SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 issue2Identidade cultural e (des)politização na sociedade de riscoO Sujeito contemporâneo: um recorte psicanalítico author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.2 Fortaleza June 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Os pais frente ao adoecimento psíquico do filho

 

 

Janari da Silva PedrosoI; Maria Alexina RibeiroII; Letícia NoalIII

IPsicólogo, Doutor em Ciências (UFPA). Professor da Faculdade de Psicologia e do Programa de Psicologia Clínica e Social da UFPA. E-mail: jsp@ufpa.br
IIPsicóloga, Doutora em Psicologia Clínica (UNB). Professora e Pesquisadora nos Programas de Graduação e Mestrado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. E-mail: alexina@solar.com.br
IIIPsicóloga, especialista em Docência do Ensino Superior, mestre em Psicologia (UFPA). End.: R. Padre João Bosco Burnier, nº 200/01. Santa Maria-RS. E-mail: lnoal@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho refere um estudo teórico embasado psicanaliticamente que tem como objetivo elucidar a contribuição de teóricos da psicanálise sobre o impacto nos pais da comunicação de sofrimento psíquico do filho. Envolve os conceitos e discussões acerca da saúde na infância, as manifestações de dificuldades dos pais frente à doença psíquica do filho, bem como impossibilidade de reconhecimento dos sintomas, sentimentos e aspectos inconscientes que permeiam o processo de adoecimento, entre eles, rivalidade, medo, culpa, idealização, amor, ambivalência. Os resultados do estudo reafirmam a importância do conhecimento sobre o que suscita nos pais o sofrimento psíquico da criança, já que a isso está relacionado a vida familiar, conduta profissional e o êxito do próprio tratamento que implica em possibilidade de prevenção, bem como qualidade de vida para ambos. Além dos ganhos que a criança obtém com uma avaliação correta que priorize o entendimento do que denota a sintomatologia apresentada, novas possibilidades de intervenções se impõem diante dos pais que se mostram tão sofridos psiquicamente quanto os filhos, em especial, ressalta-se o caráter inconsciente do contato com a problemática do filho, o que implica o entendimento dos autores de que a criança personifica conflitos inconscientes dos pais, seja enquanto casal, homem, mulher ou mesmo filhos que foram.

Palavras-Chave: Sofrimento psíquico. Pais. Filho. Inconsciente. Sintoma.


ABSTRACT

This work is a theoretical study of the impact produced on parents by a child's psychic suffering. It encompasses the concepts and debates about child health, the signs of difficulties of parents facing their child's psychic suffering; it also analyzes the impossibility of acknowledging symptoms, feelings and the unconscious aspects which permeate the suffering process. The results of this study emphasize the importance of knowing what a child's psychic suffering entails for his parents, insofar as this determines family life, the therapist's protocol and the very outcome of the treatment. The child will benefit from an accurate appraisal giving priority to the understanding of what denotes the symptoms; furthermore, new possibilities of intervention appear for parents who suffer psychically as much as their child. The unconscious character of contact with the child's problems comes out in particular. The authors acknowledge that, in the process, the child embodies some unconscious conflicts of the parents as couple, man, woman or even as a reminiscence of the children they were.

Keywords: Psychic suffering. Parents. Child. Unconscious. Symptom.


 

 

O processo do adoecimento psíquico na criança

O presente trabalho foi estruturado a partir de uma revisão teórica dos autores acerca das implicações nos pais do adoecimento psíquico do filho. As contribuições teóricas são apresentadas a partir da tomada de conhecimento de que algo não vai bem em relação à criança, o processo de identificação de um possível sintoma até a (des)construção da concepção inicial de saúde do filho através da apresentação de algumas das inúmeras repercussões que podem ser suscitadas nos mesmos.

As vivências infantis ao longo do processo de desenvolvimento mostram-se extremamente difíceis, contudo, a forma com que cada criança irá lidar com os obstáculos denota os contornos do que Winnicott (1962, p. 132) define como saúde infantil. O termo saúde é definido por ele a partir da utilização, pela criança, de quaisquer recursos existentes como defesas frente à ansiedade e conflito intolerável que se relacionam com o tipo de ajuda disponível. A descoberta gradual de sua espontaneidade e individualidade, bem como a evolução da brincadeira são sinais saudáveis de desenvolvimento, ainda que este nunca finde totalmente:

Fala-se sobre as crianças difíceis e se busca descrever e classificar as suas dificuldades. Também falamos de normalidade ou saúde, mas é mais difícil descrever uma criança normal. Poderíamos pensar em condutas e comparar uma criança com outra da mesma idade, mas erraríamos se antes de chamarmos de anormal, não soubermos a causa de sua conduta, já que existem grandes variações dentro do âmbito da normalidade que, sem dúvida, muito depende do que se espera.

Apesar de apresentar uma proposta de saúde Winnicott (1962) interpela o leitor com a sinalização de que em todas as crianças aparecerão sintomas e de que as dificuldades impostas a qualquer uma delas, em determinadas condições, poderia ser um sintoma de doença. Sendo assim, quando alguém está preparado para se deparar com um filho "doente"?

O autor supracitado refere a importância de se conhecer as "causas" da conduta da criança antes de considerá-la normal ou anormal. A noção conceitual de normalidade ou a sua ausência é uma construção que se estende ao longo de séculos da existência da humanidade a partir de um saber popular, inerente ao senso comum tal qual são os discursos de pais, avós, reforçados por um saber científico, institucionalizado no âmbito social. Bergeret (1998) não deixou de lembrar que a normalidade é mais comumente encarada em relação aos outros, ao ideal ou à regra, o azar, ressalta ele, é de uma minoria que, certamente, não menos criativa e espontânea, recusa-se a pertencer ao número de cruéis exemplos de comportamentos guiados por uma maioria.

Diante das tentativas de compreender sobre saúde, Anna Freud (1987) aponta a necessidade dos pais em realizar uma meticulosa investigação do filho ao longo de seu processo de desenvolvimento. Através de uma busca infindável realizam uma avaliação que objetiva mensurar os aspectos libidinais e agressivos, por outro lado, do ego e superego da personalidade da criança, indícios de normalidade e patologia, enfim buscam compreender os sintomas em função da adequação etária, precocidade ou retardamento.

A dinâmica inconsciente dos pais traduzida em grande medida por sintomas presentes na infância do(s) filho(s) faz parte das considerações de Dolto (1981, p.24), na medida em que reforça o quanto a procura por culpados diante do adoecimento da criança é inoportuna, pois, complementa, pais e filhos são dinamicamente participantes e compartilham de ressonâncias libinais inconscientes.

Em se tratando de normalidade acerca de saúde ou doença, vale ressaltar que uma das grandes preocupações dos seres humanos e de pesquisadores também é a de como compreender e trabalhar da melhor forma possível com a criança. Assim se deu a investigação incessante por respostas e suas respectivas interrogações do que e quais são as causas/conseqüências, contribuições/agravantes de cada situação. Dentre muitos conceitos de sintoma, satisfaz a compreensão deste como um sinal que atrai atenção, interesse e energia, por outro lado impede a vida normal. Este sintoma é portador de uma informação e o aviso de que algo falta. O importante a ser considerado é a manifestação qualitativa e subjetiva desta expressão de forma integrada à dinâmica de inter-relações: criança-família-sociedade (Ruiz, 2004).

Os conteúdos suscitados nos pais pelos sintomas de adoecimento psíquico do filho são apontados por Manoni (1981). Segundo o autor as dificuldades dos filhos remontam às carências, na estruturação edipiana, não dos pais, mas dos avós, e às vezes, dos bisavós, tratando-se de uma verdadeira neurose familiar. Ressalta, ainda, que a criança perturbada, encarna e presentifica as conseqüências de um conflito vivo, familiar ou conjugal, camuflado e aceito por seus pais, podendo ser fruto dos desejos reprimidos de pais insatisfeitos na sua vida social ou conjugal, e que esperam da sua progenitura a cura ou a compensação para o seu sentimento de fracasso.

Em um segundo momento, Manoni (1981) lembra do quanto é comum ouvir-se dizer que, a toda criança-problema, corresponde pais-problemas. Segundo ele, é raro que não se perceba, por trás de um sintoma, certa desordem familiar. Entretanto, não é certo que essa desordem familiar tenha por si mesma, uma relação direta de causa e efeito com os distúrbios da criança. O maior fator prejudicial ao sujeito, finaliza, é a recusa dos pais a verem essa desordem, o esforço deles em palavra, para aí substituir uma complexa situação que muitas vezes escapa à sua consciência.

Tal recusa traduzida, muitas vezes, pela não aceitação dos sintomas do filho também é fruto de preocupação de Aberastury (1984). O cuidado com o que é suscitado nos pais, especialmente em função da angústia que sentem, deve ser fruto de preocupação do profissional já na primeira entrevista. De acordo com ela, os pais sentem-se julgados e o conhecimento acerca da problemática do filho muitas vezes, não permite que eles consigam falar de fato o que sabem. Algumas vezes, a tendência é de que escapem do tema fazendo confidências de suas próprias vidas.

Corroborando as idéias da referida autora, faz-se importante destacar a significativa intensidade com que lhes é suscitada a amnésia infantil sublinhada por Freud ([1910]-1909). Segundo ele a amnésia parece acometer os pais no que diz respeito a angustia em relembrar a sua participação (e desta forma, os detalhes vivenciados) no possível processo de adoecimento da criança, mas não na sua relevância enquanto pais e facilitadores do desenvolvimento do filho. Assim uma implicação relevante se concretiza pela habitual dificuldade com que os cuidadores deixam de lembrar aspectos significativos do filho, características, experiências, enfim, informações imprescindíveis á compreensão da criança.

Um dos primeiros passos para o reconhecimento do filho enquanto sujeito, portador de sofrimentos, angústias e faltas é proposto por Dolto (1990) através da castração dos próprios pais. Propõe a necessidade de levá-los a ver no filho um semelhante, um ser humano com inteligência e entendimento das coisas da vida, uma criança dotada de desejos, ao passo que eles não a vêem senão como um corpo de necessidades, mal regrado e falho que precisa ser recondicionado, como se apenas a eles cumprisse tal missão, passível de ser executada e dependente de um fator determinante, qual seja o tempo.

Relacionado á concepção de saúde psíquica e a dificuldade inerente a esta conceituação ou mesmo caracterização surge o importante conceito freudiano de Narcisismo. A criança, como chama Freud (1914-1916), sua majestade o bebê, é fruto do que o mesmo considera uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, assim, os pais atribuem todas as perfeições ao filho, esquecendo todas as deficiências (a isso está relacionado, segundo o autor, a negação da sexualidade nas crianças). Esta demonstração de amor, nada mais é, de acordo com as idéias freudianas, do que o narcisismo dos pais renascido e, que, transformado em amor objetal não é capaz de esconder sua natureza anterior.

O termo Narcisismo surge na obra psicanalítica freudiana pela primeira vez em 1910, e é reformulada (contudo não abandonada) a partir da segunda teoria do aparelho psíquico. A partir de então, surgem os termos narcisismo primário e narcisismo secundário.

O narcisismo primário refere-se a um estado primitivo caracterizado pela ausência de relações com o meio por uma indiferenciação entre ego e id, já o narcisismo secundário corresponde ao retorno da libido que é retirada dos seus investimentos objetais (Laplanche e Pontalis, 2004). Sendo assim, observa-se que, para a relação objetal que passa a existir com a introdução do narcisismo secundário, é central a questão das identificações pelo qual a criança vivencia as mensagens, as palavras orientadoras, enfim, o desejo e seu investimento feito pelos pais.

Pensar por este viés permite que se faça uma correlação com o quanto e como "recebe-se" uma herança de saúde ou doença, de normalidade no que tange, por exemplo, a orientação por adaptação às normas sociais ou a sua oposição. Assim, cada sujeito herda dos pais o lugar exato que deve ocupar e porque não dizer, o próprio desejo ou sua ausência em se tornarem pais e mães.

O aprofundamento do conceito de narcisismo é uma realidade necessária em função da proximidade com que o encaminhamento psicológico do filho e mesmo a possibilidade de adoecimento da criança repercutem em termos narcísicos nos pais e vice-versa. Freud (1900-1901) relembra que os pais servem ao filho como um espelho identificatório e, por esse motivo cada criança retoma histórias e sintomas dos pais em uma infinidade tão infinda quanto é o sujeito humano.

A imortalidade alcançada através da procriação humana foi para Freud (1900-1901) um exemplo do que os filhos podem herdar. Ele próprio confessa em sua obra que o nome de seus filhos foi escolhido, não segundo a moda do momento, mas em memória de pessoas de quem ele havia gostado.

Mais tarde, pautado pela estreita relação entre as patologias infantis e a "herança" psíquica transmitida pelos genitores, Freud (1901-1905) afirma com convicção o quanto pais neuróticos têm caminhos mais diretos que o da hereditariedade para transferir sua perturbação a seus filhos.

É também a grande preocupação com relação à saúde psíquica dos filhos que denuncia uma preocupação inicial consigo mesmos, com um temor frente à desconstrução de um desejo de "normalização" de adaptação, sobretudo, a uma realidade que julgam necessária ou correta. Nesta busca frenética pelo certo ou errado, aqui representados pelas considerações acerca da saúde ou doença vão ao encontro das infindáveis perguntas descritas em três volumes dos livros de Françoise Dolto (1996) intitulados "quando surge a criança". Estes são a prova viva e descrita dos sentimentos, medos e fantasias dos pais quando o assunto é presença ou ausência de saúde e, principalmente, o que fazer para ter um filho saudável, o que é "normal".

Entretanto simples respostas ou aconselhamentos não se fazem suficientes para que os pais consigam de fato concretizar em sua vida diária com o filho, pois quando se ignora o inconsciente corre-se o risco de cair nas mazelas das imperfeições humanas. É a famosa compulsão à repetição que exerce sobre os pais a mesma força com que os filhos são atingidos pela participação dos mesmos em sua vida mental (Freud, 1925-1926).

 

Os pais, a criança e o setting terapêutico

Quanto à experiência em sessões terapêuticas ressalta-se a opinião de Aberastury (1984) de que o adoecimento da criança, não raro, é regido por conteúdos inconscientes dos pais, que deixam de serem pais para se comportarem como filhos rivais em uma busca inconsciente de ajuda para dificuldades que estão vivenciando. Por outro lado, a autora reconhece e ressalta a rede de sentimentos contraditórios dos pais durante o tratamento: de um lado a fachada desejada de amor e idealização ao filho e de outro, ressentimento e frustração que os conduz a destruir o tratamento que a outra parte da personalidade tende a querer preservar.

As fantasias que surgem no adulto quanto ao que é feito ou dito no setting também é motivo de pesquisa e interpretação. Brun (2001, p. 20) ressalta:

Seja qual for o motivo da consulta e a natureza dos sintomas, a maioria dos pais imagina que seu filho abrirá o coração ou revelará os segredos familiares, e não podem evitar interrogá-lo para saber o que aconteceu. Mas nesses temores que invadem seus pensamentos, os pais não conseguem notar o reaparecimento de sua própria curiosidade infantil, por mais dispostos que estejam em reconhecer sua vaidade. Como todos os pais que se prezem, esperam e ao mesmo tempo temem que o espaço fechado da sessão ofereça à criança uma incitação para falar e brincar sem inibições, para que o psicanalista possa perceber os sintomas que os levaram ao consultório e consiga remediá-los.

Brun (2001) alerta para os sentimentos que acompanham os pais, desde a primeira visita ao profissional. Estes giram em torno do que acreditam que poderiam ter feito melhor, embora eles próprios estejam convencidos de não terem podido agir de outra maneira. A preocupação procede de sua história pessoal, que acreditam descobrir de maneira fragmentada nos sintomas da criança. Assim, em cada tentativa de explicação quanto ao "sintoma do filho", o que está em jogo é sua inocência e também de seus pais enquanto manifestação de uma impossibilidade de entendimento consciente. O acompanhamento psicológico pode se transformar para os pais no equivalente ao seu quarto para as crianças, isto é, um lugar misterioso. Para eles e para a criança, o equilíbrio entre uma culpa muito manifestada ou, ao contrário, muito escondida, é muito difícil de adquirir, sobretudo porque o sentimento de culpa, para eles e para ela, é uma fonte considerável, inclusive de resistência ao desenvolvimento da análise.

A possível doença da criança denuncia origens que podem traduzir-se simplesmente nos conflitos dinâmicos intrínsecos dela própria, em face das exigências do meio social e das provocações do Complexo de Édipo normal, mas pode acontecer que as suas conseqüências provoquem uma angústia reativa nos pais impotentes para ajudar seu filho, envergonhados de sua crise de inadaptação à sociedade (Mannoni, 1981).

Winnicott (1993, p.71) afirma que cada bebê e cada criança cria a família a partir da forma como respondem aos estímulos e se apresentam diante das características dos meios externo e interno. Aponta inúmeros fatores envolvidos com o desejo dos pais de fundar uma família, fatores estes que surgem da tendência inata à integração que acompanha o crescimento pessoal, mas que no início, ao menos, depende da existência de um ambiente suficientemente bom. Ressalta que muitas famílias permanecem intactas enquanto as crianças desenvolvem-se bem, mas que são incapazes de suportar a presença de uma criança doente:

Quando avaliamos as possibilidades de uma dada criança ser submetida à psicoterapia, não pensamos apenas no diagnóstico do distúrbio e na disponibilidade do psicoterapeuta; estimamos também a capacidade que a família pode ter de tolerar o distúrbio ao longo daquele período durante o qual os efeitos da terapia ainda não se fazem ver.

É importante considerar a implicação de um processo psicoterapêutico infantil enquanto possibilidade de tornar-se um evento traumático para um ou ambos os pais. "A psicose latente do adulto, que até então se mantivera oculta e adormecida, reaparece pela profunda transformação positiva operada na criança, e passa a exigir sua quota de atenção e aceitação" (Winnicott, 1993, p.93). Sendo assim, independente dos motivos que causaram a doença do filho, o que se torna difícil e traumático para os pais e que se apresenta como absolutamente comum entre eles, é o sentimento de culpa dos mesmos diante da condição da criança.

O bom senso dos pais é apontado por A. Freud (1971) como indispensável. Comparando a análise infantil, aponta o bom senso como a parte saudável da personalidade consciente durante a análise do adulto. Contudo, para além da consciência, é capaz de afirmar que as crianças severamente doentes são frequentemente conservadas fora do tratamento, em função dos pais, a quem cabe a decisão, conhecerem muito pouco a respeito de análise ou se acharem amedrontados, relutantes em terem a intimidade de suas próprias vidas expostas ao analista e por temerem os esclarecimentos sexuais que serão dados à criança, além de não desejarem ver uma pessoa estranha obter êxito com o seu filho, quando eles próprios fracassaram.

Algumas vezes, prossegue a autora, as razões evidenciadas são muito superficiais: as horas das sessões interfeririam com as horas de escola; anulariam o tempo que seria empregado em exercício esportivo e no aprendizado de algum artesanato, ou de outra habilidade qualquer, de que a criança deixou de beneficiar-se devido a seus distúrbios neuróticos (A. Freud, 1971).

A criança e sua família propõem um problema que se aproxima na medida em que a cura faz-se possível: sentem-se julgados. O que vai substituir, segundo Mannoni (1980, p. 30) a angústia dos pais e da criança é a questão do indivíduo, seu desejo que esteve escondido em um sintoma ou em um tipo particular de relação com o ambiente: "Todo estudo sobre a criança implica o adulto, suas reações e seus preconceitos". Dentre isso, a certeza da autora é a de que toda a doença grave na criança marca os pais em função de suas próprias histórias.

O que faz então, apesar das dificuldades, a família procurar por assistência psicológica, ressalta A. Freud (1971) não é a presença ou a ausência de sofrimento. Uma neurose infantil tem mais probabilidades de ser levada a tratamento quando os seus sintomas são conturbadores para o meio ambiente. Os pais deixam-se guiar na avaliação quanto à seriedade da situação pelo impacto da neurose da criança sobre eles mesmos. Mostram-se mais preocupados, por exemplo, com os estados de agressividade e de destrutividade do que com as inibições; os atos obsessivos são considerados mais leves do que as crises de ansiedade, embora, na verdade, representem eles um estágio mais avançado do mesmo distúrbio.

Rosenberg (1994, p. 105) refere quanto à dificuldade de reconhecimento de uma demanda na criança:

[...] isso muitas vezes faz com que os pais, atrelados ao exercício da função de desconhecimento, que é característica dos processos imaginários, se dediquem à tarefa de explicar-"ficou assim porque bateu a cabeça"-, de falar em enxurradas, de pedir que o analista concentre a atenção em seu filho, sem, contudo, retirarem-se do centro da cena. Nos confundem a princípio, fazendo-nos crer que comportamentos como a ausência do pai, ou a "superproteção da mãe", são responsáveis pelas manifestações somáticas que seu filho esteja apresentando.

Aberastury (1984, p. 141) mantém a opinião de que somente através da melhoria da criança pode-se condicionar uma real modificação no meio ambiente familiar e, portanto, o trabalho com ela deve se dar na relação bipessoal. É necessário que se tente aliviar a angústia e a culpa dos pais frente à enfermidade ou conflito do filho e descreve a atuação com os mesmos:

[...] durante muitos anos segui a norma clássica de ter entrevistas com os pais e, em certa medida, essas entrevistas me serviam para ter uma idéia da evolução do tratamento e para aconselhamentos. A experiência possibilitou-me compreender que esta não era uma boa solução à neurose familiar, já que os motivos da conduta equivocada eram inconscientes e não podiam modificar-se por normas conscientes. A prática foi me ensinando que o conselho atuava pela presença do terapeuta e que, separados deste, o pai e a mãe seguiam atuando com o filho de acordo com seus conflitos, com o agravante de que, se atuavam como antes, sabiam que isso estava mal e que era causa da enfermidade da criança. O terapeuta transforma-se assim num superego e a culpa se converte geralmente em agressão.

Assim, prossegue afirmando que do ponto de vista profissional existe a necessidade de assumir o tratamento com a criança para alcançar como resultado o alívio dos pais. Se persistirem os aconselhamentos aos pais para ajudar na melhoria do filho e os mesmos não puderem cumpri-las, sentir-se-ão responsáveis por qualquer retrocesso e sua ansiedade será intolerável, chegando, às vezes, na interrupção do tratamento quando este já estiver em curso. A doença para Checchinato (2007) funciona como um sintoma que denuncia um estado psíquico que resulta de como o sujeito foi concebido, gerado, alimentado e mantido em seu desenvolvimento.

Prossegue o autor afirmando que a "cura" da criança depende tanto da atuação do terapeuta como da atitude dos pais e das modificações que estes façam na vida familiar. Isso faz os pais sentirem-se incapazes de seguir as normas por causa de suas próprias limitações, terão a tendência a pensar que o tratamento vai mal e, acabam tomados por sentimento de culpa insuportável.

Observa-se através do que fora exposto até então as notórias "conseqüências" presentes de alguma forma no processo de desenvolvimento da criança e do papel dos pais enquanto reforço de figuras que detêm a possibilidade de precipitar, adiar ou, de forma geral, interferir no processo de desenvolvimento do filho, seja de forma positiva em maior ou menor grau, através de sua dinâmica inconsciente e experiências de vida; seja no não reconhecimento de uma necessidade.

 

A Conduta do profissional

A habilidade do profissional em lidar com as dificuldades dos pais frente à possibilidade de doença psíquica do filho traduz-se, segundo os autores abordados, na manutenção do tratamento, êxito e continuidade do mesmo de forma que a criança consiga sair da posição de adoecida para tornar-se agente ativo do processo de mudança até mesmo do próprio meio em que está inserida (Aberastury, 1984).

O fundamental, no entanto, é a forma com que se dá o manejo técnico com os pais e a clareza do profissional quanto à importância dos mesmos no processo terapêutico de forma a reconhecer os aspectos inconscientes que podem se manifestar tal qual sentimentos, fantasias e demais conteúdos provenientes de suas histórias de vidas enquanto crianças que foram e no desempenho das funções de pai, mãe e casal. O reconhecimento das implicações de um possível adoecimento psíquico do filho nos pais traduz-se pelo respeito às singularidades inclusive da criança que tem a chance de não ser vista única e exclusivamente como o "problema" e transcende o tratamento já que há a possibilidade de identificação, talvez pela primeira vez, de um sintoma que precisa ser visto pelos pais, momento em que pode ocorrer uma desconstrução da figura do filho e, por outro lado, a criação de uma nova imagem que proporciona uma melhor relação com a verdadeira criança, não mais sua extensão narcísica (Lecraire, 1977).

E essa recusa em perceber ou reconhecer que existe uma relação entre os problemas dos filhos e as dificuldades dos pais, pode ser uma reação destes ao se sentirem culpabilizados. É possível que profissionais pouco hábeis coloquem essa questão de uma forma que cause mal-estar e leve os pais a tirarem o filho da terapia, por exemplo, procurar outro profissional ou mesmo se negar a buscar ajuda. Não é difícil encontrar profissionais que se mostrem irritados ou até revoltados porque "esses pais irresponsáveis não percebem quanto mal estão fazendo aos filhos". Isso é comum nos casos de separação, briga pela guarda do filho, violência conjugal e abuso sexual de crianças e adolescentes. É importante considerar os pais também como pacientes, como sujeitos que precisam de ajuda, e não como algozes dos próprios filhos.

Se não é possível encaminhar os pais para análise pessoal como condição para o tratamento do filho e tampouco, plagiando as idéias de Rosemberg (1994, p.66): "curar a criança da presença dos pais" é preciso conhecer a técnica psicoterapêutica infantil e desenvolver um olhar mais atento aos pais, sejam eles adoecidos ou não, enquanto sujeitos que sofrem.

 

Considerações Finais

O presente estudo denota a riqueza de estímulos em que a criança está constantemente exposta, especialmente diante de histórias de vidas e experiências vivenciadas pelos próprios pais.

O direcionamento da atenção a tais contrastes provenientes da construção subjetiva de cada sujeito, cada qual em seu ambiente familiar, denuncia a impossibilidade de entendimento consciente dos pais, que não raro, contribuem para o adoecimento e/ou manutenção da sintomatologia apresentada pelo filho. Cabe aos profissionais o reconhecimento do alcance de um processo avaliativo quando este não leva em consideração as peculiaridades do contexto em que a sintomatologia emerge, bem como a posição dos pais enquanto figuras centrais na trama que se apresenta.

Apesar de um desconhecimento inicial agravado por fatores inconscientes por parte dos pais que aliam sentimentos ambivalentes a busca por respostas, muitas vezes mágicas, que possam dar conta de uma explicação para a problemática, mais certo é o fato de que o sofrimento emerge diante do sofrimento psíquico do filho. Observa-se a presença de sentimentos contraditórios, em especial por sua natureza inconsciente, são ambivalentes: medo, culpa, rivalidade, idealização, amor, enfim, sentimentos que dizem de si próprios e que, por este motivo, tornam-se tão difíceis e fonte de rechaço.

O manejo e a atenção quanto ao fato de que também sofrem cada qual a sua maneira, é que irá delinear as ações terapêuticas que podem ser direcionadas à criança podendo esta, certamente, obter repercussões nos membros da família, individualmente e no contexto familiar como um todo.

Não foi pretensão deste trabalho propor estratégias terapêuticas a partir da maior compreensão das implicações do adoecimento da criança suscitadas nos pais e sim, partir de uma discussão que permita o reconhecimento quanto a necessidade de atuar no sentido de se estimular produções teóricas sobre o assunto.

 

Referências

Aberastury, A. (1984). Psicanálise da criança: Teoria e técnica. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Andolfi, M. (1981). A terapia familiar. Lisboa, Portugal: Veja.         [ Links ]

Brun, D. (2001). O romance familiar da criança como paradigma de sua análise. In R. Graña, & A. B. S. Piva (Orgs.), A atualidade da psicanálise de crianças (pp. 19-33). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Foley, V. (1990). Introdução à terapia familiar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Freud, A. (1971). O tratamento psicanalítico de crianças. Rio de janeiro: Imago.         [ Links ]

Whitaker, C., & Bumperry, W. (1990). Dançando com a família. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Winnicott, D. (1962). Conozca a su niño: Psicología de las primeras relaciones entre el niño y su família. Buenos Aires, Argentina: Horme.         [ Links ]

Winnicott, D. (1993). Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves.         [ Links ]

Leclaire, S. (1977). Mata-se uma criança: Um estudo sobre o narcisismo primário e a pulsão de morte. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Madanes, C. (1997). A família além do espelho. São Paulo: Psy.         [ Links ]

Mannoni, M. (1980). A criança, sua "doença" e os outros. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Mannoni, M. (1981). A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

Minuchin, S., & Nichols, M. (1995). A cura da família. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Nichols, M., & Schwartz, R. (1998). Técnicas de terapia familiar: Métodos e técnicas. Porto Alegre, RS: Atmed.         [ Links ]

Papp, P. (1992). O processo de mudança. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Penso, M. A., Costa, L. F., & Ribeiro, M. A. (2008). Aspectos teóricos da transmissão transgeracional e do genograma. In M. A. Penso, & L. F. Costa, A transmissão geracional em diferentes contextos (pp. 9-23). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Rosenberg, A. M. S. de (Org.). (1994). O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em 27 de janeiro de 2010
Aceito em 03 de março de 2010
Revisado em 10 de abril de 2010

Creative Commons License