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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.1 Fortaleza Mar. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Reflexões sobre as disputas das comunidades científicas pela regulação do campo psi

 

 

Ana Cristina Costa LimaI; Sandra CaponiII; Luzinete Simões MinellaIII

IDoutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Saúde Pública pela UFSC (2006). End.: R. Esteves Junior, 365, bloco C, apto 303. Centro, Florianópolis-SC. Cep: 88015-130. E-mail: lima.anac@gmail.com
IIPós-Doutorado pela Université de Picardie Jules Verne, França (2000), Doutorado (1992) e Mestrado (1989) em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil; Professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Saúde Pública. E-mail: sandracaponi@newsite.com.br
IIIDoutora em Sociologia (UNAM/México) e realizou pós-doutorado na área de Gênero e Saúde (NEPO/Unicamp). Atualmente é profª. adjunta IV aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: luzinete@matrix.com.br

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é problematizar as diferenças epistêmicas entre a medicina psiquiátrica e a psicanálise e como a psiquiatria se utiliza de seu poder-saber médico hegemônico para regular as "verdades" da ciência sobre o comportamento anormal e o psiquismo patológico. O artigo se utiliza de alguns registros emblemáticos para sintetizar uma linha de ação da psiquiatria para manutenção de sua condição majoritária como práxis de intervenção psicológica junto à sociedade. Inicialmente, algumas distinções epistêmicas serão colocadas, a fim de estabelecer as diferenças teóricas e práticas entre as clínicas psicológica, psicanalítica e psiquiátrica, que integram o que Foucault chamou de função-psi. O objetivo é evidenciar que a diversidade de comunidades científicas e os embates sobre o conhecimento da psique humana que se impõem como saber pela clínica são expressões de uma pluralidade epistêmica, com rupturas no método e pressupostos cognitivos da biomedicina. A psicanálise será abordada através da análise da posição de Freud sobre a formação de psicanalistas, ao defender a análise leiga. A partir dessas discussões, será analisada uma matéria publicada em uma revista médica, de 1965, na qual alguns psiquiatras são entrevistados a respeito da legislação da profissão de psicólogo no Brasil. Tanto em relação à psicanálise, no tempo de Freud, como em relação à psicologia, quando de sua regulamentação, as posturas dos psiquiatras são similares, eles consideram perigoso o exercício clínico por profissionais não-médicos, a quem chamam de leigos. A atualidade da discussão transparece na continuidade do debate do projeto de lei do ato médico, há mais de seis anos tramitando no Congresso Nacional.

Palavras-chave: Psicanálise. Psiquiatria. Psicologia clínica. Dissidências. Disputas.


ABSTRACT

The aim of this paper is to trouble the epistemological differences between the psychiatric medicine and the psychoanalysis and since the psychiatry makes use of his medical power-knowledge to regulate the "truths" of the science on the abnormal behaviour and the pathological psyque. The article makes use of some emblematic registers to summarize a line of action of the psychiatry for maintenance of his majority condition like práxis of psychological intervention near the society. Initially, some epistemological distinctions will be put, in order to establish the theoretical and practical differences between the psychological, psychoanalytic and psychiatric clinics, which they integrate what Foucault called a function-psi. The objective is to become evident that the scientific community diversities and the impacts on the knowledge of the human psyque that are imposed like knowing for the clinic they are expressions of an epistemological plurality with ruptures on the method and biomedicine cognitive presupposes. The argument will be placed on the psychoanalysis through Freud's position about the psychoanalyst's formation in defending the lay analysis. From these discussions will be analyzed a paper published in a medical journal in 1965 where some psychiatrists are interviewed about the legislation of the psychologist profession in Brazil. As in relation to psychoanalysis, at Freud's age, as in relation to psychology when it was regulated, the attitudes are similar, since it is considered dangerous the clinical activity in the psy field by non-physician professionals, who are called lays. The updating discussion appear in the debate continuity about the health area regulation by medicine, on the medicine regulation way proposed in two bills being that the last remains more than six years in the National Congress.

Keywords: Psychoanalysis. Psychiatry. Psychology. Dissidences Disputes.


 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é problematizar como o poder-saber médico da psiquiatria se impõe sobre os demais conhecimentos, para regular as "verdades" da ciência sobre o comportamento normal e anormal e o psiquismo patológico. O artigo se utiliza de alguns registros emblemáticos para sintetizar uma linha de ação da psiquiatria para manutenção de sua condição majoritária como práxis de intervenção psicológica junto à sociedade.

Para desenvolver o tema de maneira breve, serão discutidas algumas situações históricas emblemáticas, de modo a tornar compreensível ao leitor que as divergências políticas entre a psiquiatria e outras profissões ou ofícios, cujo objeto de intervenção é o ser psicológico, como a psicologia e a psicanálise, são consequências de disputas entre poderes e saberes. A análise parte de considerar que as questões que podem parecer somente legais estão profundamente intrincadas a diferenças de pensamento e tentativas da medicina, em geral, e da psiquiatria, em particular, de imposição de uma verdade científica sobre o conhecimento da psique humana e as possibilidades de sofrimento e intervenção clínica. A heterogeneidade do conhecimento na área, que se expressa pela quantidade de linhas de pensamento sobre a psique, o sofrimento, a cognição e o comportamento representa um campo em ebulição epistêmica, o que leva a pensar o sujeito como uma construção epistemológica e não um ser em si mesmo, uma natureza dada a priori.

A psicanálise e seus dissidentes, que consideram a existência do inconsciente e sua importância fundamental na formação do sujeito, e os movimentos após a II Guerra Mundial colocam muitas divergências teóricas e propostas clínicas, como a antipsiquiatria, de Cooper e Laing, na Inglaterra; Basaglia, na Itália; Foucault, Guattari, Deleuze, na França; e Szasz, nos Estados Unidos, em meio a tantos outros, pelo fim dos manicômios e por uma clínica psicológica menos invasiva.

A psicanálise realizada por psicanalista não médico foi chamada de análise leiga pelos médicos contemporâneos de Freud. Entende-se, portanto, que o psicanalista é leigo em medicina, mas não em psicanálise, do mesmo modo que o médico é leigo em psicanálise e não em medicina. Chama a atenção que o assunto ainda não tenha sido ultrapassado, sendo que nesses quase 90 anos houve períodos mais contundentes, em que em nome da medicina, em geral, e da psiquiatria, em particular, profissionais e suas instituições tentaram inibir ou coibir as práticas não médicas com pessoas em sofrimento psíquico.

Para evidenciar aspectos da análise leiga foram selecionados alguns dos textos de Freud, bem como o resultado de um evento de psicanalistas, no país, em que reforçam a análise leiga, pelo ofício de psicanalista com formação centrada na análise pessoal e não acadêmica e contra o projeto de lei do ato médico. No tocante à profissão de psicólogo, foi escolhida uma matéria de uma revista médica quando da regulamentação da profissão no país.

A elaboração deste artigo parte de considerar ainda que a medicina, por meio de suas instituições profissionais e de formação, pretende ser o regulador do campo psi, formado por diferentes epistemes que refletem teorias e práxis diversas. A força da verdade de uma comunidade científica majoritária transparece tanto no investimento econômico, na indústria de medicamentos e de aparelhos hospitalares como na formação de opinião. O senso comum, amparado pelos poderes da comunicação (mídia) admite que é óbvio, evidente e natural que o modelo médico convencional, ou tradicional, é a abordagem correta, por excelência, e que o sofrimento psíquico é uma doença que pode acometer qualquer um, ninguém está livre de ficar louco (Foucault, 1961/1999). A clínica com base na biomedicina é, para o senso comum, uma verdade científica, fortalecida tanto pelos profissionais de saúde como pelo poder de formação de opinião dos meios de comunicação, em que os outros saberes, de modo geral, são considerados como complementares, alternativos e muitas vezes até tratados com desprezo, como se fosse charlatanismo ou placebo.

A literatura sobre o tema mostra que desde a antiguidade a loucura chamou a atenção de estudiosos e práticos. Porém, a neurose é interesse de uma modernidade que criou o indivíduo como objeto de estudo1, o que podemos encontrar tanto em livros de psiquiatria, como Kaplan & Sadock's Comprehensive Textbook of Psychiatry (1967/2000) como na História da Loucura na Idade Clássica, de Foucault (1961/1999). No âmbito do amplo debate que se constituiu ao longo de décadas, uma questão tem ocupado um lugar central: existe um limite claro entre loucura e neurose? As respostas a essa questão variam conforme o subcampo psi. Assim, a psicopatologia, na medida em que classifica quadros de sintomas, conforme o DSM IV2 (1994/2009), responde através da classificação dos comportamentos, das condutas e define patologias mentais. Para a psiquiatria a definição de um diagnóstico é fundamental. Enquanto isso, para a psicanálise definir a psicopatologia não só não é fundamental, como pode influir negativamente no sucesso da terapia.

As disputas pela hegemonia de um pensamento sobre outro, de uma episteme sobre outra, podem tornar-se fundamentalistas. Será que as comunidades científicas creem, ainda, que exista uma verdade única possível a ser alcançada com o progresso da ciência, um pensamento típico do século XIX? Parece mais razoável que as disputas das comunidades científicas (Fleck, L. 1936/1986) estejam ligadas a interesses, como o da vaidade e de vantagens pecuniárias, diretas e inseridas no modelo econômico. Podemos pensar que qualquer verdade é contextualizada e transitória, e que rupturas epistêmicas não substituem, simplesmente, o modo de pensar. Pela prática, no campo psi, epistemes diferentes coexistem, mesmo com forças majoritárias em questão, como foi dito. Porém, só é possível que se desenvolvam interrelações nas ciências se houver humildade pessoal e capacidade institucional para expandir o modo de raciocínio e abrangência dos estudos e pesquisas.

O modo de pesquisar e de chegar a resultados sobre as qualidades de uma terapêutica precisa ser coerente com a episteme na qual se baseia. Assim, por exemplo, cremos que não é possível obter resultados assertivos em uma pesquisa sobre a psicanálise, com um método de pesquisa quantitativo. O objeto de pesquisa e o método precisam ter coerência interna, como bem colocam dois psiquiatras brasileiros contemporâneos, Cláudio Osório e Marcelo Fleck, ao defenderem que os métodos de pesquisa em psicoterapia e psicofarmacologia não são os mesmos, haja vista terem pressupostos epistêmicos diferentes, pois "não existe apenas uma maneira de compreender e tratar pessoas com problemas psiquiátricos, e sim diferentes 'perspectivas', 'escolas', 'correntes de pensamento' ou, mesmo adequadamente, 'paradigmas' na psiquiatria" (Osório e Fleck, M. 2005, p. 407).

De forma a problematizar as diferenças entre alguns dos saberes no campo psi e a proposta hegemônica da psiquiatria como profissão, serão abordadas brevemente algumas das críticas à práxis tradicional da psiquiatria, para introduzir o pensamento de Freud sobre a formação do psicanalista e, em seguida, a reação de psiquiatras, que ocupavam cargos de direção de instituições, à regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil. Para finalizar, será resumida a questão dos projetos de lei da medicina, que têm a pretensão de regular as práticas em saúde, inclusive no campo psi.

 

A psiquiatria

A medicina ocidental está estruturada sobre a etiologia e a nosologia das doenças, a saber, a causa das doenças e sua classificação, respectivamente. A clínica diagnóstica se realiza através do conhecido exame do corpo, com exames complementares, prescrição de drogas medicamentosas, cirurgia, internação e prescrição de condutas saudáveis para prevenir doenças. No Brasil, as instituições de regulação da medicina lançaram o Projeto Diretrizes3, com o objetivo de organizar "Diretrizes Médicas baseadas nas evidências científicas disponíveis na atualidade" (s/data, p. 1), contemplando os procedimentos diagnósticos, terapêuticos e preventivos, recomendando ou contraindicando condutas (s/data, p. 2-5).

A história da psiquiatria de Kaplan (1967/2000) " amplamente aceita e estudada em cursos de medicina e especializações em psiquiatria, bem como em cursos de psicologia " nos parece uma história "à moda antiga", traça uma linha mestra de acontecimentos em tempo cronológico, retrata uma psiquiatria que nasce na antiguidade clássica grega e evolui ao correr dos tempos.

De outro ponto de vista, Foucault mostra uma história da psiquiatria (2003/2006b) e da loucura (1961/1999) em que faz o esforço de "não passar os universais pela glosa da história, mas fazer a história passar pelo fio de um pensamento que recusa os universais" (Foucault, 2006c, p. 58, nota de 1979). Nessa dimensão histórica, a psiquiatria nasceu no século XIX, quando médicos assumiram o saber no hospital de alienados, que deixaria de ser um depósito de excluídos para se transformar no lugar de tratamento da alienação, passando a loucura ao status de doença. Ou seja, sem deixar de ser lugar de exclusão, a exclusão passou a ser medicalizada (Foucault, 1961/1999; 2003/2006b).

O doente mental diagnosticado pela psiquiatria não é reconhecido como alguém que detém saberes sobre seu próprio sofrimento. Laing, antipsiquiatra escocês, afirma que a química do corpo é uma contingência de ressonância da situação social e psicológica, ambiental e comunicacional dos seres vivos, é sensível a tudo o que acontece com a pessoa. Considera um erro classificar e diagnosticar as pessoas e o que elas apresentam. De acordo com esse autor, não é possível definir apenas com palavras, como psicossocial, psicossomático ou uma classificação em psicopatologias, se o outro diante de mim não for visto como pessoa igual a mim " ao invés de organismo em seus planos de complexidade molecular, celular, sistêmico ou orgânico ", um agente autônomo, capaz de optar e que traz consigo experiências (Laing, 1960/1975, p. 15-26). "A própria existência da psicopatologia perpetua o dualismo que a maioria dos psicopatologistas deseja evitar e que é nitidamente falso" (Laing, 1960/1975, p. 23).

Segundo Foucault, a medicina com fundamentos nosológicos (fundamentada na classificação das doenças) se distancia da pessoa que sofre. Se as ciências biológicas e a clínica médica constituiram-se sobre a doença e suas manifestações, a psiquiatria constituiu-se no espaço asilar, por si só o isolamento social e familiar e a imposição de uma regularidade disciplinar formaram uma terapêutica moral (Foucault, 1963/2006a, 2003/2006b).

A psiquiatria não abandonou a ideia de buscar causas orgânicas para o sofrimento psíquico e as possibilidades técnicas alcançadas a partir da década de 1980, permitindo o acesso ao cérebro em funcionamento, incrementaram as pesquisas sobre comportamento e funcionamento cerebral e bioquímico, para comprovar as causas dos desequilíbrios, reforçando uma medicina que busca a normalidade em contraponto ao patológico.

 

A psicanálise e a análise leiga

Há pouco mais de cem anos, a psicanálise implementou um setting terapêutico ao mesmo tempo em que começou a desenvolver um saber sobre neuroses, diferenciado do saber psiquiátrico, essencialmente hospitalar. O locus da loucura vai permanecer no hospital, sem grandes mudanças em sua terapêutica de observação e contenção da psicopatologia e da pessoa que sofre, com técnicas bastante invasivas, até ser questionado após a II Guerra Mundial.

O locus da neurose se instala no consultório psicanalítico e se desenvolvem inúmeras linhas de pensamento e práxis em psicoterapia, de modo geral, com base na psicanálise, mesmo que sejam dissidentes. A literatura mostra que a psicanálise não segue o modelo clínico da medicina, nosológico (em que o foco é a doença e o doente é aquele que carrega uma doença que precisa ser tratada), nem a práxis da internação psiquiátrica. Breuer, Freud, Jung e possivelmente outros desenvolveram, no final do século XIX, trabalhos semelhantes de terapia pela palavra, em que propunham à pessoa que falasse o que viesse à cabeça, quebrando a lógica do inquérito e da racionalização. Dessa técnica, surgiu um material novo, tanto para o terapeuta como para o paciente, que entrou em contato com conteúdos desconhecidos de si próprio. A psicanálise desenvolveria uma clínica psicológica que proporcionou a criação de outras linhas de pensamento em psicoterapia.

O objetivo da psicanálise, portanto, não é definir um diagnóstico, descobrir uma doença e tratá-la, mas estabelecer uma relação terapêutica, em que a pessoa, ao longo das sessões, possa conhecer parcialmente o desconhecido inconsciente e elaborar uma via de compreensão de seu processo de vida. A psicanálise é também uma racionalidade clínica, que compreende que o sujeito é uma resultante de um confronto entre o inconsciente e as expectativas de seu meio, inserido em uma cultura, espaço de conflito propício ao desenvolvimento de neuroses.

Os avanços do debate sobre o tema assinalam que a psiquiatria, inicialmente, rejeitou a psicanálise, mas ao perceber que esta encontrava seu espaço no tratamento das neuroses, passou a se utilizar da premissa de que a medicina é o regulador do universo das doenças e tentou incorporar a psicanálise à medicina (Freud, 1927/s/data). Nesse contexto, Sigmund Freud escreveu A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial (1926/s/data). Com clareza e simplicidade, que o levam a servir como uma introdução ao ensino da psicanálise, o artigo é escrito em forma de diálogo entre o psicanalista, o Autor, e um interlocutor, a quem chama de Pessoa Imparcial. O objetivo é esclarecer as dúvidas sobre o método da psicanálise e sua finalidade. Freud responde de forma minuciosa às perguntas da Pessoa Imparcial, mostrando que o método da psicanálise e a formação de um psicanalista pouco ou nada utilizam do que se ensina em uma faculdade de medicina.

A chamada análise leiga se refere à formação de psicanalistas não médicos e Freud explica para a Pessoa Imparcial que ser médico não contribui para a apreensão do conhecimento teórico e de formação de um psicanalista. Na verdade, considera que ser médico pode até dificultar a formação de um analista, posto que ele seja formado para exercer sua profissão sobre pressupostos epistêmicos que em muito diferem da psicanálise.

Freud pondera que se os médicos defendiam que somente eles podiam intervir nos problemas das pessoas, certamente pessoas com perturbações emocionais buscavam os médicos. Freud explica à Pessoa Imparcial que

Os médicos também formulam as categorias nas quais se acham divididos esses males. Eles os diagnosticam, cada um de acordo com seu próprio ponto de vista, sob nomes diferentes: neurastenia, psicastenia, fobia, neurose obsessiva, histeria. Examinam os órgãos que produzem os sintomas, o coração, o estômago, os intestinos, a genitália, e concluem que estão sãos. Recomendam interrupções no modo de vida habitual do paciente, exercícios de fortalecimento, tônicos, e por esses meios ocasionam melhoras habituais - ou absolutamente nenhum resultado. Eventualmente, os pacientes vêm a saber que há pessoas interessadas de modo bem especial no tratamento de tais males e iniciam com elas uma análise. (Freud, 1926, s/data, s/p.)

No ano seguinte, ou seja, em 1927, Freud escreveu um Pós-Escrito, em que diz que "Minha tese principal foi no sentido de que a questão importante não é se um analista possui um diploma médico, mas se ele recebeu a formação especial necessária à prática da psicanálise" (Freud, 1927/s/data, p.1). O Pós-Escrito foi elaborado em resposta a uma acusação de charlatanismo contra um psicanalista não médico, da Sociedade de Psicanálise de Viena, que por falta de consistência foi anulada (Freud, 1927/s/data).

Freud esclarece que a psicanálise é uma parte da psicologia, não da psicologia médica, mas da psicologia, simplesmente. Percebe a psicanálise como o alicerce da psicologia. Explicita a "animosidade com que a profissão médica tratou a análise desde o começo" (1927/s/data, p. 3). A preocupação de Freud, além da formação adequada a um analista, tem lugar também no que a medicina faria com a psicanálise: "se desejam tomar posse de seu objeto com a finalidade de destruí-lo ou de preservá-lo" (1927/s/data, p. 3).

Somente a posteriori, com a publicação do artigo Os Fragmentos do Pós-escrito (Freud, 1927/2003), que não foi publicado na época, por conselho de seus discípulos, é que podemos ver com que veemência Freud se posiciona em relação à rápida disseminação da psicanálise nos Estados Unidos da América. Faz duras críticas ao nível intelectual das escolas estadunidenses, que considerava muito abaixo do europeu, além de ter como objetivo maior o lucro (Freud, 1927/s/ data; 2003, p. 11-17). Com o passar dos anos as preocupações de Freud foram confirmadas, pois se desenvolveu nos Estados Unidos da América uma linha de psicoterapia de orientação analítica, que se utiliza de recursos da psicanálise, entre outros, para terapias de curta duração (Eizirik, Aguiar e Schestatsky, 1989 e 2005)4.

Freud iniciou o processo de institucionalização da psicanálise e rapidamente a Associação Psicanalítica Internacional (IPA) se expandiu por muitos países, viabilizando a formação de analistas, regulando a prática e criando um mercado de trabalho (Roudinesco, 1995; Ponte, 1999/2008). A psicanálise desde cedo teve e continua tendo divergências internas, que não são pequenas nem poucas; nas cisões formaram-se outros grupos, sendo que a IPA retirou o nome de Lacan de seu quadro de psicanalistas, em 1963, formando-se assim escolas lacanianas não associadas à IPA. (Roudinesco, 1995, p. 222-274).

A compreensão das instituições psicanalíticas é de que não é possível formar um analista na universidade, já que o analista se constrói em seu processo de análise, imbricado com a apreensão da teoria e outros conhecimentos sobre o homem e a sociedade (Freud, 1926/s/data; 1927/2003). De modo geral, as sociedades e escolas psicanalíticas não querem a regulamentação da profissão de psicanalista e aceitam não médicos em suas formações de analistas. Nesse sentido, podemos ver a posição de vários psicanalistas, representando diversas escolas psicanalíticas (lacanianas e freudianas)5, contra um projeto de lei para regulamentação da formação desse profissional, contra o qual se uniram a psicanálise e a psicologia, conseguindo seu arquivamento, e contra o projeto de lei do ato médico, como segue (s/autor, 2003, p.209-231):

A psicanálise não é uma profissão, mas um ofício, uma práxis, um campo peculiar que, operando com conceitos fundamentais pétreos, não saberia afirmar sobre si mesmo quando ele é psicanalítico ou não. O ato psicanalítico só se faz sentir a posteriori, no manejo da transferência. Ele não só se autorregula como não admite a regulamentação pelo Estado (2003, p.209).

A psicanálise é uma terapia da palavra que se expressa em um setting terapêutico, pela associação livre e se faz discurso na transferência analítica; a psicanálise propõe uma verdade teórica, por meio de uma práxis clínica (Foucault, 1966/2002, p. 517-536). Freud defende que a psicanálise é uma parte da psicologia, mas não de uma medicina da psicopatologia classificatória de doenças; a psicanálise se propõe a tratar as neuroses por meio de técnicas clínicas de acesso ao inconsciente.

Compreende-se, portanto, que é chamado de leigo aquele que não tem o conhecimento médico, o que leva a pensar que psicanálise e psicologia não são saberes, mas intervenções feitas por curiosos, como uma espécie de voluntarismo, sem embasamento teórico-técnico. Na prática, a psicologia é uma profissão regulamentada com formação universitária, capaz de construir saberes e práticas legítimos no campo científico. A psicanálise, por sua vez, construiu sua instituição fora da academia universitária e é regulada nacional e internacionalmente por seus pares, mesmo que com divergências e dissidências, oferece formação teórica e análise pessoal, minuciosa e longa, como Freud defendia e muito têm contribuído para a compreensão dos conflitos humanos. Inspiradas na compreensão de Bourdieu sobre o campo científico como âmbito de disputas incessantes, compreendemos que se os profissionais desse campo são chamados de leigos, isso resultaria das suas divergências em relação à episteme dominante da medicina (Bourdieu, 1983). Isto é, esse rótulo expressaria as tensões entre o campo psi e a medicina.

A divisão formal dos saberes sobre o psiquismo e comportamento e suas instituições é apresentada em duas grandes áreas do conhecimento: ciências humanas e ciências da saúde, segundo a Tabela de Áreas de Conhecimento do CNPq6. Em 2005, a Comissão Especial de Estudos CNPq7, CAPES8, FINEP9 apresentou uma proposta de alteração da classificação de áreas do conhecimento, que continua, em sua versão preliminar, com o objetivo de adequar a classificação à realidade atual10. O campo psi ficaria classificado da seguinte maneira: grande área das ciências humanas, área da psicologia, subárea da psicologia clínica; grande área das ciências médicas e da saúde, área da medicina, subárea da psiquiatria. A psicanálise seria uma especialidade, podendo ser enquadrada em diferentes áreas11. Essa classificação, em versão preliminar, possibilita visualizar a complexidade do campo psi e situa, em termos acadêmicos, o lugar de cada saber.

 

O início da psicologia clínica no Brasil

A profissão de psicólogo, no Brasil, tem entre seus precursores os psychologistas, que atuavam em equipes de saúde mental, formados no Curso de Especialização de Higiene Mental Escolar, na Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP, ao final dos anos 1930; em seguida, a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, seguiu caminho similar. Alguns desses psychologistas tornaram-se psicanalistas e participaram na formação das primeiras sociedades de psicanálise no país (Sagawa, s/data).

Na segunda metade do século XX houve uma grande ampliação de profissões no mundo ocidental. No Brasil, a profissão de psicólogo foi regulamentada pela Lei nº4119/1962 e Decreto nº53464/196412. As faculdades de Filosofia passaram, assim, a oferecer cursos de Psicologia, tanto aqui como em outros países. Segundo essa Lei, entre as atribuições de um psicólogo estão o diagnóstico psicológico e a solução de problemas de ajustamento, configurando a psicologia clínica como uma de três grandes áreas de atuação (clínica, trabalho e educação).

Em reação a essa regulamentação, a publicação O Médico Moderno, Revista Profissional e Cultural da Medicina, consagrou ao assunto a matéria de capa, em outubro de 1965: Psicologia clínica: médicos veem perigo na nova lei. A reportagem ouviu cinco psiquiatras e um professor do recém criado, na época, curso de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

A matéria traz título semelhante ao da capa, seguido de um texto em destaque, da seguinte forma: "psicologia clínica: médicos apontam riscos na nova lei - Lei que autoriza aos psicólogos a solução dos problemas de desajustamentos é julgada pelos psiquiatras: o perigo estaria na criação dos consultórios de leigos" (1965, p. 30-34). A autoridade do médico informa ao leitor médico sobre os perigos do paciente ser atendido por não médicos, que chamam de leigos do mesmo modo que o psicanalista não médico fora chamado no tempo de Freud.

A profissão de psicólogo é chamada de formação de leigos como se fossem curiosos a se infiltrar no campo da medicina. Para os psiquiatras entrevistados, a profissão de psicólogo seria perigosa pela falta de rigor sobre o campo de atividades e, por não ter fronteiras rígidas, estaria intervindo no campo da psiquiatria. Entre as queixas, é pontual a do Dr. Paulo Fraletti, diretor do Manicômio Judiciário de SP (1965), sobre a lei ter sido elaborada e aprovada sem serem consultadas as sociedades de psiquiatria, bem como as escolas e serviços psiquiátricos. Afirma que isso "representa uma intromissão no campo das atividades médico-psiquiátricas". Para ele, tanto neuróticos como psicopatas, oligofrênicos e psicóticos são "pertencentes" à área de ação da psiquiatria. A restrição desejada seria que o psicólogo somente atuasse com desajustados que não fossem enquadrados no domínio da psicopatologia, mesmo assim isto seria complicado, pois desajustamentos "podem ser manifestações de uma fase incipiente de esquizofrenia ou de defeitos de personalidade sujeitos a surtos psicóticos". E os psicólogos clínicos não teriam condições de diagnosticar a origem da psicopatologia, comprometendo o tratamento. O entrevistado acrescenta, ainda, que os desajustamentos profissionais, vocacionais e familiares podem ser "superestruturas psicológicas em personalidades psicopáticas".

Parece-nos que esse discurso expressa a necessidade de controle e de vigilância da medicina sobre o comportamento, uma necessidade de vigilância moral, uma medicalização dos comportamentos, regulada pelo médico. Enfim, todo e qualquer desajustamento psicológico e/ou social é qualificado como um desvio às normas e sob a avaliação do psiquiatra pode ou não ser diagnosticado como doença mental. Só então o psiquiatra pode encaminhar um tratamento, desde um aconselhamento até uma internação e/ou prescrição de medicamentos ou outro tratamento, como psicoterapia. Esgotados seus argumentos, para que não fique qualquer dúvida ao leitor, ele afirma que os psicólogos "estariam violando o código que proíbe o diagnóstico feito por não médicos", e que o trabalho do psicólogo seria bem recebido sob a orientação do médico coordenador de uma equipe. Por duas vezes, ao final dos anos 1970 e nesta primeira década do século XXI, veremos essa sugestão ser incorporada em projetos de lei, assunto ao qual voltaremos adiante.

A queixa do psiquiatra expressa a institucionalização do saber sobre a pessoa e seu psiquismo, representando seu olhar à única verdade científica que deve ser aceita. Isso confere aos psiquiatras o domínio sobre a doença e seu tratamento, conforme a história das ciências da saúde, em que o diagnóstico, a categorização das doenças (nosologia) e a intervenção para eliminar a doença formam a verdade da medicina. O médico citado acima defende o poder sobre o louco e mais, sobre todos, pois ninguém está livre de enlouquecer, sendo necessário exercer uma constante vigilância sobre o comportamento. Foucault (1963/2006a), Laing (1960/1975), Cooper (1967/1989), Szasz (1963/1978) foram os arautos da denúncia à medicalização da vida, mesmo que não utilizassem essa expressão, que surge posteriormente nos discursos de sociólogos, como Castel (1981/1984) e Conrad (2007), entre outros. Não podemos deixar de citar Illich (1975) e sua crítica contundente, em que considera a medicalização uma iatrogênese da medicina.

Para o Dr. Henrique Levi, diretor do Hospital Central do Juqueri (1965), o psicólogo não sabe distinguir o normal do patológico, "confinado aos problemas dos perfis psicológicos". Ainda nessa seara, o Dr. João Bernardo Mota-Campos, psiquiatra do Manicômio Judiciário do Estado de SP (1965), constata que "é a falta de vivência médica, que envolve a formação técnica e o contato diário com o paciente, a principal deficiência dos psicólogos clínicos... uma visão global do mundo médico". Aqui mais uma vez vemos realçada a doença e a instituição médica, como único lugar de saber. E, como disse o Dr. Levi, importa diagnosticar o patológico em detrimento de conhecer o que chama de perfil psicológico, recusando outro tipo de saber. A partir desse tipo de constatação, fica claro que para este psiquiatra a psicologia apresenta pressupostos epistêmicos diferentes dos da medicina. É preciso ressaltar que a instituição em que trabalha foi uma das maiores colônias agrícolas manicomiais do país, certamente ainda com mais de dez mil internos na época em que nos fala.

O Dr. Wilhelm Kenzler, um dos médicos entrevistados na mesma matéria, não atua em hospital, é apresentado como psicoterapeuta e lembra que "a supervalorização exclusiva da medicina orgânica pode conduzir ao não atendimento dos componentes emocionais das manifestações psicossomáticas" e que a questão não é de opção por psiquiatria ou psicologia, mas o encontro de formas de cooperação entre as duas especialidades, para o "atendimento integral do doente". E cita sua experiência na Alemanha e nos Estados Unidos da América, países onde trabalhou com psicoterapeutas não médicos. Porém, concorda que o diagnóstico e a supervisão do tratamento devam ser realizados apenas por médicos, mostrando uma abertura da medicina a outros saberes, desde que seja mantida a supervisão médica a todas as atividades.

Há de se chamar à atenção ao fato de que também foi entrevistado o professor Arrigo Angelini, na época titular de Psicologia Educacional da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, representando o outro lado, o do perigo, o que forma os tais leigos. Afirma ele que os psiquiatras estariam ocupando áreas que competiriam ao psicólogo, defendendo a necessidade dessa nova profissão. Ao defendê-la, fala de um saber que necessita ser delimitado em seu espaço de produção de conhecimento, de formação e de atuação. Lembra, no entanto, que "existe uma região comum às duas profissões, de limites esquivos e imprecisos, na qual tanto psicólogos como psiquiatras devem auxiliar-se mutuamente, em trabalho de equipe".

Observamos ao longo das nossas trajetórias, que em nossa sociedade o poder dominante tenta destruir novos saberes e abordagens e ao não o conseguir tenta incorporá-los ao status quo, deixando muitas vezes irreconhecíveis suas bases e finalidades, conforme Freud percebeu com clareza no século passado.

 

A defesa legal da nosologia no Brasil

Em 1978 foi apresentado, na Câmara dos Deputados, o projeto de Lei do deputado Salvador Julianelli, reapresentado como projeto de lei nº2726/1980, contra o qual as categorias profissionais e as sociedades de psicanálise lutaram contra, que após alguns anos de tramitação e discussão pública não foi aprovado (Jacó-Vilela, Cerezzo e Rodrigues, 2005). Com a mesma finalidade, de submeter todas as profissões de saúde e a psicologia, além das não regulamentadas acupuntura (medicina tradicional chinesa) e psicanálise, foi apresentado, no Senado Federal, o projeto de Lei 025/2002, de Geraldo Althoff; o qual gerou novos projetos e substitutivo13. O projeto de lei do ato médico ou das atividades privativas do médico está em trâmite na Câmara dos Deputados14. Tem sido intensa a manifestação contrária dos trabalhadores das profissões e ofícios envolvidos nestes quase sete anos, o que fez com que houvesse modificações e não se chegasse a um termo e votação final. A nuvem ainda não se dissipou, ronda o perigo, não da análise leiga, mas da norma majoritária exercer sua coerção com amparo legal.

 

Conclusão

A questão sobre a quem os psiquiatras chamam de leigos permanece, mesmo se não explícita? Não seriam nomeados leigos os psicólogos, que têm uma formação diferenciada da medicina, repetindo o mesmo processo que Freud trouxe-nos em seus artigos, em relação à psicanálise? Não seriam nomeados leigos os psicanalistas e psicoterapeutas não médicos?

Nesse caso, como pudemos perceber, a matéria da Revista O Médico Moderno é emblemática. A institucionalização da profissão de psicólogo e do ofício de psicanalista, junto às pesquisas no campo, ao longo do século XX, foram vistas por parte dos médicos e suas instituições de representação de categoria profissional como exercício de medicina por leigos, o que seria nada mais nada menos que exercício ilegal da profissão de médico. Porém, a psicologia e diversas profissões da área de saúde foram regulamentadas na segunda metade do século XX, no Brasil e no mundo. E é exatamente em reação a isso, que desde a década de 1970 até a atualidade, as instituições médicas pretendem aprovar uma lei que regulamente a medicina e submeta as profissões de saúde e o campo psi e suas abordagens clínicas (psicanálise e psicoterapias) ao médico. No caso de o projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados vir a ser aprovado, sofreríamos um recrudescimento teórico-prático e todos os saberes seriam absorvidos pela medicina convencional, ou tradicional, em especial no campo psi. Seria, enfim, o triunfo da nosologia sobre as rupturas epistêmicas.

Um debate em nível legislativo (ordem jurídica) exerce uma despolitização em sua essência, reduzindo a uma questão de normatização profissional a legislação da medicina, em detrimento de uma disputa muito mais profunda, em nível da ordem científica e da ordem econômica. Estão em jogo disputas que envolvem a liberdade de saberes (pensamento, pesquisa, formação, institucionalização e práxis), a disputa econômica em um complexo médicoindustrial e uma ordem científica que defende uma democracia liberal, além de reiterar a situação majoritária científica e social da normalidade e patologia, o que envolve a formação do sujeito e das subjetividades de uma sociedade (Bourdieu, 1983, p.122-155).

Temos de levar em conta que é desigual essa disputa no campo psi. O habitus científico, conforme Bourdieu (Bourdieu, 1983/2003, p.112-143), afirmado e internalizado principalmente pela formação profissional e pelas revistas científicas, define-se também pelo financiamento de pesquisas e investimento na indústria farmacêutica e de aparelhos de intervenção médica, laboratorial e hospitalar. É visível o desnível no financiamento de pesquisas para a psiquiatria e psicologia de base nosológica (cognitivo-comportamental) em relação ao disponível para a psicanálise ou a psicologia clínica.

As comunidades científicas, sejam quais forem, defendem a manutenção de um status quo. Se, por um lado, a medicina majoritária afirma o corpo biomédico como o único seguro para intervenção com pessoas em sofrimento psíquico, por outro, a psicanálise, para preservar e desenvolver-se sobre os pressupostos epistêmicos da própria psicanálise, mantém-se fora da academia e da ordem legislativa, porém, como a psicologia, investe na pesquisa científica. A psicanálise mostra que seguiu os passos de Freud, que acreditava que uma absorção da psicanálise pela medicina seria o fim desta, assinalando que teorias e práxis advindas de epistemes diferentes não se misturam.

A medicina majoritária, nosológica, que busca a normalidade em contraponto ao patológico, precisa garantir o valor do exame clínico de um diagnóstico, de modo a autorizar uma separação em patologias. Le Blanc, filósofo francês contemporâneo, em uma linha de pensamento claramente psicanalítica, questiona, então, quem poderia se dizer suficientemente normal para crer que sua normalidade seja isenta de patologia?

Inspiradas em Le Blanc, partimos da consideração de que se o eu é formado nos universos da norma, os comportamentos normais são uma pressão sobre a maneira de agir e um valor mental fundamental. Esse valor é o desenvolvimento dos conteúdos cognitivos integrados à estrutura psíquica. A psicanálise fala-nos que a infância é uma luta entre o desejo da norma e o tornar-se selvagem, e esta luta não termina jamais. O psíquico se origina de uma atividade de vida que consiste em um duplo movimento de regulação e de criação, em relação ao mundo externo (Le Blanc, 2007, p.15-28). A formação do Eu encontra sua origem nesta vida das normas e na dialética que a suporta; nesse confronto na formação do Eu, ou seja, o conflito do desejo com a norma a ser subjetivada. Essa dialética encontra sua origem na existência, no si-mesmo como sistema de excitação e de reação às excitações (pulsões) inconscientes. De acordo com o autor, sem a clínica, a normalidade e a patologia arriscam se tornar conceitos vazios (2007, p.30).

Ainda segundo o mesmo autor, a clínica médica constrói uma normalidade, ressalta uma distinção entre o normal e o patológico. O julgamento de normalidade é obtido pela norma majoritária da psicopatologia; paradoxalmente, a psicopatologia cria um homem normal a-histórico, inviável como normal, pois não existe o homem que conheça a ausência de toda negatividade. A normalidade é uma consciência de si alcançada por uma sociedade, que por meio do assujeitamento da vida psíquica, pelas regulações sociais e pela educação familiar e institucional, produz um sujeito, porém a normalidade não é palpável, possível de se reproduzir em uma pessoa. (Le Blanc, 2007, p.29-38). Se a psicopatologia " que supõe um exame clínico que diagnostica " é uma norma reguladora da sociedade, isso influi na formação do eu, pela normalização das condutas. O eu é de certo modo sufocado pela medicalização, que se expressa por uma normalidade regulada pela medicina nosológica.

A intervenção da norma se dá para além da clínica, o pensamento majoritário de comportamento normal e psicopatológico permeia as instituições de regulação do Estado, como a ordem legislativa e jurídica, educacional e familiar. Ser normal é uma meta inalcançável e desejada, um paradoxo. Por outro lado, ser anormal é o único caminho do excluído afetiva e socialmente. De qualquer modo, o modelo é o mesmo, vem do mesmo conteúdo de normalização das condutas.

O campo psi é composto, portanto, de epistemes diversas e personagens que se veem muitas vezes como na peça de teatro de Goldoni, Arlequim, servidor de dois amos (1976). Nem em Goldoni, em sua crítica social, nem nas comunidades do campo psi, é possível fazer parte de uma e outra verdade na clínica. As posições devem ser claras, pois não se pode misturar transferência psicanalítica e nosologia, prescrição de condutas e conhecimento de si mesmo, por serem paradoxais. Seria importante se pudéssemos ultrapassar as disputas e construir uma imagem de normal para além de um fundamentalismo científico.

 

Notas

1. Em As palavras e as coisas (2002), Foucault afirma que as ciências humanas não recebem nada dos séculos anteriores ao XIX " o homem não existia como objeto empírico de conhecimento. Só no século XIX é construído um conjunto de discursos (acontecimento da ordem do saber) que formam as ciências humanas, com o papel de "fundamento de todas as positividades", passando o homem para o campo dos objetos científicos.

2. A primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais foi elaborada por Kraepelin, em 1883.

3. O Projeto Diretrizes foi iniciado em 2000 e está em contínua atualização. No site consta que há uma publicação em papel, em sete volumes, s/data.

4. As duas edições de Psicoterapia de Orientação Analítica são dois tomos diferentes, publicados respectivamente em 1989 e 2005.

5. Mesa redonda O que regula a psicanálise?, realizada na Jornada da Escola Letra Freudiana "Formação e Função do Psicanalista", PUC-RJ, em maio de 2003

6. Tabela de Áreas de Conhecimento, em www.cnpq.br/areasconhecimento, em out2009.

7. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, em www.cnpq.br, em out2009.

8. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, em www.capes.gov.br, em out2009.

9. Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP, em www.gov.br, em out2009.

10. Áreas do Conhecimento e Nova Tabela das Áreas do Conhecimento (versão preliminar, em discussão desde 2005), em www.cnpq.br/areasconhecimento/index.htm, em 09/10/2009.

11. Por especialidade entende-se a caracterização temática da atividade de pesquisa e ensino. Uma mesma especialidade pode ser enquadrada em diferentes grandes áreas, áreas e subáreas.

12. Lei nº4119/1962 e Decreto nº53464/1964. Em < http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/>, em 27 jan. 2009.

13. Projeto de Lei no Senado, nº 25, de 2002, ver trâmites in http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=49554, em jan2009.

14. Projeto de Lei 7703/06, in http://www2.camara.gov.br/homeagencia/materias.html?pk=98220, em jan 2009.

 

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Recebido em 08 de outubro de 2009
Aceito em 30 de novembro de 2009
Revisado em 14 de janeiro de 20010

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