte desses grupos. Ao serem reconhecidos, os grafiteiros se reconhecem, pois é na relação com os outros que cada ser humano, mediado por essas relações, se apropria dos sentidos do seu fazer e de seu lugar no mundo.

 

Novos sentidos: da pichação ao graffiti

A procura pelo divertimento e reconhecimento entre os pares não se extingue com o passar dos anos, não se torna algo que faziam quando adolescentes e que depois largaram para fazer outras coisas. A atividade que realizavam se tornou mediadora significativa para um devir grafiteiro, a partir da qual arranjaram outros modos particulares de ver a realidade e agir nela. Lai, Japão e Lui relataram que não fazem a pichação como antes, optando mais pelas técnicas do graffiti e da forma como este intervém na cidade. Isso foi acontecendo conforme foram desenvolvendo outras técnicas de desenho e aperfeiçoando as letras, e também na medida em que problematizaram a atividade que faziam. Lai e Japão ainda fazem os bombardeios, como dizem, uma forma de expressão típica da pichação, mas no graffiti foram buscando outras possibilidades de se relacionar com o meio urbano.

Depois de prestar alguns serviços comunitários, Lai e alguns amigos de São Paulo criaram a crew "2000 família", que ele assina em Florianópolis/ SC, e a partir da qual passou a desenvolver mais o graffiti. Adaptou as letras que fazia na pichação para o graffiti, na tentativa de fazer uma fusão entre as duas formas de expressão, e começou a trabalhar mais com produções, em muros autorizados ou muros degradados, além de alguns trabalhos junto à comunidade.

Japão e Pablo, ainda quando faziam parte da crew de pichadores OSMTR, fizeram um graffiti em uma pista de skate da cidade. Nesta ocasião, depois de aperceberem-se do resultado do trabalho, pois era um graffiti bem elaborado e que se reportava à realidade em que viviam na comunidade, começaram a reconsiderar a pichação, procurando por meio do graffiti uma forma de passar mensagens para a sociedade. Depois de dois anos parados por conta de um problema de saúde, os dois criaram a crew LD, de Ldrão.

Nesse movimento de passar da pichação para o graffiti, esta última descortinava-lhes muitas possibilidades de atuação nos espaços urbanos e, dentro disso, novos sentidos apareciam. O graffiti viabilizou a constituição de novas relações significativas nas quais estes sujeitos se construíram e se desconstruíram em um movimento contínuo de objetivações e subjetivações. Ao contarem como o nome Ldrão surgiu, Japão relata:

Ld é a sigla e Ldrão é o nome. Surgiu da gíria que tem na periferia "e aí ldrão", mas não ligado ao ladrão de roubar, mas de chamar o cara. Daí com tempo veio o conceito de estar roubando um muro. Estar roubando um muro, resgatando e entregando pra comunidade um muro com arte. (...) Muita gente achava que tava ligado ao crime, a única coisa ligada ao crime é roubar os muros.

O graffiti se apresenta, então, como essa atividade de roubar um muro, resgatá-lo e entregá-lo com arte. Se Lai propunha um questionamento sobre quem seria o dono dos espaços da cidade e por que eles não poderiam pichá-los, Japão propõe o grafiteiro como aquele que rouba os muros para transformá-los com arte, devolvendo para a comunidade um espaço revitalizado.

A partir da Ldrão e de que podiam fazer algo mais do que curtir, eles optaram pelo graffiti como uma forma de passar uma mensagem pro-positiva para a comunidade tanto por meio dos muros resgatados como pela mensagem explícita nas próprias produções. O rato, símbolo da crew Ldrão, representa também o grafiteiro como sobrevivente no meio urbano. Em conversas que tivemos quando se objetivou fotografar o rato desenhado em uma parede no seu bairro, Japão e Pablo reafirmaram essa posição do sujeito grafiteiro, como aquele que precisa estar sempre fugindo da polícia e fazendo sua arte sobreviver.

De fato, não seriam os grafiteiros sobreviventes do meio urbano? O graffiti e a pichação não são mesmo concebidos como movimentos de transgressão urbana, nos quais os grafiteiros burlam normas sociais de intervenção nestes espaços? Isso ocorre justamente porque o graffiti e a pichação criticam a estrutura da cidade, suas territorialidades, suas regulamentações, seus espaços definidos de expressão, comunicação e diálogo, e constituem linhas de fuga e resistência dentro das propostas padronizadas, funcionais e restritivas de organização urbana. De acordo com Orlandi (2004), estas atividades possibilitam novas posições-sujeito no discurso urbano, uma outra narratividade na qual podemos perceber o real da cidade, como espaço de sujeitos e de sentidos vários.

A cidade é o lugar onde o público e o privado, o sujeito e a coletividade se imbricam, onde as condições, as forças potencializadoras das ações humanas se articulam. Segundo Milton Santos (1996), todo e qualquer espaço é uma manifestação socialmente plena da experiência humana e, sendo assim, a cidade não pode ser compreendida como espaço físico apenas, mas espaço de significação humana. Espaços nos quais os sujeitos interagem uns com os outros, com o meio e seus signos, construindo suas próprias maneiras de significar suas vivências e agir a partir delas. Ao resgatar os muros, ao reivindicar espaços de fala e de afirmação enquanto sujeitos que também habitam e vivenciam os espaços da cidade, estes sujeitos grafiteiros produzem novos sentidos do e no urbano, bem como ressignificam a si mesmos como sujeitos possíveis na cidade, sujeitos possíveis no graffiti.

Lai acredita que por meio do graffiti, da sua criação e objetivação dessa mesma criação em determinados espaços, é possível mostrar a realidade sofrida por ele observada, e pela qual ele intevém no espaço, ressignificando-o e promovendo outras formas de significação para as pessoas que nele vivem.

Ao atuar no espaço, os grafiteiros atuam sobre si mesmos, reconhecendo como sua a posição de mudar a realidade. Ao mesmo tempo em que enunciam, muitas vezes, um nós, nós grafiteiros, essas outras vozes que se implicam na luta pela construção de outra realidade social, sem por isso ganhar e com isso valorizando sua própria ação, ação de grafiteiro, levantando a função do graffiti no contexto mais amplo da sociedade.

Se eles nada ganham materialmente, e todos os grafiteiros relatam tirar o dinheiro do próprio bolso para realizar seus graffitis, os graffitis e pichações que realizam propõem reflexões que vão da intervenção nos espaços urbanos e os questionamentos quanto à sua organização, às reivindicações por outras condições de vida para a população.

Nessa mesma dimensão, mas em uma perspectiva diferente do graffiti, Lyn afirma:

Tens que ver que alguns grafiteiros e pichadores dão valor pra coisa ilegal, tem gente que gosta do protesto. Tem gente que não quer se encaixar na sociedade. Eu mesmo, eu faço coisas pra eles pra ganhar dinheiro, mas se eu puder fazer ilegal, fazer o que eu quero e não estar na sociedade nunca (...) Eu não gosto de pichar em monumentos e coisa, mas eu to falando mais das pessoas que pagam sapo pra babilônia, para o sistema. É massa tu deixar a conotação de protesto também.

Todo dizer, mais do que um gesto de linguagem, é um gesto político e ideológico, como diria Bakhtin (1990), e na fala de Lyn há uma postura clara e explícita do que acredita: a pichação e a prática ilegal do graffiti são formas de protestar contra o sistema vigente, na medida em que seus praticantes usurpam espaços privados para intervir na cidade e reivindicar um lugar de fala, de expressão. O protesto justifica a ação ilegal do grafiteiro e do pichador que assume, com sua atividade, uma posição axiológica contra uma dada sociedade e em prol de uma outra, a ser reinventada.

 

Graffiti é arte?

Outro sentido comum do graffiti para esses grafiteiros é, como disse Lyn, "(...) uma forma de intervenção válida como arte". Lai, referindo-se a pichadores que passam para o graffiti, também acredita que o graffiti e a pichação são formas de arte. Quando se pergunta quem vê o graffiti, para quem ele faz, Lai diz:

Na rua é assim, eu vejo como se fosse uma galeria de arte a céu aberto. É uma arte que não priva as pessoas. Por exemplo, eu quero ir numa exposição de arte aqui, claro que o tiozinho lá da Tapera, as pessoas menos favorecidas não vão nesses lugares, então o graffiti possibilita que as pessoas vejam a arte. É uma tatuagem na cidade. Vejam a arte de graça, que tá ali. (...) Quantos moleques do Monte Cristo vão no CIC ver uma exposição?4.

Não cabe no escopo deste trabalho discutir se o graffiti é ou não arte, questão complexa que remete a um caloroso debate do qual participam artistas, pesquisadores, críticos de arte (ver Hiriart, 1999). No entanto, cabe destacar que para os sujeitos entrevistados o graffiti é arte, disponível a todos que circulam na cidade, pública e gratuita e, com essa significação, reivindicam um lugar social para o trabalho que realizam. Segundo Bakhtin (1990), a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, com a finalidade de abafar ou ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, tornando o signo monovalente.

Assim sendo, quando Lyn enuncia que a atividade de graffiti/ pichação é "válida como arte", ele se coloca dentro de um contexto em que, mesmo sendo a concepção de arte e não arte arbitrária, o reconhecimento do que vem a ser uma obra não ocorre de forma neutra, pois neste reconhecimento entram em jogo posturas políticas e ideológicas que, na grande maioria das vezes, atendem aos valores de uma classe social que não é aquela a qual pertence.

Se não é possível afirmar o que é arte e o que é não arte, os grafiteiros, ao reconhecerem seu fazer como arte, o valorizam, considerando as contradições que esse mesmo fazer engendra no horizonte social mais amplo. Apropriam-se de suas atividades com a mediação desse sentido "arte" e intervém na cidade a partir dele.

Segundo Benjamin (1996), com o advento da sociedade moderna burguesa, a obra de arte passou a ser apropriada pelo seu valor de distinção social, contribuindo para colocar num plano a parte aqueles que podem aceder à obra autêntica. A experiência da obra de arte era, então, condicionada pela sua aura, pela reverência e distância que impunha, como objeto único, ao observador. E o artista, por sua vez, era considerado como sujeito possuidor de um dom, também único, capaz de produzir obras originais. A criação artística se apresentava vinculada a uma "necessária" individualidade da obra de arte que evocava a presença de um sujeito transformado em autor.

A aura da obra de arte e do artista estava tangenciada pelos valores de uma dada ordem social, cuja separação das demais produções humanas era balizada, assim, por concepções de estética e de criatividade que se assentavam na crença do dom inato da criação e do artista como um mito. A vivência estética estava, por sua vez, eminentemente relacionada a esses objetos artísticos únicos e distantes da experiência cotidiana das pessoas. Estas concepções se implicaram profundamente nos modos como a produção criativa, estética, foi apreendida pela sociedade, repercutindo em sentidos que atravessavam os sujeitos na experiência pessoal dos objetos materiais.

Neste sentido, problematiza-se a criação, particularmente a criação no graffiti, como atividade potencial de qualquer sujeito dentro de certas condições de vida. Traz-se outras concepções de criatividade e viabiliza-se a discussão de que a expressão estética circunda diferentes esferas da vida cotidiana, questionando agrupá-las a valores estanques e sacralizados.

Segundo Schlecht (1995), desde a década de 1990 a mídia brasileira vem promovendo o graffiti como arte, e em decorrência disso, o capital tem incorporado o graffiti em galerias, realizando grandes exposições de arte com graffiti e, mais do que isso, utilizando os símbolos, os códigos e a linguagem do graffiti, subvertendo uma expressão eminentemente marginal e transformando-a em produto comercial. Até que ponto o graffiti deixa de ser graffiti quando sai das ruas? Ou então, ao ser incorporado ou apropriado a uma lógica mercantil, perde sua dimensão de protesto?

Mais do que um conjunto de técnicas e procedimentos, o graffiti é uma intervenção urbana e o suporte da sua atividade é a cidade. De maneira geral, o graffiti comercial é aceito por eles como uma forma de ganhar dinheiro para continuar pintando e fazendo graffiti nas ruas.

Percebe-se que se o tornar-se grafiteiro decorreu de contextos singulares, o continuar a grafitar perpassa outros sentidos, a partir dos quais muitos destes grafiteiros não se veem em outra atividade, não se apreendem não sendo grafiteiros. No graffiti encontraram-se sujeitos possíveis. O graffiti pode ser compreendido como uma atividade que, por sua própria forma de intervenção, a partir do suporte que utiliza, a cidade, passa a mensagem daquilo que os levam a grafitar: determinadas condições de vida de uma parcela da sociedade brasileira, ou melhor, grande parcela.

"Mas, por trás de tudo isso, tem uma causa. Tem uma coisa assim, tem uma pressão" (Lyn). Por trás dos graffitis sem temas sociais explícitos, há um causa, há uma pressão. Os próprios graffitis, apreendidos como signos ideológicos que se inserem no discurso ideológico da própria cidade, nas contradições que este movimento engendra na ordem simbólica vigente nos contextos urbanos nos quais o graffiti é ainda uma prática ilegal, ele passa a sua mensagem. E as mensagens certamente podem ser diversas, desde afirmar à sociedade a existência de seus autores, como mostrar à mesma que na cidade nem todos possuem as mesmas condições.

 

Considerações finais

De modo geral, o tornar-se grafiteiro decorreu de condições de vida nas quais, para a maioria dos entrevistados, a pichação se apresentava atividade cotidiana, impressa nas vivências urbanas que compartilhavam com amigos da juventude. Da pichação ao graffiti, da busca por diversão, lazer, a novas formas de lazer e diversão, sentidos outros se apresentam. No graffiti alguns buscam a liberdade de fazer o que querem e como querem, e outros buscam passar informações para a comunidade por meio do conteúdo dos graffitis. Ambos se comunicam pelo graffiti e o utilizam, talvez, como diria Japão, como uma ferramenta a partir da qual fazem valer um lugar na sociedade, fazem-se vistos, ouvidos e, fazendo ver e ouvir. Graffiti arte, intervenção urbana que inscreve nos muros e paredes as (im)possibilidades em que se (re)produzem grafiteiros no intenso diálogo com a cidade.

No graffiti ocorre, de forma peculiar, o estreitamento das relações entre atividade estética, cidade, política e espaço sob a perspectiva de sujeitos que vivem no próprio contexto da intervenção ou que nele se inserem para inscrever-se no diálogo aberto com a cidade. Através das imagens, o graffiti propõe outra relação com o entorno urbano, questionando, a partir de um olhar estético, os territórios, as regulamentações do espaço e estrutura da cidade e das imagens que nela circulam, assim como os problemas coletivos subsistentes. Na heterogeneidade dos discursos visuais, no silêncio destas conversas urbanas, o graffiti se faz e se refaz na incerteza da permanência ou do apagamento, na duração do olhar que passa, que imagina, que significa o urbano.

Observamos que a atividade de grafitar é permeada por sentidos que denotam pessoas que se relacionam com o mundo significativamente, constituindo-se sujeitos possíveis no urbano por meio desses sentidos muitos vezes revisitados. Sentidos construídos pela e nas suas histórias particulares.

 

Notas

1. Embora o termo graffiti tenha sua versão portuguesa, grafite, utilizou-se aquela designação por dois motivos: diferenciar a atividade graffiti do grafite, variedade alotrópica do carbono, que compõem os lápis; e preservar a forma escrita comumente utilizada pelos grafiteiros para designar a atividade que realizam.

2. Pesquisa realizada em 13/10/2008 em www.periodicos.capes.gov.br, utilizando-se os descritores: grafite, graffiti, pichação e arte urbana.

3. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres Humanos da UFSC em dezembro de 2005. Foi entregue a todos os entrevistados um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, contendo os objetivos da pesquisa e pedindo a autorização dos mesmos para usar seus nomes e imagens.

4. Tapera e Monte Cristo são bairros periféricos de Florianópolis/SC. CIC (Centro Integrado de Cultura) é um amplo espaço municipal onde há sala de cinema, anfiteatro, salas para exposição de artes, e no qual oferecem inúmeras oficinas de artísticas, bem como ocorrem diversos festivais e apresentações culturais.

 

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Recebido em 07 de janeiro de 2009
Aceito em 11 de abril de 2009
Revisado em 09 de maio de 2009

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