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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.3 Fortaleza set. 2010

 

RESENHAS DE LIVRO

 

As viúvas das quintas-feiras: as subjetividades herméticas e a pluralidade das cidades

 

 

Autora da resenha
Maria Luísa Magalhães Nogueira

Mestre em Psicologia Social/UFMG. Doutoranda em Geografia - Instituto de Geociências/UFMG; Professora do Departamento de Psicologia/UFMG End.: R. Atalaia, 50/302 Caiçara Belo Horizonte/MG CEP 30770-470 Belo Horizonte/MG E-mail: marilumn@yahoo.com.br

 

 

 

(Claudia Pineiro)
Editora Alfaquara, 2007, 256 págs.

"em La Cascada não há grades. Não são necessárias"

A cidade somos nós. Habitamos a cidade e a cidade nos habita. Mas a cidade não é a mesma para todos que nela habitam. Cercas, câmeras de segurança, grades e muros, que se insinuam de forma cada vez mais recorrente em nosso cotidiano, são evidências da impossibilidade de homogeneidade da cidade, como experiência sensível e como materialidade. Entretanto, se por um lado, é impossível pensar nessa correspondência absoluta, numa inteireza completa, por outro, sabemos que nossas cidades não são pedaços. A despeito do discurso de fragmentação que a trespassa, dos recortes que o tecido urbano enfrenta, podemos pensar que as cidades são feitas de pluralidade.

Essas reflexões iniciais nasceram inspiradas no cotidiano dos moradores de um condomínio fechado específico, ainda que fictício: Altos de la Cascada. Trata-se de um condomínio luxuoso, reservado apenas a alguns, situado nos arredores de Buenos Aires. La Cascada é um importante personagem do livro As Viúvas das quintas-feiras, da argentina Claudia Piñero. Este é certamente um livro sobre a hipotética fragmentação da cidade, sobre a violência e os modos de vida urbanos - ainda que a leitura proposta seja feita pelo seu avesso. Ao tratar do cotidiano, na primavera de 2001, dos habitantes de Los Altos, a autora nos convida a refletir sobre os significados da busca pela negação da cidade, pela recusa ao conflito (Rancière, 1996), sobre as políticas de espacialidade que marcam as experiências subjetivas contemporâneas.

Por meio desta obra literária, podemos refletir sobre as experiências subjetivas tecidas através da (aparente) supressão histórica, simbólica, material, promovida por processos de fechamento e enclausuramento, de busca por segurança e consenso, tais como os que engendram a multiplicação dos chamados enclaves fortificados nas mais diversas cidades. Como sugere Teresa Caldeira:

Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. Esses espaços encontram no medo da violência uma de suas principais justificativas e vem atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os 'marginais' e os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades fragmentadas em que é difícil manter os princípios básicos de livre circulação e abertura dos espaços públicos que serviram de fundamento para a estruturação das cidades modernas. (Caldeira, 1997, p. 155)

Ainda segundo a autora, os enclaves fortificados têm como conseqüência imediata a redução substancial das "interações cotidianas entre habitantes de diferentes grupos sociais" (Caldeira, 1997, p. 174). Para ela, outro índice importante desses "novos" arranjos urbanos é, efetivamente, a segregação social como um valor, justamente por serem marcados por seletividade e separação. Deste modo, podemos identificar facilmente os loteamentos de acesso restrito (os chamados condomínios fechados) como enclaves fortificados, mas também podemos reconhecer os shoppings sob essa construção teórica.

De acordo com Beatriz Sarlo (2009) os shoppings surgem como um substituto da cidade. Eles buscam ser indiferentes a ela, negando sua transitoriedade, sua (des)organização, seu movimento, seus conflitos. Os mesmos processos são transportados para as moradias de segregação voluntária. Nelas, são precisamente os conteúdos políticos (Rancière, 1996) - o dissenso e o conflito, a partilha do sensível - que passam a ser elididos, sob o discurso da segurança, do contato com a natureza, vendidos como mercadorias no mesmo pacote de um modo de vida exclusivo.

Há que se marcar que a multiplicação desses arranjos de moradia é concomitante à produção do medo como ingrediente do cotidiano urbano. Neste sentido, a singularidade do livro As viúvas das quintas-feiras reside, certamente, no sentimento de familiaridade que convoca. Por isso, demoramos alguns capítulos para compreender aonde a autora quer chegar; mesmo sabendo claramente de onde ela partiu: de nossas cidades, erguidas sob uma alteridade cosmética.

O sentimento de insegurança, para Sarlo (2009), se converteu atualmente numa preocupação central: "o medo da cidade e o medo na cidade". (Sarlo, 2009, p. 231). Esse medo, de acordo com Edward Soja, gera a "intensificação do controle social e espacial que implicou novos desenvolvimentos da privatização" (Soja, 2008, p. 420). Por isso, o medo é definitivamente o elemento mais presente nas 252 páginas da obra, que é tributária de sua interrogação final: "está com medo de sair?".

Mas por que falar tanto de medo? Se a história se passa em um condomínio fechado - um suposto templo à segurança? Pois ali o medo espreita discretamente, entre as construções sofisticadas e semelhantes: medo do outro que alimenta a busca constante pela convivência entre iguais; o medo do semelhante:

A abertura para o outro que habita em nós é uma condição para a tolerância, pois uma das bases da intolerância é o mecanismo defensivo de projetar sobre o outro - meu semelhante na diferença - tudo aquilo que eu rejeito em mim mesmo. Se não quero admitir o 'mal' e a contradição em mim mesmo, vou projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de que não quero saber, em mim. E, quanto mais próximo for o próximo, mais ele serve de suporte para esse mecanismo de defesa (...). (Kehl, 2004, p. 122)

A obsessão pelo medo revela a delícia de se sentir desejado, cobiçado. Marca a importância da desqualificação do outro para a produção de si. Mesmo dentro dos muros do condomínio:

As casas são diferentes, nenhuma pretende ser abertamente cópia de outra. Ainda que o seja. Impossível não parecer quando é preciso respeitar estéticas semelhantes. Ou porque assim ordenam o código edilício ou a moda. Todos gostaríamos que a nossa casa fosse a mais bonita. Ou a maior. Ou a mais bem construída. (Piñero, 2007, p. 23)

São vários os processos de homogeneização a que se submetem os personagens de Piñero. Mas o que toda essa hegemonia do mesmo revela é justamente a necessidade ineliminável de sermos afetados e invadidos pela diferença; evidencia a impossibilidade da dissolução da alteridade.

Se por um lado a alteridade não é preensível, por outro, revela-se ineliminável. Afinal, os espaços de alteridade são criados pela chancela do outro, por seu olhar, erguendo-se como aberturas potenciais à interlocução. A interlocução, por sua vez, é uma trama de intervalos, de fronteiras que funcionam como espaços potenciais de encontro, interfaces: "as fronteiras se entrecortam, evidenciando vários mundos e poderes interpenetrantes" (Hissa, 2006, p. 43); intervalos preenchidos de alteridade.

Se não conseguem evitar a diferença, querem-na, antes, exclusivamente para si - produzindo uma alteridade cosmética, na qual o reconhecimento do outro passa antes pela desqualificação, por isso ele só existe para ser monitorado cuidadosamente. Contudo, como sugere Bauman, "as cercas têm dois lados. Dividem um espaço antes uniforme em dentro e fora, mas o que é dentro para quem está de um lado da cerca é fora para quem está do outro." (2009, p. 39). Isso significa que os muros que se multiplicam em nossas cidades, que tornam as moradias cada vez mais parecidas com clausuras, não servem efetivamente ao impedimento do outro, pois ele chega de outras formas, ele está ali. Há muito o que aprender sobre os novos arranjos urbanos - e sua dimensão subjetiva - na literatura e, para isso, o texto de Piñero é primoroso. A cidade emerge pelo seu avesso, sua negação:

Todos os que viemos morar em Altos de la Cascada dizemos ter feito isso buscando 'o verde', a vida saudável, o esporte, a segurança. Com essa desculpa, inclusive diante de nós mesmos, acabamos por não confessar por que viemos. E, com o tempo, já nem nos lembramos. (Piñero, 2007, p. 25)

O cotidiano desses personagens revela-se profundamente marcado pelo lugar. É quase impossível separá-los. Sempre precisamos partir de um lugar. Os lugares possuem uma força singular na espacialização social. Ao conectar-se com o cotidiano, em sua dimensão espacial (imprescindível), a categoria lugar parece impedir qualquer tentativa de uma circunscrição conceitual dicotômica que indique o puramente físico, isto é, parece conseguir desviar-se da racionalidade dicotômica/disciplinar moderna. No lugar, o material nunca é puro, mas ao contrário, é entalhado no simbólico, imaterial. O mundo dos lugares é um mundo de elementos que parecem intangíveis: o cotidiano, o simbólico, a subjetivação, a vida. É justamente nos lugares que a experiência subjetiva acontece como produção de sentido, movimento e diferenciação. Contudo, todo esse processo exige um mergulho permanente no conflito, no encontro com o outro, com os lugares dos outros. Por isso, os lugares são sempre lugares de conflito, onde as contradições podem emergir e onde se faz conviver dialeticamente os elementos de que se tece a vida. Mas os personagens de Piñero parecem apenas existir sob as condições de pertencerem àquele lugar: "como se fosse possível, em certa idade, arrancar as folhas de um diário e começar a escrever um novo" (Piñero, 2007, p. 25).

Suas histórias, portanto, são também tecidas a partir do lugar, mas este é, por sua vez, tramado em soluções de cunho pura,ente privado. Encontramos ali, portanto, subjetividades mais-que-privatizadas, mais que narcísicas: herméticas. Pois prescindir do espaço público, da vida pública (política) pelos princípios da privatização, da segregação, do encarceramento voluntário é a evidente intensificação da alienação social, reerguida, paradoxalmente, em nome da paz, da qualidade de vida e da natureza.

Esses modos de vida, marcados por propostas de exclusividade, luxo e segurança, que se multiplicam intensamente pelas cidades brasileiras, o fazem estritamente por meio da negação da própria cidade, do convívio com a diferença e com a política. Delimitam assim a conformação de modos de vida e de subjetivação, simulam-se sujeitos.

 

Notas

1. As traduções das citações de Beatriz Sarlo e Edward Soja foram realizadas por mim.

 

Referências

Bauman, Z. (2009). Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Caldeira, T. P. R. (1997). Enclaves fortificados: A nova segregação urbana. Novos Estudos Cebrap, (47), 155-176.         [ Links ]

Caldeira, T. P. R. (2000). Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp.         [ Links ]

Piñeiro, C. (2007). As viúvas das quintas-feiras (J. A. D'Avila Melo, Trad.). Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Rancière, J. (1996). O dissenso. In A. Novaes, A crise da razão. Brasília, DF: Cia das Letras.         [ Links ]

Sarlo, B. (2009). La ciudad vista: Mercancias y cultura urbana. Buenos Aires, Argentina: Siglo XXI.         [ Links ]

Soja, E. (2008). Postmetrópolis: Estudios críticos sobre las cidades y las regiones. Madrid, España: Traficantes de Sueños.         [ Links ]

 

 

Recebido em 28 de fevereiro de 2010
Aceito em 02 de junho de 2010
Revisado em 19 de julho de 2010

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