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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza Dec. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Dor física crônica: uma estratégia de sobrevivência psíquica?

 

 

Marta Rezende CardosoI; Patrícia ParaboniII

IPsicanalista. Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise - Universidade de Paris VII, Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora do CNPq. End.: R. Gustavo Sampaio, 710 / 1805. Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22010-010. E-mail: rezendecardoso@ig.com.br
IIPsicóloga. Mestranda em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. End.: R. Paulino Fernandes, 10 apto. 13. Cep: 22270-050. E-mail: pparaboni@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo temos o objetivo de investigar a problemática da dor física a partir de um enfoque psicanalítico. Os casos de dor crônica sem comprometimento orgânico (no sentido etiológico) demandam análise sobre os seus fundamentos psíquicos. Nossa atenção se dirige, principalmente, à questão da origem dessa dor: seria ela de ordem psicogênica?
A dor física, quando intensa e repetitiva - caracterizando um fenômeno de dor crônica - sinaliza a não integração entre os registros do corpo e do psiquismo. Isso se deve à ruptura no sentimento de continuidade do eu, ocasionada por fatores traumáticos, implicando, dentre outros aspectos, uma falha no sistema de para excitação. Diante da efração no eu, as fronteiras entre corpo e psiquismo tornam-se esmaecidas, possibilitando que o psiquismo regressivamente recorra ao corpo - mais especificamente, ao eu-corporal - como medida defensiva contra a dor psíquica. A energia pulsional é justamente transferida para o registro corporal como último recurso para conter o transbordamento de excitações no psiquismo. Porém, o apelo ao corpo funciona aqui como uma espécie de "prótese" que, paradoxalmente, vem assegurar a sobrevivência psíquica.
Buscamos igualmente mostrar como a dimensão da queixa possui especial relevância nos casos de dor física crônica. Constatamos que quando o sujeito se queixa, ele o faz para alguém. Ao explorarmos este aspecto, tão significativo na clínica do paciente doloroso crônico, somos levados a destacar o papel que a relação eu/outro teria nessa patologia.

Palavras-chave: Dor. Trauma. Corpo. Queixa. Psicanálise.


ABSTRACT

In this paper we aim at investigating the issue of physical pain from a psychoanalytic standpoint. The cases of chronic pain without any organic implication (in an etiological sense) require the analysis of its psychical foundations. Our attention addresses mainly the matter of the origin of such pain: is it psychogenetic?
When it is intense and repetitive, characterizing a chronical pain phenomenon, the pain signals the lack of integration between bodily and psychical registers. This is a consequence of the disruption of the self's sense of continuity, caused by traumatic factors implying some fault in the protective shield system, among other features. In front of the breaking and entering into the ego, the body's borders are blotted out, enabling psyche regressively to appeal to the body - specifically to the bodily self - as a defense against physical pain. The drive energy is transferred to the bodily register as a last resource in order to contain the flooding of excitations in the psyche. The appeal to the body, however, works here as a kind of "prosthesis" that paradoxically assures psychical survival.
We also aim at demonstrating how the complaint dimension is especially relevant in the cases of chronic physical pain. We see that when the subject complains he/she complains to someone. Exploring this feature that is so significant in the clinic of the chronic painful patient, we are driven to underscore the role of the relation self/other in this pathology.

Keywords: Pain. Trauma. Body. Complaint. Psychoanalysis.


 

 

A dor física crônica é um fenômeno que vem abrir muitas questões, principalmente as que dizem respeito à sua causa. Os pacientes dolorosos crônicos não apresentam um comprometimento orgânico, no sentido etiológico, que justifique tamanha dor; a lesão é mínima ou mesmo inexistente. Diante disso, interrogamo-nos sobre a origem dessa dor: seria ela de ordem psicogênica?

Com o passar do tempo, a dor parece absorver cada vez mais a vida desses sujeitos, tornando-se gradativamente mais aguda. O paciente doloroso crônico tende a utilizar grande parte das sessões de análise para falar de sua dor física, muitas vezes não conseguindo estabelecer relações entre esta e a sua história de vida.

De acordo com Gabriel Burloux (2004), no atendimento desses pacientes a dimensão da queixa possui especial relevância, diferentemente do que ocorre em outros casos de sujeitos acometidos por afecção corporal como, por exemplo, daqueles que sofrem de patologias psicossomáticas nos quais uma lesão física está presente. Nos primeiros há comprometimento orgânico, enquanto nestes, em quem tal comprometimento é inexistente, a dimensão da queixa parece emergir de modo especialmente intenso. Quando o paciente se queixa, ele o faz para alguém. Como procuraremos mostrar, este aspecto tão significativo da clínica do paciente doloroso crônico, permite-nos destacar o papel que a relação eu/outro teria nessa patologia.

Abordaremos, inicialmente, a problemática da dor física a partir da dupla dimensão que ela apresenta - a de efração e a de reação defensiva. Também dirigiremos a nossa atenção para as relações que se estabelecem entre corpo e psiquismo, procurando melhor compreender como o registro do corpo pode vir a ser utilizado como defesa extrema quando os processos de representação encontram-se barrados.

 

A dor como recurso para "dominar" a excitação traumática

Jean-Michel Porte (1999) em La douleur: concept limite de la psychanalyse afirma que a instauração de uma excitação dolorosa localizada numa parte do corpo corresponderia a uma tentativa de "dominar" a excitação traumática. Ao mesmo tempo em que esvazia o eu do excesso pulsional, a dor física emite uma excitação constante para contrainvestir o excesso pulsional que transbordou no aparelho, formando um paraexcitação que o protege de danos maiores. Além do aspecto defensivo, a dor produz outra consequência para o psiquismo: a descarga imediata e bruta, num momento em que o processo de ligação ainda não pode ser realizado devido à excessiva quantidade de excitação.

Sobre esse ponto, encontramos apoio no artigo de Jean Cournut (1989), intitulado Les deux contre-investissements de l'excitation. O autor investiga as duas modalidades de contrainvestimento que Freud indicara ao longo de sua obra, e que visam a contenção da excitação: a primeira diz respeito a uma transferência de energia, ou seja, a energia é retirada de uma representação inconciliável, enfraquecendo-a; essa energia vem a ser deslocada para outra representação que não ameaça o trabalho do recalcamento e, com isso, impedindo a produção de desprazer provocada pelo aumento de energia no aparelho. Na segunda modalidade, o contrainvestimento é utilizado para reparar uma operação elementar e urgente de transferência de energia para conter a excitação - trata-se aqui de um contrainvestimento narcísico. Essa segunda modalidade desperta especialmente o nosso interesse, pois remete-nos ao seguinte fenômeno: diante do traumático, da ruptura da barreira de proteção, o contrainvestimento é acionado em defesa do aparelho. A transferência de energia (retirada da energia dos outros sistemas, enfraquecendo-os) é utilizada para conter o excesso pulsional.

No caso da dor física, a energia é justamente transferida para o registro corporal como último recurso para conter o transbordamento de excitações no psiquismo. Em Além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996b) Freud analisara essa questão relativa à transferência da energia para o corpo a partir da distinção entre dor física e trauma. A dor seria uma efração do escudo protetor em área limitada e o trauma, uma efração em grande extensão.

A distinção entre dor e trauma fundamenta-se no fato de que na dor uma "anticatexia" em grande escala é estabelecida, em cujo benefício todos os outros sistemas psíquicos são empobrecidos, de maneira que as funções psíquicas remanescentes são grandemente paralisadas ou reduzidas" (Id., Ibid., p. 40). Diferentemente do trauma, a dor parece se configurar como efração e, ao mesmo tempo, como reação defensiva. A dor física poderia ser considerada como uma reação defensiva pelo fato de desencadear um movimento energético, uma redistribuição energética, tal qual uma contraforça para equilibrar a quantidade de excitação no psiquismo.

No texto acima citado, Freud acrescentara uma observação de significativa importância: se o trauma vier acompanhado de grave ferimento físico, este vem a proteger o psiquismo do desenvolvimento de uma neurose traumática: A distribuição do investimento libidinal no órgão ferido consome grande parte da energia que invadiu o psiquismo. O ferimento, ou uma dor física, protegeria, então, o psiquismo do trauma, pois o excesso de excitação que adentrou violentamente no aparelho é transferido para o corpo. A dor física funcionaria, portanto, como uma medida de proteção extrema contra os efeitos devastadores do traumático. A transferência da energia traumática para o registro corporal consiste num recurso arcaico e elementar do psiquismo, e que vem a ser utilizado quando a capacidade de ligação e de processamento psíquico está impedida.

Gabriel Burloux (2004, op. cit.) oferece-nos outros aportes interessantes sobre a questão da dor crônica. Um dos temas trabalhados por ele é justamente a função econômica que a dor pode ter no aparelho psíquico. A dor física é entendida pelo autor como uma espécie de escudo diante de uma excitação psíquica, pois serve ao propósito de anular ou mesmo limitar uma dor psíquica (aumento de tensão no psiquismo devido à ruptura no paraexcitação).

Consideramos fundamental a função que a dor física pode ter para a economia do psiquismo, ou seja, de como ela pode proteger o aparelho pela redistribuição narcísica que produz. Mas entendemos que o preço pago pelo aparelho pela utilização desse recurso defensivo extremo seja bastante elevado. Em um capítulo dedicado ao tema da dor, Pontalis (2005) sublinha que esta se caracteriza - após a ruptura da barreira de proteção por excitações excessivas - como descarga dessa excitação excessiva no interior do corpo. Para este autor, a dor produz uma descarga interna: tem um "efeito de implosão".

A dor parece responder à demanda de descarga urgente em função da invasão pulsional no aparelho. Desta forma, a excitação que inunda o psiquismo é descarregada de modo bruto, sem passar por um processo de elaboração psíquica. Quando o sistema de paraexcitação consegue realizar a sua tarefa - a de deixar passar apenas pequenas quantidades - o aparelho tem a possibilidade de processar essa excitação, de utilizá-la em determinadas funções, tais como a do pensamento. Este também é concebido como um ato de descarga, mas, ao contrário da dor - descarga bruta - no ato de pensar são descarregadas pequenas quantidades, garantindo, dessa forma, a vigência do modo de funcionamento próprio ao princípio do prazer.

Visando esclarecer de maneira mais detalhada a diferença entre descarga bruta e descarga de pequenas quantidades, Roussillon (1995), no capítulo La economia del acto articula ato e pensamento do ponto de vista econômico, fundamentando-se na concepção apresentada por Freud desde 1900, em A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900a). O processo de pensamento é compreendido como descarga de pequenas quantidades energéticas, e o ato como descarga de grandes quantidades; do ato ao pensamento operar-se-ia uma redução das quantidades de excitação.

O autor propõe algumas diferentes modalidades de ato, sendo a primeira delas a do ato-descarga, cujos mecanismos de base nos parecem análogos aos que estariam em jogo no fenômeno da dor crônica. O ato-descarga consiste na descarga direta de grandes quantidades de excitação. A descarga direta impede o trabalho do pensamento e do processo de mentalização, pois, quando a excitação é descarregada diretamente e de forma bruta, o aparelho fica esvaziado de energia, e o trabalho do pensamento não pode, então, ser empreendido. Roussillon compreende essa modalidade de ato-descarga como um movimento de "excorporação", já que em sua base haveria um modo de funcionamento psíquico primitivo, no qual a descarga tende a se dar pela via da motricidade, da alucinação ou da somatização. Neste caso, o ato-descarga cumpriria uma função defensiva ou protetora, mas de forma elementar, sem envolver um processo de simbolização psíquica.

A ideia de ato-descarga faz-nos lembrar a definição freudiana de dor, presente no Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1996e): a dor é ruptura da tela de proteção, produzindo grande aumento de tensão no psiquismo; essa quantidade adentra o aparelho violentamente, tal qual um raio, provocando facilitações permanentes no aparelho. A quantidade excessiva percorre o aparelho sem encontrar obstáculo algum. O rompimento das barreiras de contato, diante dessa grande quantidade de energia, promove uma facilitação, impelindo o aparelho a descarregá-la diretamente sem que o eu possa inibi-la.

No caso da dor crônica também não há o adiamento da descarga, pois a energia não foi ligada a representações, permanecendo livre/des-ligada. A dor crônica opera apenas para proteger mecanicamente o psiquismo; não há pensamento, nem mesmo associação por parte do paciente que ligue a dor a representações psíquicas. Como pontuamos anteriormente, a manutenção da dor em favor da sobrevivência do psiquismo é sempre onerosa, pois a cada vez que a dor irrompe, o aparelho psíquico, ao não conseguir ligar a excitação, precisa novamente empreender um trabalho defensivo de contrainvestimento o qual, mais uma vez, empobrece o eu. Esse alto grau de dispêndio de energia na manutenção do próprio fenômeno da dor parece, inclusive, impedir que as ligações se operem. O fenômeno da dor teria, então, um efeito "antipsíquico" devido ao alto investimento que demanda, deixando o eu esvaziado de energia, tornando-se, assim, incapaz de realizar as suas funções habituais de ligação, de representação, de pensamento.

Diante da efração no eu, as fronteiras entre corpo e psiquismo tornam-se esmaecidas, motivo que possibilita ao psiquismo o recurso regressivo ao corpo - mais especificamente, ao eu-corporal - como medida defensiva diante da dor psíquica. A propósito da dor, Pontalis (2005, op. cit.) afirma que é "como se, com a dor, o corpo se transformasse em psique e a psique em corpo" (Id., ibid., p. 271). Essa frase demanda uma investigação sobre a singularidade da relação entre esses dois registros nos casos de dor física crônica.

 

A dor abala as fronteiras entre corpo e psiquismo

Na construção da noção de Eu-pele, Didier Anzieu parte da fórmula freudiana segundo a qual o desenvolvimento das funções psíquicas se apoiaria no funcionamento corporal. O corpo serve de motor, de anteparo e modelo para o funcionamento dos processos psíquicos. De acordo com o autor: "A instauração do Eu-pele responde à necessidade de um envelope narcísico, assegurando ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem-estar de base". (Anzieu, 1989, p. 61). A constituição desse envoltório se dá nas primeiras relações do bebê com a mãe. Esta deve realizar atividades que favoreçam, na criança, a construção de uma superfície com uma face interna e outra externa, ou seja, uma interface que virá permitir a distinção do dentro e do fora, construção que vem criar a experiência de um continente. O Eu-pele possui uma função continente: ele envolve e protege o aparelho psíquico, assim como a pele envolve o corpo.

O Eu-pele é designado como:

(...) uma representação de que se serve o Eu da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência de superfície do corpo. Isto corresponde ao momento em que o Eu psíquico se diferencia do Eu corporal no plano operativo e permanece confundido com ele no plano figurativo (Id., ibid, p. 61-62).

A experiência de superfície do corpo surge do contato corpo a corpo com a mãe. Assim, o infans chega à noção de um limite entre dentro e fora e é esse sentimento de limite que garante a integridade de seu envelope corporal. Nesse sentido, Damous e Souza (2005), concebem a superfície do corpo como o local de origem da percepção psíquica de um envelope corporal que vem permitir a existência de um sentimento de unidade e coesão do indivíduo como um todo. Os referidos autores consideram ainda o Eu-pele como um processo de elaboração psíquica da função da pele, concebida como superfície continente e sensível que delimita as fronteiras entre o eu e o outro, tornando-as estáveis e tranquilizadoras.

O eu-corporal é construído a partir da experiência de superfície do corpo: constitui a representação desta no psiquismo, dando contornos ao material psíquico. O eu, como mostra Anzieu (1989, op. cit.), adquire o sentimento de continuidade temporal quando o Eu-pele se constitui flexível para as interações com o meio, sendo continente para conteúdos psíquicos, delimitando desta forma o dentro e o fora.

Ora, a experiência da dor vem justamente promover uma perturbação nas distinções fundamentais e estruturantes entre o eu-psíquico e o eu-corporal. De acordo com o autor: "uma dor intensa e durável desorganiza o aparelho psíquico, ameaça a integração do psiquismo no corpo, afeta a capacidade de desejar e a atividade de pensar" (Id., ibid., p. 255). Ela ameaça a estrutura do Eu-pele, ou seja, a separação entre a sua face interna e a externa.

Apesar de abalar as fronteiras entre os registros do corpo e do psiquismo, percebemos, de acordo com uma afirmação de Freud (1923/1996c) que a dor pode, no entanto, proporcionar um "novo conhecimento de nossos órgãos". Através das doenças dolorosas construímos a ideia de nosso corpo. Parece que ao mesmo tempo em que a dor promove a indiferenciação entre psiquismo e corpo, em contrapartida, ela pode favorecer, a posteriori, uma nova representação corporal.

Mas o que viria promover esse retorno a um estado de "indiferenciação" entre psiquismo e corpo, tão característica no fenômeno físico doloroso?

 

Dor: ruptura no sentimento de continuidade do eu

Explorando os fundamentos psíquicos que estariam na base do fenômeno da dor física crônica, encontramos a configuração de um quadro traumático. Entendemos que o trauma implica a ruptura no sentimento de continuidade do eu. A ruptura no eu, tal qual uma ferida, permite que as fronteiras antes delimitadas entre as instâncias psíquicas, e mesmo entre os registros corporal e psíquico, venham novamente a se confundir. Assim, os limites entre corpo e psiquismo sofrem um abalo.

Sobre a dor, Pontalis afirma que se trata de um: "Verdadeiro fantástico sensorial onde a tranquilizadora linha divisória entre o físico e o psíquico se rompe" (Pontalis, 2005, op. cit., p. 272). E acrescenta: "o próprio da dor é tornar pouco nítidas as fronteiras" (loc. cit.) pois, diante do traumático, haveria uma grande possibilidade de o psiquismo sucumbir. Neste sentido, a dor física surge para contrainvestir o excesso pulsional e proteger o psiquismo do seu aniquilamento. A excitação que adentra violentamente no eu é encaminhada para o corpo de modo a garantir a sobrevivência psíquica.

Na dor, a estrutura do Eu-pele é alterada. Suas duas faces - interna e externa - se transformam em uma só, e esta é "torcida". Para explicar esse movimento, Anzieu utiliza como paradigma a banda de Moebius: "o de fora se torna o de dentro, que se torna o de fora, e assim sucessivamente, o conteúdo mal contido se torna um continente, que contém mal" (Anzieu, 1989, op. cit., p. 162). Do nosso ponto de vista, nesse movimento de exteriorização de um conteúdo mal contido pelo Eu-pele - devido à ruptura na estrutura desse envoltório - a dor física se transforma numa espécie de "continente" substituto, mas, tendo em vista a sua característica de prótese, a sua capacidade de contenção não seria comparável à de uma base narcísica segura, capaz de garantir efetivamente a elaboração de tal energia.

Esse movimento aparece refletido no que assistimos habitualmente na clínica com o paciente doloroso crônico, este funcionando, de certa maneira, como espectador do espetáculo de sua dor física, experienciada por ele, portanto, como algo externo a si, como desvinculada de sua vida psíquica. Como afirma Pontalis (2005, op. cit.), a dor modifica a geografia do psiquismo, transformando-a numa queixa que reina absoluta nos atendimentos desses pacientes: "tenho dor", "sou dor".

Na tentativa de restituir a função continente do Eu-pele, a dor física emerge como um envoltório de sofrimento, como uma segunda pele, espécie de prótese que faz estancar a hemorragia decorrente da efração no Eu-pele. Segundo Pontalis: "Para esse eu-corpo, ou para esse "corpo-psíquico", a relação continente-conteúdo prevalece, quer se trate de dor física ou psíquica" (Id., Ibid., p. 271), pois o caráter protetor da dor física permite estancar a ferida com o contrainvestimento que lhe é próprio. Este funciona como uma membrana substitutiva nos limites rompidos do eu. Anzieu (1989, op. cit.) caracteriza o Eu-pele - com sua função de bolsa ou continente - como "casca", e a dor física constituiria, segundo ele, uma "casca substitutiva". Quando o Eu-pele sofre uma fissura, prejudicando a sua função de proteção, forma-se uma segunda casca para envolvê-lo e assegurar esse seu papel.

Segundo Anzieu (Ibid.), Esther Bick teria postulado a concepção de "primeira pele" que corresponderia, de fato, ao Eu-Pele. A formação de uma "segunda pele" para Bick se deve justamente ao mau funcionamento da primeira pele. A segunda pele seria, portanto, uma espécie de prótese substitutiva para a primeira. De acordo com Anzieu, a segunda pele vem a ser formada para compensar falhas, fissuras e buracos da primeira pele continente - o Eu-pele. A segunda pele é uma "prótese protetora que substitui o Eu-pele insuficientemente desenvolvido para exercer sua função de estabelecer contatos, filtrar as trocas e registrar as comunicações" (Anzieu, 1989, op. cit., p. 250). A partir dessas afirmações, podemos considerar a dor física crônica como tendo a função dessa segunda pele, dessa "prótese" que viria estancar a hemorragia no eu, pelo fato de permitir uma redistribuição energética no psiquismo.

Além do arrombamento que o eu sofre diante do excesso pulsional devido à falta de preparação diante da irrupção dessa força, também é preciso sublinhar as defesas extremas que se vem a adotar como estratégia defensiva contra a ameaça de aniquilamento. Deste modo, faz-se necessário nos determos na problemática narcísica nos pacientes dolorosos crônicos. Pensamos que essa problemática está estreitamente articulada com a dimensão de alteridade, aspecto que passamos a desenvolver.

 

O papel da relação eu/ outro na dor crônica

A representação do objeto materno no psiquismo assegura a delimitação das fronteiras entre o eu e o outro. A dor crônica pode ser considerada como um estado limite uma vez que, neste tipo de quadro clínico, as fronteiras entre o eu e o outro são tênues demais, o sistema de paraexcitação interno, tendo sido, conforme propusemos acima, ineficiente para conter o excesso pulsional.

Sobre essa dimensão do problema, ao analisar o modo de funcionamento dos estados limites, Marta Rezende Cardoso concede especial ênfase à questão da alteridade. Segundo as postulações desta autora, nesses estados, as passagens ao ato e a convocação do corpo seriam os mecanismos de defesa privilegiados em função da presença, na base desses estados, de elementos traumáticos, assim como de falhas na capacidade representacional. A questão dos limites - fronteiras - é desenvolvida pela autora a partir da ideia de exterioridade/interioridade. Os estados limites são definidos como "afecções psíquicas nas quais se faz presente, de maneira significativa e particular, uma dimensão traumática, de violência psíquica" (Cardoso, 2007, p. 330). No modo de funcionamento dos estados limites, a questão das fronteiras no psiquismo é central, já que "a interioridade vê-se suplantada por uma tendência à exteriorização" (Id., ibid., p. 331) pela ausência, no interior, de limites mais claros entre o eu e o outro interno.

A força pulsional excessiva - traumática - que não chegou a ser representada no espaço egóico, permanece inassimilada, ou seja, permanece exterior ao ego. Quando isso ocorre, o aparelho psíquico tende a exteriorizar essa força, por exemplo, no corpo. Nos estados limites, a exterioridade, a convocação do corpo, tende a prevalecer sobre a interioridade, uma vez que a força não foi interiorizada, permanecendo estranha ao ego. Segundo a autora, trata-se da "tendência a um movimento de exteriorização, em detrimento de uma interiorização, a qual suporia a efetiva assimilação, em última instância, de uma alteridade interna - alteridade, nesse caso, de caráter mais radical" (Cardoso, 2007, op. cit., p. 332). Este seria, segundo ela, um dos aspectos mais fundamentais do modo de funcionamento psíquico nos estados limites.

Nos estados limites, o objeto seria insistentemente buscado no exterior. Essa exteriorização deixa o espaço egóico sempre aberto ao outro, tornando as suas fronteiras bastante porosas, impedindo que limites consistentes sejam estabelecidos. Nesses casos, apresenta-se a questão da impossibilidade de perder o objeto, criando, dessa maneira, o que a autora denomina "servidão ao outro" (Id., ibid.), estado de dependência e passividade, decorrente da falha na interiorização do objeto.

Tal como aponta a referida autora, a ideia de falha narcísica deve ser investigada à luz de noções como a de autoerotismo, apoio e desamparo. O modo singular de relação que tende a se estabelecer nesses casos entre o eu e o outro não se confundiria com a tendência a uma indiscriminação quanto ao objeto; seria marcada, de fato, por um estado de servidão. A ideia de servidão ecoa a condição de passividade em que se encontra o eu diante da irrupção do excesso pulsional.

A insistência da queixa, dirigida em primeira ou em última instância a um outro, tão presente no atendimento dos pacientes crônicos, parece sinalizar para a sua tentativa de transformar a passividade do eu em atividade, visando, desta forma, dominar os elementos irrepresentáveis.

Estudando o fenômeno doloroso crônico, Burloux (2004, op. cit.) traça um panorama da história de vida desses pacientes. Segundo ele, a infância dos dolorosos crônicos teria sido marcada por mortes, lutos, separações precoces, perdas, abandonos, desamparos indizíveis, ligados à carência afetiva crônica, incapaz de apaziguar o desamparo original do recém-nascido. A carência afetiva estaria aqui relacionada à falta de um escudo protetor materno, capaz de fazer cessar as excitações no bebê; tal ausência configuraria uma experiência traumática.

Num trabalho recente sobre a excitação dolorosa crônica, Nicolas Danziger (2005) acrescenta que a mãe deve servir de paraexcitação para apaziguar a dor no bebê, para conter o excesso de excitações que o invadem e das quais ele não é capaz de livrar-se por si mesmo. O papel da mãe é apaziguar a dor do bebê, sendo que essa função incluiria três elementos fundamentais: a mãe deve localizar a dor no corpo da criança para designá-la; deve contribuir para qualificar essa dor como algo exterior ao corpo do infans; o terceiro elemento é o contato direto ou indireto entre o corpo da mãe e a zona atingida no corpo da criança, o que funcionaria como garantia de sua integridade.

A propósito da relação entre dor psíquica e dor corporal, apoiando-se principalmente nas contribuições de Freud (1926/1996d) em Inibições, sintomas e ansiedade, Danziger (Ibid.) mostra que essa relação repousa na transformação de um investimento do tipo objetal em um investimento do tipo narcísico, em que o corpo substitui o objeto perdido. Quando a redistribuição narcísica da libido se dá sob a forma de dor física crônica, este processo supõe um contexto de falha generalizada nas relações objetais. Este sintoma resultaria de uma transferência da excitação ligada à perda do objeto para o registro do corpo. Neste caso, a dor corporal far-se-ia necessária para manter vivo o objeto perdido, já que a perda do objeto teria se mostrado psiquicamente irrepresentável. Para este tipo de paciente teria sido impossível sobreviver psiquicamente a tal perda; por esta razão o luto torna-se impraticável. Assim, essa dor parece apontar para um luto impossível, tendo a representação interna do objeto se revelado insuficiente para conter as excitações. A falha do paraexcitação fala-nos justamente de uma falha da representação interna de objeto. Uma vez que a representação interna do objeto é insuficiente, a delimitação das fronteiras entre o eu e o outro fica esmaecida.

Mostra Gabriel Burloux (2004, op. cit.) que é justamente a queixa o que traz os pacientes ao atendimento. Em sua dimensão atual, ela parece, no entanto, estar referida a uma outra queixa bem anterior, própria talvez aos primórdios da vida psíquica: queixa endereçada a uma mãe não capaz - por falta ou por excesso - de proporcionar ao futuro doloroso crônico um apaziguamento, uma "consolação". As falhas nessa função primária da mãe estariam, então, segundo o autor, na base das dores crônicas dos adultos.

Uma vez que esse anteparo revela-se insuficiente, a dor se repete buscando, por exemplo, na relação com o médico, uma outra solução, uma possibilidade de aplacar a dor da ausência/falha da mãe. O médico nem sempre responderá a essa demanda, pois seu objetivo é curar a lesão. Porém, diante do paciente doloroso crônico, ele se vê num impasse, pois não há comprometimento orgânico que possa justificar essa dor. Sabe-se que não se trata de uma dor orgânica, ainda que se desconheça a singularidade da "dor da alma" que habitaria aquela queixa.

O apelo repetitivo à figura do médico tende a se fazer, dentre outros aspectos, pelo fato de essa relação médico/paciente aproximar-se daquela que seria própria aos cuidados maternos de outrora, onde se buscara receber da figura maternante o toque, o "consolo", em última instância, os meios para a construção de uma via de sentido para a experiência vivida. Mas o saber médico parece não poder dar conta da demanda desses pacientes que sofrem e se queixam. Os pacientes dolorosos crônicos que procuram atendimento parecem inconsoláveis: a dor física parece protegê-los da dor psíquica; eles se entregam, assim, a uma cultura da dor.

Desfazer-se da dor física significaria, em última instância, deparar-se com a ausência materna, o que poderia ser ainda mais destrutivo do que suportar a dor física. Esta pode ser pensada como um recurso defensivo contra um desamparo anteriormente vivido - o da falta do objeto-mãe, ou melhor, da representação desse objeto no psiquismo que pudesse ter assegurado a "autoconsolação", ou seja, as condições internas básicas para se lidar com o pulsional.

Ao implicar uma convocação do corpo, a dor crônica apela ao que se situa fora do plano psíquico, furtando-se, dessa forma, ao trabalho psíquico. O corpo toma aqui o lugar do "espírito", segundo os termos utilizados por Burloux. Mas, apesar dessa exteriorização, a dor física estaria enraizada no psiquismo, pois a convocação do corpo é apenas um recurso defensivo para se tentar dar conta de uma dor mais profunda, impossível de ser efetivamente experienciada.

Essa transformação da dor psíquica em dor física, como recurso defensivo, provoca alterações permanentes no eu. Este é alterado porque precisa manter a dor física para evitar o aniquilamento, o que demanda, como mostramos, grande dispêndio de energia, deixando o eu permanentemente esvaziado, impedindo, portanto, que outros investimentos possam ser empreendidos. Dessa forma, a dor física crônica toma o lugar do eu, e a presença da queixa revela-se, então, tão significativa e intensa nessas afecções. O caráter irreparável - que já se insinua na própria impossibilidade de fazer a queixa cessar - também parece daí advir, uma vez que a vivência de dor, por si mesma, promove a impossibilidade do eu em investir em outros objetos.

A expressão da queixa no doloroso crônico possui dupla função: de apelo e de afirmação de necessidade de cuidado. Com sua demanda desesperada de auxílio, a queixa dolorosa mantém, no entanto, a tirania da dor física, que se configura, paradoxalmente, como uma maneira extrema de dominar a passividade diante de uma situação de desamparo.

Agradecimento:

Agradecemos a Pedro Henrique Rondon pela revisão final deste texto.

 

Referências

Anzieu, D. (1989). O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Aubert, A (1996). La Douleur: Originalité d'une théorie freudienne. Paris: PUF.         [ Links ]

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Recebido em 04 de outubro de 2010
Aceito em 20 de novembro de 2010
Revisado em 28 de novembro de 2010

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