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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza Mar. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Carreira e relações familiares: dilemas de executivos bancários

 

Career and family relations: a dilemma for banking executives

 

 

Andrea Poleto OltramariI; Carmem Ligia Iochins GrisciII; Lílian WeberIII

IAdministradora, Doutoranda em Administração no Programa de Pós-Graduação em Administração da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Professora na Universidade de Passo Fundo/RS, Brasil. End.: Universidade de Passo Fundo, BR 285, Bairro São José, Passo Fundo/RS. E-mail: andreapolt@hotmail.com
IIPsicóloga, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Administração da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora CNPq - Brasil. End.: Av. Washington Luiz, 855 - Porto Alegre/RS E-mail: cligrisci@ea.ufrgs.br
IIIPsicóloga, Doutoranda em Administração no Programa de Pós-Graduação em Administração da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Bolsista da CAPES. End.: R. Ramiro Barcelos, 1215, s. 401 - Porto Alegre/RS E-mail: lweber@ea.ufrgs.br

 

 


RESUMO

O presente artigo resulta de uma pesquisa exploratória que buscou levantar os dilemas pessoais relativos à carreira são vividos por executivos bancários, e como eles repercutem em suas relações familiares. Participaram da pesquisa dez executivos bancários de Porto Alegre e da região metropolitana, bem como dez representantes de suas respectivas relações familiares, dentre eles cônjuges e filhos. A coleta de dados deu-se por meio de 20 entrevistas individuais estruturadas. Os executivos bancários foram entrevistados em seus ambientes de trabalho, e seus respectivos familiares em suas residências ou em estabelecimentos comerciais por eles indicados. A análise dos dados foi realizada de maneira qualitativa e seguiu as orientações propostas por Minayo (2001). Os resultados indicam que os executivos bancários associam-se a um modelo de carreira profissional meteórica e de responsabilidade exclusiva do trabalhador, condizente com a prevalência do trabalho imaterial em contexto bancário. Os dilemas relativos à carreira de executivos bancários se configuram entrelaçados às categorias tempo, mobilidade, sucesso profissional, status e consumo. Eles tomam a vida profissional e pessoal dos sujeitos, e repercutem nas relações familiares na forma de sofrimento, embora a família possa mostrar-se aliada aos modos de trabalhar do executivo a fim de manter o estilo de vida vigente.

Palavras-chave: Carreira. Dilema. Executivo Bancário. Relações Familiares. Trabalho Imaterial.


ABSTRACT

The present article is the result of an exploratory research whose objective was to learn what are the personal dilemmas involving the career of banking executives in the contemporary life, and to understand how they are intertwined with their family relations. The interviews were conducted with ten banking executives from Porto Alegre and the metropolitan area, and also with one representative from their family relations, including spouses and children. The structured interviews were conducted with the banking executives within their work environments, and interviews with family members occurred in their homes or in stores suggested by them. Data were analyzed in a qualitative way and followed the guidelines proposed by Minayo (2001). Results show that the dilemmas are potentialized and enhanced by the categories of time, mobility, professional success, status, and consumption. The existence of dilemmas is not something new, but in contemporary life they take over the subject's professional and personal life despite the borders of space and time, affecting the executive and his family's way of life. Such configuration is related to a "model" of meteoric professional career, which is the responsibility of the worker alone, in a context where immaterial work prevails (LAZZARATO & NEGRI, 2001).

Keywords: Career. Dilemma. Banking Executive. Family Relations. Immaterial Work.


RESUMEN

El presente articulo es el resultado de una investigación exploratoria que busco relevar los dilemas personales, relativos a la carrera profesional, que son vividos por ejecutivos bancarios, y como ellos repercuten en sus relaciones familiares. Participaron de la investigación diez ejecutivos bancarios de Porto Alegre y región metropolitana, así como 10 representantes de sus respectivas relaciones familiares, entre conjugues e hijos. La colecta de datos fue efectuada por medio de 20 entrevistas individuales estructuradas. Los ejecutivos bancarios fueron entrevistados en sus ambientes de trabajo y sus respectivos familiares en sus residencias o establecimientos comerciales. El análisis de datos fue realizado de forma cualitativa y siguió las orientaciones propuestas por Minayo (2001). Los resultados indicaron que los ejecutivos bancarios se asocian a un modelo de carrera profesional meteórica y de responsabilidad exclusiva del trabajador, concordante con la prevalencia del trabajo inmaterial en el contexto bancario. Los dilemas son relativos al éxito profesional, status y consumo. Ellos toman la vida profesional y personal de los sujetos y repercuten en sus relaciones familiares en forma de sufrimiento, a pesar de que la familia pueda mostrarse aliada a los modos de trabajar del ejecutivo a fin de mantener el estilo de vida vigente.

Palabras clave: El Dilema de Carrera. El Banquero. Las Relaciones Familiares. El Trabajo Inmaterial.


RÉSUMÉ

Cet article résulte d'une recherche exploratoire qui a voulu analiser les dilemmes personnels concernant la carrière qui est vécues par les cadres supérieures de la Banque et comme ça influencent leurs relations familiales. Dix fonctionnaires du cadre supérieur de la Banque de Porto Alegre et de la région métropolitaine ont participé à l'enquête, ainsi que dix représentants de leurs respectifs relations familiales, parmi eux, les pères et les enfants. L'obtention de données a eu lieu à travers 20 entrevues individuels structurés. Les cadres supérieures de la Banque ont été interrogés dans leur espace du travail, leurs familles dans ses maisons ou dans ses établissements commerciaux pour eux indiqué. L'analyse des données a été effectuée de façon qualitative et a suivi les orientation proposés par Minayo (2001). Les résultats indiquent que les cadres supérieures de la Banque se identifient à un modèle de carrière métateorique et de la seule responsabilité du travailleur, dans en correspondance avec la prévalence du travail immatériel dans le contexte du secteur bancaire. Les dilemmes concernant a la carrière des cadres supérieures de travailleurs de la banque si configurent entrelacées sur les catégories de temps, mobilité, réussite professionnelle, statut et la consommation. Ils prennent la vie professionnelle et personnelle des travailleurs, répercutent dans les relations familiales sous la forme de la souffrance, bien que la famille peut être allié a la façon du travail de l'exécutif pour préserver le mode de vie actuel.

Mots clés: Carrière Dilemme. Exécutif Bancaire. Relations Familiales. Travail Immatériel.


 

 

Introdução

O modelo de carreira prevalente, até pouco tempo atrás, caracterizava-se pela progressão linear associada a certa estabilidade no emprego, especialmente com o objetivo de avançar em cargos hierárquicos na pirâmide corporativa (Hall, 1996). Nos dias que correm, constata-se que a carreira segue uma lógica de mobilidade, particularmente interempresas, vinculada à noção de flexibilidade que permeia toda a esfera produtiva. O tema carreira tem sido abordado, sobretudo, sob o enfoque da meritocracia, que compreende o sujeito como único responsável por seu percurso profissional e por atingir o "sucesso", advindo do investimento em si mesmo, via adoção da idéia de "vida como business" (Bauman, 2007a).

A carreira profissional, compreendida como seqüência de experiências de trabalho das pessoas ao longo do tempo (Arthur, Hall, & Lawrence, 1989), tem sido objeto de interesse tanto no ambiente acadêmico como na mídia popular de negócios.

Na esfera acadêmica, a carreira tem sido estudada principalmente pela via da auto-gestão, do comprometimento e do desempenho, tal como indica a revisão de artigos relacionados à carreira nos estudos da Administração, em especial os divulgados em anais do Encontro Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração (EnANPAD) e em dois periódicos nacionais da área - Revista de Administração de Empresas (RAE) e Revista de Administração Contemporânea (RAC) -, no período de 2003 a 2007 (Oltramari, 2008).

A mesma ênfase é dada pela mídia popular de negócios, sendo comum a oferta de "dicas" sobre a condução da carreira. Em revisão de artigos das revistas Você SA e Exame, no período de janeiro de 2008 a março de 2009, vê-se que a tônica das reportagens recai em orientações acerca do planejamento necessário para progredir profissionalmente, e nas decisões supostamente acertadas para atingir o sucesso profissional. Os mais diversos artigos das revistas mencionadas indicam atitudes, posturas e comportamentos necessários para a construção de uma imagem necessariamente positiva. Também sinalizam que investimentos e escolhas devem ser feitos em termos de formação e relações sociais, abrindo caminhos para o percurso profissional ascendente que não comporta a idéia de fracasso. Enfim, oferecem um modelo de inserção profissional e, particularmente, de construção de carreira. Este modelo é representado por carreiras bem-sucedidas, ilustradas com casos de profissionais em sua maioria jovens de até 40 anos, muito bem remunerados. E tende a ser anunciado como algo a ser perseguido indiscriminadamente.

Nota-se que, tanto na esfera acadêmica quanto nas revistas populares de negócio, as repercussões na vida pessoal produzidas pelo atual modelo de carreira não se mostram suficientemente problematizadas. Algumas raras perspectivas críticas incluem em suas análises alguns condicionantes externos que repercutem na carreira dos sujeitos, como a necessidade de conciliar a vida profissional e a familiar, indicando a existência de dificuldades. Contudo, não aprofundam a discussão a respeito da sobrecarga acarretada pela responsabilização única dos sujeitos por sua carreira, bem como não dão ênfase aos possíveis dilemas que os profissionais vivenciam. Avançar na discussão da carreira à luz de uma perspectiva não hegemônica é o que se propõe o presente artigo ao indagar: quais os dilemas pessoais relativos à carreira são vividos por executivos bancários, e como eles repercutem em suas relações familiares.

Cabe destacar, desde já, que no presente artigo as mudanças relativas à carreira são entendidas como decorrência das transformações do contexto de trabalho no qual o trabalho imaterial passa a ser valorizado, sobretudo como resposta às novas exigências do capitalismo. O trabalho imaterial, segundo Lazzarato e Negri (2001), configura uma nova relação produção-consumo, na qual as capacidades intelectuais e afetivas dos trabalhadores passam a ser demandadas como meios de produção e rentabilidade para as empresas. Além disto, o trabalho imaterial caracteriza-se por uma ruptura dos limites que buscavam separar espaço e tempo de trabalho das demais esferas da vida. Desta forma, o trabalho imaterial extrapola qualquer limite espaço-temporal e requisita o sujeito em sua completude, adentrando, indiscutivelmente, as fronteiras que circunscreveriam o cotidiano familiar.

A seguir apresentar-se-á uma revisão da literatura que contempla o trabalho imaterial, a carreira e suas implicações nas relações familiares; na seqüência, serão apresentados os procedimentos metodológicos da pesquisa, os resultados e sua análise. Por fim, serão traçadas as considerações finais.

 

Trabalho imaterial, carreira e relações familiares na contemporaneidade

A mundialização e financeirização da economia têm provocado reestruturação produtiva contínua, exigindo novas organizações sociotécnicas da produção. Atualmente, o modelo que prevalece é o da economia informacional (Hardt & Negri, 2005), em um regime de acumulação flexível (Harvey, 2004). A economia, neste paradigma, gira em torno do setor de serviços que se baseia na troca de informações e conhecimentos, alterando a qualidade e natureza do trabalho, cuja produção privilegia o imaterial (Hardt & Negri, 2005), sendo o trabalho bancário exemplo disso (Grisci, 2008).

O trabalho imaterial envolve comunicação, criatividade, afetividade, interação humana, cooperação, e demanda qualidades inerentes ao trabalhador, que extrapolam o plano do saber técnico. A "vitalidade", através de sua força inventiva, é a fonte para a produção do imaterial (Pelbart, 2003). Retornam, então, a condição de status no mundo do trabalho as capacidades cognitivo-afetivas que a organização do trabalho no modelo taylorista havia rechaçado. Segundo Lazzarato e Negri (2001, p. 25), nos tempos atuais, "é a alma do operário que deve descer na oficina".

Além disto, a lógica do trabalho imaterial não mais permite manterem-se ilusões acerca da existência de fronteiras espaço-temporais a delimitarem o trabalho numa denominada jornada de trabalho. Claro está que o tempo de trabalho e de não-trabalho sobrepõem-se um ao outro de modo indissociado e acarretam mudanças na percepção e vivência do tempo, marcado fortemente pela aceleração.

O trabalho imaterial, à primeira vista, proporciona ao trabalhador ampliação da liberdade pela redução da alienação, das fronteiras e dos espaços de confinamento. Um olhar mais apurado, entretanto, associa-o às mais sutis formas de controle (Grisci, 2008) que incessantemente prescrevem ao trabalhador a responsabilidade pela consecução de bons resultados e sua manutenção enquanto ser produtivo e útil. Gestor de si, o trabalhador passa a atuar sob a forma de redes e de fluxos que dependem das capacidades relacionais, comunicativas e organizativas (Lazzarato & Negri, 2001). Assim, sucesso ou fracasso são compreendidos como força ou fraqueza individual (Sennett, 2001). O trabalhador passa a atuar em prol da rentabilização de si (Grisci, 2006).

A responsabilização do trabalhador por seu percurso profissional é apresentada na literatura sobre carreiras de modo normatizador. Tal apresentação, além de enfocar a responsabilidade do trabalhador por seu sucesso, dá suporte a uma tendência crescente de redução da estabilidade da carreira numa mesma organização, sugerindo que a carreira seja vista da maneira mais flexível possível. A literatura sobre o tema propõe um rompimento das fronteiras entre empresas, permitindo que a carreira flua entre empresas e a ampliação da autonomia do trabalhador em gerir sua carreira, postulando dois enfoques: a carreira sem fronteiras e a carreira proteana.

A carreira sem fronteiras, nomeada inicialmente por Defillipi e Arthur (1994), é aquela que atravessa as fronteiras entre organizações e que se sustenta em redes de relacionamento ou informação que estão fora da organização. A carreira sem fronteiras prevê a passagem do indivíduo por várias empresas, diferentemente daquela estabilidade da carreira tradicional associada a uma única empresa (Hall, 1996).

A carreira proteana é assim denominada a partir do mito de Proteu, que possuía a habilidade de mudar de forma ao comando de sua vontade. Neste modelo, a condução da carreira cabe ao indivíduo, podendo ser redirecionada do modo que melhor lhe convier (Hall, 1996). Portanto, para este modelo, é necessário um constante investimento pessoal na carreira.

Apesar de estes modelos terem sido descritos há mais de uma década, Baruch (2006) afirma sua atualidade nesta época em que a carreira profissional apresenta-se cada vez mais fluída e flexível aos trabalhadores. Assim, Baruch e Inkson (2004) sustentam que carreira não diz respeito tão somente à progressão hierárquica, de passos correspondentes a um número intermitente de ciclos na mesma organização. O percurso de uma carreira implica movimentos diversos, seja para trás, para frente, para baixo, lateralmente, mas sempre visando a, preferivelmente logo adiante, estar acima (Eaton & Bailyn, 2000).

Os referidos autores ampliam a noção de carreira, atualizando-a ao panorama e às demandas contemporâneas, contudo ainda não contemplam os impactos que a carreira pode acarretar para as diferentes esferas da vida do trabalhador. Neste sentido, em alguns estudos começa a ser discutida a problemática da carreira e sua relação com a vida pessoal. Scafone, Carvalho Neto e Tanure (2007) apresentam as vivências de insatisfação de gestores em relação ao desequilíbrio entre a vida pessoal e profissional, e denunciam o sofrimento decorrente do estresse gerado pela sobrecarga de responsabilidades, conseqüência da condução da carreira rumo ao sucesso.

Esse estudo revela que, atualmente, os executivos chegam rapidamente ao topo da carreira em virtude de renúncias em relação à família. Em seus achados, a interferência do cotidiano profissional no convívio familiar resulta em culpabilidade sentida pelos executivos, embora considerem que não está a seu alcance alterar tal realidade. A manutenção do status adquirido e a conquista do sucesso dependem desta renúncia, e ao mesmo tempo exigem que o executivo tenha uma família bem estruturada a fim de manter sua imagem de competência.

É nesta perspectiva que se compreende que a carreira do trabalhador gestor de si inscreve-se como um importante aspecto dentre os dilemas pessoais contemporâneos, que se mostram potencializados especialmente porque:

o ambiente líquido e de fluxo rápido privilegia os que podem viajar com velocidade; se as novas circunstâncias exigem movimento rápido e um recomeço a partir do zero, os compromissos de longo prazo e quaisquer laços difíceis de desatar podem revelar-se um fardo incômodo - um peso a ser jogado ao mar. Não há, então, escolha. Não se pode ficar com a torta e comê-la - mas é exatamente isso que você é pressionado a fazer pelo ambiente em que tenta compor sua vida. Qualquer escolha que você faça, está arranjando confusão (Bauman, 2007a, p.142).

Para obter e manter a carreira torna-se necessário que as relações caracterizem-se por sua "utilidade", por serem oportunistas, características das empresas (Gaulejac, 2007). Constata-se, entretanto, que a entrega irrestrita para a carreira profissional implica renúncia ou, ao menos, fragilidade das relações amorosas e afetivas.

Na vida líquida (Bauman, 2007a) da sociedade líquido-moderna essas relações que configuram uma vida precária que existe sob condições de incertezas constantes ecoam na perspectiva da "síndrome consumista" (Bauman, 2007a, p.110), a que Harvey (2004) também se refere, promovendo a velocidade, o excesso e também a necessidade do desapego.

A carreira se vê associada aos ditames do mundo do consumo uma vez que esse se apresenta com infinitas possibilidades de escolha. Entre escolher permanecer mais tempo com a família ou progredir na carreira, alguns escolhem a carreira já que ela se mostra mais desafiante e fascinante: "filhos versus carreira e confinamento doméstico versus um mundo de contínua aventura; o tédio dos filhos versus os espaços jamais totalmente explorados e, portanto eternamente fascinantes do 'lá fora'" (Bauman, 2007a, p. 135).

Sobre a difícil conciliação entre consumo, carreira e filhos, encontram-se algumas considerações no pensamento de Bauman (2007a). O autor afirma ser assustador para alguns casais na modernidade líquida a possibilidade de vida na qual é necessário contar cada centavo. Seria esta a noção vigente a respeito de filhos na atualidade. Estes representariam não somente uma vida entediada, distanciada das possibilidades de aventuras patrocinadas pelo mundo corporativo, mas, principalmente, uma fonte de custos incalculável. Alguns casais admitem uma sensação de ressentimento em relação ao estilo de vida e à riqueza material dos amigos que, sem filhos, têm tempo e dinheiro para investir em suas carreiras, assim como em atividades sociais e viagens. Os vínculos com poucas responsabilidades ficariam isentos de regras e mostrar-se-iam perfeitos para a sociedade líquido-moderna da "soberania do consumidor". "Não se pode ter as coisas a não ser comprando-as, e comprá-las significa que outras necessidades e desejos terão de esperar" (Bauman, 2007a, p. 136). Na sociedade líquido-moderna comprar e satisfazer os desejos do consumismo é mais importante que as responsabilidades com esposas ou maridos ou com filhos. A responsabilidade na sociedade líquida, diz Bauman (2007a), não permite que se adquira a velocidade advinda de laços afrouxados e menos fortes.

É nesse sentido que estudos relativos à condução da carreira mostram-se necessários, especialmente ao associarem os dilemas relativos à carreira ao trabalho imaterial que toma a vida em sua plenitude. Nesse panorama, nota-se o trabalho bancário como um campo privilegiado de estudo, pois oferta visibilidade às transformações ocorridas no âmbito do trabalho e suas conseqüências pessoais (Grisci, Chemale, Hofmeister & Becker, 2006). A introdução das novas tecnologias de informação e comunicação possibilitou a produção e a transmissão de informações em quantidade e velocidade sem precedentes, bem como permitiu o desprendimento do trabalhador de um espaço-tempo fixo. Tais transformações passaram a demandar do trabalhador bancário a produção de conhecimentos, serviços e valores, diferentemente do trabalho especializado e burocrático de outrora, em um contexto que implica controles mais sutis e eficazes, na forma de autocontrole (Grisci, 2008).

Os novos modos de trabalhar, ao exigirem outras características do trabalhador bancário, repercutiram também na noção de carreira no banco e, por conseqüência, no modo de conduzi-la. O fracasso ou sucesso do percurso profissional nos bancos é decorrência da mobilização de si, sendo considerado de exclusiva responsabilidade do trabalhador. E a organização, empenhada em atender suas necessidades, não deixa margem para que aspectos da vida do trabalhador que estejam fora de seus interesses tornem-se impeditivos para seus objetivos. Desta forma, o trabalho extrapola o ambiente e a jornada diária, toma a vida do trabalhador e também daqueles que constituem suas relações amorosas e familiares.

 

Procedimentos Metodológicos

O presente artigo resulta de uma pesquisa exploratória, da qual participaram dez executivos do setor bancário da cidade de Porto Alegre e região metropolitana, e dez representantes de suas relações familiares. Para fins da presente pesquisa, considerou-se executivo o trabalhador que ocupa posição de média ou alta gerência, seja em organização pública ou privada. Os representantes das relações familiares somaram seis esposas, três filhas e um filho. A inclusão desses representantes deveu-se ao entendimento de que a problemática da pesquisa amplia-se à medida que a fala dos executivos encontra eco, uma vez que se compreende que o dilema imputado ao indivíduo não resulta tão somente seu, envolvendo também os relacionamentos familiares. Importante salientar que tanto para o executivos quanto para seus familiares era entregue, no momento da entrevista, o Termo de Consentimento Informado e a garantia do sigilo da sua identificação. O perfil dos participantes é apresentado no quadro a seguir.

 

 

Conforme apresentado no Quadro 1, a idade média dos executivos é 43 anos, sendo que a maioria está na faixa etária entre 40 e 53 anos. Quanto ao sexo, nove executivos são homens e apenas uma é mulher, ilustrando o que se observa nos quadros funcionais dos bancos, nos quais se encontra um número significativamente superior de homens ocupando cargos de gerência e superintendência. Em relação à escolaridade, três executivos cursaram o terceiro grau completo e sete têm também curso de especialização. Suas esposas têm, em geral, segundo grau completo. Em relação ao estado civil, oito são casados e dois são divorciados. Os participantes casados mantêm seus casamentos há mais de 20 anos. Os executivos entrevistados têm, em média, dois filhos.

Como técnica de coleta de dados optou-se pela entrevista individual estruturada. O emprego da entrevista na pesquisa qualitativa é importante para mapear "a compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de grupos sociais especificados" (Gaskell, 2003, p. 65).

Os primeiros contatos foram realizados com executivos indicados por conhecidos que, na seqüência, indicaram os demais entrevistados. Os executivos também indicaram seus familiares para participarem. Os executivos foram contatados por telefone, momento no qual eram explicados os objetivos da pesquisa e, em caso de aceite, agendada a entrevista.

Os executivos foram entrevistados em seu local de trabalho. Os membros das relações familiares, em suas casas ou em estabelecimentos comerciais, como cafés ou bares em Porto Alegre, conforme opção feita por eles.

As entrevistas com os executivos possibilitaram aprofundar o conhecimento sobre a condução de suas carreiras. O roteiro abordava os seguintes aspectos: o percurso profissional; as dificuldades e facilidades encontradas neste percurso; a descrição e a percepção do executivo sobre sua carreira, a atual situação de trabalho e a perspectiva de futuro; os motivos de mudança ou de permanência na empresa; a velocidade com que conduziu a carreira e se houve necessidade de reduzir a velocidade de sua trajetória; a percepção do controle sobre a carreira; a relação da carreira com a esfera pessoal, como os cuidados com a saúde e a relação familiar. Enfim, aspectos que pudessem trazer elementos relativos à construção das carreiras dos executivos e os dilemas por eles vivenciados.

O roteiro da entrevista com os representantes das relações familiares continha questões que contemplavam os seguintes temas: o cotidiano familiar; a percepção do familiar sobre a construção da carreira do executivo; participação da família no percurso profissional do executivo.

A realização das entrevistas propiciou não apenas o acesso a informações, mas revelou que as questões que permeiam a carreira e suas implicações nas relações familiares mobilizam muito os executivos bancários que, em geral, demonstraram que o momento da entrevista foi aproveitado para refletir sobre como conduziam suas vidas. Assim, as entrevistas se constituíram como momentos para reflexão e, não raro, para a manifestação de emoções. Tal fato aponta para a existência de uma demanda de fala e escuta, de diálogos que parecem não encontrar espaço nem tempo no cotidiano.

As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes e, posteriormente, transcritas, interpretadas e reinterpretadas, conforme proposto por Minayo (2001). Os dados obtidos nas entrevistas foram ordenados e classificados a partir de categorias estabelecidas na relação entre os dados e a literatura pertinente. Desta forma, na etapa da ordenação, todos os dados foram lidos e relidos, explorados. A partir desta visão ampliada do conjunto de informações efetuou-se um mapeamento, uma ordenação e uma classificação dos registros obtidos.

O conteúdo produzido nestas fases foi analisado com base no referencial teórico adotado, buscando evidenciar os dilemas pessoais relativos à carreira vividos por executivos bancários, e como eles repercutem em suas relações familiares.

 

Trabalho Imaterial, Carreira e suas Implicações nas Relações Familiares

Os executivos que participaram da pesquisa, conforme apresentado no Quadro 1, trabalham, em média, há 24 anos em instituições financeiras, sejam bancos públicos ou privados. Neste percurso, acompanharam as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, de modo geral, e aquelas que afetaram o setor bancário, em particular.

Dentre as mudanças que afetaram o trabalho dos executivos e que repercutiram na família está o tempo de dedicação ao banco que, segundo os executivos, é bem maior do que foi no início da carreira. A rotina de trabalho demanda rapidez para a realização das tarefas e disponibilidade total ao banco, o que implica chegar a suas residências sempre muito além do horário previsto pelo expediente contratado. Isso se relaciona diretamente à produção dos dilemas a serem enfrentados por eles, bem como ao engendramento das possibilidades de solucioná-los sempre de modo dissociado da família, tal como referiu um dos executivos: "eu trabalho até tarde da noite. Para mim hoje não me afeta mais chegar tarde da noite porque minhas filhas não moram comigo, moram com minha ex-mulher. Se elas estivessem aqui comigo hoje eu estaria numa situação bem complicada perante a exigência de tempo que elas requerem. Hoje eu estou casado novamente, mas minha esposa também trabalha e por isso não exige tanto de mim" (I1). A condução da carreira ocasionou falta de convivência em família até porque as escolhas relativas aos dilemas ocorreram sem que houvesse consulta à família.

Atualmente, segundo os executivos bancários, no banco é considerado bom profissional aquele que se mostra disponível, ágil, flexível. Tais características correspondem às demandas de velocidade e imediatismo da sociedade líquido-moderna, que se associam à noção de juventude. Já o envelhecimento, pejorativamente considerado, está relacionado à obsolescência e à improdutividade. Além disto, no que se refere ao mercado de trabalho, "ser velho" designa trabalhadores de faixas etárias cada vez mais baixas, como se pode observar nas revistas populares de negócios. Nestas, os profissionais apresentados como bem- sucedidos e como modelos a serem seguidos alcançam altos patamares em suas carreiras, muitas vezes o auge, ainda antes dos 40 anos. Também é de conhecimento geral a dificuldade de profissionais que ultrapassaram esta faixa etária conseguirem empregos ou inserirem-se no mercado de trabalho.

Os executivos bancários entrevistados, de modo geral, desenvolveram uma trajetória profissional rápida e chegaram a altos cargos em suas carreiras perto dos 35 anos de idade. Contudo, mostraram-se sabedores de que ocupar determinado cargo não lhes assegura um lugar privilegiado e não lhes isenta da vivência de insegurança. Em meio a um ambiente profissional competitivo, os executivos estão atentos às carreiras meteóricas dos mais jovens, o que os impulsiona à adaptação às condições do mercado, também procurando acelerar o que lhes é possível em termos de crescimento e promoção.

No percurso profissional, vivenciaram inúmeros dilemas e, como tal, se viram obrigados a fazer escolhas. Um deles constata: "se eu pudesse, teria optado por uma carreira mais lenta, pois fui com muita sede ao pote" (C1). Ele observa que o fato de ter crescido rapidamente na carreira e ter aceitado inúmeras transferências de cidade, deixou sua vida pessoal, em particular sua relação familiar, "um caos" (C1). Sua esposa compartilha tal percepção e relatou, com pesar, a ausência do marido. Contudo, a percepção de ambos não produz um movimento para agir de outra forma, como por exemplo, optar por um trabalho que possibilitasse mais tempo com a família. Como é próprio do dilema, esta opção também acarretaria perdas.

A trajetória profissional dos executivos bancários levou-os a ocupar cargos de média ou alta gerência. Uma vez nesses cargos, eles reconhecem que têm acesso a benefícios, ganhos financeiros, bem como que desfrutam de status e aparência de sucesso, conforme manifestado em suas falas: "o que colaborou foi que eu fiz todos os passos da maneira e no tempo que eu queria. Facilitou porque esse era meu plano de vida. Construir e expandir meu patrimônio. Então para mim deu tudo certo" (F1); "a empresa me permitiu viajar pelo mundo, que é algo que aprecio" (E1); "tenho o respeito e o reconhecimento do pessoal que trabalha no banco, de clientes e fora do banco também" (G1).

O reconhecimento de colegas e clientes, e os ganhos financeiros que atraem os executivos levam-nos a um modo específico de relacionamento com a família. Um dos entrevistados afirma que seu empenho na carreira está diretamente relacionado à família na medida em que, em suas palavras, "busco crescer para minhas filhas terem orgulho de mim" (I1). No que diz respeito à questão econômica, a associação entre dedicação à carreira e relação com a família aparece de forma ainda mais clara para eles. Um dos entrevistados questionou: "vou ficar na mesma função ou vou pagar a faculdade para os meus filhos? Preciso seguir para que eles possam ter acesso a um futuro..." (D1). Nessa perspectiva, eles constataram que a própria família impulsiona-os a seguir adiante, a aceitar desafios, mesmo que isto venha a representar mais ausência e mais distanciamento. Um executivo contou o seguinte: "às vezes me dá uma vontade de ser meio independente novamente, mas daí vem as brigas e as cobranças e eles [a esposa e os filhos] me puxam a orelha porque eles acham que eu tenho que continuar, que eu tenho gás ainda, que eu tenho conhecimento, pelo lado deles eles me dão todo o apoio. Outro dia eu ventilei num almoço, falei mal do trabalho, fiz uma queixa e tomei vaia de tudo que era lado" (B1).

Neste caso, percebe-se que a família pode se mostrar mais aliada do trabalho do que do indivíduo e funciona, muitas vezes, como normatizadora dos modos de viver destes executivos, para além de prescrições que possam se apresentar no mercado de trabalho.

A preocupação que se constata não é relacionada estritamente à sobrevivência material, mas à manutenção de um estilo de vida. Esta situação, que por vezes é analisada como secundária, adquire relevância na sociedade contemporânea caracterizada pelo consumo (Bauman, 2007a), na qual os indivíduos são avaliados quase exclusivamente por sua capacidade de consumir.

A isso se soma o fato de que o mercado de trabalho se apresenta cada vez mais restrito, e a competição entre os trabalhadores dos diversos níveis cada vez mais acirrada. A competição aparece com muita clareza nas entrevistas. Um dos executivos declarou: "tu tens que mostrar todo o tempo que tu trabalhas mais que os teus colegas" (E1).

A competição cotidiana é reforçada, entre outros aspectos, pelas políticas de benefícios e premiações dos bancos. "O trabalho exemplar", nas palavras de um dos executivos, "é premiado com prêmios, viagens, troféus ou com prêmios simbólicos, como reconhecimento público, fotos que saem no jornal" (E1). Na compreensão dos entrevistados, esta política de dar visibilidade ao trabalho bem sucedido visa o reconhecimento, mas, de fato, alimenta a competição: "saem reportagens na internet para os colegas ver. Eu acho que isso acontece para dar o exemplo para todos nós..." (E1).

Na percepção dos executivos não há critérios claros para a definição do "trabalho exemplar", bem como para as promoções na carreira. Eles relataram que os critérios são "subjetivos e difíceis de serem mensurados" (C1) ou, ainda, que seus superiores "escolhem pela emoção, ou pelo olhar" (C1) e que, diante disso, "cada um tem que buscar suas próprias oportunidades" (F1), "tem que estar no lugar certo e com a pessoa certa" (B1). Referiram, também, que se relacionar com pessoas que detenham poder de decisão tem adquirido grande importância na condução de suas carreiras. Desta forma, os relacionamentos mostram-se impregnados de interesse, podendo ser superficiais, de curta duração e oportunistas (Pelbart, 2000; Sennett, 2001).

A pressão pessoal constante para que a "doação ao banco seja maior e a carga de trabalho maior também" (D1) tem origem em fontes diversas que se potencializam. Elas dizem respeito ao impulso consumista, à necessidade de manter-se empregado e às características inerentes ao processo do trabalho imaterial que, como se viu, amplia o que antes era denominado de jornada de trabalho para além da fronteira espaço-temporal da organização.

Trabalhar as "24 horas" do dia é sensação rotineira dos executivos advinda das possibilidades que oferece a tecnologia, sobretudo pelo acesso à internet e uso de telefone celular. Os executivos afirmam que levam trabalho para casa, atendem ao celular todo o tempo e checam e-mails antes de dormir e quando acordam, inclusive aos sábados e domingos. Para eles, é imperativo "não ficar parado" (C1), "estar por dentro de tudo" (H1), "trabalhar além da carga horária" (H1).

Esta situação está de tal forma naturalizada que já não é questionada por muitos: "eu chego em casa, mesmo não estando em horário de expediente eu leio o Valor Econômico, a Gazeta Mercantil. Procuro me manter informado, faço meu chimarrão, abro meu micro e dou uma olhada em como se comportou o mercado financeiro de madrugada" (A1). Outros, que mantêm certa crítica a esta forma de trabalhar, vivem em constante dilema: "agora que são oito da noite eu já tenho 29 e-mails novos. E que horas eu vou ler isso? Ou eu leio hoje de noite quando chego em casa ou eu leio amanhã de manhã. É praticamente impossível dar conta de tudo no horário. Então, como a gente faz, em geral, nessa questão de tempo: o domingo é para colocar em dia a agenda" (E1).

Os cônjuges entrevistados têm clara percepção do avanço do trabalho na esfera doméstica: "ele costumava ficar até mais tarde no banco, mas não levava trabalho para casa, ele nem acesso a internet tinha em casa. Agora tem que ter acesso nas 24 horas, dá para dizer... E tem o celular também, às vezes até durante o almoço toca, daí ele fala: 'crianças vocês vão lá para o quarto, o pai vai atender um cliente, daí vocês ficam quietinhos'. Então não tem horário, ele tem que atender..." (G2). Outra esposa falou sobre a rotina do marido: "... daí ele liga o notebook, faz as coisas que ele tem para terminar, isso depois da janta, aí quando ele deita, imagina, lá pelas 11 horas da noite, ele vai ler alguma coisa. Ele não deita sem ler alguma coisa, livros, ele ainda tem esse tempinho antes de dormir para se atualizar" (E2). Destaca-se, na fala desta esposa, que a leitura realizada segue a lógica de capacitação para o trabalho, na busca permanente pela atualização.

Os horários de descanso e sono dos executivos bancários estão visivelmente prejudicados, conforme atesta o relato a seguir: "como te disse, no final de semana eu só trabalho. Tenho que ler os jornais sobre o mercado financeiro, tenho que estudar as estratégias do banco. Antigamente, eu dormia as oito horas por dia, hoje durmo de cinco a seis horas no máximo e sempre tenho a sensação que durmo e acordo com um olho aberto e outro fechado" (C1). Essa situação de desgaste físico e mental contribui para o adoecimento dos executivos, conforme se verá adiante.

No cenário investigado, evidencia-se a alta exigência de disponibilidade dos executivos. Questionava-se, inclusive, se haveria algum espaço/tempo em que eles pudessem se revigorar. A princípio, tinha-se que a família poderia apresentar-se como este reduto. Mas constatou-se que não. Dessa forma, se as relações de trabalho são otimizadas, as íntimas vão sendo precarizadas. Chama a atenção o fato de que em sua maioria os executivos estão casados por mais de 20 anos, o que significa um longo período de casamento, porém, não necessariamente um longo período de convívio. Uma das esposas relatou: "Ele não fala comigo. É só o banco, banco, banco" (C2). Seu marido, bancário há 11 anos e executivo há seis, também comentou: "visitamos meus pais a cada 45 dias porque não dá tempo, o trabalho consome inclusive os finais de semana, porque preciso ficar estruturando, pensando as estratégias e me preparando para a semana de trabalho durante o final de semana" (C1).

O trabalho, que se expande durante a semana e adentra os finais de semana, prejudica o convívio familiar. Não são raros os compromissos assumidos com clientes e feiras de negócios nos finais de semana. Os executivos, com o objetivo de se tornarem mais produtivos, tentam conciliar o trabalho com outras atividades familiares e com atividades de lazer. Um dos executivos, inclusive, alterou sua lua-de-mel. Diz ele: "por força de concursos internos fui aprovado numa função comissionada no nordeste, fui para Pernambuco. Eu lembro que eu era recém casado, fomos para Recife, então, em lua-de-mel" (H1). Outros levam esposa e filhos em atividades como feiras ou eventos nos quais eles podem participar.

Uma das esposas contou que tanto ela como os filhos convivem muito pouco com o esposo/pai. Disse ela que tem que deixá-lo "livre para o trabalho. Não posso contar com ele para nada, nem para cuidar das crianças, nem para uma reunião da escola, nem para as atividades domésticas" (E2). Novamente se evidencia a naturalização das opções feitas em nome da carreira do executivo. Neste caso, a esposa abriu mão de sua carreira profissional para cuidar da casa e dos filhos, liberando, como ela diz, as escolhas do marido.

A convivência familiar passa, portanto, a ser esporádica e condicionada às atividades a serem realizadas em nome do trabalho. Essa é uma prática comum entre os executivos que vivem com suas famílias na mesma cidade, e uma prática que se intensifica diante das constantes transferências de lugar desses executivos em prol do trabalho. Essa foi a vivência de quatro dos executivos entrevistados (C1, F1, G1, J1). Devido à ascensão na carreira, moraram em cidades diferentes das de suas respectivas famílias. Seu retorno para casa aos finais de semana ocorre somente quando não têm outras viagens de negócios agendadas.

A análise que os executivos realizam desta situação é marcada por diferentes opiniões. Um deles relatou que "teria sérios problemas familiares se a família morasse junto porque dificilmente a esposa aceitaria que eu trabalhasse 15 horas diárias" (F1). A isso acrescentou que "essa possibilidade de morar cada um em uma cidade me permite fazer o que eu quiser, chegar a hora que quiser do trabalho, trabalhar de noite, fazer happy hours, jantar com clientes, etc., e não precisa dar satisfação à família... o horário que quiser, sem controles" (F1). E ainda: "Eu sempre entendi que mexer muito com a família não era apropriado para eles. Então o sacrifício é esse, é você ficar longe da sua família. Por exemplo, atualmente eu venho na segunda-feira de manhã e volto na sexta-feira para casa. Então, para fazer carreira você tem que se afastar de algumas coisas. Esse é o ônus. E o bônus disso é você fazer networking de uma maneira espetacular. Você acaba tendo muitos relacionamentos até fora do banco porque se você não está com a família durante a semana você fica mais livre para o trabalho. Por conta disso eu já tenho quase um escritório de advocacia montado e vários clientes contatados para depois que me aposentar" (F1).

Surgiu nessa fala um elemento que permite pensar a extrapolação dos controles no atual mundo do trabalho. Na sociedade disciplinar, o trabalhador precisava ser controlado para permanecer por tempo determinado em seu ambiente de trabalho, e sua expectativa era de terminar seus afazeres e ir para casa ou realizar atividades de lazer. Na sociedade de controle, o trabalhador não precisa mais ser controlado para permanecer em seu ambiente de trabalho uma vez que o trabalho toma a vida em geral, e sua expectativa volta-se, então, para a liberação das amarras que o compromisso com a família e os laços afetivos e sociais possam evocar.

Outros executivos relataram, com pesar, que as mudanças demandadas pela trajetória profissional fizeram com que "a família fosse ficando para trás" (H1). Em algumas mudanças os filhos mais velhos optaram por ficar na cidade em que moravam e o casal seguiu adiante com os filhos mais novos, gerando rupturas: "a mais velha ficou. Eu e minha mulher fomos adiante com nosso filho que era pequeno. Então a partir daí nós nunca mais conseguimos juntar nossa família de novo" (H1). A trajetória da carreira define-se, portanto, a partir da mobilidade forçada. Com intensa emoção, a filha desse executivo confirmou: "eu convivi muito pouco com meu irmão mais novo. O pai sempre achava que ele tinha que aceitar todas as propostas então eu e meu irmão nos separamos quando eu era adolescente e ele era criança. Nessa fase é que meu pai mudava muito de cidade, eu tinha 17 anos e a partir daí eu nunca mais acompanhei o pai e a mãe" (H2).

Em outros casos, toda a família mudou-se acompanhando o percurso do executivo que, para chegar a um cargo de destaque, teve como pré-requisito as constantes mudanças de cidade: "cada vez que eu era promovido, eu ia de uma cidade para outra" (A1). Estas mudanças, em geral, envolvem transtornos para a família, especialmente para os filhos, conforme descreveu uma das esposas: "quando ele chegava a casa e contava que ia ter outra mudança a gente ficava triste, mas tentava não decepcionar ele. A última promoção foi em questão de um dia, ele já tinha que dar uma resposta, de um dia para o outro ele tinha que dizer ou vou ou não vou. Então, ele na verdade já tinha decidido ir, só que daí o impacto na família foi muito grande... nosso filho mais novo foi se esconder embaixo da mesa e dizia: 'pai, eu não vou, não vou'. E isso fez ele se sentir muito culpado. Porque ele fica se culpando de tirar as crianças, de mexer com a família" (E2). O executivo percebeu da seguinte maneira a situação: "o banco quer a resposta de aceite em no máximo um dia... aceitei sem pensar, sem discutir com a família porque também não dá tempo" (E1). O imperativo da velocidade que rege as relações de trabalho assola as relações familiares definindo seu próximo destino, mesmo que de modo indesejado.

A rotina de trabalho e o estilo de vida dos executivos provocam a ausência dos pais no contexto familiar e a conseqüente ausência de referência paterna ou materna, e sentimento de abandono dos filhos. As viagens constantes de um dos entrevistados, associadas ao enigma que seu trabalho representa geraram um sentimento assim expresso: "meu pai nunca está em casa, eu nunca o vejo e isso que eu moro com ele. Praticamente eu moro sozinha" (D2). E ainda: "eu não sei o que ele faz, sobre o trabalho do pai eu não converso com ele sobre isso. A gente não se encontra, ele vive viajando" (D2).

Dessa forma, os relacionamentos que se estabelecem entre os executivos e seus filhos são marcados pelo distanciamento, pela falta de diálogo e pelos desentendimentos. Um filho contou que "[o pai] mistura muito o trabalho dele com a casa, chegar mal-humorado interfere muito. É porque ele vive viajando. Teve uma semana que ele passou em Brasília, outra em Curitiba, vive em reunião. Não sei porque faz tanta reunião. Ele nunca parou para contar nem eu para perguntar" (D2). Parar para contar ou para perguntar significa entabular um diálogo, impor uma barreira à velocidade que assola a vida atual que nem sempre se mostra possível.

Nas palavras de outro filho, revelou-se uma queixa de que "essa última função do pai é onde eu vejo que ele mais se esforça e também fica mais cansado. É a função que mais dá trabalho, assim eu vejo. Eu vejo que ele nunca pára em casa, está sempre em reunião, na corrida. Se a gente sai para almoçar aqui em Porto Alegre, o celular dele toca dez vezes enquanto nós estamos almoçando. Eu não entendo porque ele não desliga o celular, porque não tem um minuto de sossego. Mas ele não desliga" (F2).

Esse distanciamento é considerado necessário para que o executivo mantenha-se como provedor, mas também é considerado pelos executivos como uma possibilidade de abrir as portas para o futuro profissional de seus filhos, assim como a constituição de um modelo no qual os filhos devem se inspirar para seu futuro profissional. A educação dos filhos é perpassada pela mesma lógica que os pais conduzem suas carreiras. Uma das esposas afirmou ter que "educar ele [filho] para competir" (B2), e um dos executivos ponderou: "com os meus relacionamentos por aí eu consigo abrir muitas portas para meus filhos. Eu conheço um pessoal, são todas relações que eu construí a partir dos meus relacionamentos do banco, em razão do meu trabalho acabei conhecendo pessoas que se transformaram em relacionamentos que abrirão as portas depois quando eu sair daqui" (F1). Outro executivo admitiu que administra a carreira do filho de 20 anos, estudante de jornalismo: "eu quero que ele ganhe muito dinheiro e seja focado na profissão" (B1). Este modelo de educação é partilhado por algumas esposas: "para nosso filho também é bom ver tudo isso, com certeza, porque naquela época, eu me sentia chateada... dizia para ele: 'olha, filho, teu pai está ausente, mas é para o futuro profissional dele. Não tem outra alternativa'. Eu dizia para ele que o dia que ele fosse trabalhar também ia ser por aí. E eu tentei criar nosso filho sempre nesse direção" (B2).

Além do modelo do pai, os filhos têm suas vidas preenchidas por uma agenda carregada de atividades que possam ser investimentos no futuro profissional. Gaulejac (2007, p.180) analisa as repercussões do excesso de atividades sobre as crianças e afirma que "contra o risco de tempo morto ou, pior, de desocupação, convém tornar produtivo cada momento. Desde seus mais jovens anos, a criança é preparada para tornar seu tempo rentável: curso de música, atividades esportivas, cursos particulares, recreações formativas e distrações instrutivas".

Vida profissional e pessoal inseparáveis. Se antes já não se podia traçar tal separação, atualmente isto se configura como uma verdade mais presente, intensificada pelo fato de que o tempo para interesses e ações que nada digam a respeito do trabalho encontra-se cada vez mais escasso. Os executivos bancários entrevistados mencionaram algumas "manobras", como eles próprios definiram, para, em alguns momentos, tentar priorizar a família. Elas incluem "deixar o restante do trabalho para o dia seguinte, fato que raríssimas vezes é possível" (I1), "marcar reuniões no máximo até as 18 horas" (J1) e "abrir mão de atividades de esporte e lazer para ficar com a família" (G1).

Em alguns raros casos, os executivos disseram esquecer o trabalho: "o trabalho não chega a adentrar os horários de descanso porque eu modifiquei alguns hábitos, como principalmente pensar no trabalho e ficar me remoendo, como acontecia quando eu era um pouco mais jovem. Então eu ficava até mais tarde bolando metas, estratégias" (B1).

Outros, entretanto, amenizaram a carga de trabalho levada para casa alegando que "hoje não trabalho tanto em casa como antigamente, apenas o maldito celular que toca 24 horas por dia, então, a única coisa que eu ainda faço em casa é a questão de atender celular, fazer algumas ligações, mas outro tipo de trabalho eu não faço" (H1). Nota-se a incorporação das "próteses tecnológicas" (Virilio, 1996), do equipamento maldito, como mencionou H1, que não mais é considerado como trabalho levado para casa.

O esforço por buscar outras atividades, desfrutar de um tempo de descanso de maior qualidade não foi referido por todos. A maioria dos executivos bancários mostrou intolerância em abrir mão das atividades de trabalho. Disseram: "atualmente não é possível conciliar nada" (C1); "Eu não concilio. Infelizmente eu vivo para o trabalho. Eu trabalho 15 horas por dia no mínimo. Fora os finais de semana, os feriados longe, a função exige a gente estar sempre voltado para o trabalho. Eu não tenho ponto eletrônico, eu não tenho horário determinado de trabalho" (H1). Esse mesmo executivo deu-se conta de que: "quando eu entro em uma atividade, eu mergulho de corpo e alma e então eu acabo esquecendo a outra parte que também é importante que é a família. Na minha carreira eu atropelei um pouco isso. Não medi o ônus que minha família teria em função de uma decisão minha de realocação. Então, eu acho que nisso eu pequei" (H1).

Ilustra-se mais uma faceta do dilema relacionado à carreira dos executivos. Ao trabalharem e deixarem a família em segundo plano, sentem-se culpados; ao compartilharem com a família alguma atividade de lazer, não o fazem plenamente, pois se mantêm ligados ao trabalho. Uma das esposas (C2) relatou que seu marido sente-se irritado e ansioso nos momentos de convívio familiar, especialmente porque se culpa por não estar trabalhando. Os executivos se cobram se não estão trabalhando e se cobram, também, por "nunca terem chegado, durante a construção da carreira, a estar tão preparado como deveria" (E1).

A ameaça que paira sobre os executivos bancários é a da incompetência e a do fantasma da inutilidade, conforme indicam Dejours (1999) e Sennett (2006), respectivamente. Soma-se a tal ameaça o receio de não dar conta da intensa aceleração e tornar-se um ser humano refugado, excessivo ou redundante (Bauman, 2005). Os limites que produzem e distanciam o "produto útil" do "refugo" conformam uma zona indefinida, onde habitam a ansiedade, a indefinição e mesmo o perigo. É nesse sentido que os executivos bancários se vêem necessitados de estar sempre ligados ao seu trabalho atual ou futuro. "Como eu estou indo para o lado da aposentadoria tenho que pensar uma segunda carreira, porque eu vou me aposentar muito cedo. Ora o executivo quer parar, ora quer continuar..." (A1).

A mobilização total do indivíduo em prol do trabalho pode redundar "em sintomas de superatividade" (Gaulejac, 2007), fato que tem se desdobrado em adoecimentos, tanto dos executivos bancários como de seus familiares, pois é uma mesma lógica de aceleração e de intensa dedicação ao trabalho que afeta a todos. Um dos executivos (E1) mencionou que suas labirintites estão relacionadas ao caminho sinuoso e confuso de sua carreira, marcada por inúmeras mudanças. Outro executivo (G1) contou que sofre de vertigens constantemente; e outro (C1), de problemas de pele.

Apesar das manifestações físicas de cansaço e esgotamento e de saberem que deveriam cuidar-se mais, a falta de tempo se sobrepõe a qualquer preocupação que os executivos bancários possam ter: "eu deveria cuidar mais de mim. Vou relatar uma situação. Estou com um problema que minhas mãos estão descascando, perdendo a pele, fui no médico e ele me disse que é estresse e me indicou tratamento. Só que eu não tenho tempo de fazer o tratamento. Então vou deixar para depois" (C1). No mesmo sentido, relataram algumas das esposas entrevistadas: "eu vou ao meu médico e peço para ele requisições para levar para meu marido fazer os exames. Mas ele não arruma tempo nem para fazer os exames" (B2); "eu marco a consulta e no dia eu ligo avisando [o marido executivo bancário], porque o que é fora do trabalho ele esquece. Mas eu também acho que ele não vai ao médico porque ele não quer perder tempo, ele se culpa por não estar trabalhando" (E2).

Quanto aos familiares, uma das esposas (G2) relatou que após um mês da primeira mudança de cidade sua filha nasceu e ela teve depressão pós-parto. Relatou, também, que seu marido seguidamente lhe dizia: "parece que tu não ficaste feliz com nossa mudança" (G1). Dessa época, lembrou que as decisões relativas à carreira tiveram repercussões ruins na família, especialmente porque era o início tanto da carreira como da constituição da unidade familiar. Cabe ressaltar que este modo de trabalhar e viver afeta a saúde também dos filhos dos executivos bancários, que fazem uso de medicamentos de uso contínuo. Um dos filhos entrevistados contou com naturalidade que não tem se sentido bem: "hoje já tomei um 'dorflex' e minha fluoxetina [antidepressivo]" (D2).

Os executivos bancários não suportam ficar muito tempo parados, por já estarem acostumados ao ritmo acelerado e por temer a exclusão. Alegaram que não agüentam, pois é preciso "oxigenar" (E1) e se não acompanharem as mudanças do banco, "ficam estacionados" (E1). Pode-se relacionar a idéia de ficar estacionado às reflexões feitas por Bauman (1999), no sentido de que "estar parado" seria sinônimo de ser "vagabundo", enquanto que a condição de "turista" remeteria a idéia de mudança, de transição, daquilo que é desejável aos executivos nômades da atualidade.

As trajetórias profissionais dos executivos bancários, com todos os aspectos que foram mencionados, por vezes os colocam ainda diante de outro dilema que diz respeito ao momento de frear a carreira, optando por enfatizar a vida pessoal. Segundo eles, esta opção acontece apenas quando novas oportunidades não valem o esforço: "então chega um momento que eu sou um pouco mais racional e a questão do status já não pesa tanto, de ser gerente nacional. Tem momentos que vale mais o conforto da situação da família" (E1).

Algumas paradas fizeram-se necessárias, ao longo da construção da carreira de alguns dos executivos bancários. "O nascimento da minha primeira filha fez com que eu reduzisse as mudanças. Daí eu comecei a ter a necessidade de um porto seguro, um local para ficar um tempo pelo menos, porque do jeito que estava era muita loucura" (A1). Em outra perspectiva, a única executiva entrevistada relatou com arrependimento ter freado a sua carreira: "muitas bancárias param de trabalhar durante a gravidez, e nesse momento que eu fiquei grávida eu peguei licença maternidade para cuidar da minha filha e parei um pouco de investir na minha carreira. No entanto, eu fico chateada por não ter buscado outros desafios e ter ficado acomodada algum tempo. Hoje eu repensaria sobre essa decisão que tomei na época" (J1).

A carreira construída na modernidade líquida não apresenta objetivos delimitados, não permite o traçado de uma linha terminal, mas estabelece uma "jornada sinuosa que nunca se completa" (Bauman, 2007b, p. 44). Neste contexto, as incertezas são constantes: "o que acontece hoje é que você está num rumo e amanhã tem que estar noutro" (A1). Assim, lado a lado ao desejo de ser um bom profissional e atingir o topo do sucesso, encontra-se o medo recorrente de não estar à altura do desafio proposto pelos bancos.

O executivo bancário se constrói em função de seu trabalho, de tal forma que sua vida e identidade caracterizam-se fundamentalmente nessa condição. Sendo assim, a família do executivo bancário orbita no mesmo universo, mas não participa das decisões que lhe são impostas. Decisões que se apresentam como dilemas para os executivos bancários, mas que vão perdendo a possibilidade de despertarem crítica por naturalizarem-se conforme relatou uma das esposas: "eu acho que se tu quiseres fazer uma boa carreira, precisa uma boa dose de sacrifício, sem ele ninguém chega a lugar nenhum" (B2).

 

Considerações finais

Tradicionalmente, a carreira profissional esteve relacionada à trajetória do indivíduo em uma empresa, associada à progressão linear, hierárquica. Nesta perspectiva, tanto indivíduo como empresa assumiam compromissos mútuos, em contratos formal e psicológico. A história de trabalho, construída a partir do galgar degraus, era tanto desejada pelos trabalhadores quanto valorizada socialmente. Na atualidade, contudo, a noção de carreira profissional que se apresenta é outra.

Nos dias que correm, está disseminado um modelo de carreira profissional meteórica, que não deve ser barrada pelas fronteiras de uma empresa, ao contrário, sua valorização advém do trânsito interempresas em curtos espaços de tempo. Neste modelo, o sujeito do trabalho deve assumir as rédeas de seu percurso, conduzindo a carreira conforme suas habilidades. Nessa condição, ele ressalta seu poder de controlar sua trajetória, adquirindo papel mais ativo na relação com o trabalho. Contudo, é alto o preço a ser pago. A suposta autonomia do sujeito do trabalho, que passa a ser gestor de si, descompromete, gradativamente, os laços que as empresas têm para com ele. Além disto, este modelo desconsidera a existência de um contexto cada vez mais restrito e competitivo, responsabilizando tão somente o sujeito do trabalho por seu êxito ou fracasso, com base em suas habilidades e seu mérito.

Constata-se, assim, uma assimetria dos papéis da empresa e do sujeito do trabalho em relação à construção da carreira. A empresa oferece, enquanto estratégia, um plano de carreira para o executivo, desde que a sua entrega pessoal seja maior que a noção do próprio cargo que ele irá ocupar. Nesse sentido, há um excesso de atividades que o executivo tem que dar conta e que não é possível realizar somente no tempo e local de trabalho, mas, sobretudo é levado para casa, onde a relação familiar é a principal afetada. Afora isso, as redes de relacionamento que o executivo deve manter fora do trabalho extrapolam para o horário de convívio familiar requerendo, na perspectiva do trabalho imaterial, sua vitalidade e entrega que diz respeito a estar, fora do horário de trabalho, em eventos sociais. Os resultados apontaram a falta de convívio com a família, uma vez que ofertar tempo para a família seria deixar de estar nessa promissora rede de relacionamentos diretamente associada ao sucesso profissional. Tais considerações permitem afirmar desde já que a carreira também tem seu lado perverso uma vez que as pessoas excluídas da rede de relacionamentos vêem suas carreiras afetadas negativamente e, por isso, acabam excluídas do círculo empresarial.

Quando não há mais o que fazer advém a resignação em relação à família e a suas atividades domésticas, em especial, porque o sujeito do trabalho não vê a possibilidade de se colocar à margem das obrigações condizentes com a carreira. Por isso, certos dilemas, imbricam-se para além da precarização do trabalho, na precarização da vida (Bauman, 2007).

Essa pesquisa ratifica os achados de Tanure, Carvalho Neto e Andrade (2007) em relação ao sofrimento que a carreira traz aos executivos e contribui no sentido de possibilitar a compreensão dos dilemas na condução da carreira e seus desdobramentos para a família. Possibilita, também, associar a condução da carreira à noção do trabalho imaterial, uma vez que se a carreira passa a ser de responsabilidade do trabalhador, sua vida é invadida como um todo e a lógica que impera é a da não distinção entre tempo de trabalho e de não trabalho. Aqueles que compõem as relações familiares dos executivos também sentem responsabilidade sobre a condução da carreira do executivo bancário. O sofrimento que assola o executivo bancário torna-se também sofrimento da família. A carreira dos filhos, inclusive, passa a ser gerenciada pelos pais numa perspectiva de que os filhos tornem-se aptos para as demandas do trabalho imaterial. A lógica de preservação e de continuidade de um estilo de vida que serve aos objetivos do capital se vê nessa conduta plenamente contemplada.

Esse modelo de carreira também pode estar relacionado com o processo de adoecimento dos executivos, não somente os bancários. O modo como os executivos constroem suas carreiras afeta diretamente suas relações familiares bem como compromete sua saúde. Portanto, o seguinte questionamento visa dar prosseguimento para outras pesquisas, envolvendo os executivos: Quais as estratégias utilizadas pelos executivos para evitar o adoecimento a partir das demandas das suas carreiras?

 

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Recebido em 15 de Janeiro de 2010
Aceito em 17 de Agosto de 2010
Revisado em 01 de Novembro de 2010