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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.4 Fortaleza dez. 2010

 

RELATOS DE PESQUISA

 

 

O grupo como produtor de singularidades: o processo subjetivo como forjador de singularidades frente às pessoas que vivem com as DSTs

 

 

Antonio Carlos Barbosa da SilvaI; Carlos FerrazII

IDoutor em psicologia. Prof. do Dpto. de Psicologia. Evolutiva, Social e Escolar. Unesp - Campus de Assis. End.: R. Gonçalves Dias, 316. Centro. Assis-SP. CEP: 1980000 E-mail: tom@assis.unesp.br
IIPsicólogo - Casa Mulher e Vida. End.: R. São José, 43 2°andar Sl 34 Ed. Crystal Center B: Centro. Taubaté-SP. CEP: 12010-190. E-mail: ca.ferraz@uol.com.br

 

 


RESUMO

A respectiva experiência pessoal é uma descrição de uma intervenção psicossocial efetuada no ano de 2007 em uma instituição não governamental, na cidade de Taubaté, junto a um grupo de mulheres infectadas com o vírus HIV. Apresentaremos, de forma breve, nosso trabalho, que se deu por meio de um grupo terapêutico que teve como dispositivo a produção de novos processos de subjetivações junto às essas mulheres na condução de sua condição de vida a partir da infecção com o vírus HIV. Para referenciar nossa ação utilizamos os pressupostos teóricos da genealogia, da psicologia institucional e da teoria do grupo operativo com ênfase na vertente do grupo reflexão. Durante, aproximadamente doze encontros com o grupo trabalhamos temas densos tais como: violências sociais (desigualdade de direitos, preconceito e estigma); tratamento da condição de soro positivo quando marcado pela ambivalência ao tratamento e pela utilização dos mecanismos de defesa: negação, projeção e onipotência; a debilidade física e psíquica e o intenso sofrimento decorrente deste processo. Findamos nossa exposição ao apresentar as construções discursivas e, consequentemente, as diversas potencialidades singulares dos sujeitos do grupo que surgiram com nossas intervenções psicossociais. As mulheres expressaram seus desejos de desenvolver novas aprendizagens e buscar apoios fraternais entre as companheiras que frequentavam a instituição.

Palavras-chave: HIV. Psicossocial. Mulheres. Grupo. Subjetividade.


ABSTRACT

The personal experience respective is a description of an psychosocial intervention effectuated in the year of 2007 in an institution not government, in the city of Taubaté, with a group of women infected with the virus HIV. We will present in the short form our work, which happened through a therapeutic group, that had as device, the production of new process of subjectivizing with these women in the conduction of them condition of life after the infection with the virus HIV. To determine our actions use the theoretical assumptions of genealogy, of psychology and the theory of institutional operating group with emphasis on aspects of group discussion. During approximately twelve meetings with the denser group work topics such as social violence (inequality of rights, prejudice and stigma), treatment of the condition of serum positive when marked by ambivalence to treatment and the use of defense mechanisms: denial, projection and omnipotence, the weak and intense physical and mental suffering resulting from this process.We end our exhibition while presenting the discursive constructions and, consequently, the multiforms singular potentialities of the group that appeared with our psychosocial interventions.

Keywords: HIV. Psychosocial. Women. Group. Subjectivity.


 

 

Introdução

Aprendizagem no grupo pela palavra

"Considero que a vida mental de grupo é essencial para a vida integral do indivíduo inteiramente à parte de qualquer necessidade temporária ou específica, e que a satisfação dessa necessidade tem de ser buscada através da filiação a um grupo".

(W. R. Bion)

O presente texto é uma descrição de uma intervenção psicossocial, realizado na cidade de Taubaté, na instituição não governamental Casa Mulher e Vida.

A referida instituição possui como missão o acolhimento de mulheres e suas famílias, que têm a condição de vulnerabilidade imunológica (HIV - AIDS).

Nosso trabalho teve como contingência desenvolver uma intervenção psicossocial junto às mulheres que são acolhidas na Casa. Tal intervenção procurou instituir um grupo terapêutico para operar como dispositivo no sentido de possibilitar às assistidas a criação de novos processos de subjetivação e singularidades para lidar com a questão da contaminação e do novo cotidiano que adveio com a condição de vida enquanto infectadas.

Nossa intenção foi fomentar no grupo terapêutico um ambiente em que as pessoas pudessem lidar com a sua contaminação através da constituição de novos construtos e da reelaboração de suas subjetividades. A reordenação de novos discursos colocou em cheque as relações de poder e de forças da sociedade e suas instituições controladoras e, consequentemente, conservadoras (família, religião, trabalho, educação etc) que condenavam a situação de pessoas com HIV.

Nosso trabalho grupal seguiu alguns preceitos genealógicos, pois, assim, desassujeitaríamos os supostos saberes verdadeiros que surgem no grupo, tornando-os capazes de oposição e de luta contra a ordem do discurso instituído, rachando as evidências que são naturalizadas. Para Iori-Garcia, Correa, Rocha e França (2007), a genealogia estuda como o regime de verdade foi engendrado por nossa civilização e quais são suas consequências, seus efeitos de exclusão e de desqualificação, frente a outros discursos e saberes. A genealogia estuda a formação, ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular dos discursos. É uma análise histórica dos saberes, como, por exemplo, o estudo do deslocamento da noção de verdade no decorrer da história. A vontade de verdade, que se apóia em um suporte institucional, é reforçada e reconduzida por práticas pedagógicas, pela forma como o saber é aplicado em uma sociedade.

Traçados os procedimentos de nosso trabalho e, de certa forma, o pensamento que conduziu nossa ação, definimos a melhor técnica a ser usada como instrumento crítico de produção de subjetividades.

Escolhemos a técnica do grupo de reflexão, uma vertente do grupo operativo. O grupo de reflexão se afasta do termo operativo, que contém em seu bojo a ideia que opera, realiza, produz. No grupo de reflexão não nos preocupamos em estabelecer regras interpretativas e nem normas de condução do pensar desalienador, tal como defende Pichón-Riviere (1994).

Com o grupo de reflexão procuramos descrever junto ao grupo como processos que induz a práticas sociais são produtoras de domínios de saber e como elas penetram em nossos corpos e nos controlam. Apontamos, também, a partir do que Veyne (1995) afirma, que os processos de subjetivação não evoluem de forma sistematizada com o passar da história ou se modificam através do tempo. A subjetividade agrega elementos muito diferentes que, em outras épocas, serão ventiladas em práticas muito diferentes e objetivadas por elas sob fisionomias muito diferentes.

 

A prática psi em si

No início do trabalho, o grupo apresentava uma configuração de três a cinco elementos. Com a consolidação do trabalho, o grupo teve maior adesão, se constituindo por doze a quinze elementos. Cabe lembrar que optamos trabalhar por um grupo aberto, no qual as pessoas não eram obrigadas a frequentá-lo semanalmente, iam ao grupo quando sentiam necessidade de participar e a rever seu cotidiano.

Entretanto, duas ressalvas precisam ser feitas. A primeira constituiu na dificuldade em trabalhar com um grupo com mais de nove elementos. Nossa prática teve como um dos objetivos fazer o discurso circular por todos do grupo, na tentativa de que todos pudessem se expressar e empreender o encontro pessoal. Este processo se deu por meio das reconstruções de representações, (re)avaliações, percepções e trocas de experiências. A segunda dificuldade foi o desafio em propiciar aos elementos do grupo, o desenvolvimento da autonomia e a posse e responsabilidade por seus desejos. Isto demandou a regulação mínima de limites e regras.

"A estabilidade da base da subjetividade não faz dele um sujeito estático às mudanças; afora a estruturação primeira da subjetividade, esta poderá estar mais ou menos em movimento ao longo da existência do sujeito, o que o faz ser um sujeito do devir [grifo do autor]". (Ghiraldelo, 2007, p. 249).

EAs reflexões foram suscitadas pelas trocas e experiências dos elementos do grupo e poucas reflexões foram feitas pelo mediador do grupo (norteadas pela preocupação em serem feitas somente nos momentos em que o grupo buscava interpretações racionais e religiosas para entenderem sua condição de vida), as quais visavam a percepção dos sentidos subjacentes nos significantes, acalentando o desejo de que o insight poderia ocorrer no tempo de cada um.

Ficamos com a impressão de que essa prática, aliada à circulação da palavra, por meio das trocas de experiências, propiciou aos membros do grupo a incorporação dos substratos importantes nos discursos.

Cabe ressaltar que os discursos eram densos e significativos. A densidade foi percebida por assuntos como: violências sociais (desigualdade de direitos, preconceito e estigma), tratamento da condição de soro positivo (que era marcada pela ambivalência ao tratamento, com a utilização dos mecanismos de defesa: negação, projeção e onipotência). Outro assunto pouco evidenciado, mas relevante, foi o tema da morte, que suscitou o medo da debilidade física e psíquica e o intenso sofrimento decorrente deste processo.

Importante ressaltar que o que menos apareceu nos discursos foram assuntos referentes à AIDS, havendo prevalência nos discursos interpessoais, evidenciando o potencial humano dos elementos do grupo, mesmo que isso possa evidenciar um mecanismo de defesa do grupo. Em outras palavras, podemos nos referir aos discursos do grupo, tendo a criatividade como norteador e a expressão da dimensão humana como fator preponderante. "(...) o processo criativo requer um trabalho que coloque em posições conflitantes o já produzido e o que vai ser instituído pelo discurso" (Brito, 2007, p. 156).

A pedra angular de nosso trabalho foi a palavra circulada. Todas participavam, falavam e trocavam experiências, muitas vezes incentivadas pelo coordenador do grupo. Escolhemos esse recurso de trabalho porque achamos que a palavra, por meio do discurso, facilita as relações interpessoais e o desenvolvimento psíquico. Resgatar a força das palavras produz um homem vivente com palavra, responsável e condutor de suas ações.

Segundo Larrosa Bondía (2002) a palavra tem um grande poder, ela proíbe, impõe, inventa, critica. São as palavras que subjetivam o sujeito.

Segundo Vygotsky "(...) as palavras são signos, indicadores de significados e, logo, instrumentos psicológicos. Esses significados são desenvolvidos social e historicamente através de interações que os indivíduos mantêm em seus contextos culturais com seus pares". (apud Romero, 2007, p. 131)

Aproveitando a assertiva acima, achamos pertinente lembrar as questões do simbólico e do imaginário, presente na constituição psíquica dos elementos do grupo (e de todo ser humano) e seu agir sobre o Outro.

Ghiraldelo (2007) complementa nossa explanação através, pontuando que a ordem do imaginário é parte intrínseca da subjetividade que se constrói por meio dos discursos circulantes na sociedade. Isso quer dizer que a maneira como o sujeito se relaciona com as várias formações discursivas - maneira que irá desenhar o modo de o sujeito funcionar - irá formar sua subjetividade que é algo particular, que traz, porém, elementos do coletivo.

A apropriação do discurso pelos elementos do grupo nos levou a pensar em nossa meta (autonomia e apropriação dos próprios desejos pelo grupo). No que diz respeito à prática profissional e construção do papel de interventor/terapeuta, alguns significantes foram vitais. Em termos gerais, podemos citar os determinantes sociohistóricos, aspectos culturais, cognitivos e inconscientes. O trabalho terapêutico demandou a integração destes múltiplos fatores, que, ao serem contextualizados, criaram a demanda de uma articulação com outras áreas do conhecimento (assistência social, jurídica, médica etc).

Deste modo, descrevemos nosso trabalho, que tinha o grupo como suporte para o desenvolvimento de novas aprendizagens. Tentamos fazer uma articulação da prática com teorias que possibilitavam a desconstrução e a reconstrução dos processos de subjetivação, a qual tinha a palavra como agente principal.

 

Conclusão

O resgate da palavra ao saber da experiência - a produção do singular

Conforme intervenção empreendida em uma instituição social, portanto, também controladora, percebemos que a dinâmica psicológica se intercalou de modo experiente e apaixonado.

Aqui, vale a pena resgatar alguns conceitos que são trabalhados por Larrosa Bondía (2002) e que, de certa forma, expressam o que aconteceu com nossa intervenção.

Para esse autor, a experiência é aquilo que nos acontece com sentido, que passa por nós, que gera paixão. A experiência não ocorre com lógica, mas com paixão. Na paixão assumimos o padecimento, o sofrimento, a responsabilidade pelo outro.

Talvez seja isso que conseguimos estabelecer junto ao grupo. A paixão tomada por morte e renascimento. Na paixão há sempre a tensão entre liberdade e escravidão, não se possui o objeto amado, mas, é possuído por ele.

A ordem da lógica, do racional é substituída pela força do sujeito passional que se expressa produtivamente em uma nova forma de saber e de práxis. O grupo com paixão destrói as lógicas do racionalismo inquisidor que estabelece a ordem da moral.

O saber de experiência que desenvolvemos no grupo estabeleceu a relação entre conhecimento e vida humana. Um saber finito, ligado à existência do sujeito o que sentimos ou não, elaboração do sentido e do sem sentido. Um saber da experiência que é particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Saber do sentido e do sem sentido do que nos acontece; saber do homem concreto e singular - particular e subjetivo.

As reflexões sobre a ação profissional geraram diversidades de novas possibilidades e múltiplos questionamentos. Portanto, trabalhar a transferência foi um recurso necessário, propiciador de aliança terapêutica e desenvolvimento de novos conteúdos.

Analisar, refletir e permitir a circulação dos sentidos das palavras, (pré-conceito, autoestima, injustiças) de seus determinantes sociais e psíquicos, foi referência aos sujeitos do grupo e os levaram à condição de possibilitar um vir a ser humano.

Pelos discursos expressos pelos membros do grupo notamos que houve desenvolvimento da práxis. Cabe ressaltar que em certo momento os discursos denotavam que a aprendizagem começou a pender para outras formações discursivas. Algumas assistidas expressaram o desejo e planos em retomar os estudos. Além disso, surgiram algumas propostas que visavam o desenvolvimento de outras formas de aprendizagem e a produção de novos processos de subjetivação, tais com as propostas para a constituição de grupos de amigos, o qual teria a finalidade de melhorar as relações interpessoais, troca de experiências, (re)significação de modo de agir sobre si sobre o outro e sociedade, formação de uma comissão que estudaria atividades culturais e de lazer, constituição de grupos de estudo para aprofundar em temas discutidos durante o trabalho intervencionista (preconceito, tratamento médico, prevenção, sexo com e sem proteção, novas formas de obter prazer, formas de redução de riscos para as usuárias de drogas).

De um modo geral, a intervenção serviu para o sujeito singular se expor num espaço coletivo, indeterminado e perigoso, onde ele pôde buscar novas oportunidades, se abrir para possíveis mudanças e transformações. O sujeito no grupo dispositivo não teve que se submeter ao saber e ao poder, ele pôde ouvir, sofrer e ressignificar seus conceitos constantemente. Não foi um sujeito impávido, apático, autodeterminado, mas foi um devir aberto a novas significações.

Pode-se inferir que a intervenção foi uma experiência ímpar, que proporcionou um acréscimo significativo da aprendizagem e despertou intensa motivação no agir profissional.

 

Referências

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Recebido em 13 de julho de 2010
Aceito em 26 de setembro de 2010
Revisado em 7 de outubro de 2010

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