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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza dez. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O espaço e os outros: aspectos da experiência da vida urbana retratada por crianças de diferentes classes sociais

 

 

Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt

Doutora em Psicologia Clínica, Professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. End.: R. Desembargador Burle, 99 apto. 302. Humaitá. Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22271-060. E-mail: mines@puc-rio

 

 


RESUMO

Entre os fatores significativos para a construção da subjetividade na infância, considera-se de fundamental importância o lugar e os valores que são conferidos pela cultura às crianças em cada momento histórico. No mundo contemporâneo, a definição da infância como "etapa preparatória" inclui a realização de duas tarefas: brincar e estudar, com vistas ao ingresso no mundo da produção. No entanto, na experiência clínica têm sido constatadas significativas mudanças na forma como as crianças se apropriam das formas tradicionais de brincar. O investimento dos pais no projeto de "preparação" tem colocado muitas crianças, principalmente das classes mais altas, no lugar de depositárias de expectativas de sucesso em detrimento da dimensão lúdica fundamental para toda a construção subjetiva do futuro adulto . A isto se acrescenta o fato de que, na experiência da vida urbana contemporânea marcada pela violência, pelo individualismo e por valores do consumo, tendem a desaparecer os tradicionais espaços de convivência que facilitavam a formação espontânea de grupos de crianças através de brincadeiras coletivas. Neste trabalho, são destacadas a função do brincar no desenvolvimento, a vivência do espaço físico e as representações da alteridade. Dados de uma pesquisa de campo com crianças de classes sociais diferentes são apresentados como ilustração, apontando para sinais de um maior esvaziamento do sentido da experiência interior nas crianças economicamente favorecidas. Em contraste, as crianças de classes populares, embora marcadas pelas condições desfavoráveis da vida na cidade, parecem manter mais preservada a possibilidade de uma apropriação lúdica e criativa do espaço nos moldes tradicionais.

Palavras-chave: Infância. Cidade. Sociedade de consumo. Experiência. Alteridade.


ABSTRACT

The values that are linked to contemporary education, particularly those prevailing in the upper social classes, appear to have important consequences in the way children experience childhood: time and space for spontaneous playing, so important for a healthy mental development of the future adult subject, seem to be often sacrificed to give place to conditions for a future "adult" achievement, through preparatory studies and activities. The conditions of daily life in contemporary cities, particularly the increased occurrence of violence and the values related to individualism and purchasing, play an important role in determining the way children experience and represent their environment. Some related questions are discussed in this paper: the concept of childhood, the function of playing in child's development, the experience of physical space in urban environment and the attitudes towards the others, based on a field research with children belonging to different social classes, that outlines the influence of the conditions of urban life . Children from the upper classes seem to show a greater difficulty to get conscious of a personal sense of their inner experience, while children from working class show more creativity and playing ability in the way they experience the environment.

Key words: Childhood. City. Consumer society. Experience. Alterity.


 

 

Introdução

A partir de observações e formulações teóricas sobre as relações entre o espaço e as configurações da subjetividade, destacamos neste trabalho algumas questões sobre a relação entre as condições de vida nas cidades contemporâneas e os modos de ser, pensar e sentir das crianças. Temos observado diversos aspectos significativos na prática clínica: mudanças no modo tradicional de "ser criança" se manifestam tanto em crianças economicamente favorecidas quanto em crianças das classes populares: percebemos o aumento de sintomas de inibição e/ou agressividade cujas causas se encontram referidas à experiência do confinamento e da violência do ambiente. Observa-se também frequentemente um precoce declínio das formas tradicionais da brincadeira simbólica, a necessidade de se apoiar em padrões pré estabelecidos e a predominância da cópia, ou seja uma imobilidade das crianças diante do que lhes é oferecido (Bittencourt e Maia, 2007).

Buscando referências complementares fora do setting clínico, realizamos um conjunto de observações sobre a experiência do espaço no contexto de uma pesquisa de campo com crianças de classes sociais distintas, cuja metodologia se voltou para a produção de imagens tendo por tema a representação da cidade, simbolizada em dois bairros conhecidos pelas crianças da amostra.

O presente trabalho propõe uma reflexão sobre estas observações, tomando como fundamentos teóricos as idéias desenvolvidas por D.W. Winnicott sobre o brincar e a criatividade.

Alguns conceitos teóricos serão inicialmente apresentados, de modo a fundamentar a compreensão de aspectos significativos do material. Privilegiamos três aspectos: a função da brincadeira na infância, a experiência da espacialidade e a experiência da alteridade, contextualizadas nas condições de vida na cidade.

Entre os fatores relativos à construção da subjetividade durante o desenvolvimento de um indivíduo, destacam-se tanto o lugar e os valores conferidos à infância pela cultura, quanto a própria experiência subjetiva no ambiente, que envolve relações com o espaço físico e com os outros. As repercussões destas experiências determinam as representações individuais sobre o mundo e sobre si mesmo apresentadas pelas crianças. Destacando a importância do lúdico na infância, colocaremos em contraponto a redução dos espaços públicos de brincadeira (uma característica das grandes cidades de hoje) e as repercussões deste fenômeno em dois aspectos importantes da vida: a vivência do espaço e as representações da alteridade.

As cidades contemporâneas apresentam configurações peculiares em que os espaços , organizados segundo a lógica do sistema de produção/ consumo, são marcados pelo intenso contraste entre riqueza e pobreza, pela segregação e pelo isolamento, cujas conseqüências atingem paradoxalmente não só os mais pobres, confinados em guetos, como as classes mais favorecidas, igualmente confinadas em espaços protegidos: os apartamentos, os condomínios, os shoppings centers, os carros com vidros fechados, etc. Muitos observadores, como por exemplo Harvey (1997), Bauman ( ), Jameson (2006) etc, têm chamado atenção para o fato de que as ruas se transformaram em vias de passagem despersonalizadas, muitas vezes hostis e violentas, deixando de ser lugares de encontros, e no caso das crianças, de brincadeiras. Este aspecto marca de modo particular a infância das classes média e alta, cada vez mais confinada em suas casas, escolas e outros espaços "especializados". As crianças das classes populares também sofrem, em seus lugares de moradia, com as limitações impostas pela violência com a qual convivem de modo particularmente próximo, mas ainda parecem desfrutar de alguma possibilidade de circular de forma mais livre e de brincar nas ruas.

 

A importância do brincar na infância

A importância do lúdico na infância é destacada por todos os observadores do desenvolvimento humano que, na perspectiva das mais diversas linhas teóricas, concordam sobre este ponto.

Do ponto de vista da Psicanálise, privilegiamos aqui a contribuição de Winnicott, a partir da qual podemos lembrar que a brincadeira é essencial para a instauração da função simbólica, gestada em um espaço existencial específico, que o autor nomeia como transicional, onde se estabelece uma ponte entre a realidade e a fantasia, possibilitando uma apreensão pessoal do self e do mundo externo. De acordo com esta concepção, quando o processo de amadurecimento pessoal ocorre em condições favoráveis, o indivíduo pode chegar a lidar de modo mais criativo com o princípio de realidade, estabelecendo condições para a experiência de uma vida autêntica. Foi partindo da pergunta "onde se encontra a brincadeira?" que Winnicott ([1951], 1975) formulou o conceito de espaço transicional, como lugar que abriga a função simbólica, dinamizada pela imaginação.

Encontramos nesta reflexão de Bachelard (2002) uma ilustração do modo como se dá a elaboração da experiência e a construção de projetos no espaço transicional:

A imaginação, em suas ações vivas, nos desliga ao mesmo tempo do passado e da realidade. Aponta para o futuro. À função do real, instruída pelo passado, tal como é destacada pela psicologia clássica, é preciso juntar uma função do irreal também positiva.

De acordo com Winnicott, o que é fundamental para a determinação do espaço imaginário existente entre o indivíduo e o meio ambiente como uma área de experiência onde ocorre o encontro do real e do irreal, é assim definido:

O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo ( 1975, p.142)

Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas. (1975, p.15)

A brincadeira infantil, primeiro estágio da função de recriação simbólica do mundo e de si mesmo, se situa na dimensão transicional, recriando a vida e lançando as bases para as futuras produções culturais, como argumenta Winnicott (1975:137) : "quando se fala em homem", "fala-se dele juntamente com a soma de suas experiências culturais. O todo forma uma unidade".

Pode-se lembrar que o significado de "cultura", para Winnicott, refere-se ao que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual todos podemos contribuir e do qual podemos usufruir, à condição imprescindível de existir "um lugar para guardarmos o que encontramos", cujos fundamentos se enraízam na experiência da brincadeira.

 

O lugar da infância hoje

No que se refere ao lugar ocupado pela infância na atualidade, é importante lembrar que a noção de infância não é natural, mas histórica e cultural. Em seu trabalho pioneiro, Ariès (1978) defende a idéia de que cada época desenvolve discursos e práticas que denotam as expectativas em relação aos lugares ocupados pelas pessoas numa sociedade. Este fato marca de modo especial as crianças, com conseqüências diretas sobre sua formação, criando modos de ser, pensar e agir específicos.

No decorrer da modernidade tradicional a noção de infância percorreu um caminho que progressivamente passou do "não lugar" a uma especificidade que levou a criança a ser definida como um sujeito que era marcado pelo vir-a-ser, pela potencialidade, e não tanto pela sua competência no aqui e agora. A definição da infância como etapa preparatória inclui nesta concepção a realização de duas tarefas: brincar e estudar, com vistas ao ingresso no mundo da produção (Castro, 2001). No atual mundo capitalista globalizado e "líquido" (segundo a expressão de Bauman, 2001), em que as incertezas predominam e a competição é cada vez mais acirrada, o investimento dos pais no projeto de "preparação" tem transformado muitas crianças, principalmente das classes mais altas, em depositárias de altas expectativas de sucesso, sendo tratadas como pequenos adultos cheios de tarefas a cumprir, em detrimento da dimensão lúdica fundamental para toda a construção subjetiva do futuro adulto. A vida contemporânea, que se organiza primordialmente em função dos valores do mercado, apresenta-se assim marcada por contradições. É importante marcar ainda que a vida gira em torno do consumo, que fomenta a sedução, os desejos crescentes, insaciáveis e voláteis. Conseqüentemente, as formas atuais de ser, que marcam também a infância, são atravessadas por um lado pela racionalidade a exigência de sucesso e por outro lado pela ênfase nas sensações, na oferta de produtos que prometem prazeres absolutos e felicidade.

Quanto aos espaços de vida, muitas crianças, especialmente aquelas pertencendo às classes mais favorecidas, vivem hoje uma paradoxal experiência de "confinamento": os espaços de que desfrutam são pré-determinados, organizados segundo tarefas a cumprir, que incluem além da escola, diversas tarefas extra curriculares, como cursos e esportes, ocupando os horários antes consagrados à prática livre de brincadeiras. Desde cedo os pais se preocupam com a futura inserção das crianças no "mercado", submetendo-as a uma precoce preparação para a vida adulta. Ao mesmo tempo, as condições da vida na cidade têm como correlato o fenômeno de substituição da atividade simbólica criativa da brincadeira grupal pela comunicação mediada pelo computador, pelas horas passadas diante da televisão, pelos videogames jogados de modo repetitivo e muitas vezes solitário.

Na ausência de espaços reais, os espaços virtuais proporcionados pela tecnologia parecem mais atraentes, fornecendo prazer imediato e sem esforço. O mercado fornece permanentemente brinquedos novos, descartáveis na primeira oportunidade de troca. Estas condições compensam a falta de espaço físico dos apartamentos ou mesmo dos play grounds, assim como a quase total impossibilidade de brincar nos espaços comuns da rua. Algumas questões sobre a prática destas novas formas de brincar, e suas repercussões nos modos de ser, pensar e sentir se colocam a partir das falas das próprias crianças quando nos propomos a ouvi-las. Nesse momento, encontramos freqüentemente sinais de um pensamento concreto, permeado por materialismo, comodismo, imediatismo... Percebemos um sombreamento da criação e a predominância da cópia, ou da imobilidade da criança diante do que a ela é oferecido - nada se cria, tudo se copia... Quando o espaço do brincar sofre qualquer restrição o que ocorre é uma patologia do desenvolvimento como um todo. Quando há uma restrição na criação lúdica de uma criança, possivelmente estará havendo igualmente uma restrição em sua capacidade de simbolizar como um todo. (Bittencourt e Maia, 2007).

Trata-se de uma questão que remete à dimensão ética, pois o desenvolvimento da capacidade criativa exige algumas condições para poder se realizar: apoio, solidariedade, respeito pela vida e pela integridade do outro, como condições ambientais essenciais para a construção de espaços simbólicos de troca. O que se observa hoje é que as relações familiares (base de toda a ética) se esvaziam, na medida em que estas condições de natureza afetiva são substituídas por um duplo movimento dos pais pautado em valores de ordem racional e/ou material, já que exigem desempenho mas também satisfazem todas as demandas de consumo das crianças.

Instaura-se assim uma crise dos limites, tanto no que se refere ao aumento de exigência de desempenho, quanto à excessiva gratificação de necessidades criadas pelo sistema do consumo, que muitas vezes pouco ou nada têm a ver com autênticos desejos das crianças. A ideologia implantada pelo consumo traz uma sensação imediata do possuir, que causa um fascínio nas crianças que se tornam detentoras desse poder sem nem terem chegado à idade adulta.

 

Espaço e experiência

A experiência social tradicional favorecia a consolidação de esquemas relativamente mais estáveis e duradouros de percepção, pensamento e ação. Crianças e adultos tinham seus lugares demarcados e trocavam experiências, que eram codificadas e transmitidas em narrativas que lhes conferiam um sentido (Benjamin, [1913],1984, [1936] ,1996). A categoria do tempo ocupava uma posição determinante na formação dos valores e concepções de vida.

Analisando o processo da globalização, Ortiz (1996) pontua que a mundialização afeta a própria noção de espaço. Isto porque a cultura esteve sempre, de alguma maneira, enraizada no meio físico que a envolvia do qual surgiam as identidades culturais de cada povo, o sentido de coletividade interna que se opunha aos 'outros' situados fora de suas fronteiras. O espaço era o local onde cada cultura se materializava: os costumes, vestimentas, crenças, modo de vida de cada povo se enraizavam no espaço onde se fixavam.

Numa sociedade cujos valores passaram a ser centrados no consumo, não se encontram mais diversas práticas que sustentavam a experiência interior e davam sentido à "preparação" da criança para a vida adulta: havia limites rigorosos, mas também práticas que permitiam um convívio familiar mais próximo e constante. Como resultado observa-se na atualidade um crescente vazio de significados e valores. Os heróis contemporâneos, como assinalou Baudrillard (1981) não estão mais vinculados a uma cultura de tradição , onde o tempo, ao invés de" ser dinheiro", é algo a ser construído, vivido, respeitado, o que implica aceitar o "dilaceramento ontológico" resultante da vivência da falta . Oferecendo simulacros, o meio ambiente hoje proporciona uma ampla gama de valores do descartável no lugar de valores que possam facilitar a integração . Há assim uma inversão na hierarquia das categorias de embasamento da experiência, com uma predominância da espacialidade sobre a temporalidade.

A hegemonia da imagem e a prevalência da tecnologia têm gerado formas de subjetividade centradas apenas em objetos externos a serem consumidos e metas de sucesso a serem alcançadas, numa troca do "ser" pelo " "ter" e o "fazer". Com o declínio dos modelos culturais fundamentados na dimensão "humana" perde-se o sentido da experiência, (em alemão Erfahrung), termo usado por Benjamin (op. cit) para descrever a possibilidade de se expressar e compartilhar em narrativas as vivências comuns . Esta experiência foi substituída por uma forma de vivência individual, facilitada por uma peculiar organização do espaço e das relações dentro dele. A adesão ao modelo imposto pela cultura do consumo se disseminou na sociedade, seduzida por promessas de felicidade ao alcance do bolso.

Os outros como semelhantes deixam assim de ser a base para a construção de referências éticas, e as diferenças são cada vez menos toleradas, de modo que, nas palavras de Jobim e Souza (2000, p.95)

o cotidiano das crianças se organiza de acordo com essa ideologia, desde os objetos culturais que fazem parte do seu dia a dia até os espaços que freqüentam. Não importa a classe social, o confinamento acontece na mesma proporção. Ou se está no condomínio, ou se está na favela, e esses dois mundos só se encontram na recusa ou no confronto..

Entre as maiores vítimas desta situação se encontram as crianças, vivendo na apreensão constante que vai confinando suas vidas a espaços cada vez mais exíguos onde muitas vezes não resta nem a possibilidade de brincar. Tanto nas crianças de classe média quanto no que se refere às crianças moradoras de favelas, tem chamado nossa atenção na clínica a freqüência da queixa de "problemas de comportamento", que tanto incluem condutas de hiperatividade e agressividade como casos de extrema inibição e atrasos diversos no desenvolvimento cognitivo e social. Também tem chamado atenção a crescente freqüência dos medos que caracterizamos como localizados no real, que denotam o desamparo diante da ameaça da violência realmente vivenciada e/ou continuamente propagada na mídia.

A cidade contemporânea é o lugar exemplar desta forma de vida, centro de produção de riqueza, mas também de exclusão social, injustiça e violência. Encontram-se hipertrofiadas, deste modo, a complexidade, a intensidade e a velocidade de variação dos estímulos apresentados à percepção, que muitas vezes precisa dar conta de assimilar extremos, visíveis nos contrastes arquitetônicos, nas desigualdades na qualidade de vida, etc, e suas conseqüências, como a banalização da violência. Neste contexto, o que tem sempre sido destacado é o desenvolvimento de formas de relações interpessoais esvaziadas e racionalizadas.

 

Alteridade e construção da subjetividade

É na organização do espaço que fazemos o reconhecimento das representações a respeito de quem somos e do que somos dentro de uma determinada sociedade. Neste sentido, o conceito de habitus, tal como é formulado por Pierre Bourdieu (1992), expressa a inscrição do social nos indivíduos, acentuando a importância fundamental do corpo como lugar em que se dá a interface entre cada sujeito e o meio, fronteira que constitui a condição para a manifestação da individualidade e o estabelecimento da identidade, na diferenciação entre eu e não -eu num determinado contexto social.

Do ponto de vista do sujeito, a identidade tem como base uma imagem do corpo, um conceito imaginário que deriva de uma experiência espacial real (Schilder, 1988). É nas primeiras interações do bebê com o ambiente humano que a imagem do corpo começa a ser construída, através da experiência com o corpo do outro (mãe) que permitirá gradativamente a diferenciação e a percepção das partes do próprio corpo. Esta experiência aponta para o fato de que o corpo e sua imagem são então fenômenos que se constroem socialmente, e é na cultura que se encontram as representações e valorações que determinam em cada contexto socio-histórico as relações do sujeito com seu corpo e conseqüentemente sua própria identidade.

Haverá necessidade de uma continuidade de encontros com outros / espelhos confiáveis e consistentes ao longo da vida, para que a identidade individual se fortaleça e as trocas sociais se processem de modo respeitoso e fecundo para o individuo e para a cultura (Winnicott, 1975).

Relacionada com a questão da emergência do self, a função especular humana pode se constituir num ângulo para a compreensão dos modos de ser baseados na imagem. Tomou-se aqui como referência um texto de Carlos Doin (1985), que resume conceitos relacionados aos processos de comunicação e percepção. A contribuição original de Doin refere-se à categorização da função especular como primária-integradora / não integradora (que ocorre no início da vida), e secundária reintegradora/desintegradora, que precisa continuar durante toda a vida . Ao longo da vida a função integradora, diz Doin (1985, p.14) "exige condições de afeto, compreensão e autenticidade, para que possa cumprir-se o preceito délfico : Conhece-te a ti mesmo".

Winnicott (1975, p.155-157) marca as repercussões da função especular na vida do indivíduo:

Quando olho, sou visto; logo existo. Posso agora me permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção e também percebo. Na verdade protejo-me de não ver o que ali não está para ser visto.

A dialética do eu mesmo e da alteridade tem como conseqüência o fato de que não é possível alguém visualizar-se sem o intermédio do outro ou da imagem, o que representa por outro lado ambigüidade e estranheza fundamental, Neste sentido, de acordo com Merleau-Ponty (1999), através do pensamento puramente objetivo o outro representaria dificuldade e "escândalo". Ou seja, neste caso dificilmente a alteridade é tomada como um ego em sentido semelhante ao que o indivíduo é para si mesmo, e muitas vezes cumpre a função de depositária daquilo que podemos definir, parafraseando Freud ([1919], 1972), como o estranho que habita em nós mesmos, transformando-se assim o outro em algo repulsivo ou assustador . A dificuldade de percepção do outro como semelhante torna-se ainda maior quando se trata de indivíduos de universos sociais diferentes.

Representações e valorações veiculadas pela cultura determinam, em cada contexto sócio-histórico, as relações do sujeito com o mundo e com sua própria identidade . Estas representações não são únicas de um indivíduo ou de outro. São mediadas pela dimensão do imaginário social ( Castoriadis,1992) que está para a sociedade como a imaginação está para o indivíduo. O imaginário social faz parte do campo das idéias coletivas, não é emergente individualmente, é algo em si que se impõe a cada um:

"Só podemos pensar este imaginário social, que cria a linguagem, as instituições, os costumes, como a capacidade criadora do anônimo coletivo que se põe em funcionamento cada vez que os humanos se reúnem e se dão, cada vez, uma figura singular instituída para existir."(1992, p. 92)

No que se refere ao lugar ocupado pelo estranho na nossa sociedade, é notável o destaque alcançado pelo imaginário do medo e a rejeição em bloco dos "marginais". Refletindo sobre a relevância desta questão no entendimento das formas de convivência nas cidades contemporâneas, Zygmunt Bauman (2001) lembra que Levy-Strauss identificou duas estratégias possíveis nas situações de enfrentamento da alteridade: a modalidade antropoêmica e a antropofágica. Enquanto a segunda estratégia consiste em assimilar, suspendendo ou aniquilando as diferenças, a primeira estratégia, amplamente praticada nas sociedades contemporâneas, consiste em "vomitar" os outros, vistos como estranhos e alheios, por meio de práticas diversas de discriminação, que podem ir de formas brutais como os assassinatos sumários até formas mais "refinadas" como a separação espacial, os guetos, o acesso seletivo a espaços. Nos conteúdos diariamente veiculados pela mídia, os assuntos relacionados à violência urbana não se restringem às ações praticadas pelos "fora da lei", mas também sinalizam os excessos cometidos por forças institucionais. Somo lembrados a todo momento que não há mais garantia de lugares seguros. Como sinaliza Batista (2005. p.54)

No capitalismo tardio o medo se renova e não é só uma conseqüência deplorável da ordem econômica, é um projeto estético que movimenta a mídia, a cultura e principalmente a industria da segurança. Trata-se de identificar, traçar e criar constantemente fronteiras para os "novos estranhos", aqueles que desordenam a preservação da pureza consumista, como dizsse Bauman (...) a liberdade irrestrita do capital financeiro produziu um mundo onde nada é seguro. A pobreza não é mais exercito de mão de obra, mas um sinal de desordem a ser isolado e neutralizado. A nova ordem mundial representa uma " barbarização secundária" na sua periferia.

 

Crianças, espaço urbano e classe social: questões a partir de uma pesquisa de campo

Buscaremos a seguir aproximar as questões colocadas acima de algumas situações reais, com exemplos colhidos em trabalho de campo realizado no Rio de Janeiro, cujo objetivo foi investigar como crianças, respectivamente de classe média/alta e de classe popular representariam, através da construção de um painel de imagens, o bairro onde residem e outro bairro diferente do seu pelas características sócio-econômicas.

O trabalho foi realizado com dez grupos de meninos e meninas de dez anos, cada um com seis crianças, cursando a quarta série do ensino fundamental de uma escola pública municipal e de uma escola particular, respectivamente moradoras de uma favela e de um bairro nobre, ambos situados na zona sul do Rio de Janeiro. È significativo lembrar que na cidade do Rio de Janeiro, por suas condições geográficas peculiares, a proximidade e a exclusão entre "morro" / favela e "asfalto" convivem de modo particularmente ambíguo.

As crianças foram orientadas a fazer um primeiro painel ( com desenhos e colagens) sobre o bairro onde residem e um outro sobre um bairro "diferente". Foi sugerido, para este segundo painel , que os moradores da favela representassem o bairro onde estudam, e que os moradores deste mesmo bairro, de classe média/alta da zona sul, desenhassem a favela situada próxima de suas residências, onde residem as crianças do grupo economicamente menos favorecido. As crianças foram em seguida convidadas a conversar, sempre em grupo, sobre o que haviam produzido.

Enquanto os alunos da escola municipal demonstraram claramente prazer e espontaneidade ao construir os painéis, assim como um zelo marcante com a beleza do trabalho, tanto na representação do seu local de moradia, quanto do bairro do "asfalto", chamou atenção nas crianças da escola particular o fato de terem apresentado uma necessidade de perfeição tão grande nas representações, que chegou a ter um efeito inicialmente paralisante em todos os grupos: ninguém queria se arriscar a romper o branco do papel e cometer um erro. Quando finalmente a representação era iniciada, policiavam-se o tempo todo para se aproximarem ao máximo da exatidão e vigiavam tudo o que os colegas do mesmo grupo estivessem fazendo , a fim de obter uma representação "bela e perfeita", segundo expressão de uma menina.

Três categorias de análise foram escolhidas a descrição de conteúdos que parecem significativos pelas diferenças denotadas entre as representações dos grupos de classes sociais contrastantes.

 

As crianças e a rua: lugar de passagem / lugar de experiência

Embora as crianças da classe sócio-econômica mais favorecida percebam seu bairro com bastante realismo, em suas representações não se implicam no lugar. As representações parecem refletir uma experiência esvaziada em relação às ruas, apesar de falarem que há muitas coisas para fazer no bairro. Trata-se de lugar perigoso, a ser percorrido sem olhar para os lados, não é lugar de "flanerie", não há menção de encontros com outras crianças para brincar, passear ou mesmo tomar um sorvete: há uma carrocinha sem ninguém por perto. Em contraste com a dimensão do "ser criança" no presente, é o "vir a ser" que parece se apresentar com força, não somente na representação em si, mas no grau de auto-exigência no processo de elaboração do desenho, na busca da perfeição, na tentativa de recomeçar porque deu errado, na opção de representar um prédio em chamas apenas porque o desenho "não deu certo".

A representação muito fiel, com total destaque para estabelecimentos comerciais indica simultaneamente intimidade com os mesmos e distanciamento: lojas, restaurantes, shopping, galeria, são todos nomeados, mas estão vazios. A disposição das ruas, parque e praça se dá numa visão "aérea", como um mapa preciso, que não inclui praticamente uma experiência de vida retratada: os poucos "humanos" presentes são representações da estranheza, figuras distantes que não fazem parte das relações dessas crianças: moradores de rua, um segurança, diversos assaltantes, alguns "aposentados". A praça, embora representada com brinquedos, está abandonada e no Jóquei Clube (que é situado no bairro) os cavalos aparecem correndo sozinhos. Porém muitos carros são representados nas ruas e avenidas.

Se as crianças de classe média representaram ruas da Zona Sul desabitadas, as crianças moradoras da favela da amostra não parecem perceber este espaço como um lugar vazio: nele há bastante vida, da qual essas crianças são, porém, essencialmente espectadoras - gente dentro do clube, dentro dos prédios, comendo em restaurantes, crianças "ricas" brincando na piscina, comemorando aniversário, etc. Implicam-se em algumas situações, como a de pessoas esperando atendimento na porta do hospital público.

É significativo porém notar que, quando representaram a favela onde moram, as crianças a encheram de vida apesar da menção constante à violência: há meninos brincando, soltando pipa nas lajes, adultos e crianças em festas, no baile funk, em shows do movimento afro-reggae (" a nossa marca"segundo uma criança).

A criança neste caso não parece sentir-se um " vir a ser", mas dar ênfase ao "aqui agora" e conservando, apesar das precárias condições de vida, a capacidade de enfatizar o lado lúdico da vida. Nesses grupos foi possível observar-se um processo de elaboração dos painéis caracterizado por mais engajamento no trabalho, mais tranqüilidade quanto o resultado, e um prazer autêntico na realização da tarefa considerada como uma brincadeira.

 

A violência da cidade

A representação da violência se fez presente em todas as produções, independentemente da classe social. As crianças moradoras do "asfalto" fizeram referências a várias modalidades de assaltos nas ruas do bairro: a carros ; a banhistas na praia; em arrastões; a pedestres. "Todos já vimos assalto na Gávea", diz uma criança. "O cara reagiu ao assalto e levou um tiro do bandido", "o cara não passou a grana, aí saiu sangue, muito sangue". A banalização da violência no trânsito se mostra na presença de vários acidentes: "Um carro muito burro fez uma batida ali aí o outro voou".

Se essas crianças, como afirmam, "já viram assaltos", para as moradoras da favela o contato com a barbárie e com a morte é uma experiência cotidiana. Lembramos aqui uma afirmação de Bauman (1998, p.42)

as idéias e as palavras que as transportam mudam de significado quanto mais longe elas viajem - e viajar entre as casas dos consumidores satisfeitos e as moradas dos sem poder é uma travessia de longa distância.

Assim, contrariamente aos que moram no "asfalto", os moradores das zonas de risco encontram-se capturados de modo concreto pelas situações que dão forma e nome à violência. As crianças da favela representaram com muito realismo a sua vida cotidiana. Foram mostrados diversos confrontos com muitos tiros, sangue e mortes, embates entre traficantes ou com a polícia. Por outro lado afirmaram que "na favela não tem assalto". Mencionaram a função ambígua de bandido/justiceiro do "dono do morro" que "protege as pessoas"mandando matar quem as molesta, sem saber posicionar-se quanto a isto ser "certo ou errado"

A polícia apareceu frequentemente, sempre em seu lado negativo, nas falas das crianças da favela: os excessos cometidos pelo Caveirão, tiros contra inocentes:

E - Todo mundo acha que polícia é má?

(todas juntas exclamam) Sim!

C 2- Porque elas é quem provocam tudo.

C 3- Fecham tudo no tiroteio porque lá na Rocinha os policiais pensam que todos são bandidos e primeiro eles atiram para depois saber quem é bandido e quem é morador". C1- "Outro dia quando eu cheguei da escola tava tendo invasão lá onde eu moro. Os polícias não deixou eu passar e eu tive que ir por cima assim, dar o maior voltão para ir pra casa".

Quanto à presença da lei nas representações das crianças de classe média, estas ignoraram a polícia substituída por "seguranças", afirmando que há vários no shopping e alguns prédios também os possuem. Disseram ainda que o comércio precisa encerrar seu expediente mais cedo com receio aos assaltos.

 

Percebendo o diferente

A dificuldade de enxergar o outro como semelhante foi acentuada pelo abismo sócio-econômico existente entre as crianças da favela e de classe média, que não conheciam de fato uma favela. As representações do "espaço dos outros" por essas crianças foram determinadas em alto grau pelo imaginário social de violência veiculado na mídia, nas opiniões das pessoas, etc. Nessas representações, a favela é o lugar da estranheza, de todo o "mal": muita sujeira, desordem, feiúra, tiroteios, traficantes, assaltantes, criancinhas drogadas, pais que batem nos filhos, arrastões.

O que mais chama atenção, contudo, é o fato de que para estas crianças os "diferentes" , os "estranhos", também parecem ser aqueles que povoam as ruas do próprio bairro, pois (como já foi mencionado mais acima) só há menção à presença de assaltantes, mendigos, etc.

Enquanto isso, as crianças da favela, que circulam efetivamente pelo espaço dos seus "outros", vêem o asfalto como local idealizado, mas marcado por inacessibilidade e exclusão. Estas crianças claramente se implicaram nas representações através do seu desejo, projetado nas crianças ricas que, de fato, elas imaginam usufruírem do bairro, jogando futebol, na piscina ou consumindo no restaurante ou no shopping, cheio de felizes consumidores com sacolas de compras, mas visto como lugar "proibido" ( "a gente não pode entrar lá ,porque ficam olhando prá gente"). Diferentemente das crianças de classe média/alta, que apenas desenharam as lojas (papelaria, farmácia, shopping, etc) sem explicitar nenhum objeto, as referências ao consumo pelas crianças "excluídas" incluem nominalmente os brinquedos desejados e talvez impossíveis de conseguir: Barbie Lago dos Cisnes, bonecas Miracle Baby e Amazing Amanda. Também denotam revolta pelo não pertencimento identificando-se com os assaltantes: "se o cara tivesse sido educado com o assaltante e passado a grana , não teria sido morto".

 

Considerações finais

Na amostra considerada, as representações do espaço realizadas pelas crianças ilustraram com grande riqueza de detalhes várias observações relativas à vida nas cidades contemporâneas, em que os espaços são caracterizadas pelo contraste entre riqueza e pobreza, pela segregação e pelo isolamento, cujas conseqüências atingem tanto os mais pobres como as classes mais favorecidas.

Em primeiro lugar, a transformação das ruas em vias de passagem, despersonalizadas, muitas vezes hostis e violentas, mostrou-se presente nas representações das crianças das classes média e alta, que parecem desconhecer a possibilidade de desfrutarem destes espaços para experiências de encontros, brincadeiras, etc. Quanto às crianças das classes populares, apareceram referencias à experiência da discriminação.

Foi considerado digno de atenção o contraste entre algumas formas de experiência das crianças segundo a classe social considerada. No que se refere à dimensão do lúdico como característica da infância, revelada através das representações dos modos de apropriação do espaço, as diferenças se mostraram evidentes.

Apesar da exposição à violência na vida cotidiana, as crianças moradoras da favela revelaram uma dimensão "infantil" preservada, traduzida em suas produções gráficas pela constante presença de temas lúdicos , seja na representação de experiências efetivamente vividas, seja na expressão do desejo projetado na "vida dos ricos", em imagens de conteúdos caracterizados pela constante referência a brincadeiras, festas, etc, e destacando-se, do ponto de vista formal pelo movimento nas representações gráficas, pelo uso das cores, etc.

Estas características se mostraram praticamente ausentes das representações das crianças do "asfalto", precocemente adultizadas, blasées, individualistas. Este aspecto significativo, que remete a uma forma de relação com os outros permeada por interesses pessoais e consumistas, foi observado nas crianças de classe média / alta, podendo ser ilustrado pelo fato relatado a seguir.

Após a realização dos trabalhos pelas crianças, foi oferecido a cada uma delas, como "brinde", um pequeno bombom de chocolate. O seguinte diálogo ocorreu entre uma entrevistadora e uma criança do grupo de classe média / alta:

Criança - "Eu desenhei tudo isso pra ganhar só um " bis"?! (tom de indignação)".

Entrevistadora - "Não é suficiente apenas um?"

C - "Não, me dá mais um aí, eu vi que sobraram cinco!" (estica a mão para alcançar os bombons).

E - "Mas se eu der outro a você vou ter que dar aos seus colegas também e só sobraram cinco, não são suficientes para todo mundo".

C - Mas dá só para mim, por favor!"

Jobim e Souza (2000:92) aponta para o fato de que muitas crianças, hoje, parecem encontrar-se " num barco à deriva". Solitárias, confinadas, são excessivamente protegidas mas carecem por outro lado da base afetiva consistente para uma experiência interior, que se apresenta esvaziada de sentidos próprios , substituídos pela ilusão de preenchimento pelos objetos de consumo: brinquedos, divertimentos eletrônicos, comida, etc. Essas crianças insaciáveis e individualistas, exemplificadas na fala acima reproduzida, parecem perceber o mundo em que vivem apenas nos seus aspectos objetivos.

Enquanto as crianças moradoras da favela mostraram uma percepção "infantil" e uma capacidade de representação cheia de vida tanto da favela quanto do "asfalto", onde circulam, pegam ônibus, observam o movimento e brincam, a vivência das crianças de classe média se revelou completamente diferente. Conversando com as entrevistadoras, estas revelaram que quando "andam a pé" no bairro é sempre em companhia de um adulto e com um destino certo, como a escola, o shopping, uma loja. Nas representações concretas e racionalizadas do espaço onde vivem, parece que elas, na sua condição de crianças, não se sentem necessárias. A própria idéia da facilidade de acesso aos objetos a comprar não se mostra sustentada por um desejo digno de ser representado. A vontade de brincar, passear, relacionar-se, tampouco aparece, sendo substituída pela cobrança quanto ao desempenho: crianças "executivas", intensamente treinadas para serem eficientes. Percebe-se uma imobilidade da criança diante do que a ela é oferecido, uma espécie de sombreamento da criação. A oportunidade de criar algo não desperta a ludicidade e sim a inquietude, o ato de autoria se perde, não parece haver um sentimento da possibilidade prazerosa de "fazer arte" em um espaço de potencialidade.

De acordo com Winnicott (1975), quando não é possível brincar, aparecem a submissão e o sentimento de vazio: a criança se aborrece, se isola ou fica indiferente. A este respeito, Maia (2005) enfatiza que

"A criatividade que interessa a Winnicott (1975:98) é uma criatividade de proposição universal e que está relacionada ao estar vivo. Esta "relaciona-se com a abordagem do indivíduo à realidade externa". O "viver criativo" pode perder-se, "porque pode desaparecer o sentimento que o indivíduo tem de que a vida é real ou significativa". (p.101) E esse sentido se perde quando, em algum momento, o ambiente falha uma falha com "F" maiúsculo e o espaço transicional, e conseqüentemente a criatividade aí gestada, também se perde."

Indagamos: se a constituição do espaço potencial estiver de alguma forma comprometida, como poderia ocorrer, para estas crianças, "o favorecimento da emergência de uma criação, uma invenção, um pensamento"?

Castro (2001) pontua o quanto o isolamento e desenraizamento contemporâneos acarretam na criança a falta de pertencimento ao mundo. Um aspecto que ocasiona isto é o processo de individualização crescente, em que se dá uma profunda clivagem entre o sujeito individual, seus desejos, sua identidade, e as referências a uma subjetividade coletiva. As referências à falta de segurança básica parecem denotar o quanto as crianças se sentem desamparadas: no caso das crianças da favela, no confronto direto com a barbárie; no que se refere às crianças de classe média/alta, na vivência de formas talvez mais sutis (a solidão, as cobranças), simbolizadas na representação da impossibilidade de circular livremente nas ruas. Enclausuradas em casa, na escola ou nas "atividades", elas são tomadas essencialmente como futuros participantes da vida produtiva, privadas de grandes oportunidades de se sentirem competentes enquanto crianças.

Assim, diversos aspectos da vida contemporânea parecem colocar-se como obstáculos à presença destas crianças numa vida social de trocas efetivas e enriquecedoras na família, na oportunidade de maior participação em grupos "reais" de crianças (e não virtuais como ocorre tantas vezes), com liberdade para inventar brincadeiras coletivas, aprendendo por meio delas as regras da convivência e do respeito mútuo.

Talvez procurando se destacar como sujeitos capazes de consumir, uma forma de identidade que lhes é totalmente reconhecida, essas crianças representaram, de modo notável pela precisão, muitos estabelecimentos comerciais, denotando sua vontade de inserção no jogo social mas sem conseguir atribuir um sentido aos objetos. Esses objetos de consumo "sem historia" não parecem sequer dignos de menção.

As crianças economicamente desfavorecidas que participaram da amostra também se mostraram atravessadas pelos valores do consumo vigentes, desejando participar do mundo inaccessível dos mais favorecidos. Mas mostraram-se também fortemente identificadas com valores culturais cheios de significados próprios, como formas específicas de música e dança (funk, pagode, carnaval) , reconhecidas como "a nossa marca". Deste modo, embora sinalizando de modo pungente a precariedade de condições do lugar onde vivem e o reconhecimento da discriminação sofrida, muitas parecem ainda conseguir "ser criança", sonhar, dizer o que desejam: brincadeiras, festas, etc.

O trabalho de campo apontou diversas questões a serem pensadas em novas investigações sobre formas de viver no espaço da cidade e suas repercussões nos modos de ser, pensar e sentir das crianças, reforçando a importância de se pensar em formas de favorecimento de construção de identidades que sejam pautadas em sentidos pessoais, capazes de sustentar um sentimento mais autêntico de "ser".

 

Referências

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Recebido em 12 de agosto de 2010
Aceito em 1 de outubro de 2010
Revisado em 21 de outubro de 2010

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