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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.3 Fortaleza Sept. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O discurso do analista e a invenção de uma escola em movimento

 

 

Rita de Cássia de Araújo Almeida

Professora, Psicanalista. Mestre em educação pelo PPGE/UFJF. End.: R. Paraisópolis 154/02 Manoel Honório. Juiz de Fora/MG. CEP 36051-530. E-mail: ritalmeida2005@oi.com.br

 

 


RESUMO

A psicanálise tem sido continuamente convocada a dar respostas sobre os mal-estares da educação, mal-estares que rondam todas as formas de laço social e dos quais a escola não pode escapar completamente. Freud vai dizer que educar, governar e analisar são profissões impossíveis. Lacan vai partir desta afirmação freudiana para construir a sua teoria dos discursos. O discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista, são os quatro discursos radicais propostos por Lacan, todos eles presentes em nossas formas de enlaçamento com os outros e, portanto, todos eles presentes na escola. Para Lacan, os discursos se apresentam numa dinâmica, num movimento, e o discurso do analista aparece sempre na passagem de um discurso a outro. Por isso, o que este artigo defende é que a presença do discurso do analista em uma instituição como a escola produz um efeito interessante em sua dinâmica institucional, pois impede que esta se fixe em um ou outro padrão discursivo, evitando sua cristalização. Defendemos a presença e a valorização do discurso do analista para produzir uma escola onde o movimento discursivo aconteça de maneira mais fluida, uma escola onde os mal-estares não precisem ser eliminados, mas sim, transformados em motor e energia para o processo educativo. Uma escola em movimento - escola atravessada pelo discurso do analista - é uma escola que não pretende ter respostas prontas e definitivas para os mal-estares da educação, por outro lado, é capaz de fazer deles: movimento, vida e criação.

Palavras-chave: Psicanálise e educação. Mal-estares da educação. Teoria lacaniana dos quatro discursos. A escola e seus discursos. Uma escola em movimento.


ABSTRACT

The psychoanalysis has been continually called to respond on the uneasiness of education, uneasiness about which all forms of social relations and of which the school can not escape completely. Freud said that will educate, govern and analyze occupations are impossible. Lacan is using this statement of Freud to build his theory theory of speeches. The master's speech, the histeria's speech, the universitary's speech and the analyst's speech are the four proposed radical speeches by Lacan, in all our forms of links with others and, therefore, all attending the school. For Lacan, the speeches are presented in a dynamic, in motion, and the analyst's speech is always in transition from one speech to another. Therefore, this article argues that the presence of the analyst's speech at the school as an institution produces an interesting effect on its institutional dynamics, because it prevents it from setting in one or another discursive pattern, preventing its crystallization. We value the presence and the analyst's speech to produce a school where the movement happens in a more discursive fluid, a school where the discomfort does not need to be eliminated, but transformed into movement and energy to the educational process. A school on the move - school crossed the analyst's speech speech - is a school that does not want to have answers ready for the final and malaise of education, moreover, is able to do them: movement, life and creation.

Keywords: Psychoanalysis and education. Uneasiness of education. Lacanian theory of the four speeches. The school and its speeches. A school in movement.


 

 

Os mal-estares da educação

A psicanálise tem sido continuamente convocada a dar respostas sobre os mal-estares da educação. Violência, desinteresse, indisciplina, desvalorização dos mestres e apatia têm sido alguns dos mal-estares apontados e que ganham espaço cada vez maior na mídia, nas discussões, pesquisas acadêmicas e até mesmo nas conversas do cidadão comum. Diante deles, invariavelmente, incorre-se no equívoco de tentar respondê-los com receitas antigas, ou então de se ficar pensando numa possibilidade de "retorno ao paraíso perdido", como se, de fato, ele tivesse existido em algum momento. O mal-estar sempre rondou a educação - assim como ronda toda forma de laço social - entretanto, fica sempre a sensação de que os mal-estares de hoje são piores que os de ontem. Será mesmo que são?

Birman (1994) nos alerta para o fato de que a psicanálise não se compromete nem com a cura nem com a salvação, não se insere num projeto de imortalidade. Sendo assim, sabemos que seu compromisso é com o que ela vai definir como castração: nossa finitude, nossas impossibilidades e nossas limitações.

Há um impossível instransponível na tarefa de educar, o que implica na constatação de que sempre haverá um mal-estar - um mal-entendido - rondando a tarefa educativa. Veremos o que a psicanálise tem a dizer sobre isso.

 

O mal-estar dos laços sociais

Em seu texto clássico - O mal-estar na civilização (1980a /1929) - Freud vai destacar que a fonte de sofrimento mais penosa para nós é resultante de nossas relações com os outros. Mal-estar que sempre ronda toda a forma de laço e que é o preço que pagamos pela "perda do paraíso", pelo ingresso no universo simbólico da linguagem. Ao optar pela linguagem o ser humano renunciou à possibilidade de acesso ao real, que se tornou para nós algo de impossível significação por meio da linguagem. O mal-estar dos laços é, portanto, o mal-estar da linguagem, que não é capaz de dar conta de todo o real que se apresenta, pois, haverá sempre um impossível de representar.

Freud, em Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn (1980b/1925), se refere a três profissões consideradas para ele como impossíveis: governar, educar e curar. Mais tarde, em Analise terminável e interminável (1980c /1937) curar é substituído por analisar. Essas profissões representam na teoria freudiana, diferentes maneiras de fazer laço.

Com efeito, afirmar que educar, por exemplo, é uma tarefa impossível é partir de uma referência importante: há algo de ineducável na tarefa educativa, ou seja, sempre haverá uma espécie de fracasso nessa forma de laço, assim como em qualquer outra. Entretanto, é essa mesma impossibilidade, essa "imperfeição" discursiva, que faz mover o próprio laço em direção a uma possibilidade. Isso quer dizer que o homem só se dispôs a fazer uso do discurso na medida em que sua forma de enlaçamento com o mundo se dá de maneira incompleta, ou seja, "não-toda", para utilizar o termo de Lacan (1969-1970/1992).

[...] Um impossível radical vigora entre sujeito e outro, impossível que funda mesmo todo e qualquer discurso que visa produzir aí algum grau de possibilitação. (Jorge, 1988, p. 160).

Lacan (1972-1973/1996) nos alerta sobre impossibilidade de fazermos Um com o outro, assim como pretende a relação amorosa. Entretanto, é exatamente tal impossibilidade que faz perpetuar essa forma de relação, ou seja, é exatamente por não formarmos Um é que permanecemos numa forma de enlaçamento possível entre um e outro. Formar Um, nesse sentido, tem a função de criar uma completude, uma plenitude, que inviabiliza qualquer necessidade de laço, afinal, o Um não precisa de nenhum outro. Percebe-se assim que todas as formas de laço social são tentativas de contornar o impossível, de promover um encontro com o real que de fato é, para nós, inacessível.

Lacan (1969-1970/1992) vai considerar - em sua teoria dos discursos - que existem quatro maneiras de se fazer laço social, que vão encobrir as três profissões citadas por Freud. Lacan inclui ainda, a modalidade de laço inaugurada pela histérica, fazer desejar (1969-1970/1992) - que não se trata de uma profissão - completando assim quatro diferentes maneiras de nos relacionarmos com o outro e inaugurando quatro modalidades de discurso: o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista.

A teoria lacaniana dos discursos

As quatro variações discursivas citadas acima serão determinadas pela composição de quatro elementos (os significantes S1 e S2, o sujeito $ e o objeto a) distribuídos em quatro lugares (o agente, o outro, a produção e a verdade). Nas palavras de Lacan: "esse aparelho de quatro patas, com quatro posições, pode servir para definir quatro discursos radicais" (1969-1970/1992, p. 18). Esse aparelho quadrípode será matematizado1 da seguinte maneira:

Os lugares poderão ser ocupados por quatro elementos distintos e a cada quarto de giro fundarão um novo modo discursivo. No entanto, tal aparelho discursivo é dotado de um movimento que gira no sentido horário e que podemos ler da seguinte maneira:

Um agente movido por uma verdade se dirige a um outro que reponde com sua produção. Em outras palavras: a dominante de cada laço é agente de uma verdade que tem a intenção de fazer com que o outro produza algo.

Veremos, assim, que existem várias maneiras de alguém se portar na condição de agente - como S1, como S2, como $ ou como a - o que trará um efeito para toda a cadeia discursiva. São variações que vão definir o tipo de discurso que será produzido: o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário, o discurso do analista. Lacan (1969-1970/1992) concebe ainda um quinto discurso: o discurso capitalista que, como veremos, não faz parte dos quatro discursos radicais por não produzir laço assim como os demais.

Passamos, portanto, à compreensão do mecanismo do discurso do mestre no qual o S1 ocupa o lugar dominante. O mestre vai estar com a verdade, com a lei, com o poder. O escravo estará com o seu outro possível nessa relação: o saber (S2) e o gozo (a). Nesse discurso o mestre comanda, mas não sabe fazer. O saber está com o escravo, é ele quem tem o savoir-faire. É o escravo quem sabe e sabe ainda mais o que o mestre quer - dirá Lacan (1969-1970/1992). Ao mestre cabe apenas um pequeno esforço para que a coisa funcione: dar uma ordem (1969-1970/1992). Ao mestre só importa que as coisas funcionem, não importa porque ou como funcionem.

A dominante do discurso só age sustentada por uma verdade, ainda que uma meia-verdade2 e como podemos notar: situada sob a barra. Isso quer dizer que tal verdade também não é obvia, está oculta, escamoteada. A verdade que fica escamoteada no discurso do mestre é o $, o sujeito barrado, ou seja, o que o discurso do mestre escamoteia é que na verdade o mestre é castrado. E por fim, o que o discurso do mestre produz é o a, para o escravo um mais-de-gozar, porque afinal é um gozo que ele produz apenas para satisfazer o mestre. Ao se colocar na posição de mestria o agente sempre trata o outro como escravo, exercendo sobre ele poder de governo para fazê-lo produzir gozo, gozo para satisfazer o mestre. Esse é o discurso do governo, do comando e fundador de grande parte das instituições modernas.

Ao fazer um quarto de giro em nosso aparelho discursivo o que temos é o discurso da histérica. Trataremos desse discurso partindo do enunciado lacaniano: "A histérica quer um mestre" (1969-1970/1992, p. 111). Assim é o discurso da histérica: o sujeito do inconsciente ($) com seus sintomas dirige-se ao mestre (S1), demandando que ele produza um saber (S2) sobre ele. Mas a verdade em jogo nesse discurso é que a histérica goza com seu sintoma, e o saber produzido pelo outro nunca dará conta do gozo, porque afinal o gozo está sob a barra - inconsciente.

Como já dissemos, da mesma maneira que o mestre deseja comandar, o que a histérica quer quando agencia seu discurso é fazer desejar, colocar-se como causadora do desejo do outro. Por isso - como nos afirma Lacan - a histérica se coloca como preciosa para o outro, ela demanda do outro que ele seja seu S1, seu amo (1969-1970/1992). É assim que a histérica seduz, demandando que o outro a deseje. Mas vejamos no que a histérica se enrola: é que ela quer que o outro a deseje, mas não é capaz de se apresentar como objeto, quer ser desejada como sujeito ($), e aí reside toda a sua problemática. Por isso, dissemos que a histérica está sempre insatisfeita, ela quer que o outro seja seu amo, mas não se submete a ele, só o coloca no trono para destroná-lo. Nas palavras de Lacan o que a histérica quer é "um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina e ele não governa" (1969-1970/1992, p. 122).

Como produção do discurso da histérica temos o saber (S2), mas um saber produzido pelo outro, o que não ajuda em nada ao agenciador desse discurso para produzir um saber próprio, pois, o saber produzido no discurso da histérica estará sempre alienado ao outro.

Com mais um quarto de giro no discurso da histérica teremos o discurso do analista, mas inverteremos a ordem para tratá-lo depois. Seguiremos com o discurso universitário que corresponde a um "passo atrás" do discurso do mestre e um "passo adiante" do discurso do analista.

Dizer que o discurso universitário pretende exercer comando pelo saber fica claro quando percebemos a posição do S2 como agente dominante do discurso. Ter o saber no comando é considerar a possibilidade de haver um saber poderoso e universal. O discurso universitário se apresenta com o saber (S2) no lugar de senhor, tiranizando o outro, tratando-o como objeto (a), como resto, como coisa. O saber no formato do discurso universitário se traduz num conhecimento organizado e cumulativo, capaz de converter-se numa burocracia (Souza, 2003), que apaga o desejo, o desejo de saber.

O sujeito ($), produto do discurso universitário, é um sujeito desafetado, um mero repetidor de enunciados nos quais não se faz presente com seu desejo. Sbano se utilizará das palavras "engessado", "petrificado" e "mumificado" (s/d, p. 28 e 29) para descrever o sujeito produto desse discurso. No entanto, caso o sujeito se recuse a se deixar formatar pelo discurso universitário irá se rebelar, se tornando um sujeito revoltado.

Lacan nos dirá que o discurso da ciência moderna se alicerça no discurso universitário (1969-1970/1992). Segundo ele, é assim que a ciência tem se estruturado, colocando o saber no comando, ditando teorias para tudo. O outro do discurso universitário é o estudante - escravo do saber - porque afinal ele tem que produzir alguma coisa que responda ao saber. No lugar da verdade do discurso universitário encontramos o S1: o autor ou o inventor. Mas o autor está sob a barra, que já sabemos significar que tal verdade está recalcada. Sbano (s/d) dirá que o essencial para tal saber é que ele seja universal e bem fundamentado, de forma a dispensar enunciação. Entendemos, portanto, que em tal discurso importa "o que se diz" e não "quem diz", é o enunciado sem enunciação, que é exatamente o ideal científico: produzir um saber que não contenha nenhum S1 do cientista, do pesquisador ou do autor. A busca da tão sonhada neutralidade científica fica evidenciada nesse discurso, na sua tentativa de ocultar o S1.

Daremos agora um "passo atrás" para chegarmos ao discurso inaugurado pela psicanálise: o discurso do analista.

Mas que posição é essa que o analista ocupa como agente do discurso? Verificando a fórmula algébrica de Lacan (1969-1970/1992) temos no lugar do analista o a. Agenciar o discurso como objeto a é apresentar-se como o efeito mais opaco do discurso, efeito de rechaço, resto da operação da linguagem. Freire (2003) afirma que a psicanálise se ocupa do fracasso, do fracasso da fala (ato falho).

Apesar de todos os discursos possuírem o a em sua formulação, é no discurso do analista que ele será colocado numa posição privilegiada, de agenciador. Lacan dirá que a posição do analista deve se encontrar no pólo oposto a toda vontade de dominar (1969-1970/1992). "Oferecer-se como ponto de mira para o desejo de saber", (1969-1970/1992, p. 100), "oferecer-se como causa de desejo" (1969-1970/1992, p. 99), são outros nomes que Lacan da à posição do agente do discurso do analista, único discurso onde o lugar o agente é ocupado pelo objeto, ou seja, no lugar do analista não há nenhuma pretensão de sujeito. "Se o analista não toma a palavra, o que pode advir dessa produção fervilhante de S1? Certamente muitas coisas." (Lacan, 1969-1970/1992, p. 33). Sendo assim, é de uma proposta de silêncio do agente do discurso que virá o caráter subversivo do discurso do analista. Lacan dirá que o que há de mais subversivo nesse discurso é "não pretender nenhuma solução" (1969-1970/1992, p. 66).

Outra particularidade do discurso do analista é ser o único que trata o outro como sujeito $. No discurso do mestre o outro é tratado como escravo, no discurso da histérica o outro é tratado como mestre e no discurso universitário o outro é considerado objeto. Tratar o outro como sujeito é possibilitar que ele se manifeste com sua singularidade, com seu S1, produto do discurso do analista. Mas o sujeito considerado pela psicanálise é o $ - sujeito do inconsciente - que ao tomar a palavra não pode dizer tudo, na medida em que não é unívoco. Sendo assim, o que o $ vai deixar aparecer são seus equívocos - o mal-entendido - para que disso emerja, como produto do discurso o S1:os significantes singulares de cada sujeito. O sujeito ($) no discurso do analista é, portanto, um sujeito ativo, inventivo, criativo, um sujeito que trabalha, que não está pronto e acabado.

Portar o S2 no lugar da verdade e sob a barra do agente nos informa que a verdade desse discurso é que o analista possui um saber, mas um saber como verdade, ou seja, um saber não completamente sabido - se temos apenas uma meia-verdade também teremos um meio-saber. O S2 é o savoir-faire o "saber-fazer do analista" (Freire, p. 66). Ainda observando o lugar do S2 no discurso do analista, encontramos também sua mola propulsora, na medida em que o outro supõe que o agente possui um saber sobre ele. A isso Freud nomeou de transferência, fundamental para que tal discurso possa se dar. Entretanto, o agente do discurso do analista opera como objeto, o que implica que não fará uso do saber para exercer domínio sobre o outro. Sendo assim, o analista não domina o outro nem pelo saber (como no discurso universitário), nem pelo poder (como no discurso do mestre), nem pela sedução (como no discurso da histérica), seu comando só pode se dar pela transferência, por aquilo que o agente permite que o outro deposite nele, diríamos: o amor. Se a função do analista não é dominar, Lacan dirá que é: "ser o agente causa de desejo" (1969-1970/1992 p.168), provocar o desejo de saber no outro.

Há algo de uma aproximação entre o discurso da histérica e o discurso do analista no que toca a provocar o desejo do outro, entretanto o que o discurso do analista apresenta de diferente é que, ao contrário da histérica, o analista é capaz de se colocar na posição de objeto para provocar desejo.

O discurso capitalista não faz parte dos quatro discursos radicais já citados. Lacan (1969-1970/1992) faz menção ao discurso capitalista no Seminário 17 como uma mutação do discurso do mestre, uma versão da mestria no modo capitalista de produção. Lacan (1953-1978) descreveu o discurso capitalista em uma conferência proferida em Milão, em 12 de maio de 1972. Tal discurso se caracterizaria por uma inversão do discurso do mestre no qual $ e S1 trocam de lugar, além de uma maneira específica de dispor as flechas, numa disposição que indica que, nesse discurso, não há relação entre Sujeito e Outro, relação que vai se dar entre Sujeito e Objeto. Isso implica na afirmação que o discurso capitalista empobrece, enfraquece os laços, pois "o sujeito só se relaciona com os objetos-mercadoria" (Quinet, 2006, p.39).

No discurso capitalista não há mais vínculo entre o senhor moderno, o capitalista e o proletário. A figura do capitalista de hoje tende a desaparecer, e no lugar dominante temos a figura impessoal do capital globalizado (Quinet, 2006, p.40).

Observando o matema desse discurso, temos que, no campo do sujeito está o agente ($) - o consumidor - movido por uma verdade (S1) - o capital ou dinheiro. Sendo assim, no discurso capitalista quem dita a verdade é o capital. "O capital invadiu tudo", nos dirá Quinet, "é o que se chama de globalização" (2006, p.39). No campo do outro encontramos o saber, nesse caso, o saber da ciência (S2) totalmente desvinculado do sujeito e cuja produção (a) são os objetos de consumo ou gadgets. No discurso capitalista a ciência se torna produtora de objetos de consumo, objetos produzidos na intenção de tamponar o desejo.

Ao assumir o lugar da produção o objeto a, a serviço do capital, assume a "condição ideal para ser consumido" (Souza, 2003, p. 138), traduzindo-se no único discurso onde o objeto se torna acessível, ou seja, pode ser comprado. As conseqüências disso para o desejo são claras, pois se nos demais discursos o acesso ao real é barrado, no discurso capitalista tem-se a impressão de que é possível alcançar o real - tendo mais dinheiro, comprando mais, adquirindo objetos, tecnologias e saberes que prometem sempre algo a mais. O discurso capitalista, nesse sentido, promete cumprir a tão sonhada completude do sujeito. Acoplado aos seus gadgets o sujeito acredita poder alcançar a totalidade. Souza (2003) dirá que nesse discurso haverá uma espécie de rejeição da castração, um movimento se suspensão da sua divisão subjetiva, um apagamento de sua subjetividade com conseqüente enfraquecimento dos laços sociais.

 

Os discursos e a escola

A linguagem - campo no qual opera a psicanálise - abarca todas as formas de relação social, o que nos permite levar a teoria psicanalítica para pensar as formas de laço que ocorrem também fora do setting analítico. Sendo assim, se compreendemos que as formações discursivas aqui citadas representam diferentes maneiras de nos relacionarmos com o outro, de nos posicionarmos diante do outro. É fácil perceber a presença de tais discursos nas diversas instituições criadas pelo homem, todas fundadas na tentativa de produzir laço social, inventadas para darem conta de resolver o mal-estar contido nas relações humanas.

Nossas escolas também têm sua função de produtoras de laço, e é obvio que se diga que o próprio processo educativo ainda se funda basicamente no laço entre professor e aluno, ou de maneira mais abrangente, no laço entre educando e educador3. Nesse sentido, também a escola produz suas formações discursivas, podendo tomar algumas como prevalentes no seu funcionamento.

Lacan (1969-1970/1992) afirma que o movimento discursivo quando não gira, range. Isso imediatamente nos faz pensar em algumas instituições que conhecemos onde as coisas não fluem, emperram, porque rangem. São instituições rígidas, estagnadas, embrutecidas, fixadas em algumas posições discursivas que impedem que o movimento da vida aconteça. E conhecemos muitas escolas assim.

Escolas fixadas no discurso do mestre acreditam que tudo vai funcionar bem apenas porque o mestre assim o deseja, acreditam que basta uma ordem ditada por ele para fazer com que os servos obedeçam com competência e subserviência. Em tais escolas há lugar apenas para mestres e discípulos e a única função do discípulo é atender o desejo de seu mestre, não havendo lugar para seu próprio desejo. São escolas onde os alunos são convidados a repetir especularmente o que o mestre propõe, alienando seu próprio desejo, se assujeitando ao desejo do outro. O produto resultante dessa forma de laço é um resto, um dejeto, algo que o servo ou discípulo produz apenas para agradar seu mestre, mas que não tem nenhum valor para ele mesmo. Escolas impregnadas com o discurso do mestre querem apenas que tudo funcione de maneira ordeira e tão silenciosa quanto possível, o que é feito à custa do recalque do inconsciente, ou seja, de tudo que surja de insólito e inesperado.

Também conhecemos outras escolas que destituíram seus mestres, porque afinal eles não funcionam mais, caíram em desuso. São escolas que se intitulam "modernas" e "avançadas" por desbancarem o mestre, no entanto, para substituí-lo construíram um pedestal para os saberes constituídos e as regras. São escolas que privilegiam os enunciados, que os rezam como um dogma religioso. O que as escolas que se sustentam nessa modalidade discursiva fazem é privilegiar o saber tratando o outro como mero objeto4. É um discurso muito presente em instituições burocratizadas que baseiam seu poder em normas e regras impessoais. Muitas escolas, com a inegável queda do poder dos mestres (professores, diretores, ou qualquer um que assuma essa função), têm escapado por essa via para disciplinar os alunos. Se o "você-não-pode-fazer-isso-porque-eu-não-quero" não funciona mais, apela-se para o "você-não-pode-fazer-isso-porque-foi-definido-por-algum-saber-ou-norma-que-não-se-pode-fazer-isso". Assim funcionam as normas, regras, métodos, receitas e protocolos que se cria para que todos sejam tratados de maneira unificada, universalizada, não havendo lugar para a singularidade. Tais escolas são o reduto dos especialistas, dos donos da verdade, que sempre sabem o como e o porquê de tudo. Os especialistas são aqueles que colocam seus saberes debaixo do braço e saem à procura de sujeitos que se façam de objetos para que possam aplicar suas maravilhosas teorias. Escolas fixadas nesse discurso tratam os saberes como dogmas absolutos e inquestionáveis, para isso, precisam recalcar uma verdade: que é o sujeito quem enuncia. Sob o véu da imparcialidade, tais escolas tendem a tratar como iguais os diferentes, acreditando que a melhor maneira de lidar com as diferenças deva ser eliminando-as. Seu produto final são os sujeitos formados, ou melhor, formatados - produzidos em série - ou então sujeitos revoltados: os que se rebelam por não aceitarem ficar na posição de objeto5.

Vejamos como se comportaria uma escola emperrada pelo discurso da histérica, no qual o sintoma está no comando. Teríamos nesse caso uma instituição fixada na queixa, na reclamação. Reclama-se que os alunos são indisciplinados, que os materiais são insuficientes, que os pais são pouco participativos, os professores são desinteressados, que o salário é baixo, que os gestores não conduzem as políticas adequadamente, e fica nisso. Escolas desse tipo se colocam na posição de vítimas, a espera de um mestre qualquer que venha salvá-las e acabam por cair no ciclo doentio da repetição, gerando sintomas dos quais se queixam, mas não desejam sair, fazendo com que a queixa se repita indefinidamente.

Por outro lado, o discurso da histérica pode ser um discurso muito interessante para a instituição, desde que não caia na mera repetição de sintomas, pois é um discurso que faz furo, que desestabiliza o mestre e o faz trabalhar. A histérica, como já vimos, é quem põe o mestre para trabalhar e disso podem surgir coisas muito interessantes para a instituição. Sendo assim, a queixa é muito positiva desde que seu gozo não se alimente da própria queixa.

O discurso capitalista tem se mostrado um discurso cada vez mais presente em nossa sociedade e, conseqüentemente, nas nossas escolas. Uma instituição na qual o discurso capitalista aparece de maneira preponderante indica primeiramente uma fragilização dos laços, já que, como sabemos, esse é um discurso que não faz laço social. Uma escola emperrada pelo discurso capitalista acredita que irá aplacar a sua divisão, sua impossibilidade, adquirindo coisas, e assim, tende a transformar tudo em coisa: em mercadoria. Comandada pelo consumo - o saber, o aluno, o professor - tudo é transformado em objeto-mercadoria, tudo pode ser negociável e comprado pelo maior valor. É uma instituição que acredita que educação de qualidade tem a ver com o número de bugigangas ou tecnologias que se tem à disposição, que se preocupa apenas em produzir sujeitos para os concursos, para os vestibulares, para o mercado de trabalho, ou seja, mais consumidores ávidos por manterem viva a dinâmica do capital.

Outra característica presente em escolas comandadas pelo capital é que elas se preocupam excessivamente em criar escalas de valor. Estão sempre prontas a distinguir os que elas escolhem como os mais aptos e competentes, dos que considera mais fracos. Preocupadas com "rankings", tornam-se excludentes e segregadoras, como o próprio sistema capitalista, que elas recriam e reforçam. Produção, competitividade e otimização do tempo, são valores cultuados por tais escolas, importantes para formar cidadãos produtivos, ou seja, consumidores em potencial. As diferenças não são do interesse dessas espécies de escola, pois são sempre vistas como um desvio à norma, um incômodo a ser resolvido.

Ao desenharmos essas caricaturas de escolas, pensando cada uma delas emperradas por um discurso, não pretendemos, com isso, afirmar que tais instituições existem, de fato, dessa forma. Nas escolas, assim como em todas as instituições e relações sociais, todos os discursos estão presentes. Aprendemos com Lacan (1972-1973/1996) que os quatro discursos - incluindo o discurso do analista - só podem existir numa dinâmica, num movimento, o que faz com que todos eles tenham seu lugar, função e importância, por serem todos eles modos de fazer laço. Isso implica no fato de que não é possível, de maneira nenhuma, permanecer em um só discurso, no entanto, é possível que haja a prevalência de algum, ou alguns discursos, e a desvalorização de outros, o que necessariamente vai trazer implicações sobre o modo de ser de uma escola, sobre seu movimento e sobre sua forma de produzir laços.

 

A presença do discurso do analista na escola

Primeiramente, trataremos de reiterar a distinção entre psicanálise e discurso do analista. Dizer que a psicanálise está presente em uma instituição não quer dizer a mesma coisa que dizer que o discurso do analista está presente. A psicanálise é uma teoria, não uma forma discursiva, e pode também, apesar de não dever ser assim, ser abordada sob signo do discurso universitário, por exemplo, o que não é incomum6. Isso quer dizer que não é preciso ser psicanalista ou estudar a teoria psicanalítica para fazer uso de seu discurso e, também o contrário, estudar teoria psicanalítica não tem a ver necessariamente com o uso do discurso do analista.

Em seu Seminário 20, Lacan (1972-1973/1996) nos dirá duas coisas que nos importam muito. Primeiramente ele vai dizer que é somente a presença do discurso da analista que permite a estruturação dos demais discursos. Em seguida afirma que entre um discurso e outro haverá sempre alguma emergência do discurso do analista. Utilizando suas palavras:

Ao aplicar essas categorias que em si mesmas só se estruturam pela existência do discurso psicanalítico, é preciso prestar atenção à colocação em prova dessa verdade de que há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro. (Lacan, 1972-1973/1996, p. 26,27).

Tomando o discurso do analista como o discurso do mal-entendido, concluímos que é somente para tentar resolver esse mal-entendido que o ser humano vai se utilizar das demais formações discursivas. Ou seja, é por causa do fracasso da linguagem em dar conta de todo o real que as tentativas de laço vão se instaurar. É por isso que os demais discursos só podem ser pensados pela presença do discurso do analista. Isso corrobora com a afirmação de que há emergência do discurso do analista na passagem de um discurso para outro, afinal, cada vez que um discurso qualquer se instala na tentativa de produzir laço produz-se um resto não simbolizável que fracassa a qualquer tentativa de simbolização. Esse resto - o fracasso do discurso - faz emergir o discurso do analista, antes mesmo que se tente responder ao apelo do real com outro discurso.

Com efeito, concluímos que o discurso do analista está presente o tempo todo na escola, ou seja, a qualquer momento um pedaço de real pode alcançar a posição de agente do discurso. A questão é: o que fazer com isso que o discurso do analista aponta como direção?

A descoberta freudiana do inconsciente nos dá uma pista para responder tal questão. Freud descobre o inconsciente quando percebe que há uma descontinuidade no discurso do sujeito. Os chistes, os lapsos e o atos falhos, vão demonstrar que o sujeito não é unívoco, ou seja, ele não está lá todo o tempo no controle da linguagem, e é quando sua divisão emerge que sua impossibilidade se evidencia. Miller (1997) dirá que esses são momentos nos quais o sujeito se vê ultrapassado pela palavra. O inconsciente é exatamente o sinal da castração do sujeito, da impossibilidade de dar conta de todo o real, é a falha, a descontinuidade no discurso. Sendo assim, o que o discurso do analista evidencia e dá importância é o que todos os demais discursos tentam resolver ou ocultar: o mal-entendido.

Vejamos o que acontece quando, por exemplo, cometemos um ato falho - queremos dizer uma coisa e dizemos outra que até mesmo contradiz a primeira intenção. A reação mais imediata é a de reparar o equívoco, retomar o controle sobre aquilo que nos atravessou. O que a psicanálise inventa com seu discurso é uma maneira de fazer uso disso que seria apenas um dejeto, um refugo da linguagem a ser descartado7.

Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo a das linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na língua, o que a fratura. (Lacan, 1972-1973/1996, p. 61).

Se o discurso do analista é, então, capaz de colocar na posição de comando o que é a própria fratura de tal discurso, quer seja, o real - outro nome do objeto a - temos o que há de subversivo nesse discurso: assumir o impossível, ou seja, assumir que é impossível educar, governar, se fazer desejar ou analisar sem que algo fracasse. No entanto, o que geralmente se faz em grande parte das escolas é tentar encobrir o impossível que o discurso do analista evidencia. Entendemos, no entanto, que fazer uso, ou melhor, valorizar o discurso do analista, é transformar o impossível em motor institucional.

Dessa maneira, o que pode haver de subversivo no discurso do analista é que, ao ser aceito e valorizado, não permite que os demais discursos emperrem a instituição, ou seja, ainda que todos os demais discursos se façam presentes numa escola - como de fato acontece - considerar o discurso do analista como interventor é promover um dinamismo interessante na instituição. Entendemos assim a vitalidade que a presença do discurso do analista pode proporcionar, já que serviria de motor, no sentido de não permitir que a escola se fixe em um ou outro discurso.

Acreditamos assim que o discurso do analista pode contribuir no sentido produzir movimento, impedindo que os demais discursos emperrem a instituição. Mas que movimento seria esse afinal?

Lacan (1972-1973/1996) defende o que há de subversivo no discurso analítico, para isso, ele se refere à revolução copernicana que, a seu ver, não é de maneira nenhuma uma revolução. O que Copérnico fez - segundo Lacan (1972-1973/1996) - foi tão somente mudar o centro, trocá-lo da terra para o sol, o que não muda em nada nossa concepção de mundo, que permanece ainda assim, perfeitamente esférica. "O significado acha seu centro onde quer que vocês o carreguem" (Lacan, 1972-1973/1996, p. 59).

O que resta no centro é essa boa rotina que faz com que o significado guarde, no fim das contas, sempre o mesmo sentido. Este sentido é dado pelo sentimento, que cada um tem, de fazer parte de seu mundo, quer dizer, de sua familiazinha e de tudo que gira ao redor (Lacan, 1972-1973/1996, p. 58).

A verdadeira subversão seria, assim, poder substituir o "isso gira por um isso cai" — dirá Lacan (1972-1973/1996, p. 59). Sendo assim, o discurso do analista provoca uma queda, um corte, que permite que o movimento discursivo se faça de outra maneira, sem que se reproduza apenas o girar em torno de.

Se não houvesse discurso analítico, vocês continuariam a falar como papagaios, a cantar o disc-cursocorrente, a fazer girar o disco [...] (Lacan, 1972-1973/1996, p. 48).

A presença do discurso do analista interroga, interpela, evidencia o mal-entendido, o impossível de cada discurso. Isso, além de provocar uma quebra em possíveis cristalizações discursivas, também evita uma mera repetição discursiva, provoca uma implosão nesse ponto giratório sobre o qual tendemos a nos agarrar. O que o discurso no analista vai produzir de interessante para uma instituição é exatamente uma movimentação e também uma mudança no curso do movimento, pois não se trata mais de produzir um movimento circular em torno de alguma coisa.

A educação tradicional foi muito criticada em determinado momento por colocar no centro as questões do educador, no entanto, com o declínio do mestre, tendeu-se a colocar o aluno no centro, acreditando que essa seria a saída. Seguindo o raciocínio de Lacan (1972-1973/1996) apenas se mudou o centro, continuamos pensar da mesma maneira, de que afinal alguma coisa precisa estar no centro: se não são os professores, que seja então os alunos, o método, ou o quem sabe as tecnologias. No entanto, o que o discurso do analista pode oferecer a uma instituição como a escola, é fazer com que seu movimento não se limite a apenas girar em torno de algo, mas possibilitar a produção de novos movimentos, movimentos múltiplos que se deslocam em todas as direções. Na medida em que o discurso do analista provoca uma quebra, um desarranjo discursivo, não se pode mais manter a continuidade dos movimentos circulatórios, e o que se arranja com isso são movimentos descontínuos, desarrumados, imprevisíveis, afinal não há mais nada no centro que sirva de regulador ou ordenador. Esse "nada" pode representar com precisão a posição do a no discurso do analista, aquele que está no comando: o silêncio, o objeto perdido, a ausência, a perda, o refugo, o real.

À primeira vista essa idéia de não colocarmos nada no centro, ou melhor, de que na verdade não há centro, nos parece caótica e impossível de conceber. Mas, retomando o conceito psicanalítico de impossível entendemos que, na verdade, tal concepção é tão impossível quanto as demais. Em outras palavras, todas as modalidades discursivas são igualmente impossíveis para remediar o irremediável, para responder as questões sobre o sexo e a morte, para fazer com que se apreenda o real, para que a operação da linguagem se faça sem resto. O que o discurso do analista tem de inovador é que ele é o único que assume esse impossível, acolhendo a limitação do sujeito humano em fazer com que o mundo gire estável, sem grandes saltos.

Lacan (1972-1973/1996) afirma que, sempre que tentamos tapar, colmatar o impossível caímos na impotência: ao nos defendermos do impossível nos instalamos na impotência. Já dissemos que todo discurso é uma tentativa se dar conta desse impossível, de nomear o inominável. No discurso do mestre tentamos comandar o impossível, fazendo com que ele se submeta às nossas ordens. Pelo discurso universitário, tentamos nomear o impossível criando sobre ele saberes: científicos, teóricos ou religiosos. No discurso da histérica, a saída é ficar se queixando do impossível. No discurso capitalista, acredita-se que o impossível pode ser aplacado com objetos de consumo. O que há de inédito no discurso do analista é que ele é o único a se sustentar exatamente no impossível, assumindo que não se pode encobri-lo, comandá-lo ou silenciá-lo, mas que isso não implica em, necessariamente, ficar impotente diante dele, pois afinal, não se pode permanecer nesse impossível. Silveira nos dirá o seguinte:

Nos outros discursos se pode estar, ao contrário do discurso do analista, onde só se pode passar: não se pode permanecer no real (s/d, p. 1).

Sendo assim, o que o discurso do analista nos ensina é que existe uma outra maneira de se lidar com o impossível que não seja ficar paralisado ou impotente diante dele.

 

Uma escola em movimento

Discorreremos agora sobre nossa proposta: uma escola em movimento, uma escola capaz de se deixar interpelar pelo discurso do analista, uma escola que não se esquiva do mal-entendido.

Uma escola em movimento é uma escola pulsante, cujo movimento discursivo é rico, porque, não se fixa em um ou outro discurso e nem se limita a produzir um girar em torno de algo. Sendo assim, há nela lugar para todos os tipos de discurso, afinal não há intenção de se criar um ambiente asséptico e controlado.

Uma escola em movimento é uma escola que possui mestres, mas não mestres intocados e sim provisórios8. É uma escola que possui regras e burocracias, mas sabe como se esquivar delas quando necessário; é uma escola que permite a queixa, mas não se fixa nela; é uma escola que não se deixa escravizar pelo domínio do capital, pois sabe que educação de qualidade não está à venda num balcão de ofertas.

Uma escola em movimento não se coloca numa posição narcisista de não admitir o erro, o furo, o desarranjo, porque não persegue um ideal, porque está sempre em construção, se reinventando a cada situação nova. É uma escola leve, fluida, capaz de rir dos próprios enganos e deslizes. Uma escola em movimento é uma escola não-toda, que admite suas impossibilidades, suas limitações, mas é exatamente isso que lhe abre para o desejo de fazer o possível, que lhe impede de ficar paralisada na impotência.

Grande parte dos esforços pela melhoria na qualidade da educação e das nossas escolas passa facilmente pela tentativa de encontrar alguma escola, algum modelo, algum método ou alguma tecnologia que alcance uma suposta perfeição. Persegue-se uma escola e uma educação que tenham tudo o que for necessário para que seu objetivo de completude e plenitude seja alcançado. É necessário que tenhamos professores capacitados e constantemente reciclados9; é preciso que se tenha material pedagógico de excelência e tecnologias de última geração; as instalações físicas precisam ser amplas, limpas, arejadas, claras e silenciosas; as famílias e a comunidade devem ser participativas e atuantes; os gestores precisam estar cientes e antenados com políticas e técnicas modernas e eficientes; os professores precisam ser valorizados em sua profissão; ou seja, comumente se defende que, para haver escolas e educação de qualidade, é necessário que se fique livre de qualquer suposta imperfeição e incompletude. Para usar o termo psicanalítico, almeja-se uma escola-toda ou uma educação-toda, como se fossem a resposta definitiva para todos os mal-estares: os da educação e todos os outros (os das injustiças sociais, do desemprego, da criminalidade, o da pobreza, etc.).

Oferecemos, por outro lado, uma escola em movimento, que de longe é uma escola perfeita, afinal, seus professores são pouco valorizados e alguns não tem interesse em se qualificar e é possível que grande parte do processo ensino-aprendizagem se faça com o tradicional cuspe e giz. É uma escola que, provavelmente, tem infiltrações no teto, carteiras quebradas e pouco confortáveis e espaço inadequado para a biblioteca. Está inserida em um contexto social de violência e marginalidade, enfrenta sérios problemas com a indisciplina e a desmotivação dos alunos, que estão longe de ser um corpo homogêneo, dócil e disciplinado. Ou seja, uma escola em movimento, está muito longe de ser uma escola modelo, porque é uma escola cheia de imperfeições, enfrenta inúmeras dificuldades e problemas. Harmonia e homogeneidade não fazem parte do dia-a-dia de tal escola, que se aproxima muito mais da turbulência e da diversidade. No entanto, é uma escola que faz a diferença, porque é capaz de fazer de suas dificuldades e limitações, não um empecilho, um entrave, mas motivação para fazer novos laços - laços de afeto - fundamentais para que haja educação de verdade.

Enfim, uma escola em movimento, não se engana com atributos tais como perfeição e ideal, acredita que o real possui motivos e produz inspiração suficiente para

 

Notas

1. Com exceção do matema do discurso capitalista, todos os demais foram retirados do Seminário 17 de Lacan (1969/1980).

2. Para Lacan (1969-1970/1992) a verdade é a mola propulsora do discurso, mas ela nunca pode ser dita por inteiro. Sendo assim não se pode dizer toda a verdade, mas também não se pode dizer sem ela.

3. Esse é um laço que já tem sofrido seu abalo com as propostas de educação à distância ou de instaurar o computador como o mais competente dos educadores. Para a psicanálise, no entanto, o que acontece nesses casos é qualquer outra coisa que não educação, pois educação pressupõe ingresso em uma forma de laço social que não se faz sem um e outro. Mannoni (1988) afirma que a educação cedeu lugar à instrução.

4. As reuniões pedagógicas impregnadas do discurso universitário transformam o aluno em objeto de estudo e intervenção, ou seja, é necessário que se crie um saber sobre o aluno para então propor uma teoria que responda a questão sobre porque ele aprende ou não aprende, por exemplo. Lefort (1988) dirá que esse é um saber inútil, que faz com que os locais de circulação da palavra na instituição percam sua vitalidade.

5. Acreditamos que o que se chama de "fracasso escolar" - sintoma que toma conta do cenário educativo atual - é resultante da dimensão que o discurso universitário tem tomado em nossas escolas. Recusando serem formatados os alunos se rebelam, se revoltam contra uma espécie de educação que quer transformá-los em objeto. Com efeito, concordamos com Cohen (2002) quando ela afirma que onde a educação fracassa emerge o sujeito do desejo.

6. Muitas instituições de transmissão da psicanálise, também caem no engodo de ensinar a psicanálise sob o signo do discurso universitário, transformando seu saber em dogma religioso, em uma teoria morta.

7. O sonho é outro instrumento utilizado pela psicanálise e que é considerado por grande parte das ciências como uma espécie de lixo, um excremento mental.

8. Este termo "mestre provisório" é utilizado por Marcelo Pereira (s/d).

9. É muito interessante que se utilize o termo reciclagem para falar da capacitação dos professores. Reciclar é uma operação que não permite que haja resto, ou seja, seu propósito é evitar que não se perca nada, numa tentativa de encontrar um saber que abarque tudo e um sujeito do qual nada escape.

 

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Recebido em 2 de março de 2010
Aceito em 15 de abril de 2010
Revisado em 5 de junho de 2010

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