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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza Dec. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O "cuidado de si" em Platão e em Balzac: algumas páginas da história da subjetividade

 

 

Fausto Calaça Galvão de CastroI; Terezinha de Camargo VianaII; Olivier BaraIII

IDoutorando em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília em estágio (pelo Colégio Doutoral Franco-Brasileiro e com bolsa da CAPES) na Université Lumière Lyon 2 e no Institut des Sciences de l'Homme de Lyon; professor da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: faustocalaca@yahoo.com.br. End.: R. Frei Carnaíba, 916, ap. 202, Jardim Mato Grosso, Rondonópolis-MT. CEP: 78740-385
IIProfessora Associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura e do curso de especialização em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília; pesquisadora bolsista do CNPq. E-mail: tcviana@unb.br. End.: SQN 208, Bl. B, ap. 603, CEP. 70.853-020, Brasília-DF
IIIProfesseur des Universités da Faculté des Lettres, Sciences du Langage et Arts da Université Lumière Lyon 2; pesquisador da Unité Mixte de Recherche «Littérature, idéologies, représentations, XVIIIe-XIXe siècles» (LIRE) no Institut des Sciences de l'Homme de Lyon. End.: 13, Montée des Carmélites, 69001, Lyon-França. E-mail: bara.olivier@wanadoo.fr

 

 


RESUMO

O artigo busca realizar um percurso na história da subjetividade no Ocidente a partir do tema do cuidado de si, segundo Michel Foucault. A proposta se inscreve no debate sobre os processos de subjetivação por meio de estudos literários. Ela visa apresentar a invenção do cuidado de si no diálogo platônico Alcibíades, suas transformações em algumas obras literárias e filosóficas e especialmente suas significações na obra O Pai Goriot, de Honoré de Balzac. Discutimos como o dandismo no século XIX poderia representar uma segunda idade de ouro da história do cuidado de si e colocamos em questão se ele também poderia representar uma raiz da subjetividade contemporânea. Na Antiguidade, o cuidado de si é um trabalho do personagem para se aperfeiçoar a si-mesmo e assim entrar na vida política e tomar em mãos o poder e o destino da pólis. No início do século XIX, o objetivo do cuidado de si será a realização de um desejo individual: entrar na vida da nobreza parisiense e tomar em mãos seu próprio destino. O personagem dândi balzaquiano é um modelo de sujeito que é incitado a se governar "ele-mesmo" para ser livre, ao invés de cooperar ao seu próprio assujeitamento. No entanto, interpretamos em Balzac uma forma "degradada" do cuidado de si em relação ao modelo socrático, uma vez que o próprio contexto sociopolítico se encontra "degradado". Na perspectiva do nosso trabalho, consideramos que o texto literário é uma forma relevante de representação e de produção da subjetividade que deve ser discutida com os estudos da subjetividade das ciências humanas.

Palavras-chave: Si-mesmo. Subjetivação. Cuidado de si. Dandismo. A Comédia Humana. Alcibíades.


ABSTRACT

The article aims to go through the history of the subjectivity in the Occident from the theme "the care of the self", according to Michel Foucault. The proposal is to debate the subjective processes in the literary studies, and it has as objective to present the invention of the care of the self in the Plato's dialogue Alcibiades, its transformations into some literary and philosophic works, especially its meanings in the literary work Father Goriot by Honoré de Balzac. We discuss how the dandyism in the 19th Century could represent a second golden age of history of the care of the self, and we also question if it could represent a root of contemporary subjectivity. In the Antiquity period, the care of the self is a work of the character to improve himself, and, this way, to venture himself in the politics life and take control of power and destiny of the polis. In early 19th Century, the objective of the care of the self will be the individual fulfillment of a wish: to be part of the Parisian Nobility and take in his hands his own destiny. The dandy character is a model of subject which is encouraged to govern himself in order to be free, instead of having to cooperate with his own subjection. However, we interpret in Balzac a "degraded" way of the care of the self, in relation to the Socratic model, once the very socio-political context is "degraded". In the perspective of our study, we consider the literary text a relevant way of representation and production of subjectivity which has to be discussed with studies of subjectivity of human sciences.

Key-words: Self. Subjectification. The care of the self. Dandyism. La Comédie humaine. Alcibiades.


 

 

1. Introdução

Neste artigo, abordamos os estudos de Michel Foucault (1926-1984) sobre as origens de uma forma de produzir a subjetividade: as práticas do cuidado de si. Nosso problema é investigar o conjunto dos processos pelos quais o sujeito se constrói com seus diferentes problemas e obstáculos e através de formas que estão longe de estarem concluídas. Em outras palavras, pretendemos investigar os processos de subjetivação, ou seja, "o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si" (Foucault, 2004a, p. 262). Na perspectiva da nossa investigação, consideramos que o estudo da produção literária pode proporcionar uma via de acesso não somente pertinente, mas, indispensável, para compreender os processos de constituição do sujeito ocidental.

Apresentamos uma história das práticas do cuidado de si desde a sua origem na literatura em Alcibíades de Platão (428/427 a.C. - 347/346 a.C.) e suas reaparições e transformações em alguns textos da cultura helenística e romana, nas Confissões de Santo Agostinho (354-430 d.C.), nas Meditações de Descartes (1596-1650), nas Confissões de Rousseau (1712-1778) e em O Pai Goriot de Balzac (1799-1850). Este último texto literário é o romance da formação ou da história da ascensão social de um rapaz (Eugène de Rastignac) e suas relações com a história da decadência de um pai que ama exageradamente suas filhas (o pai Goriot), a queda de uma grande dama (Viscondessa de Beauséant) e a prisão de um homem revoltado (Vautrin). Escolhemos este romance balzaquiano por se tratar de uma obra que representa, num contexto de profundas mudanças sociais caracterizado pelo afundamento do patriarcado, a história de personagens que sofrem de um "mal" de desencantamento. Diante desse "mal" Balzac coloca em cena novas formas de constituição do sujeito no século XIX. Ademais, este romance pode ser lido como obra introdutória ao universo romanesco balzaquiano.

Em O Pai Goriot, discutimos sobre as práticas do cuidado de si no século XIX - a partir do tema do "dandismo" nesta obra balzaquiana - afirmando que elas são raízes dos modos de subjetivação do mundo contemporâneo. Realizamos uma aproximação entre o cuidado de si de Alcibíades, personagem do diálogo de Platão que deve se conhecer e se transformar para governar a cidade e o cuidado de si de Eugène de Rastignac, personagem de O Pai Goriot. Ao compararmos essas duas obras, apontamos para uma continuidade do preceito socrático do cuidado de si e para suas transformações e "degradações" no cenário da vida moderna descrito por Balzac n'A Comédia Humana.

 

2. A hermenêutica do sujeito segundo Foucault

Numa entrevista publicada no Le Monde, em julho de 1984, sob o título de Uma Estética da Existência, Foucault esclarece sua posição sobre as questões da constituição do sujeito:

Em primeiro lugar, penso efetivamente que não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos os lugares. Sou muito cético e hostil em relação a essa concepção do sujeito. Penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através de práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de libertação, de liberdade, como na Antiguidade - a partir, obviamente, de um certo número de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural. (Foucault, 2004b, p. 291)

Foucault pretendeu estabelecer uma aproximação entre a moral moderna e a moral antiga, mais precisamente, entre as práticas de si modernas e as práticas de si gregas:

De um ponto de vista filosófico estrito, a moral da Antiguidade grega e a moral contemporânea nada têm em comum. Em contrapartida, se tomamos o que estas morais prescrevem, impõem e aconselham, elas são extraordinariamente próximas. É preciso fazer aparecer a proximidade e a diferença e, através de seu jogo, mostrar de que modo o mesmo conselho dado pela moral antiga pode funcionar de modo diverso em um estilo contemporâneo de moral. (Foucault, 2004a, p. 257)

Em 1982, no curso A Hermenêutica do Sujeito, Foucault desenvolveu um estudo sobre as práticas de produção de subjetividade na cultura ocidental sob o tema do cuidado de si. Essas práticas referem-se àquilo que se chamava frequentemente, em grego, epiméleia heautoû e em latim, cura sui - o princípio de "ocupar-se de si", de "cuidar de si-mesmo" inventado por Sócrates (470 a.C. - 399 a.C.). Foucault se interessou pelos efeitos da aceitação deste princípio nos dois primeiros séculos d.C. e suas relações com as práticas de subjetivação, tanto do mundo antigo como do mundo moderno. Foucault definiu e caracterizou o princípio do cuidado de si como uma ocupação de si, uma técnica de si ou uma prática de si que se refere a um modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações; uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo. É uma certa forma de converter o olhar do exterior para o si-mesmo implicando numa forma de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. Também designa algumas ações pelas quais os sujeitos assumem, se modificam, se purificam, se transformam e se transfiguram.

Segundo Foucault, desde a sua criação - percorrendo a filosofia greco-romana, assim como a espiritualidade cristã - o princípio do cuidado de si esteve atrelado ao princípio do conhecimento de si (gnôthi seautón). A confluência entre estes dois princípios socráticos numa única prática que se traduzia da seguinte maneira: o acesso à verdade - um saber sobre si-mesmo, sobre os outros, as coisas e o mundo, o princípio do conhece-te a ti mesmo - só se dá por meio de uma atividade constante de ocupação de si-mesmo (epiméleia heautoû). Em poucas palavras, para se chegar ao conhecimento de si é necessário o cuidado de si. Assim, o sujeito, ocupando-se de si-mesmo em busca da verdade, se transforma e se constitui enquanto indivíduo. Na filosofia grega do século V a.C., temos, pois, com o tema do cuidado de si, uma formulação precoce que deverá determinar - nas suas diversas modalidades - a história das práticas da subjetividade na tradição ocidental.

 

3. A Invenção do "cuidado de si"

O cuidado de si aparece na reflexão filosófica com o diálogo platônico Alcibíades. O personagem Alcibíades tem privilégios ancestrais que o situam acima dos outros. Ele pertence às mais eminentes famílias aristocráticas de Atenas onde ele leva a vida da juventude de ouro multiplicando seus escândalos. Vejamos abaixo uma imagem descrita por Plutarco (46 d.C.-125):

Quanto à sua beleza física, sem dúvida não há nada a dizer, senão que ela se estende e se conserva em todas as idades de sua vida: infância, adolescência, homem feito, ele foi sempre de um aspecto amável e charmoso. (...) tal foi o privilégio de Alcibíades e de alguns outros. Ele deve à feliz natureza e a excelência da sua constituição física. (Plutarque, 2002, p. 03).

Essa imagem do belo homem grego associa-se aos ideais do fenômeno do dandismo na cultura ocidental. Sabe-se que o dandismo é, a princípio, um fenômeno histórico característico da época romântica. Todavia, encontramos em autores como Chateaubriand (1827), Barbey d'Aurevilly (1845/1997), Prévost (1957/1982), Carassus (1971) e Saïdah (1989-1990) algumas referências a Alcibíades. Em Alcibíades, esses autores buscam um ancestral do dandismo. Carassus (1971) sugere que, sob diferentes formas, é possível de descobrir um dandismo avant la lettre ou depois do seu desaparecimento: apesar da distância e da diferença de contextos históricos, ele sugere que "fazer de Alcibíades o primeiro dos dândis" (Carassus, 1971, p. 17). A condição social e a política da época estão bem longe e são bem diferentes das condições sociais e políticas dos dândis do século XIX. Podemos falar de um dandismo de conduta e de toilette em Alcibíades: um dandismo de maneiras, de hábitos e de extravagância no modo de se vestir. É um tipo de dandismo que vai se sofisticar na maturidade quando ele toma o preceito socrático do cuidado de si para realizar algumas mudanças nele mesmo com o objetivo de governar seu povo. O que leva esses autores a tomarem Alcibíades como uma referência avant la lettre ao dandismo em plena Antiguidade é toda sua forma de se conduzir amparada por sua grande fortuna e sua beleza.

Alcibíades é orgulhoso de sua beleza e é assediado por muitos enamorados, mas, tão arrogante que a todos dispensou, restando somente Sócrates. É neste momento que nasce a questão do cuidado de si no diálogo. Sócrates interpela Alcibíades:

(...) queres entrar na vida política, queres tomar nas mãos o destino da cidade, mas não tens a mesma riqueza que teus rivais e não tens, principalmente, a mesma educação. É preciso que reflitas um pouco sobre ti mesmo, que conheças a ti mesmo. (...) olha um pouco o que és em face daqueles que queres afrontar e então descobrirás tua inferioridade. (Foucault, 2004, p. 46)

Essa inferioridade que Sócrates aponta em Alcibíades refere-se àquilo que, unicamente, poderia permitir-lhe governar: um saber, uma tékhne. Como vemos, a necessidade de cuidar de si - no modelo socrático-platônico - está vinculada à vontade do indivíduo de exercer o poder político sobre os outros; necessidade que se inscreve também no interior do déficit pedagógico. Este é o primeiro ponto: a ignorância e a descoberta da ignorância da ignorância é que suscitam o imperativo do cuidado de si. O segundo ponto é que o cuidado de si, afirmado e efetivado, se consistirá em conhecer-se a si-mesmo. O terceiro ponto conduz o indivíduo à busca do conhecimento pela apreensão de seu ser próprio pela alma, apreensão que ela opera ao olhar-se no espelho do inteligível, onde, precisamente, deve reconhecer-se.

Foucault afirma que, embora tradicionalmente Alcibíades não seja reconhecido como uma obra essencial no pensamento de Platão (428/427 a.C.- 347/346 d.C.), ele é o próprio princípio da filosofia no Ocidente.

 

4. A "cultura de si" como raiz da subjetividade moderna

Nos séculos V e IV a.C., segundo Foucault, Alcibíades representa o primeiro momento da história do cuidado de si - o momento socrático-platônico. Em seguida, nos séculos I e II d. C., o cuidado de si tornou-se uma arte autônoma, autofinalizada, valorizando a existência inteira. Foi o período da idade de ouro do cuidado de si que se transformou numa cultura de si. Havia como objetivo o retorno a si e a constituição do "eu" e a intensificação da relação consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto sujeito responsável pelos seus atos. Daí, Foucault nos leva a pensar no surgimento de um individualismo no mundo helenístico que conferiu cada vez mais espaço aos aspectos privados da existência, aos valores da conduta pessoal e ao interesse por si próprio. O enfraquecimento do quadro político e social da época teria influenciado no interesse dos indivíduos pelas regras de conduta pessoais na filosofia. Extravasando de seu quadro de origem - das prescrições socráticas a Alcibíades - e se desligando de suas significações filosóficas primeiras, o tema do cuidado de si adquiriu progressivamente as dimensões e as formas de uma verdadeira cultura de si:

O preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constitui assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber. (Foucault, 2005, p. 50)

Uma "arte de viver" sob o signo do cuidado de si, nos dois primeiros séculos da nossa era, teve seu momento ápice, sendo entendido, nos lembra Foucault, que esse fenômeno só acontecia em grupos sociais bem limitados: os portadores de cultura e para os quais uma techne tou biou (arte da existência) ter um sentido e uma realidade. A noção de epiméleia (cuidado) não designa simplesmente uma preocupação, mas todo um conjunto de ocupações e é preciso tempo para isso. Tempo que é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas. Vejamos algumas formas de ocupação deste tempo:

Existem cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida quanto possível, das necessidades. Existem as meditações, as leituras, as anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão lidas, a rememoração das verdades que já se sabe mas de que convém apropriar-se ainda melhor. (...) Existem também as conversas com um confidente, com amigos, com um guia ou diretor; às quais se acrescenta a correspondência onde se expõe o estado da própria alma, solicita-se conselhos, ou eles são fornecidos a quem deles necessita. (Foucault, 2005, p. 56-57)

Nesta citação observamos um dos pontos mais importantes dessas atividades consagradas a si-mesmo: ela não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social. Na tradição dos séculos I e II, o exercício do cuidado de si pode exigir o apelo a um outro, o qual possui aptidão para dirigir e aconselhar. Este outro não, necessariamente, precisa ser um especialista. Pode ser um amigo, ou um indivíduo de boa reputação. Desenvolve-se então uma intensificação das relações sociais. Neste preceito helenístico da conversão a si encontramos:

(...) o ponto de origem, o enraizamento primeiro de todas as práticas e de todos os conhecimentos que se desenvolverão em seguida no mundo cristão e no mundo moderno (práticas de investigação e de direção da consciência); [encontramos aí a] primeira forma do que se poderá depois chamar de ciências do espírito, psicologia, análise da consciência, análise da psykhé, etc. (Foucault, 2004, p. 307)

Vimos que socratismo é a primeira etapa da odisséia das práticas de subjetividade, da consciência de si. No helenismo, o conhecimento de si é apenas a primeira etapa de um processo visando à transformação de si. O momento de Alcibíades passou. A idade de ouro do cuidado de si também passou. A partir dos séculos III e IV d.C., formou-se o modelo cristão ou modelo ascético-monástico da relação entre cuidado de si e conhecimento de si. Aí o gnôthi seautón (conheça a ti mesmo) está ligado, de modo complexo, ao conhecimento da verdade tal como é dada no "Texto" (os textos bíblicos) e pela "Revelação" (a prática da oração). Seu procedimento implica numa exigência de purificação do coração para compreender a "Palavra" (considerada como sagrada). Há uma relação circular entre conhecimento de si, conhecimento da verdade e cuidado de si. O trabalho de conhecer a si-mesmo é praticado no uso de técnicas que visam dissipar as ilusões interiores, reconhecer as tentações que se formam no próprio interior da alma e do coração, assim como frustrar as seduções de que podemos ser vítimas. No cristianismo medieval, o conhecimento de si não tem tanto a função de voltar ao "eu" para, em um ato de reminiscência, reencontrar a verdade que ele contemplara e o ser que ele é. Retorna-se a si para renunciar a si. Eis aí uma "degradação" do modelo socrático do cuidado de si.

As Confissões de Santo Agostinho aparecem como uma obra importante sobre as questões do retorno a si. Tradicionalmente, é a primeira aparição do "eu" - o sujeito pensante que tem posse de consciência de si-mesmo e de sua existência - na Antiguidade tardia (Kern, 2008, p. 16). Nos diálogos platônicos e nos textos helenísticos o exame da consciência e o cuidado de si são de ordem moral. Em Santo Agostinho, o que caracteriza o cuidado de si é que o conhecimento do eu deve ser atravessado pelo conhecimento do divino e pela transformação do eu, de sorte que a busca do eu vise paradoxalmente a dispersão do eu. Agostinho encarna o exemplo do homem no seu itinerário espiritual em busca da sua salvação. Nessa tradição, a salvação de si faz referência a um sistema binário - passar da mortalidade à imortalidade, deste mundo a outro mundo, do mal ao bem, de um mundo impuro a um mundo de pureza - e a uma referência ao Outro (Deus) que implicará uma renúncia de si.

Foucault observa que, a partir da Renascença, o tema do retorno a si foi recorrente na cultura moderna. Foi um tema reconstituído por fragmentos e migalhas da experiência do "eu" na Antiguidade helenística e romana. Foucault sugere que bastaria reler Michel de Montaigne (1533-1592) para identificar uma ética e uma estética de si que é explicitamente referida aos autores gregos e latinos.

 

5. A desqualificação do "cuidado de si" na obra de Descartes

Foucault (2004) considera que estudar as relações entre "sujeito e verdade" com base na história do cuidado de si é uma tarefa um tanto sofisticada e paradoxal, considerando que a questão do conhecimento do sujeito na nossa tradição fundou-se e desenvolveu-se sob a fórmula do preceito délfico conhece-te a ti mesmo. Por isso, apresentou algumas razões pelas quais o tema do cuidado de si veio sendo um tanto desconsiderado, acabando por desaparecer da preocupação dos historiadores.

Mas, afinal, "por que, a despeito de tudo a noção de cuidado de si foi desconsiderada no modo como o pensamento, a filosofia ocidental, refez sua própria história?" (Foucault, 2004, p. 15). O que ocorreu para que se tenha dado mais importância ao princípio do conhece-te a ti mesmo e que se tenha deixado na penumbra a noção de cuidado de si? Foucault questiona e se debruça sobre este privilégio que se deu pelo conhecer a si-mesmo a expensas do cuidado de si e levanta uma interessantíssima hipótese: "parece claro haver, para nós, alguma coisa um tanto perturbadora no princípio do cuidado de si" (Foucault, 2004, p. 16).

Foucault afirmou que a razão mais essencial pela qual o preceito do cuidado de si foi sendo apagado da história do pensamento ocidental se chamaria de "momento cartesiano" - a era de René Descartes, ou, o nascimento da racionalidade moderna no século XVII. Esta racionalidade atuou requalificando filosoficamente o conhece-te a ti mesmo e desqualificando, em contrapartida, o cuidado de si. O procedimento cartesiano, que muito explicitamente se lê nas Meditações instaurou uma nova consciência e uma nova forma de se chegar até o conhecimento. Vejamos um fragmento das meditações cartesianas:

(...) de todas as opiniões que no passado considerei verdadeiras, não existe nenhuma da qual hoje não possa duvidar, não por falta de consideração ou imprudência, mas por razões muito fortes e refletidas: de modo que é preciso que de agora em diante suspenda meu juízo a respeito de tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que se me afiguram manifestadamente falsas, se desejo encontrar algo de imutável e de indubitável nas ciências (Descartes, 1999, p. 254).

Os textos de Descartes (1987, 1999) representam profundas transformações tanto nos procedimentos do pensamento quanto na constituição do sujeito. Ao construir um método para a compreensão do mundo, seus textos também constroem uma nova concepção de homem. A razão humana é o centro de tudo. Ela pretende encontrar a ordem das coisas para dominá-las e, sobretudo, dominar a si mesma. Por isso, no momento cartesiano, o caminho da verdade é acessível a qualquer um, uma vez que todos são livres para dirigir seu pensamento ao caminho correto. O método da dúvida levou o pensador a concluir que a única coisa que não seria duvidosa é a atividade de duvidar e quem a realiza é um "eu pensante", um sujeito.

O "eu" cartesiano é puramente pensante e capaz de produzir representações corretas do mundo. Daí a famosa frase: Je pense, donc je suis. Foucault considera que é, portanto, ao conhecimento de si, ao menos como forma de consciência, que se refere o procedimento cartesiano. No "momento cartesiano" vemos, pois, os sujeitos colocando a evidência da existência própria no princípio do acesso ao ser e assim fazendo do conhece-te a ti mesmo um acesso fundamental à verdade. Certamente, afirma Foucault, existe uma distância imensa entre o conhece-te a ti mesmo socrático e o procedimento cartesiano. Apesar do modelo de Sócrates ter sido o procedimento fundador da filosofia da cultura ocidental, este sofreu mudanças nos diferentes períodos da história. No século XVII, o procedimento cartesiano, requalificando e valorizando o conhece-te a ti mesmo, não só desqualificou o cuidado de si como o excluiu do campo do pensamento filosófico moderno.

Ainda seguindo as formulações de Foucault (2004), a idade moderna da história da verdade começa no momento em que aquele que busca a verdade, sem que mais nada lhe seja solicitado ou alterado (sem o cuidado de si), é capaz, em si-mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso. É claro que novas condições para se ter a verdade são exigidas, mas nenhuma delas concerne ao cuidado de si, mas exclusivamente ao conhecimento de si. No "momento cartesiano", sob as novas regras do pensamento, entramos numa outra era da história das relações entre "sujeito" e "verdade". Podemos afirmar que entramos na modernidade no dia em que admitimos que o que dá acesso à verdade, as condições pelas quais o sujeito pode ter acesso à verdade, é o conhecimento e tão somente o conhecimento. Nesta nova condição - a condição moderna - assim se encontra o sujeito:

(...) a verdade não será capaz de salvar o sujeito. Se definirmos a espiritualidade [uma das formas de práticas de cuidado de si] como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito (Foucault, 2004, p. 24).

No "momento cartesiano" da história do pensamento e da cultura se constituiu um sujeito que reconhece a existência própria como o princípio do acesso ao si-mesmo e faz do conhece-te a ti mesmo um acesso fundamental à verdade. Ao conquistar esse novo meio de acesso à verdade, libertando-se das condições do cuidado de si, o sujeito moderno experimenta uma nova condição da sua existência. A conseqüência disto é que o acesso à verdade, cuja condição doravante é tão-somente o conhecimento, nada mais encontrará no conhecimento, como recompensa e completude, do que o caminho indefinido do conhecimento. Partindo destas formulações de Foucault, podemos considerar que esta nova condição existencial em que se encontra o sujeito moderno é o "desamparo". Consideramos aqui que os procedimentos do cuidado de si para se ter acesso à verdade proporcionavam também o amparo necessário do sujeito para que a verdade conquistada realizasse no ser do sujeito um efeito de "salvação". Na era de Descartes perdemos o amparo da verdade.

 

6. Dimensões do "cuidado de si" na passagem do século XVIII para o século XIX

Retomando a hipótese de Foucault quanto à possibilidade de haver alguma coisa um tanto perturbadora no princípio do cuidado de si, aqui levantamos algumas questões. O que haveria de perturbador? A dissociação dos dois princípios socráticos seria motivo para um desamparo do sujeito moderno? O que faz o sujeito moderno diante desta nova condição? O cuidado de si foi de fato "esquecido" ou podemos identificá-lo no cenário moderno de forma requalificada? Analisemos estas questões na passagem do século XVII para o XIX.

No século das Luzes, as Confissões de Rousseau fazem do indivíduo sem qualidades - sem nascimento, sem nobreza - um sujeito humano, social, histórico e digno de interesse. Nesta obra, o "eu" autobiográfico se encanta de si-mesmo e se analisa com profundidade transformando a literatura em confissão. Nada parecido com a humildade cristã das Confissões de Santo Agostinho, o estilo de Rousseau afirma o orgulho doentio de um homem que se sente e se vê diferente dos outros. Este sofre por ser incompreendido e por ser considerado como mau e perseguido. Justifica-se freneticamente tomando Deus como testemunha e incitando os seus semelhantes a fazerem o mesmo. O "eu" em Rousseau proclama os "direitos superiores da alma" e contribui ao nascimento de um gosto pelo "novo", pelo "viver em pleno ar", pela liberdade de expressão, pelas viagens, pelo turismo. Eis uma nova forma de relação do sujeito com ele mesmo que será determinante na história do "cuidado de si" na época romântica.

No protagonismo de alguns personagens dândis de Balzac vislumbramos a possibilidade de pensar uma nova significação do cuidado de si na vida moderna. Este princípio estará associado a um tipo de resistência individual aos sistemas rígidos das formas de subjetivação e assujeitamento e das relações humanas institucionalizadas no contexto da vida urbana no século XIX. No entanto, Balzac nos apresenta uma sociedade moderna na qual não é possível um cuidado de si sem a vivência das contradições, dos dilemas morais, dos conflitos ideológicos.

Foucault observa que na história do pensamento no século XIX encontra-se uma série de difíceis tentativas para reconstituir uma ética e uma estética do "eu" - dentre elas, toma como exemplo Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, o pensamento anarquista. Segundo a interpretação foucaultiana, esta noção de conversão a si teve um destaque espetacular no século XIX, conforme observamos a seguir:

Será preciso um dia elaborar a história do que poderíamos chamar de subjetividade revolucionária. (...) Parece-me que é a partir do século XIX (...), seguramente por volta de 1830-1840 e justamente em referência àquele acontecimento fundador, histórico-mítico que foi [para o] século XIX, a Revolução Francesa, que se começou a definir esquemas de experiência individual e subjetiva que consistiriam na "conversão à revolução". (Foucault, 2004, p. 256)

Em 1789, a Revolução Francesa registrou o início de uma série de acontecimentos que alteraram o quadro político, social e cultural da França estendendo-se por toda Europa e influenciando outros continentes. A Revolução realizou uma ruptura importante dos costumes na passagem do século XVIII ao XIX. Neste período, a emergência do conceito de indivíduo na filosofia dos Direitos do Homem e a emergência da cultura burguesa centrada na privacidade doméstica são algumas razões históricas das transformações do cuidado de si na cultura ocidental. É no curso do século XIX que o sentimento de individualidade aumenta consideravelmente. Podemos citar alguns exemplos de novas práticas de subjetivação: a transformação dos nomes pessoais (prénoms, na cultura francesa), a difusão do retrato pessoal, da fotografia e do jornal íntimo dentro de algumas classes, a reorganização do interior da casa burguesa afim de dividi-la entre o espaço privado e o espaço de recepção. No mais, o corpo suscita um novo interesse e o banho deixa de ser uma prática excepcional e passa a ser um reflexo de higiene - costume que ainda não fazia parte do cotidiano. Uma vez que essas novas atitudes incitam a intensificação dos valores da vida privada, elas são construtoras de um individualismo na cultura moderna - ou seja, à exaltação da singularidade individual cuidadosamente protegida e organizada pelas classes burguesas.

Entramos numa nova era do cuidado de si. Após a Antiguidade helenística e romana, encontramos na Renascença e no século XIX a segunda época do retorno a si como intensificação da relação consigo mesmo na qual o sujeito se constitui como responsável por seus atos na história da subjetividade no Ocidente. O que essas duas épocas têm em comum em relação à Antiguidade helenística e romana? O fortalecimento da cultura de si. No século XIX, o dandismo é uma das possíveis manifestações do cuidado de si que é representado pela figura de um herói moderno que quer se impor como sujeito livre e auto-estilizado.

 

7. Uma versão do "cuidado de si" em Balzac

Durante as décadas de 1830 e 1840, Honoré de Balzac escreveu A Comédia Humana, uma imensa coleção de estudos de costumes, estudos filosóficos e estudos analíticos por meio de novelas, romances, contos, ensaios, teorias e tratados sobre as mais variadas dimensões da sociedade francesa da primeira metade do século XIX. Nos estudos de costumes, as narrativas balzaquianas estão classificadas em "cenas da vida": privada, provinciana, parisiense, política, militar e rural. Devido à sua diversidade de temas e à sua complexidade de análise, a obra de Balzac é muito investigada pelos estudos literários e pelas ciências humanas. Aqui, nosso interesse é breve um estudo dos processos de subjetivação em Balzac. O estudo de Viana (1999) sobre as dimensões histórico-culturais da "feminilidade" n'A Comédia Humana é uma importante referência da pesquisa da obra balzaquiana dentro das ciências humanas. Seu modelo de análise e discussão é uma referência inaugural para os estudos dos processos de subjetivação em Balzac, uma vez que o tema da feminilidade é debatido na sua forma literária, na sua dimensão histórica, enfatizando o contexto de uma sociedade em movimento. Viana (1999) evidencia como Balzac faz dos processos de transformação social o seu objeto de estudo e nos orienta a pensar sobre as dimensões subjetivas que aí se encontram implícitas.

Segundo Viana (2007), se quisermos estudar tais processos na obra balzaquiana, deve-se estudar as novas configurações da vida política no século XIX, pois "aos processos de transformação social imbricam-se as transformações do humano" (Ibid., p. 12). O efeito do trabalho balzaquiano na história da subjetividade é bastante significativo: "o pensamento de Balzac parece representar o momento de inflexão de um projeto de subjetividade tributário da modernidade" (Ibid., p. 15). Considerando que A Comédia Humana pode ser lida como registro de um dos mais importantes momentos da história do homem na cultura ocidental, nos ocupamos no presente artigo do estudo de algumas práticas de subjetividade no século XIX.

Vivendo num contexto de intensas e grandes transformações, Balzac testemunhou momentos históricos decisivos, tais como o império de Napoleão e sua queda (1804-1814), o período da Restauração (1814-1830) e a ascensão da burguesia na França na Monarquia de Julho (1830-1848) tomando o poder num país aberto a revoluções, lutas sociais, corrupção e ambições desmedidas. Toda obra de Balzac é inspirada neste ambiente no qual se constituíram novas formas de organização na vida pública e privada. A Comédia Humana é considerada um dos maiores ou talvez o maior projeto já idealizado e realizado na literatura universal por um só escritor (Rónai, 1946), afirma Paulo Rónai, coordenador da primeira tradução brasileira completa de A Comédia Humana em 1946 e a sua segunda edição em 1991 compostas de 17 volumes2.

Nesta obra, mais de dois mil personagens circulam nas narrativas, às vezes como protagonistas, outras vezes como participantes dos enredos de outras histórias. Em diferentes narrativas encontramos uma continuação, um desfecho ou uma explicação para as histórias, os dilemas e as intrigas dos personagens; encontramos o protagonista dez anos depois ou dez anos antes de um drama central em outro romance; encontramos até uma conversa de café onde alguns personagens discutem sobre outros romances, outros dramas, outras histórias. N'A Comédia Humana podemos identificar alguns pontos de aparição do cuidado de si. O exemplo que vamos analisar neste artigo é a descoberta de "uma certa ignorância" como um momento determinante no percurso de personagens rapazes provincianos que chegam em Paris e que têm o desejo de pertencer ao grupo da belle jeunesse, o clã dos dândis. O cuidado de si é então uma nova ocupação que se instala em personagens como Eugène de Rastignac (O Pai Goriot) e Lucien de Rubempré (Ilusões Perdidas e Esplendores e Misérias das Cortesãs) quando eles descobrem sua inferioridade frente ao mundo que eles querem afrontar.

Analisemos algumas cenas de um capítulo do romance balzaquiano O Pai Goriot3 (1834). O protagonista Eugène de Rastignac é filho de uma família nobre arruinada após a Revolução Francesa. Em 1819, ele é apenas um rapaz provinciano que habita numa miserável pensão burguesa no quartier Latin de Paris para estudar Direito. No início, ele não compreende o que é o dandismo. A narrativa da aprendizagem de Rastignac mostra que ele é "obrigado" a ser um dândi, uma vez que ele é ambicioso e quer "subir na vida". Na sua primeira tentativa de entrar na alta sociedade parisiense, o jovem provinciano Rastignac sente um ódio violento pelo dândi Conde Maxime de Trailles, amante da Condessa de Restaud:

Em primeiro lugar, os cabelos louros e bem frisados de Maxime fizeram-lhe sentir o quanto os seus estavam horríveis. Além disso, Maxime tinha sapatos finos e limpos, ao passo que os seus, apesar das preocupações que tomara pelo caminho, tinham uma leve camada de lama. Finalmente, Maxime vestia uma sobrecasaca que se ajustava elegantemente ao corpo e o fazia assemelhar-se a uma moça, enquanto Eugênio, às duas e meia da tarde, trazia uma casaca preta! (Balzac, 1834/1958, p. 56-57)

Rastignac tem sua primeira tomada de consciência de si por confrontação com o outro. É uma descoberta: ele não tem a mesma riqueza que esse jovem homem da moda e não tem, sobretudo, a mesma educação. Eugène sente a superioridade que a encenação dá a esse dândi elegantíssimo: "esse é meu rival, quero vencê-lo" (Balzac, 1834/1958, p. 57). Percebe rapidamente que ele próprio não utiliza a mesma linguagem da nobreza parisiense e que não conhece os códigos da conversação. Após tais descobertas, ele se encontra "sob o domínio duma dessas raivas surdas que levam um rapaz a afundar-se cada vez mais no abismo onde caiu à espera de encontrar alguma saída feliz" (Ibid., p. 61). Este mal-estar é uma experiência que vai incitar novas ações desse sujeito balzaquiano sobre ele mesmo. É preciso refletir sobre si-mesmo, é preciso se conhecer a si-mesmo.

Rastignac vê adiante um dos ilustres impertinentes dândis de Paris, o Marquês d'Ajuda-Pinto, amante da Viscondessa de Beauséant. Ele o observa e pensa: "será mesmo preciso ter cavalos fogosos, lacaios e dinheiro em abundância para merecer o olhar duma mulher em Paris?" (Balzac, 1834/1958, p. 65). Seu mal-estar é mais forte agora: "o demônio do luxo mordeu-lhe o coração, a febre do ganho dominou-o e a sede de riqueza secou-lhe a garganta" (Ibid.). Que fazer de si-mesmo? Eugène já está certo de sua própria ignorância e da "ignorância da ignorância" e pede ajuda a Sra de Beauséant: "sou um ignorante que meterá o mundo inteiro contra si se a senhora me recusar seu apoio" (p. 67). A demanda do jovem em Paris parece-nos ter algum sentido próximo da questão do diálogo de Platão quando Alcibíades pede a Sócrates: "Para se aperfeiçoar a si-mesmo, que se deve propor? (...) Podes me dizer? Existe, acredito, mais de verdade nas suas reflexões que em qualquer outro lugar" (Platon, 2002, p. 79). Mas, o objetivo da questão do rapaz balzaquiano é "degradado" em relação ao modelo socrático. Existe a descoberta de um déficit pedagógico, mas, a vontade do indivíduo é de um poder pessoal para ter conquista pessoal: eis um novo contexto político no século XIX no qual a questão do individualismo é exacerbada.

Rastignac recebe sua primeira lição para entrar na "nobreza burguesa" parisiense: "se você quer vencer na vida, para começar não seja demonstrativo" (Balzac, 1834/1946-1959, p. 67). O jovem aprendiz recebe outras lições maquiavélicas de sua "instrutora" Senhora de Beauséant - uma forma também "degradada" do mestre socrático da Antiguidade - para vencer no teatro mundano e, sobretudo, ele recebe seu nome "como um fio de Ariadne para entrar nesse labirinto" (p. 74). Para o rapaz provinciano, esse foi um dia rico de descobertas e a consequência será o início de um processo permanente de mudanças na sua atitude em relação a si-mesmo, em relação aos outros, em relação ao mundo, implicando numa forma de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento: "o cordeiro começa a se fazer leão"4 (Bara, 2000, p. 158).

Mas, "essas mudanças são, sem dúvida, muito espetaculares para serem profundas e definitivas" (Bara, 2000, p. 159). Rastignac é um iniciante e tem um percurso onde vai converter o olhar do exterior, dos outros, do mundo em direção a si-mesmo, uma vez que "ele [ainda] se encontra fora desse mundo saturado de aparências e misteriosamente codificado" (Bara, 2000, p. 153). Segundo o diálogo Alcibíades, só se pode sair da ignorância aprendendo a se conhecer a si-mesmo. Isso significa que Rastignac tem muitas ações que ele deve exercer de si sobre si para conquistar seus objetivos. Até aqui analisamos a primeira descoberta na história do cuidado de si de Rastignac: a superioridade que os cuidados com a aparência - cuidados do corpo e o vestuário, atenção às maneiras e aos códigos da conversação - dão àquele que quer vencer na vida em Paris. Ele percebe também que, para "subir", ter uma amante é uma excelente estratégia utilizada entre os dândis espertos: ele será amante da Baronesa Delphine de Nucingen, filha do pai Goriot e esposa do mais rico banqueiro d'A Comédia Humana. A seguir, sublinhamos outras atividades em Rastignac que também são características da cultura de si: os diálogos com seu outro "guia", os diálogos com um amigo e suas meditações.

O encontro com a Sra. de Beauséant foi como um novo nascimento para o rapaz que se encontra agora definitivamente inquieto. Aqui, podemos tomar uma célebre comparação que Platão faz entre Sócrates e o mutuca, "inseto que pica os animais, se instala nos seus corpos e os fazem correr e se agitar" (Platon, 1920, p. 156-157). Platão (1920) diz que o cuidado de si é um tipo de espinho que deve ser plantado na carne dos homens, que deve ser fixado nas suas existências e que é um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de inquietude permanente no curso de suas existências. Assim, Rastignac vai seguir seu próprio caminho e vai ter profundos debates interiores, morais e ideológicos. A tensão mais forte vem das conversas entre ele e seu novo "guia", o personagem enigmático Vautrin. O "instrutor" de Rastignac não é um amigo, nem um indivíduo de boa reputação. Ele "manifesta a mesma natureza ambígua da esfinge, meio-leão meio-homem na mitologia egípcia, meio-leão alado meio-mulher na mitologia grega" (Bara, 2000, p. 246). Com Vautrin, Eugène se encontra como Édipo confrontando a esfinge.

Então, a questão platônica "Para se aperfeiçoar a si-mesmo, que se deve propor?" é pronunciada avidamente por Rastignac: "que preciso fazer?" - "quase nada" (Balzac, 1834/1958, p. 97) responde Vautrin. Como um Mefistófeles da sociedade burguesa, ele apresenta uma proposta diabólica ao rapaz ambicioso: casar-se com Victorine Taillefer e assassinar seu irmão. Victorine é uma moça que habita na mesma pensão miserável onde moram Rastignac e Vautrin. Ela fora lá abandonada pelo seu pai, o milionário Taillefer. Se seu irmão é assassinado toda herança de seu pai será convertida em dote. Casando-se com ela, Rastignac ficaria milionário e Vautrin receberia uma rica porcentagem nesse golpe. Segundo Vautrin, faz-se carreira em Paris "pelo brilho da inteligência ou pela habilidade da corrupção (...) a corrupção representa uma força, porque o talento é raro" (p. 94). As palavras de Vautrin se referem a toda moral de nossa época:

O homem é imperfeito. Às vezes, ele é hipócrita em grau maior ou menor e então os tolos dizem que ele tem ou não tem boa conduta. Não acuso os ricos em favor do povo: o homem é sempre o mesmo, no alto, em baixo, no meio. Em cada milhão desse ilustre gado, encontram-se dez sujeitos decididos que se colocam acima de tudo, mesmo das leis. Sou um destes (Balzac, 1834/1958, p. 95).

Vautrin é um porta-voz de Balzac para conduzir suas críticas sobre a corrupção de sua época, sobre a cultura humana e os dispositivos para regular as relações dos homens entre eles e, em particular, a repartição dos bens acessíveis. Enfim, ele resgata uma lição que a Sra de Beauséant já tinha pronunciado: "se você quiser obter fortuna, é preciso já ser rico ou parecê-lo" (Balzac, 1834/1958, p. 95). O rapaz se encontrado muito aturdido, mas ele não é tão ingênuo. Ele está sempre refletindo sobre as palavras de Vautrin: "que cabeça de ferro tem esse homem! (...) disse-me cruamente o mesmo que a Sra. de Beauséant me disse com belas palavras" (p. 100). Eugène "cuida de si-mesmo". Ele avalia os conselhos de seus "mestres" e produz suas próprias conclusões. O cuidado de si do iniciante balzaquiano será pleno de meditações ensurdecedoras que vão povoar um universo romanesco atravessado de contradições. Em Rastignac, existe um mal-estar suscitado por suas meditações, pois as rememorações das verdades dadas por Vautrin são bem assustadoras. Ele sofre de uma febre interior entretida pela idéia de um pacto com Vautrin. O jovem homem sente uma mistura de terror e encantamento por esse "diabo". O que ele aprecia é o cinismo de suas idéias e a audácia com a qual ele encara a sociedade.

Suas primeiras experiências na vida da aristocracia parisiense, a descoberta da corrupção e as idéias de Vautrin nutrem seus pensamentos indecisos e sua crise de consciência. Existem dois seres nele. Como se apropriar das verdades diabólicas sem pactuar-se com o diabo? Horace de Bianchon é um personagem importante nesse momento do percurso de Rastignac. Ele é um estudante de medicina que freqüenta a miserável pensão burguesa do quartier Latin. Um amigo confidente a quem Rastignac pode expor alguns estados de sua alma e de quem ele pode receber conselhos. É a terceira figura na formação do dandismo de Rastignac. Os dois amigos se encontram no jardin du Luxembourg:

- Que é que te deu esse ar tão sério? - perguntou-lhe o estudante de medicina, tomando-o pelo braço e levando-o a passear diante do palácio.

- Ando atormentado por más idéias.

- De que natureza? As idéias se curam.

- Como?

- Sucumbindo a elas.

- Estás rindo sem saber do que se trata. Leste Rousseau?

- Sim.

- Lembras-te daquela passagem em que ele pergunta ao leitor que faria se pudesse enriquecer matando, apenas pela vontade, um velho mandarim da China, sem sair de Paris?

- Sim.

- (...) Dize-me uma coisa: se te provassem que isso é possível e que bastaria fazeres um gesto com a cabeça, tu o farias?

- É muito velho, o mandarin? Mas, não, jovem ou velho, paralítico ou sadio, de modo algum... eu não faria esse gesto! (Balzac, 1834/1958, p. 116)

Rastignac sofre de "más idéias". Segundo seu amigo Bianchon, esse tipo de mal-estar moral se cura sucumbindo às idéias. Matar ou não matar o Mandarim chinês? Bianchon responde que não. Mas, matar, com um simples pensamento, um velho e desconhecido chinês que mora do outro lado do mundo para obter a fortuna sem sair de casa é uma proposta muito tentadora para Rastignac:

- És um rapaz digno, Bianchon! Mas, se amasses uma mulher a ponto de por ela virar a alma pelo avesso, e se precisares de dinheiro, muito dinheiro, para seus vestidos, sua carruagem, para todos os seus caprichos, enfim?

- Mas tu me privas de todo raciocínio e queres que eu raciocine!

- Pois bem, Bianchon. Estou louco. Cura-me. (...) Há circunstâncias na vida, como vês, em que é preciso jogar forte e não empregar a sorte em ganhar alguns centavos.

- Ora, estás formulando a questão que preocupa toda gente no começo da vida e queres cortar o nó górdio com a espada. Para agir assim, meu caro, é preciso ser Alexandre. De outro modo, acaba-se na cadeia. (...) Concluo pela vida do chinês.

- Muito obrigado. Fizeste-me um grande bem, Bianchon! Sempre seremos amigos. (p. 117)

"Existem circunstâncias na vida em que é preciso jogar um grande jogo", eis o contra-argumento de Rastignac. Por outro lado, ele mesmo se acusa como um louco por ter esses pensamentos e pede ao seu amigo médico que o cure. Vejamos uma análise simplificada de um contexto social em que podemos incluir o mal-estar de Rastignac:

Quando há uma degradação das velhas tradições e uma proliferação de novas alternativas, cada homem se vê obrigado a recorrer com maior constância ao seu "foro íntimo" - aos seus sentimentos (que nem sempre condizem com o sentimento geral), aos seus critérios do que é certo e do que é errado (...). Surge um espaço para a experiência da subjetividade privatizada: quem sou eu, como sinto, o que desejo, o que considero justo e adequado? Nessa situação, o homem descobre que é capaz de tomar suas próprias decisões e que é responsável por elas. A conseqüência desses contextos é o desenvolvimento da reflexão moral e do sentido da tragédia. (Figueiredo e Santi, 1991/2003, p. 20)

O contexto de Rastignac é o do surgimento da "subjetividade privatizada" que, segundo Figueiredo e Santi (1991/2003), data aproximadamente da Renascença e a crise dessa subjetividade se consuma no final do século XIX. A "tragédia" de Rastignac é a situação de conflito moral entre duas intenções igualmente fortes, mas incompatíveis. A amizade de Bianchon é fundamental para atividade que Rastignac consagra a si-mesmo. Nós diríamos que ela é um ponto de equilíbrio entre um princípio de realidade e um princípio de prazer na subjetividade de Rastignac. Esse equilíbrio essencial permite que ele possa "integrar perfeitamente o código social e se fundir no molde da burguesia triunfante" (Bara, 2000, p. 450). Na entrada da vida parisiense - como Alexandre, o Grande - Rastignac tenta desfazer o "nó górdio": os dilemas de suas meditações. Veremos no final do romance que ele vai cortar o nó - a "solução de Alexandre" - e, pelo brilho do seu gênio unido ao endereço da corrupção, vai prosseguir em seguida suas conquistas em Paris.

A consciência de Rastignac é também a consciência da violência social que ele adquiriu no seu papel de testemunha da agonia do pai Goriot: protagonista do mesmo romance que vive na pensão burguesa e que perde tragicamente pouco a pouco sua fortuna e sua vida ao realizar os caprichos de suas duas filhas. Rastignac assiste o afundamento do antigo mundo monárquico e assim ele adquire um saber histórico, social e moral que o torna apto a agir no mundo novo, burguês, pré-democrático. Em O Pai Goriot, esse novo mundo é representado como o mundo que sai das "ruínas" da morte do pai Goriot - o personagem que representa a decadência do patriarcado. O drama da Viscondessa de Beauséant, abandonada por seu amante o Marquês d'Ajuda-Pinto que prefere um casamento por dinheiro, ilustra a queda da nobreza numa era em que o dinheiro corrompe os valores humanos.

Rastignac será conhecido como um dos verdadeiros dândis da sociedade criada por Balzac. A solidão será um traço da sua personalidade. O desaparecimento da Sra. de Beauséant, a prisão de Vautrin, a morte de Goriot são motivos iniciais da sua maturidade. É ele e Paris: "A nós dois agora!" - diz Rastignac observando toda cidade de Paris da parte mais alta do cemitério Père Lachaise após enterrar o pai Goriot. É só que ele faz carreira; é só que ele vai continuar toda sua vida. A solidão é uma solução do indivíduo balzaquiano para afrontar as contradições morais e políticas de sua época. Na literatura de Balzac encontramos as origens de uma sociedade burguesa com todas as suas linhas de força e poder de desumanização que são características das sociedades contemporâneas liberais e neo-liberais. O Pai Goriot pode ser lido como uma narrativa do nascimento das formas de corrupção no mundo contemporâneo; entendendo a corrupção como condição fundamental para o funcionamento das sociedades globalizadas e mundializadas de nossos dias.

O cuidado de si no personagem Rastignac não pode ser visto como um trabalho uniforme e definido por uma ética. Nem moral e nem imoral; e nem verdadeiramente cínico. A subjetividade do personagem "representa uma juventude sem classes [que não encontra suas bases nem na velha aristocracia, nem na moral burguesa] e lúcida que quer viver assim mesmo" (Saïdah, 1989-1990, p. 553). É uma subjetividade que representa uma capacidade de adaptação. Com Balzac, nos aproximamos da formação de um sujeito "governado" pela moral da ambição, a moral do homem forte e a moral do parecer. Entretanto, o sujeito - representado por Rastignac - assujeitando-se ao poder político não perde jamais sua consciência e sua compreensão dos mecanismos sociais. Nesse herói balzaquiano, o cinismo, a frieza de espírito, a dissimulação do ser, o desejo de poder, serão alguns traços de expressão da sua nova subjetividade. Esses traços, "não são eles marcas distintas do dandismo?" (Ibid.). A narrativa de Balzac sobre o dandismo é mais que uma criação romanesca. Ela é também um conjunto de especulações essenciais da história do crescimento de uma "cultura do individualismo" no mundo contemporâneo - tema debatido demasiadamente nos estudos atuais das ciências humanas. Anterior a uma compreensão científica, as criações literárias de Balzac são ilustradoras de algumas páginas da história do mal-estar e da subjetividade no Ocidente.

 

8. O "cuidado de si" entre o assujeitamento e a negação

Vimos que, na Antiguidade, época da sua primeira aparição, o cuidado de si é um trabalho de Alcibíades para se aperfeiçoar a si-mesmo e assim entrar na vida política e tomar em mãos o poder e o destino de Atenas. No início do século XIX, no personagem Eugène de Rastignac, o objetivo do cuidado de si será a realização de um desejo individual: entrar na vida da nobreza parisiense e tomar em mãos seu próprio destino, onde se apresenta um tipo de "degradação" do modelo do princípio socrático. O dandismo é uma característica dos dois personagens principais desse artigo. Ele aparece nas cenas do personagem do texto de Platão e nas cenas do personagem do texto de Balzac. O dândi platônico se orienta para o "interior" de si-mesmo com finalidades de se transformar e se preparar para defender sua cidade: é um cuidado de si orientado por uma ética da transcendência e dirigido para a "salvação" do bem público. O dândi balzaquiano se orienta para o "exterior" de si-mesmo, sofisticando a sua aparência de acordo com a luxuosa moda parisiense com finalidades de se destacar na multidão e fazer parte da elite: é um cuidado de si orientado por experiências individuais contraditórias e dirigido para a "salvação" de si-mesmo. Nesse contexto, o dandismo, não seria ele uma paródia do cuidado de si no século XIX?

Por que Balzac teria escolhido personagens que representam a frivolidade e a corrupção para representar algumas cenas da sociedade moderna? Por que nós escolhemos um personagem dândi na obra de Balzac para estudar o cuidado de si no século XIX? Balzac quis traduzir o mal-estar da juventude de sua época, suas recusas e suas revoltas. E nós, queremos ilustrar no cuidado de si do personagem Rastignac uma atividade do sujeito sobre ele mesmo para conquistar ou construir um "lugar" para si mesmo num mundo onde os "lugares" estão em crise. Assujeitar-se aos valores do novo mundo burguês ou negá-los? É aí que podemos afirmar que, em Balzac, "parece claro haver, para nós, alguma coisa um tanto perturbadora no princípio do cuidado de si" (Foucault, 2004, p. 16). A noção foucaultiana do cuidado de si refere-se a uma resistência individual às relações de poder. A noção de sujeito capaz de realizar mudanças em si-mesmo e de produzir outros sentidos e outras formas de existência deve se referir à noção de "governamentalidade". Existe uma ligação entre a ética do sujeito definida em relação de si a si e a análise do poder político. Tomando o pensamento de Foucault, podemos interpretar que Balzac cria um modelo de cuidado de si para o século XIX. O personagem dândi balzaquiano é um modelo de sujeito que é incitado a se governar ele-mesmo para ser "livre" ao invés de cooperar ao seu próprio assujeitamento. No entanto, Balzac evidencia que o cuidado de si é "degradado" em relação ao modelo socrático, uma vez que o próprio contexto sócio-político se encontra degradado.

Afirmamos que Balzac resgata e requalifica o cuidado de si na história da subjetividade ocidental. Após as transformações do cuidado de si nos textos do helenismo, em As Confissões de Santo Agostinho e nas Meditações de Descartes, Balzac apresenta uma nova versão. Não se trata mais de um trabalho de retorno a si para a renúncia de si como em Agostinho. Nem se trata mais de um trabalho unicamente racional como em Descartes. A versão balzaquiana está para além de um trabalho de exaltação romântica de um "eu" como nas Confissões de Rousseau, embora seja um pouco influenciada por ela. Trata-se de um trabalho que inclui todo o ser do sujeito para tornar sua vida uma arte autofinalizada como na cultura e si do período do helenismo, mas no qual o sujeito vivencia as contradições morais e políticas de sua época. Dessa forma, o dândi, como herói romântico d'A Comédia Humana, ilustra as oscilações entre as práticas de assujeitamento e as práticas de libertação.

 

Notas

1. Exemplos de referências que aparecem nos autores citados: "Alcibíades moderno", "à maneira de Alcibíades", "como eles teriam feito na Grécia no tempo de Alcibíades", "Alcibíades nos fornece um modelo explosivo", "eis um ato de dândi avant la lettre". Ver na obra de Carassus (1971) os comentários sobre as referências a Alcibíades nos estudos sobre o dandismo.

2. Em língua francesa, sugerimos a edição completa de La Comédie humaine organizada sob a direção de Pierre-Georges Castex (Balzac, 1976-1981). Também sugerimos a edição organizada pelo Groupe International de Recherches Balzaciennes (2009) que se encontra disponível na página http://www.v1.paris.fr/musees/balzac/furne/presentation.htm

3. O Pai Goriot é um romance que faz parte das Cenas da Vida Privada dentro dos Estudos de Costumes d'A Comédia Humana. Uma análise dos estudos de costumes escrita por Félix Davin e Honoré de Balzac pode ser encontrada em língua portuguesa em Estudos de Costumes no Século XIX (Davin e Balzac, 1834/2007).

4. "L'agneau commence à se faire lion". Lion é também uma expressão para se referir ao dândi na sociedade francesa da década de 1830. Nessa frase, podemos entender que o ingênuo rapaz provinciano começa a se fazer um dândi.

 

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Recebido em 28 de setembro de 2010
Aceito em 17 de outubro de 2010
Revisado em 10 de novembro de 2010

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