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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza dez. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Institucionalização e reinserção familiar de crianças e adolescentes

 

 

Lília Iêda Chaves CavalcanteI; Simone Souza da Costa SilvaII; Celina Maria Colino MagalhãesIII

IDoutorado em Psicologia (Teoria e Pesquisa do Comportamento) pela Universidade Federal do Pará. Docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará - PPGTPC/UFPA. Professora da Faculdade de Serviço Social - FASS/UFPA. End.: R. Padre Eutíquio, 1922. Batista Campos. Belém-PA. CEP: 66.033-000. E-mail: liliac@ufpa.br
IIDoutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília. Docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 2). End.: R. Farias Rodrigues, 16. Curió-Utinga. Belém, PA. CEP: 66610-530. E-mail: symon@ufpa.br
IIIDoutorado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 2). E-mail: celina.magalhaes@pesquisador.cnpq.br

 

 


RESUMO

Este artigo traz reflexões sobre a reinserção familiar de crianças e adolescentes institucionalizados, apresentando estratégias e procedimentos necessários à preparação do seu retorno à convivência em família. Discute aspectos históricos e teóricos que caracterizam a família e o abrigo como contextos primários e abrangentes de desenvolvimento humano, especialmente nas circunstâncias de vida em que a criança e o adolescente se encontram em situação de vulnerabilidade social e existe grave ameaça à sua integridade física, psicológica e moral. Apresenta resultados de estudos e pesquisas que procuram revelar as condições em que a criança e adolescente vivenciam transições importantes como o seu afastamento do núcleo familiar e posterior acolhimento por uma instituição de abrigo. Assim como discute questões trazidas por diversos autores acerca dos limites e possibilidade do processo de desligamento de um programa de acolhimento institucional e o caminho de volta para casa sob a ótica dos sujeitos envolvidos. Destaca, sobretudo, a importância de medidas sociais adotadas pela instituição para preservar e fortalecer os vínculos familiares, promovendo um retorno rápido e seguro ao convívio com os pais e demais familiares. Situa a discussão do direito à convivência familiar no campo da política de atenção às necessidades básicas e especiais da criança e do adolescente em situação de vulnerabilidade social, assim como o valor dessa experiência para o desenvolvimento humano.

Palavras-chave: Criança. Adolescente. Abrigo. Institucionalização. Reinserção familiar.


ABSTRACT

This article contains reflections on family reintegration of institutionalized children and adolescents, presenting strategies and procedures needed to prepare his return to living with the family. Discusses historical and theoretical perspectives that characterize the family and the shelter as primary contexts and comprehensive human development, especially in the circumstances of life in which children and adolescents are in a situation of social vulnerability and there is serious threat to their physical, psychological and moral. Presents results of studies and research aimed at revealing the conditions in which children and adolescents experience major transitions such as being away from the family nucleus and subsequent reception by a shelter. As discussed matters brought by several authors about the limits and possibilities of the process of shutting down a program of residential care and the way back home from the perspective of those involved. It highlights in particular the importance os social measures adopted by the institution to preserve and strengthen family bonds, promoting safe and quick return to living with parents and other family members. It situates the discussion of the right to family policy in the field of attention to basic needs and special conditions of children and adolescents in situations of social vulnerability, as well as the value of this experience for human development.

Keywords: Child. Adolescent. Shelter. Institutionalization. Family reunification.


 

 

1. A família como contexto primordial do desenvolvimento humano

As mudanças que se processaram no pensamento científico nas últimas décadas alteraram, de maneira significativa, a percepção dos objetos de interesse de diferentes disciplinas. A psicologia do desenvolvimento constitui uma área da ciência cuja observação permite identificar claramente essa nova postura. O rompimento com a lógica causal permitiu aos pesquisadores do desenvolvimento adotar uma compreensão ampla acerca do seu objeto de estudo. Na esteira dessas mudanças, os teóricos da área discutem, de forma mais articulada, como e por que o ciclo de vida humano é marcado por períodos de estabilidade e mudança que ocorrem em função da atividade de fatores biológicos e culturais.

Dentre os modelos teóricos que têm contribuído com os estudos empíricos nesta área, destacam-se as ideias do pesquisador russo Urie Bronfenbrenner. Sua matriz de pensamento envolve um conjunto de explicações articuladas que evidenciam o desenvolvimento humano como um fenômeno marcado pelas interações entre a pessoa, o processo, o contexto e o tempo. Nessa perspectiva, o processo, entendido como relações, constitui-se no elemento mais importante no modelo bioecológico proposto por este teórico, que se refere a este como "o motor do desenvolvimento humano". (Bronfenbrenner e Ceci, 1994).

Desse modo, são as relações estabelecidas entre a pessoa e seu contexto ecológico que constituem os processos proximais e definem, em grande parte, o curso do seu desenvolvimento ao longo do tempo. (Bronfenbrenner, 1986). Isso significa dizer que os processos proximais se realizam sob uma base duradoura que envolve o organismo biopsicológico, as pessoas, os objetos e os símbolos.

Nesses termos, a ênfase dada por Bronfenbrenner (1986) à natureza estável dos processos e seu impacto sobre as trajetórias desenvolvimentais pode justificar o argumento que define a família como o principal contexto de desenvolvimento humano. Na verdade, este é um contexto diferenciado não apenas porque nele se estabelecem as primeiras ligações afetivas do sujeito, mas também porque sua existência e configuração o mantêm estável por muito tempo. De fato, os demais contextos que o indivíduo participa, como a escola e a igreja, em geral são transitórios e sua constituição está sujeita a flutuações mais intensas do que as experimentadas pela família.

No horizonte dessas preocupações, observa-se que a ênfase à família como um contexto primordial do desenvolvimento, cuja análise ajuda a explicar a trajetória dos indivíduos na passagem do tempo, hoje vem sendo mais e mais compartilhada por inúmeros pesquisadores. A literatura atual tem demonstrado uma evidente conexão entre desenvolvimento humano e família. (Donzier, Stovall, Albus e Bates, 2001). A lógica oferecida pelo modelo ecológico tem contribuído para tornar mais clara a compreensão da dinâmica relacional do grupo familiar nos mais variados contextos sociais e culturais. (Martins e Szymanski, 2004; Vasconcelos, Yunes e Garcia, 2009).

Os teóricos do desenvolvimento familiar que se utilizam deste modelo consideram assim que a família é um sistema ecológico e, como tal, apresenta características definidoras que o distinguem de um simples aglomerado de elementos.

Desse modo, a natureza relacional do contexto familiar pode ensejar um conjunto de implicações que se processam entre os indivíduos de modo dinâmico, envolvendo reciprocidade, interdependência, recursividade, entre outros elementos importantes na constituição de suas subjetividades.

Outro aspecto a se considerar é que o modo como as relações se processam no interior da família está necessariamente associado a vários fatores. Portanto, compreender como e por que um dado grupo familiar está organizado de uma determinada forma implica em visualizar a ação e os efeitos de fatores que remete à ordem intra e extrafamiliar. (Bronfenbrenner, 1986).

No que se refere aos elementos que são intrínsecos à família, pode-se pensar em pelo menos dois aspectos que são fundamentais: as características das pessoas envolvidas e a história construída por este grupo. Por outro lado, ao se observar as informações disponíveis fora do contexto familiar, mas que atuam sobre ele, destaca-se os elementos simbólicos compartilhados pelos sujeitos que mantém vivos traços da cultura onde se encontram inseridos. Nesses termos, a cultura não pode ser pensada como instância etérea, produzida apenas pela ação mental das pessoas, mas como produto das condições objetivas de vida, que incluem saúde, educação e renda.

Nessa perspectiva, compreende-se que o intercâmbio entre os fatores intra e extrafamiliar produz formas particulares de relacionamento que terão impacto direto no desenvolvimento das gerações mais novas. Essa afirmação se sustenta na literatura especializada, que vem articulado as várias dimensões dos relacionamentos familiares às trajetórias desenvolvimentais vivenciadas pelos sujeitos envolvidos, com destaque às experiências geradas a partir da relação entre pais e filhos.

Os estudos sobre relacionamentos familiares que partem dessa visão teórica consideram que o modo e o impacto destas relações sobre o desenvolvimento estão especialmente associados aos conflitos que emergem nesse contexto, ainda que, assim como as relações hierárquicas estabelecidas entre seus membros, não sejam por si só devastadores para a pessoa em desenvolvimento, mas parecem depender do modo como se processam em condições ecológicas específicas - por exemplo, os contextos marcados por grave privação material e afetiva. (Acosta e Vitale, 2007).

A perspectiva ecológica, por sua lógica sistêmica e visão não determinista, permite pensar que, embora a família seja um contexto fundamental, se não ideal, para o desenvolvimento da pessoa e sua subjetividade, é possível identificar outros cuja organização lhe confere um lugar privilegiado na vida de muitas crianças e adolescentes. Nesse sentido, ainda que não possua a mesma organização que estrutura e dá sentido à família, pode-se dizer que os abrigos são contextos de desenvolvimento onde relações que se estabelecem e se mantém geralmente durante um longo período de tempo, constituindo-se como um ambiente ecológico promotor de desenvolvimento. Este aspecto em particular tem justificado o interesse de pesquisadores do desenvolvimento humano na discussão em torno do abrigo como um contexto do desenvolvimento, se não privilegiado, mas abrangente, como se verá no item seguinte.

 

2. O abrigo como contexto abrangente do desenvolvimento

A preocupação com os traços característicos das instituições de abrigo é relativamente recente no meio acadêmico e social. Em meados do século XX, um conjunto de transformações construídas gerou um processo de desmantelamento gradual das redes sociais que serviam como base de apoio à família no cuidado às gerações mais jovens e vulneráveis, colocando em cheque a competência dos pais, mas, sobretudo das mães, para gerenciar as necessidades dos filhos nos primeiros anos de vida e a adoção de medidas sociais de proteção à infância vulnerável ao abandono e à violência, como discute Forna. (1988/1995).

Ao longo dos tempos, segundo De Antoni e Keller (2001) e Marques e Czermak (2008), a ênfase dada às limitações familiares para execução das funções parentais e a adoção de instituições como contextos substitutos da família geraram controvérsias em diferentes áreas do conhecimento dedicadas ao desenvolvimento humano. Spitz (1965/1998) está entre os primeiros estudiosos a provocar a discussão acerca das práticas de cuidado em creches, enfermarias e asilos destinados ao atendimento das necessidades da criança fora do ambiente familiar, lançando as bases para a análise comparativa entre distintas experiências de cuidado institucional. Através de observações feitas em berçários públicos infantis, esse autor pôde descrever aspectos relativos à estrutura física dessas instituições, as suas rotinas de cuidado e a condição dos vínculos emocionais.

Spitz (1965/1998) avaliou o desenvolvimento de bebês institucionalizados por volta do quarto mês de vida por ocasião do desmame, provenientes de grupos familiares cuja mãe possuía bom background social. Apesar de terem recebido alimentação e cuidados médicos adequados nesses espaços, foi possível notar que o quoeficiente desenvolvimental das crianças sofrera redução de acordo com o tempo de permanência no ambiente institucional. Além disso, constatou à época que as crianças apresentavam formas graves de retardo e maior suscetibilidade a infecções e comportamentos considerados anormais (bizarros, agressivos).

A justificativa de Spitz (1965/1998) ao atraso no desenvolvimento dessas crianças sustenta-se no modo como os cuidados lhes eram oferecidos na instituição. Em termos gerais, as crianças eram cuidadas por enfermeiras e ajudantes que precisavam dividir sua atenção com outras tantas. Ele verificou que os arranjos sociais oferecidos aos internos não favoreciam o estabelecimento de vínculos afetivos, uma vez que ficavam a maior parte do tempo em berços separados por lençóis e cortinas, que dificultavam o contato face a face e a sua ligação com o mundo social. As crianças permaneciam deitadas durante horas, quase inertes, sem receber estimulação sonora ou visual, sobretudo por meio de situações lúdicas (em geral, os asilos dispunham de menos brinquedos para as crianças do que outras instituições do gênero).

Ao avaliar um grupo de internos que eram filhos de mães com menor background social, Spitz (1965/1998) verificou, com base nos testes aplicados, que, com raras exceções, os quoeficientes mantiveram-se estáveis desde o ingresso da criança na instituição e ficaram bem próximos dos números obtidos por outras cuidadas exclusivamente em ambiente familiar. A explicação que Spitz (1965/1998) oferece a este resultado sustenta-se na disponibilidade das mães dessas crianças, uma vez que comumente assumem o lugar de principal cuidador. Além disso, é preciso destacar que as crianças permaneciam em cubículos individuais separados por paredes de vidro, mas, aos seis meses, eram transferidas para berçários coletivos que acomodavam de quatro a seis leitos.

Bronfenbrenner (1994/1996) reconhece a contribuição valiosa de Spitz (1965/1998) para a psicologia do desenvolvimento na medida em que conseguiu destacar a importância das características peculiares do ambiente físico e social das instituições infantis, como também ao proceder a uma investigação rigorosa acerca dos papéis e atividades das díades primárias (cuidador/criança). Em termos gerais, as necessidades das crianças dentro das instituições são as mesmas daquelas que se encontram em outros contextos, ou seja, segurança, proteção e vínculos afetivos com seus cuidadores.

Entende-se que a capacidade para interagir com o meio onde a pessoa está inserida é universal e se faz presente potencialmente em toda criança e todo adolescente, qualquer que seja a sua condição social ou pessoal. Entretanto, no que se refere à criança e ao adolescente que se encontram institucionalizados, a interação com o ambiente físico e social deve ser mais bem compreendida em suas particularidades e estimulada em suas possibilidades, uma vez que o abrigo como contexto de desenvolvimento remete à existência de um campo de relações que propiciam trocas sociais e afetivas particularmente importantes para quem se encontra privado do cuidado parental, como discutem Carvalho (2002), Siqueira e Dell'Aglio (2006) e Yunes, Miranda e Cuello (2004) e também Zeanah, Smyke, Koga e Carlson (2005).

Do ponto de vista ecológico, o abrigo pode e deve ser reconhecido então como um contexto abrangente de desenvolvimento para a criança e o adolescente institucionalizados, pois materializa as condições reais onde realiza o seu viver e desenvolve competências decisivas para a formação de personalidade e sociabilidade próprias. Neste sentido, a discussão acerca do abrigo como contexto abrangente de desenvolvimento é de suma importância, dada a amplitude do fenômeno da institucionalização na sociedade contemporânea (Wolff e Fesseha, 1999), sendo importante conhecer e discutir, como se fará a seguir, o quão complexa pode ser a ação de seus efeitos ao longo de toda a sua trajetória de vida.

 

3. Da família ao abrigo: revisando aspectos desenvolvimentais da institucionalização de crianças e adolescentes

Em 2003, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), das 589 instituições que recebem recursos do Ministério do Desenvolvimento Social, cerca de 78,4% servem efetivamente como local de moradia para crianças e adolescentes, ainda que a maioria dos abrigados, algo em torno de 86,7% dos quase 20.000 presentes no levantamento, possua referência familiar ou contato regular com os pais e/ou responsáveis.

Embora não existam números precisos sobre quantos e quem são as crianças e os adolescentes que estão crescendo em abrigos, internatos, orfanatos, centros de educação social, tanto governamentais como não governamentais, os dados acima, apesar de parciais, sugerem a amplitude e a complexidade do problema em questão.

No Brasil, diferentes formas de acolhimento institucional são legitimadas por razões que decididamente não podem ser descritas como excepcionais, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. A precariedade da renda e as condições de trabalho aviltantes, a falta de oportunidades sociais e econômicas para o desenvolvimento humano, motivos que quase sempre justificam o afastamento da criança e do adolescente de seu meio familiar, na verdade, encerram características e problemas estruturais da sociedade brasileira, que acabam por fragilizar as bases de apoio à infância e à juventude. (Carvalho, 2002; Cavalcante, Magalhães e Pontes, 2009; Salina-Brandão e Williams, 2009; Silva, 2004; Rizzini e Rizzini, 2004; Rotondaro, 2002).

Desde os mais remotos tempos que a infância, principalmente a pobre, constitui-se em alvo prioritário das preocupações sociais e políticas caracterizadas pelo abandono material (precárias condições de moradia, alimentação e higiene) e a existência de crianças moralmente abandonadas, que iniciam o seu processo de socialização sem orientação e apoio responsivo dos pais e demais familiares.

A preocupação do poder público com as crianças e adolescentes material e moralmente abandonados se manifesta através da institucionalização como um instrumento da política social de assistência à infância e à juventude no Brasil. Apesar dos abrigos terem como objetivo garantir atenção abrangente às necessidades humanas, vários estudos (Azor e Vectore, 2008; Marques e Czarmak, 2008; Siqueira e Dell'aglio, 2007; Zeanah, Smyke, Koga e Carlson, 2005) revelam o contrário e destacam que as críticas à institucionalização no passado são ainda recorrentes em documentos técnicos e científicos que tratam da qualidade do atendimento em abrigos infantis ou instituições similares. A título de ilustração, em 2009, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Nacional da Assistência Social elaboraram documento que recupera as raízes históricas dessa problemática e ressalta a urgência da definição de orientações técnicas que possam nortear a gestão dos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social no país.

Nessa perspectiva, a experiência da institucionalização na infância e na adolescência impõe uma série de riscos e limites ao desenvolvimento humano, na medida em que:

• Segrega a criança e o adolescente da família e da comunidade, recolhe e confina, dificultando a formação e manutenção de vínculos sociais (Alexandre e Vieira, 2004; Nogueira, 2004; Carvalho, 2000);

• Massifica os procedimentos de cuidado à criança e ao adolescente em razão da falta de pessoal em quantidade e qualidade suficientes para atender as demandas próprias desse tipo de atendimento abrangente, especialmente o estímulo à construção de relações estáveis e íntimas (Marques e Czaemak, 2008; Martins e Szymanski, 2004; Rizzini e Rizzini, 2004).

• Fragiliza as bases de apoio ao desenvolvimento infantil, comprometendo certas capacidades humanas no plano físico, intelectual, social e afetivo, especialmente quando o acolhimento institucional ocorrer por tempo prolongado (Unicef, 1998; Siqueira e Dell'Aglio, 2006; Zeanah, Smyke, Koga e Carlson (2005).

Sigal, Perry, Rossignol e Ouimet (2003), bem como outros especialistas da atualidade (Beckett, Maughan, Rutter, Castle, Colvert, Groothues, Kreppner, Stevens, O´Connor e Sonuga-Barke, 2006; Dozier, Stovall, Albus e Bates, 2001; Wolff, e Fesseha, 1999), insistem naquela que talvez possa ser a questão central desse debate e o móvel de urgentes alterações na política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente em situação de vulnerabilidade social: que caminhos e direção podem tomar o desenvolvimento humano quando a experiência da institucionalização ocorre de maneira precoce (em um período particularmente sensível aos efeitos da privação do cuidado parental), prolongada (em um tempo demasiadamente longo, às vezes por toda a infância e adolescência), mas, sobretudo negligente (em um ambiente institucional que demonstra ser pouco sensível às demandas de proteção e segurança emocional)?

O conjunto dessas preocupações toma então a forma de grandes desafios teórico-metodológicos e ético-políticos quando se pensa em mudanças substanciais no modo como a proteção especial à criança e ao adolescente deve ser materializada, sobretudo em termos de uma teia de responsabilidades comuns que envolvem necessariamente a família, a sociedade e o Estado. Ou seja, reporta-se à existência de desafios que podem e devem ser compartilhados por diferentes atores socais:

• Avaliar sempre a justeza e a adequação da aplicação da medida de abrigo, ficando restrita a casos em que haja efetivamente grave risco à vida e à segurança da criança e do adolescente, onde se destacam eventos trágicos como conflitos armados, calamidades e epidemias (Rizzini e Rizzini, 2004; Woff e Fesseha, 1999);

• Monitorar e avaliar aspectos da qualidade do ambiente e dos cuidados oferecidos na instituição à criança e ao adolescente, uma vez que mudanças na estrutura e dinâmica dos abrigos podem tornar o ambiente mais propício à interação social e às trocas afetivas (Cavalcante, Magalhães e Pontes, 2007);

• Incentivar formas alternativas ao acolhimento institucional e estratégias de mobilização de recursos na comunidade de origem da criança e do adolescente, propondo programas que criam a figura da família acolhedora, do padrinho solidário e/ou afetivo (Yunes, Miranda e Cuello, 2004; Zeanah, Smyke, Koga e Carlson, 2005).

Entretanto, mudanças globais nas práticas e nas políticas de proteção especial, apesar de urgentes, muitas vezes vêm sendo construídas e implementadas sem a qualidade necessária em função de pressões e resistências de diferentes atores e segmentos sociais.

No imaginário social ainda estão presentes traços de uma cultura política que mantém viva e forte a tradição de internar em instituições crianças e jovens brasileiros por longos períodos de tempo, como solução primeira para problemas tão antigos quanto atuais - dar asilo a quem se encontra em situação de vulnerabilidade social (falta de emprego, renda, moradia e acesso a serviços básicos); abandono físico, afetivo e/ou moral; violência doméstica (abuso físico, psicológico e sexual); orfandade; doença física ou mental crônica e grave dos pais e/ou responsáveis, entre outros.

Por isso, nesse contexto, ganha importância a discussão sobre a criação de estratégias mais eficazes de reinserção familiar de crianças e adolescentes atendidos em instituições do tipo asilar, no sentido de prevenir a permanência precoce e prolongada na instituição, o reingresso na rede de abrigos e os efeitos nocivos dessa experiência para um desenvolvimento humano rico em possibilidades, conforme se discutirá na sequência deste trabalho.

 

4. Do abrigo à família: discutindo medidas sociais para a reinserção familiar de crianças e adolescentes institucionalizados

Todas as vezes que profissionais e autoridades têm diante de si o desafio de promover o retorno dos filhos à convivência com seus pais e/ou familiares, os motivos que provocaram o acolhimento pela instituição figuram como importante informação para o estudo social e o parecer técnico, uma vez que essa documentação precisa estar fundamentada em dados atualizados e confiáveis. Parte-se do entendimento de que essas informações e impressões técnicas podem compor um quadro sobre a real situação da família atendida, o nível de complexidade que o caso apresenta e as perspectivas de solução em um curto espaço de tempo. (De Antoni e Koller, 2001; Vasconcelos, Yunes e Garcia, 2009; Siqueira e Dell'Aglio, 2007).

De maneira geral, os processos de reinserção familiar conduzidos pela equipe técnica do abrigo e por autoridades e órgãos envolvidos na defesa sociojurídica da criança e do adolescente devem ser planejados com base em informações coletadas por meio de abordagens iniciais, entrevistas estruturadas, observação da dinâmica de interação social no ambiente doméstico e institucional. Além das estratégias acima, pode-se aplicar instrumentos técnicos como o genograma, que levanta informações sobre o funcionamento familiar a partir de um corte na história da família atual, considerando-se, para tanto, as últimas gerações (McGoldrick, Gerson e Shellenberger, 1999), e também o ecomapa, que permitem representar graficamente a rede de relações e vínculos que a família chegou a construir e preservar (Calix, 2004).

Com base no que propõem profissionais que atuam na área (ABTH, 2002 e 2003; CECIF, 2005), considera-se que esses procedimentos indicam o percurso que a equipe técnica poderá fazer para, paulatinamente, recompor a trajetória histórica da família (perfil das gerações, fatos e acontecimento significativos), o sistema familiar atual (posição e papéis de cada um dos membros) e os padrões de interação no meio intra e extrafamiliar (alianças e coalizões entre adultos e crianças/adolescentes). E, ainda, identificar o ciclo da vida em que se encontra (estágios da evolução e necessidades correspondentes), a presença de fatores de risco (suscetibilidades individuais e vulnerabilidade social) e proteção (atitudes de resiliência), permanências e rupturas com padrões e regras estabelecidos ao longo do tempo.

É preciso conhecer, com rigor, tanto as razões que levaram a criança e o adolescente a permanecer em uma instituição de abrigo Azor e Vectore (2008), como as motivações pessoais e familiares que podem contribuir para que o seu retorno ao lar ocorra em condições de segurança (Siqueira e DellÁglio, 2006). Em outras palavras, sabe-se que tão complexo e demorado poderá ser o processo de reinserção familiar quanto mais grave parecer a situação de dificuldade, risco e crise vivenciada pela família da criança e do adolescente (Dozier, Stovall, Albus e Bates, 2001; Zeanah, Smyke, Koga e Carlson, 2005). Nesse processo, a literatura mostra ser fundamental orientar, estimular e apoiar a família para que possa então assumir as funções de sustento, cuidado e educação das gerações mais novas, especialmente dos bebês e crianças nos primeiros anos de vida.

Com esse propósito, estudos têm mostrado que a equipe técnica precisa estar atenta à manifestação regular e crescente de gestos, palavras e atitudes por parte dos sujeitos envolvidos nesse processo (a família, o abrigo, a criança e o adolescente), que, separadamente, ou de maneira articulada, denotam concordância em torno dos procedimentos capazes de gerar condições favoráveis à reinserção familiar (Siqueira e Dell' Aglio, 2006; Azor e Vectore, 2008; Vasconcelos, Yunes e Garcia, 2009). Considera-se que parte dessas condições normalmente está associada à existência de interesse constante por parte da família e do abrigo em apoiar o crescimento e bem-estar da criança e do adolescente, por meio: 1) acesso a relatórios e fichas de avaliação que registrem alterações substanciais no seu desenvolvimento físico, psicológico e social; 2) realização de visitas institucionais e domiciliares mais frequentes e menos impessoais, que estreitem o relacionamento entre os sujeitos envolvidos; 3) envolvimento de pais e/ou responsáveis na rotina de cuidados oferecidos pela equipe técnica e educadores (despertar a necessidade do acompanhamento, favorecer o compartilhamento de responsabilidades, apoiar iniciativas pessoais de atenção e educação dos filhos).

Outrossim, pode-se afirmar que o caminho de volta pra casa está atrelado à capacidade de profissionais e autoridades da área serem sensíveis às demandas de atenção e afeto presentes nos cuidados destinados à criança e ao adolescente na instituição, bem como a adoção de uma perspectiva crítica diante de preconceitos sociais e julgamentos morais, posto que costuma gerar uma visão superficial, equivocada e discriminatória das suscetibilidades individuais e familiares.

Entretanto, o desligamento da instituição de abrigo e o retorno ao lar podem ocorrer em circunstâncias ainda pouco satisfatórias. Nem sempre as condições avaliadas tempos atrás como inadequadas à convivência familiar foram efetivamente superadas em favor da segurança e o bem-estar da criança e do adolescente (Vasconcelos, Yunes e Garcia, 2009). Muitas vezes a realidade sociofamiliar foi apenas alterada parcialmente (por exemplo, algumas dificuldades de ordem financeira ou emocional podem continuar gerando conflitos interpessoais, talvez até menos graves ou violentos, mas, ainda sim, frequentes).

Outro aspecto a ser destacado diz respeito à necessária preocupação com os objetivos específicos das atividades dirigidas pela instituição aos pais e/ou demais familiares, na medida em precisam ser pensadas em termos da sua finalidade estratégica, qual seja, promover condições favoráveis à reinserção familiar da criança e do adolescente que faz do abrigo seu local de moradia.

Nesse sentido, trabalhos sobre o tema em questão apontam que reuniões, entrevistas, visitas domiciliares e institucionais, grupos de pais, oficinas temáticas, encontros mensais são instrumentos úteis à operacionalização de um plano de trabalho que precisa ter como objetivo central provocar a discussão de problemas e dificuldades presentes na vida familiar que se apresentam como impedimento - temporário ou definitivo - à permanência da criança e do adolescente sob a responsabilidade e o cuidado de seus pais e/ou responsáveis (Siqueira e Dell'Aglio, 2007). Principalmente a participação dos educadores em grupos de pais pode figurar como um fator favorável à completa (re)adaptação da criança e do adolescente ao meio familiar, na medida em que pode oportunizar trocas de experiências, escuta atenciosa e atitudes de empatia entre seus membros.

Autores como Azor e Vectore (2008) consideram ainda que essas atividades devem ter o compromisso com o repasse de informações sobre a rede de serviços capaz de disponibilizar à família recursos e benefícios sociais que atendam a demandas comuns e específicas de seus membros, ampliando as bases de apoio ao desenvolvimento da criança e do adolescente e a teia de relações e vínculos sociais Contudo, para que esse trabalho transcorra dentro de condições minimamente satisfatórias, isto é, consiga motivar pais e/ou familiares a participar de reuniões ou grupos de apoio e escuta mútua, entende-se ser importante que o abrigo assegure a existência de um espaço adequadamente preparado para o desenvolvimento dessas atividades, oferecendo uma atmosfera de segurança, conforto e intimidade aos participantes.

Nessa perspectiva, torna-se fundamental a mobilização permanente dos pais para participação em atividades promovidas pela instituição, principalmente quando a frequência dos participantes for irregular e as ações em cursos estejam sofrendo solução de continuidade, o que deve gerar um investimento maior de tempo e esforço dos técnicos nessa tarefa. Em geral, a mobilização dos pais pode ser feita através de correspondência (carta, convite, convocação, conforme o caso) e/ou visita domiciliar (a proximidade e a atenção personalizada tendem a reforçar a relação dos técnicos do abrigo com a família). A visita domiciliar possibilita o estreitamento do contato entre a equipe de técnicos e educadores e os pais e demais familiares, favorecendo um clima de intimidade e confiança maior entre os sujeitos envolvidos (Siqueira e Dell' Aglio, 2006; Azor e Vectores, 2008; Vasconcelos, Yunes e Garcia, 2009).

Além disso, profissionais da área mostram que o abrigo precisa incentivar a promoção de atividades socioeducativas com grupos de pais e/ou familiares, como reuniões ou oficinas temáticas, acolhedoras e integradoras, sem espaço para constrangimentos ou discriminações. É importante respeitar a posição daqueles participantes, que inicialmente se sentem pouco à vontade em situações de maior exposição pessoal ou contato com o outro (CECIF, 2005). Depois, conforme o nível de liberdade e cumplicidade estabelecido entre os membros do grupo for crescendo, pode ser adequado trazer à tona aspectos da intimidade, dos sentimentos e das emoções latentes no plano individual e familiar.

Por ser importante estar sempre atento aos princípios que orientam o trabalho social com grupos familiares, é interessante notar que a organização desse tipo de atividade requer a discussão e a aprovação de uma série de acordos de convivência e compromissos que devem orientar atitudes e comportamentos do e no coletivo. Às vezes, as regras não ficam claras no momento em que são apresentadas ao grupo, o que dificulta a sua posterior observação. Por exemplo, pode ser importante se perguntar ao grupo o que pode ser feito para evitar problemas relacionados à pontualidade e à assiduidade dos participantes que afetam a dinâmica dos trabalhos.

Segundo profissionais com experiência no trabalho de reintegração familiar (ABTH, 2002 e 2003; CECIF, 2005), assim como preocupações levantadas por Siqueira e Dell'Aglio (2007) que apontam na mesma direção, o processo de preparação para o desligamento da criança e do adolescente do programa de abrigamento e a imediata adoção de medidas em prol da reinserção familiar devem perseguir os seguintes objetivos: 1) Propiciar mais tempo a pais e filhos para conversas íntimas e espaço para o diálogo no momento das visitas ou em outras situações que se criarem; 2) Oportunizar tempo e espaço adequados para situações de brincadeiras entre a família e a criança no sentido de estimular a criatividade, a imaginação e a demonstração de afetos (um bom exemplo pode ser o uso da brinquedoteca afim de que possam experimentar situações imaginárias que retratam situações típicas da vida relacional); 3) Exercitar a introdução de novos mecanismos de administração dos conflitos de interesses no interior da família, vivenciando a aplicação de técnicas de acordos de convívio, por exemplo; 4) Compartilhar cuidados com a higiene, a saúde e a alimentação no interior do abrigo ou fora dele, de modo que a criança e o adolescente sintam-se cuidados novamente e/ou diferentemente por seus pais e/ou responsáveis; 5) Propor o retorno da criança e do adolescente à família de origem a partir de aproximações sucessivas com os pais ou qualquer um deles e de seus familiares, onde se incluem a adoção de estágios de convivência tão necessários no processo de conhecimento e adaptação à vida ao lado dos pais.

Pelo exposto, observa-se que a adoção dessas medidas deve ter como preocupação primordial com o fortalecimento do vínculo afetivo entre a criança ou o adolescente e sua família, uma vez que essa ligação se constrói e/ou se mantém com proximidade, intimidade, afeição entre seres que estão em contínua interação e convívio social.

Por isso, entende-se que preocupações relativas à preparação, efetivação e conclusão do processo de reinserção familiar devem ter apenas um único propósito: assegurar que a família, devidamente apoiada, sinta-se em condições de voltar a assumir deveres, obrigações e direitos em relação à criação dos filhos, posto que, em diferentes fases da vida a criança e o adolescente devem viver sob os cuidados dos pais, preferencialmente no seio de sua família de origem.

Nesses termos, no período posterior ao retorno da criança e do adolescente à convivência com a família, torna-se fundamental avaliar sistematicamente o nível de influência de certos fatores nesse processo, tais como, a presença de suscetibilidades individuais (pouca tolerância às adversidades, grande resistência à mudança), estado de stress crônico (desemprego, renda insuficiente para as necessidades da família, perpetuação de situações de agressão física, violência psicológica ou abuso sexual), avaliação negativa da participação da família nos marcos do atendimento psicossocial (sobretudo o acompanhamento terapêutico) ou o fraco desempenho da rede de serviços acionada (especialmente os programas que propiciam qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho).

É importante considerar ainda que através de visitas domiciliares regulares podem ser observados aspectos relacionados às mudanças provocadas no ambiente e na dinâmica familiar que são necessárias na fase de adaptação da criança e do adolescente à sua nova condição de vida, onde se incluem comportamentos, atitudes, gestos e palavras que expressam o nível de satisfação e bem-estar que essa experiência inicial proporciona aos sujeitos envolvidos.

 

5. Considerações finais

No Brasil, com muita frequência, crianças e adolescentes são encaminhados a instituições de abrigo como alternativa à reduzida capacidade dos pais e/ou responsáveis proverem os meios para o sustento, criação e educação de seus filhos. Isso significa que muitas crianças e adolescentes brasileiros são privados da convivência familiar e comunitária basicamente em razão da sua condição socioeconômica, na medida em que vêm de famílias muito pobres, que vivem com renda inferior a ½ salário mínimo per capita, ficando vulneráveis a toda sorte de dificuldades, crises ou riscos. Há o entendimento mais geral de que a permanência em uma instituição de abrigo pode assegurar à criança e ao adolescente, a um só tempo, proteção, segurança e bem-estar, sendo, portanto, uma medida de política social que oferece muitas vantagens ao grupo familiar que se encontra em condições adversas.

Nos últimos anos, entretanto, cresce a consciência de que a cultura da institucionalização de crianças deve ser redimensionada. Em parte, porque a permanência prolongada em abrigos começa a ser reconhecida como uma medida de proteção sociojurídica que, na prática, impõe uma modalidade de atendimento à criança e ao adolescente que, paradoxalmente, pode oferecer graves riscos à sua integridade física, psicológica ou moral.

Do ponto de vista da criança e do adolescente institucionalizado, os efeitos gerados pela inexistência ou fragilidade dos vínculos familiares já estabelecidos, podem ser agravados pela permanência prolongada em ambiente institucional, em razão da carência de adultos cuidadores com quem venha a manter ligação estável e duradoura, do atendimento massificado e despersonalizado que costuma caracterizar as instituições asilares. Ou seja, os efeitos dessa experiência sobre a formação da identidade e o sentimento de segurança emocional podem deixar a criança e o adolescente ainda mais vulneráveis a doenças físicas e psíquicas graves e/ou crônicas, hospitalizações prolongadas, dificuldades de relacionamento nos grupos de convívio social, entre outros danos.

Ademais, é importante lembrar que a pobreza, embora não deva se constituir em motivo suficiente para a permanência prolongada em abrigos, na prática, como se viu neste artigo, ainda é bastante expressivo o número de crianças e adolescentes que permanecem longos períodos institucionalizados até que suas famílias possam, a partir de inclusão em programas de assistência social e/ou de geração de emprego e renda, adquirir melhores condições de sustentabilidade econômica.

Nesse sentido, em processos de reinserção familiar não se pode desconsiderar o fato de que a pobreza, principalmente quando associada a outras situações de vulnerabilidade social, impõe sim uma série de efeitos prejudiciais ao desenvolvimento humano, posto que, em condições adversas, pais e/ou responsáveis dispensam menos tempo e recursos pouco adequados às atividades cotidianas de seus filhos, falham ou se omitem no cumprimento de funções como proteger, orientar, instruir, estimular e compartilhar.

Isso significa que, alterações na condição socioeconômica de famílias assistidas por programas sociais contribuem para melhorar a qualidade de vida de crianças, adolescentes e adultos, assegurando a sua sobrevivência de maneira mais digna. No entanto, reverter os prejuízos provocados por anos e anos de privação material não é tarefa fácil, sobretudo quando se pensa em termos de ações pontuais e resultados imediatos, já que o convívio social em ambiente pouco estimulante e responsivo acaba por lhes impor também privações de ordem afetiva.

Nesse sentido, programas sociais que ofereçam, de um lado, atenção às necessidades mais prementes e estratégicas para a constituição da rede de apoio psicossocial à família, e de outro, estímulo à atuação protagônica de seus membros, podem tornar pais e filhos mais e mais capazes de se dedicar à árdua tarefa de reconstrução dos vínculos sociais e afetivos no ambiente intra ou extrafamiliar.

Entretanto, observa-se que, na maioria dos municípios brasileiros, em que pese um investimento maior do poder público em programas e ações que constituem a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente nos últimos anos, as redes de serviços ainda apresentam muitas ações pontuais e não contínuas, além de demandas sociais quase sem perspectiva de resposta, na medida em que a capacidade institucional muitas vezes está aquém das necessidades e expectativas da população usuária.

Os chamados programas de transferência de renda (onde se inclui o Programa Bolsa Família, por exemplo), quando articulados a outros instrumentos de políticas públicas que visam incentivar o desenvolvimento social e o protagonismo político das famílias, têm sido reconhecidos como importante via de combate à pobreza e às desigualdades sociais. Contudo, segundo Wanderley e Blanes (2001), a autogestão do processo de inclusão social e autonomia econômica na realidade, passa necessariamente pela discussão e reflexão com as próprias famílias acerca dos mecanismos de acesso às redes de serviços sociais existentes, com destaque para aqueles que propiciam capacitação e qualificação responsáveis por melhorar seus níveis de: 1) Escolaridade (programas de alfabetização de jovens e adultos, cursos supletivos e projetos de aceleração do ensino e aprendizagem); 2) Empregabilidade (programas de formação profissional com conteúdos gerais e específicos, sintonizados com tendências e exigências do mercado de trabalho); 3) Renda (programas de preparo e incentivo à organização de cooperativas, pequenos empreendimentos, entre outros).

Em linhas gerais, significa que os programas de complementação de renda podem e devem ser uma importante porta de entrada para a rede de proteção social à família, que implica em garantir formação profissional, escolarização e melhora nas condições de empreganilidade. Porém, na prática, muitas iniciativas têm ficado restritas ao pagamento de um benefício social de natureza financeira. A ideia é buscar meios e recursos para que a família não tenha apenas a sua renda incrementada, mas também chances reais de inserção no mercado de trabalho ou em empreendimentos que seguem os princípios próprios da economia solidária (associativismo, cooperativismo).

Pode ser interessante, também, dotar a família de informações que possam contribuir para uma aplicação mais adequada dos recursos disponíveis para as despesas domésticas: alimentação, construção ou reforma da moradia, medicamentos, utensílios pessoais, mobília, entre outras. Os programas de transferência de renda precisam ter essa preocupação: preparar as famílias para a autogestão dos meios que podem levar à autonomia econômica e política.

Outro aspecto a ser considerado parte do princípio de que os processos de reintegração familiar, quando deslanchados e concluídos, trazem consigo as marcas dos valores ético-políticos, das crenças sociomorais, dos princípios teórico-filosóficos presentes na formação pessoal e profissional da equipe técnica que acompanhou sua trajetória de desenvolvimento.

Nesse sentido, quanto mais complexo e demorado parecer o processo de reintegração familiar, provavelmente, maior será o número de profissionais envolvidos em seu acompanhamento, maiores serão as chances de haver divergência entre quaisquer dos órgãos ou instituições responsáveis pelo atendimento do caso.

Na eventualidade de um impasse entre técnicos de diferentes órgãos ou até de uma mesma instituição, deve prevalecer o bom senso: é necessário esgotar os argumentos e os recursos disponíveis a fim de que o processo de reintegração possa ser concluído em condições de segurança e com poucas chances de um novo retorno da criança ou do adolescente à situação anteriormente definida como de risco social e pessoal - seja no meio familiar ou institucional.

Em sociedades democráticas, o direito à liberdade de opinar, discordar, propor e fiscalizar pode e deve ser exercido em diferentes instâncias da vida social. Entretanto, o direito à liberdade deve ser exercido na relação direta com outros valores fundamentais como a democracia e a justiça social. Desse modo, em nenhum momento a crítica e a divergência podem engessar ou retardar um processo que em última instância deve assegurar o cumprimento de um padrão de tratamento que a sociedade consagrou como justo e adequado ao desenvolvimento da criança e do adolescente - o direito de nascer, crescer e se desenvolver no seio de uma família e uma comunidade.

Em função da multiplicidade de problemas que afetam a convivência familiar, é fundamental que a intervenção profissional nesse contexto seja multidisciplinar (social, psicológica, jurídica), que as estratégias traçadas para o seu atendimento e apoio sejam realizadas em diferentes níveis: na família (em sua dinâmica interna de papéis e funções), no seu meio social (em organizações e instituições que estão no seu entorno e oferecem recursos sociais diversos) e nas relações que geram interfaces entre o grupo familiar e as esferas da vida pública (em espaços relacionados à reprodução social e à participação política).

Assim, a saída para tantos processos de acolhimento institucional e reintegração familiar demasiadamente prolongado pode estar em mecanismos de inclusão social das famílias em sistemas que possam funcionar como bases de apoio ao desenvolvimento da criança e do adolescente, que ampliem de redes de contatos e relações sociais e disponibilizem recursos, serviços e oportunidades de crescimento pessoal para todos os seus membros. E, por fim, que incentivem o protagonismo político das famílias por meio da promoção de ações propositivas e fiscalizadoras no gerenciamento dos recursos que financiam as políticas públicas, como assembleias populares, fóruns de orçamentos participativos, audiências públicas, entre outras.

 

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Recebido em 12 de julho de 2010
Aceito em 02 de agosto de 2010
Revisado em 25 de setembro de 2010

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