SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número1A avaliação psicológica, psicopatologia e as psicoterapias na formação do profissional de saúde para o SUS: um estudo dos currículos dos cursos de PsicologiaCorpo e responsabilidade: efeitos da psicanálise sobre portadores de doenças degenerativas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza mar. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Ampliando as possibilidades de compreensão psicológica na clínica em saúde pública a partir da imaginação poética de Bachelard1

 

Expanding the possibilities of psychological comprehension in clinical practice in public health from bachelard's poetic imagination

 

 

Rafael Auler de Almeida PradoI; Marcus Tulio CaldasII; Carmem Lúcia Brito Tavares BarretoIII

IDoutorando em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. End: Rua Benvinda de Farias, 449, apto 1001. CEP: 51020-140. Boa Viagem - Recife-PE. Email: rafaelpradoauler@gmail.com
IIDoutor em Psicologia pela Universidade de Deusto-Espanha. Professor da graduação e pós-graduação do curso de psicologia da Universidade Católica de Pernambuco. End: Rua Dr. Vicente Meira, 82, apto 1601. CEP: 52020-130. Graças - Recife-PE. Email: marcus_tulio@uol.com.br
IIIDoutora em Psicologia Clínica pela USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. Coordenadora do Laboratório em Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial- LACLIFE. End: Rua Astronauta Neil Armstrong, 120, apto. 1101. CEP 52060-170. Parnamirim - Recife-PE. Email: carmemluciabarreto@hotmail.com

 

 


RESUMO

A crescente inserção do psicólogo na saúde pública tem trazido algumas questões, tais como a inadequação de suas práticas tradicionais para a atuação nessa área. Este trabalho teve como objetivo propor novas possibilidades de compreensão psicológica para clínica no serviço público de saúde, por meio de pesquisa bibliográfica, reflexão teórica e estudos de casos clínicos. Considerando a psicologia em seu formato modular e racionalista, tradicionalmente voltada à elite, não se deve estranhar as dificuldades dos psicólogos nesse serviço, cuja clientela principal é de baixa renda e não tem familiaridade com o pensamento intelectual acadêmico. O serviço público, aliás, deve preparar-se para atender a uma clientela, cada vez, mais diversificada tanto em relação à classe socioeconômica quanto a referenciais culturais. A novidade de uma clínica inspirada na poética, diz respeito à linguagem, ao modo de ser, de escutar e de se encontrar que podem permitir abertura de compreensão a qualquer paciente, independentemente de sua classe sociocultural. Não se trata da proposição de uma nova técnica psicoterápica voltada a determinada classe social, o que consideramos o mesmo impasse do qual pretendemos contribuir para uma possível ultrapassagem. Nossa reflexão, portanto, partiu do atendimento psicológico no serviço público, buscou nova concepção de linguagem para ampliar a compreensão psicológica e indicou que tal compreensão pode servir à ação psicológica de modo geral e não somente ao âmbito específico da saúde pública.

Palavras-chave: Prática Psicológica. Saúde Pública. Compreensão Psicológica. Linguagem Poética. Daseinsanálise.


ABSTRACT

The increasing integration of the psychologist in public health has brought some issues, such as the inadequacy of their traditional practices to the activities in this area. This study aimed to propose new possibilities of psychological comprehension for clinical practice in the public health, using bibliographical research, theoretical thinking and case studies. Considering the psychology by its modular and rationalist models, traditionally focused on the elite, we should not be surprised by the difficulties of psychologists in this service, whose main clientele is low income and is not familiarized to the academic intellectual thought. Public service, moreover, must be prepared to attend diversified clients in terms of socioeconomic aspect and cultural references. The novelty of the of this clinical practice method, inspired by the poetics, concerns the language, the way of being, listening and meeting that could allow the openness of understanding to any patient of any socio-cultural class. It is not the proposition of a new psychotherapeutic technique directed to a particular social class, which we consider the same impasse we want to provide an overtaking. Our thinking, therefore, is motivated by psychological practice in the public service, sought new language conception to expand the psychological understanding and indicated that such understanding can serve the psychological action in general and not only to the specific scope of public health.

Keywords: Psychological Practice. Public Health. Psychological Comprehension. Poetic Language. Daseinsanalytical Psychology.


RESUMEN

La creciente participación de psicólogos en la salud pública ha traído algunas cuestiones, tales como la insuficiencia de sus prácticas tradicionales en las actividades de esta área. Esta investigación tuvo como objetivo proponer nuevas posibilidades para la comprensión de la clínica psicológica en el servicio público de la salud a través de la literatura y de la reflexión teórica con ilustración de casos clínicos. Teniendo en cuenta la psicología en su formato modular y racionalista, centrado tradicionalmente en la atención a la elite socioeconómica, no debe sorprender las dificultades de los psicólogos en el servicio público de la salud, cuya principal clientela es de bajos ingresos además de no tener familiaridad con el pensamiento intelectual académico. El servicio público todavía debe estar preparado para servir a una clientela cada vez más diversificada, tanto en términos de estatus socioeconómico cuanto en los referenciales culturales. La novedad de una clínica inspirada en la poética, que hace referencia a la lengua, a la forma de ser, y de escuchar, es permitir la apertura a la comprensión de cualquier paciente, independiente de su clase socio-cultural. Por lo tanto no es la proposición de una nueva técnica psicoterapéutica dirigida a una clase social en particular tampoco a un único sitio de la acción psicológica. Más bien pretende, a través de un nuevo lenguaje, permitir a la comprensión psicológica lanzarse más allá de su condición modular actual.

Palabras clave: Práctica de la Psicología. Salud Pública.Comprensión Psicológica. Lenguaje Poético. Análisis Existencial.


RÉSUMÉ

Les progrès de l'insertion du psychologue dans la santé publique posent certaines questions, comme l'inadéquation des pratiques traditionnelles appliquées dans ce domaine. Ce travail a eu comme objectif de proposer des nouvelles possibilités de compréhension psychologique en clinique publique, par une recherche bibliographique, une réflexion théorique et l'étude de cas clinique.En considérant la psychologie sous sa forme modulaire et rationnelle, traditionnellement versée aux élites, on ne doit pas s'étonner des difficultés des psychologues dans ce service, ou la clientèle en large mesure est à bas revenu et n'est pas familiarisé avec la pensée intellectuelle académique. Le service publique, d'ailleurs, doit se préparer pour répondre á une clientèle chaque fois plus diversifiée que ce soit du point de vue socio- économique que culturel. La nouveauté d'une clinique inspirée de la poétique s'attache au respect du langage, de la façon d'être , de l'écoute et de la rencontre que peuvent permettre une ouverture de compréhension à tout patient, indépendamment de sa classe socioculturel. Il ne s'agit pas de propose une nouvelle technique psychothérapique objectivant une classe social déterminée, ce que nous considérons comme une impasse du propos que nous voulons justement aider à surpasser. Notre réflexion, ainsi,partie du service psychologique en clinique publique, a recherché une nouvelle conception de langage pour amplifier la compréhension psychologique e a indiqué que cette compréhension pouvait servir à l'action psychologique en général e non seulement dans le cadre du service publique.

Mots clés: pratique psychologique, santé publique, compréhension psychologique, poétique, daseinanalyse.


 

 

Embora seja um fenômeno relativamente recente, a participação de psicólogos na área da saúde pública tem trazido forte repercussão para essa categoria profissional, haja vista a atenção que tal assunto tem recebido dos conselhos regionais e Conselho Federal de Psicologia (Dimenstein,1998; Yamamoto e Cunha, 1998; Lima, 2005). Dimenstein (1998) afirma que, apesar de os psicólogos serem comparativamente pouco expressivos em relação ao quadro geral dos profissionais da saúde, é o grupo que mais tem crescido nos últimos anos. A mesma autora historia o movimento de inserção dos psicólogos na área da saúde pública, caracterizando-o com base em quatro momentos principais: 1- a decadência do modelo hospitalocêntrico de assistência à saúde, o que resultou, ao final dos anos 1970 e início da década de 1980, em novo contexto de política de saúde pública, inclusive quanto à política de direitos humanos; 2- a crise econômica e social que afetou o nosso país na década de 1980, atingindo fortemente a classe média, para a qual se dirigiam, então, os interesses dos psicólogos, que baseavam sua ação clínica em atendimentos psicológicos privados; 3- os movimentos da categoria na tentativa de redefinição da função do psicólogo na sociedade e 4- a popularização da psicologia, em parte graças a difusão da psicanálise, o que levou a população a exigir atendimento psicológico nas unidades de saúde pública.

Yamamoto e Cunha (1998) realizaram pesquisa na cidade de Natal (RN), onde entrevistaram cinco psicólogas selecionadas em amostragem intencional, cuja atuação profissional acontecia em hospitais não psiquiátricos. A análise considerou a formação acadêmica, a trajetória profissional, a caracterização das atividades realizadas e, por fim, a avaliação do trabalho realizado nos hospitais. Na conclusão, os autores sublinharam a afirmação das entrevistadas a respeito da formação acadêmica insuficiente para o exercício profissional assim como da trajetória pontuada por condições adversas de trabalho e práticas inadequadas para esse campo de atividade, uma vez que próxima do fazer clínico tradicional.

Esses resultados estão de acordo com a reflexão de Andrade e Morato (2004), segundo a qual a inadequação das teorias psicológicas tradicionais fundamentadas num pensamento modular as tornaria incapazes de legitimar as diferenças. Assim, tais teorias contribuem para a confirmação da injustiça social, especialmente em práticas psicológicas voltadas a populações de baixa renda (usuárias do serviço público de saúde).

O pensamento modular, predominante nas sociedades ocidentais, naturaliza valores morais e avalia a vida a partir destes, criando um processo perverso de sistemas sociais injustos. Trabalhar numa dimensão Ética significa exatamente considerar os valores como criações humanas e acolher a diferença emergente nos diversos contextos como aquilo que resiste à reprodução, como aquilo propiciador de transformações nos modos modelares e excludentes de estar no mundo. (Andrade e Morato, 2004, p. 345).

Segundo as autoras citadas, nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, a atuação do psicólogo ficou restrita a práticas que não questionassem o poder político instituído ou que contribuíssem para seu estabelecimento. Não eram permitidas nem estimuladas reflexões que pudessem levar a transformações sociais. A psicologia colocava-se como unidade de fundamento científico e de atuação prática. Na década de 1980, quando se iniciou grande inserção dos psicólogos no serviço público, esses profissionais estavam despreparados para atender a essa população. A realidade posta naquele momento, diante do psicólogo não era alcançável pelos seus pressupostos teóricos. Abriu-se, pois, uma discussão sobre a atuação e o papel da psicologia.

Arrancado de seu papel técnico e cientificista e sustentado por uma suposta unidade da Psicologia, o psicólogo brasileiro vê-se diante de uma série de questões político-sociais que atravessam o fazer psicológico e apontam para o caráter alienante das práticas tradicionais. As questões agora mudam de foco e problematizam a própria função da psicologia (Andrade e Morato, 2004, p. 346).

Assim, acreditamos que parte das dificuldades do psicólogo em sua ação junto à população de baixa renda se deva ao aprisionamento dele a práticas formais, modulares, e à própria tentativa da psicologia de propor modelos conceituais que não permitam abrangência de atuação. Ademais, observamos, como pesquisadores e profissionais que atuam na área de saúde pública, um aumento na busca de prestação de serviços por populações de classe média baixa e classe média média, as quais tendem a competir com populações de baixa renda por espaço na saúde pública. Independentemente dos fatores que motivam essa procura, acreditamos, a tendência em nosso país se assemelha ao que ocorre em alguns países europeus, em que o Estado tem importância fundamental no atendimento à população, ou seja, a universalização na prestação de serviços. Nossa reflexão pretendeu aprofundar as contribuições oriundas da Fenomenologia Existencial, ao modo de Heidegger, para pensar a ação clínica, ressaltando a condição de ser-com e a "solicitude" ou cuidar do outro, como dimensão constitutiva de outro modo de pensar a ação clínica. Ação compreendida como possibilidade de intervenção do psicólogo implicado no movimento de experienciação do cliente, acompanhando-o na tarefa de ampliar o que já sabe pré-reflexivamente, possibilitando que, na situação clínica concreta e totalmente singular, se compreenda e assuma o que ele está sendo e no que pode ser. Ou seja, "buscar algo que ele já possue de uma certa maneira, isto é, ele já tem uma compreensão implícita, pré-ontológica do sentido da sua dor, da sua dificuldade, do seu sofrimento e até mesmo das suas possibilidades negadas"(Michelazzo, 2002, p.195).

Pensando dessa maneira, pretendemos dar um passo adiante, sugerindo novas possibilidades de compreensão da escuta e da fala via a dimensão ontológica existencial, que permitam ampliar o horizonte de possibilidades de atendimento. Com tal intuito, buscaremos na poética inspiração para fecundar um modo de atuação do psicólogo que permita não só o atendimento à população de baixa renda, mas também uma abertura "universal", livre de especificações que engessem seu fazer clínico.

Para tanto, iniciamos nosso trabalho, introduzindo breve compreensão da poética baseada na filosofia heideggeriana, que não está vinculada ao pensamento modular e que, ao contrário, tem como objetivo ir além dele. A seguir, caracterizamos a concepção de Bachelard sobre a poética, vinculada a uma concepção de imaginação que lhe é própria (distinta da vinculação tradicional com a memória). Por fim, trazemos a concepção de prática psicológica fundada na linguagem poética, numa perspectiva daseinsanalítica.

 

Introduzindo nossa Compreensão de Poética

O homem nos é apresentado por Heidegger como o pastor do ser, seu guardião. Mas o que o homem guarda é o sentido do ser, vela por ele através das palavras. O homem pastoreia o sentido de ser, isto é, cuida do ser através da linguagem. Por isso Heidegger vê os poetas como os próprios guardiães do ser; a poesia contraposta à linguagem científica que revela o aspecto objetivável e calculável das coisas, pode tornar tangível o sentido do ser de todas as coisas em nossa existência com elas. (Critelli, 1984, p.21).

O que é poética? O que faz de uma poesia poesia: suas rimas? sua métrica? O fato de ela não se estruturar em frases e parágrafos, mas em estrofes e versos? A poética não se caracteriza nem mesmo pela escrita de um poema, cuja formalização constitui apenas uma de suas nuances. "A poesia encontra-se no espaço do 'evidenciar'" (Critelli, 1984, p.19), por isso não carece nem de explicações, nem de causas. O âmbito explicativo e causal que se expressa por meio de conceitos constitui o pensamento científico, que se presta a comprovar. A poética evidencia nossas experiências, o modo como sentimos, vemos e dizemos. "Ela é o espaço onde a aparente autonomia e originalidade de cada um são possíveis. E mais: são requisitados" (Critelli, 1984 p.18)

A ciência e o modo científico de pensar a realidade estão presentes no dia-a-dia. Pedimos à ciência que nos forneça, pelo método de verificação e comprovação, certificações da realidade com as quais possamos contar sem nos enganar; pedimos a ela, portanto, segurança. Nesse sentido,

O pensar certificador é um pensar inseguro que se assusta com a presença do novo, com a incumbência do ter que criar. Ele se pensa sucumbir na perda da familiaridade com o mundo. Nega; impede assim, qualquer transformação. Não deixa, sobretudo, que o real seja real, 'aí'. Pois, ao obrigá-lo a uma lógica, a uma maneira específica de ser representado, ele determina que o real seja uma 'idéia do real'. O pensar certificador se faz a si mesmo, desta feita, como idealista e fetichizador. (Critelli, 1984, p.20).

Tanto poesia quanto ciência são modos de desvelar o "mistério". No entanto, enquanto a ciência toma o mistério como o que ainda não foi codificado, como aquilo que ainda não pôde ser mecanicamente desvendado, aquilo cujas causas não foram identificadas, a poesia o toma como a inesgotável possibilidade humana de dar sentido à existência; ela desvela a existência, deixando-a em aberto para que dela nos apropriemos. Ela é uma linguagem que nos traz para a familiaridade com o mundo ao nosso redor. A ciência tenta explicá-lo na perspectiva de alguém que o vê de fora.

Resta-nos, ainda, neste momento inicial, em que caracterizamos o poético em contraponto ao pensamento certificador (próprio da ciência), um outro aspecto fundamental: a validade dessas duas modalidades de abordagem do real. Nesse sentido, perguntamos: o que torna a ciência confiável? Seria o fato de ela ser o único modo possível de revelar o real? Conforme procuramos mostrar neste artigo, a ciência não consegue dar conta de toda a realidade, pois ela se limita a abarcar a dimensão da realidade que pode ser submetida a relações de causalidade, o que permite previsão, comprovação e controle. É nossa sociedade ocidental moderna e contemporânea que tem elegido, quase hegemonicamente, a ciência como o único modo de se chegar a verdades, a certificações do real e a conhecimento confiável. Na verdade, o que dá sustentação à ciência é a coerência de método e objetivos. O que aconteceria com a poesia, se pedíssemos a ela que comprovasse e certificasse a realidade? Ela se tornaria ciência. Na verdade, nossa sociedade ocidental contemporânea, tendo elegido o conhecimento técnico científico como parâmetro de produção de verdades, não valoriza o poético, pois ele não comprova nem traz certificações. No entanto, no espaço da evidenciação, a poesia é tão coerente quanto a ciência o é no espaço da certificação.

 

A Imaginação Poética de Gaston Bachelard

(...) a imagem vem antes do pensamento. (Bachelard, 2000, p. 4).

Em poesia, o não saber é uma condição prévia. (Bachelard, 2000, p.16).

O atomismo da linguagem conceptual reivindica razões de fixação, forças de centralização. Mas sempre o verso tem um movimento, a imagem se escoa na linha do verso, arrasta a imaginação como se esta criasse uma fibra nervosa. (Bachelard, 2000, p. 12).

Nosso interesse em estudar as imagens poéticas de Bachelard consiste em aprofundar a compreensão e a elucidação da poética que assinalamos na seção anterior. Até aqui, esboçamos a caracterização da poética, diferenciando-a do âmbito do conhecimento/explicação/racionalidade. Já afirmamos que a poética é do âmbito da evidenciação, que a partir dela podemos tornar tangível o sentido do ser das coisas e de nossa existência em relação a elas. Nesta seção porém, queremos dar um passo adiante e mostrar como o poético está de fato presente no sentido das coisas, como ele é subsídio da significação, da configuração do mundo humano, em detrimento dos conceitos que apenas revelam o aspecto objetivável do real. Reforçando, nosso ser-no-mundo-junto-às-coisas-e-aos-outros se constitui pela significação poética e não pela conceituação das coisas, operação racional posterior à vivência (que é poética), o que somente permite controle do real mediante o domínio da causalidade.

Nosso processo argumentativo consiste em nos fundamentarmos numa reflexão filosófica realizada por Gaston Bachelard a partir do texto poético. A "imagem literária", ou "imagem poética," é o ponto de partida não só para o autor descobrir valores humanos fundamentais - os quais são desvelados em sua originalidade, em sua singularidade poética, e não na perspectiva de uniformidade, constância e imutabilidade próprias do conceito - como para o estudo da imaginação, dimensão humana em que a poética se situa. Nossa fundamentação em Bachelard tem o sentido de acompanhar a reflexão do autor, apropriando-nos dela para podermos articulá-la posteriormente aos objetivos do nosso estudo.

O que é a imagem poética? Pode-se dizer que a imagem poética se aproxima do que costumeiramente chamamos de metáfora. No entanto, diferencia-se desta no sentido de que a metáfora pode remeter a uma representação, enquanto a imagem poética evidencia o ser da coisa, diretamente, sem que um processo representativo intermedeie a colocação poética e a compreensão dessa colocação. Assim, por exemplo, a seguinte imagem de Tristan Tzara (apud Bachelard, 2000, p.228): "Uma lenta humildade penetra no quarto que habita em mim na palma do repouso", se tomada em sua perspectiva de metáfora conceitual, poderia ser interpretada pelo leitor, que a deslocaria e deformaria seu sentido poético. Poderia dizer, assim, que a humildade traz paz de consciência, encerrando suas considerações sobre a imagem. No entanto, tomada como imagem poética, como própria do "logos poético", cada nuance da imagem é altamente significativa, não permite generalizações. Assim, para acolher tal imagem, não podemos desprezar a lentidão com que ela sugere que a humildade penetra em nossa intimidade; não podemos deixar de atentar para o fato de que o repouso é apresentado como um habitar suave que a palma da mão pega devagarzinho, com o cuidado e a delicadeza de quem pegaria um passarinho recém-nascido; nossa solidão, o nosso quarto, é lugar desse acontecimento.

O caráter de "imagem" da imagem poética também assinala o âmbito do imaginário do qual ela é própria em oposição ao âmbito da intelectualidade racional. Imaginação, no entanto, não tem o mesmo sentido, para Bachelard, que tem costumeiramente, ou seja, como fenômeno perceptivo ou de memória. A imaginação poética é uma "imaginação criadora".

Em outras palavras, para nós, a imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diferentes e seria preciso uma palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo aquilo que é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora deve ser creditado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem funções totalmente diferentes daquelas da imaginação reprodutora. Cabe à ela essa função do irreal que é psiquicamente tão útil como a função do real evocada com tanta freqüência pelos psicólogos para a caracterizar a adaptação de um espírito a uma realidade marcada pelos valores sociais. Esta função do irreal irá reconhecer, precisamente, valores de solidão. O devaneio comum é um de seus aspectos mais simples. Mas teremos muitos outros exemplos de sua atividade se aceitarmos seguir a imaginação imaginante em busca de imagens imaginadas. (Bachelard, 2001, p.3).

A poesia, para Bachelard, acontece em tempo diferente do tempo da duração, ou "tempo horizontal"; ela se dá no "tempo vertical", ou instante. Esse autor diz que "(...) tempo é uma ordem e nada mais além disso" (1994, p.185). O tempo horizontal encadeia os acontecimentos em ordem causal e cronológica, enquanto o instante ordena a vivência em seu sentido, desvela-lhe significados que lhes são próprios. O tempo horizontal é próprio de nossa vida social, das nossas preocupações, das nossas obrigações. É nessa modalidade temporal que podemos pensar racionalmente, intelectualmente, procurando estabelecer, entre as coisas que observamos, relações de causa e efeito. O instante, embora também diga respeito ao mundo e aos outros, ao modo como nós, seres humanos, estamos no mundo com os outros, junto às coisas, se dá na solidão, momento em que nos podemos colocar acima do tempo cronológico-horizontal, momento em que o tempo que ordena a vivência é o do devaneio; nele o sentido das coisas de nossas vivências junto a elas, às pessoas e ao mundo se apresenta com nitidez. Nessa perspectiva temporal, os dualismos, como sujeito e objeto e egoísmo e dever, são inconcebíveis.

Enquanto todas as experiências metafísicas são preparadas por intermináveis prólogos, a poesia recusa preâmbulos, provas. Recusa a dúvida. No máximo tem necessidade de um prelúdio de silêncio. De início, batendo em palavras ocas, faz calar a prosa ou os trincados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio. Depois, após as sonoridades vazias, produz seu instante. Para construir um instante complexo, para estar nesse instante numerosas simultaneidades, é que o poeta destrói a continuidade simples do tempo encadeado. (Bachelard, 1994, p.183).

Existe ainda uma distinção fundamental no modo como Bachelard concebe a imaginação: ele privilegia a "imaginação material" em detrimento da "imaginação formal". Nossa sociedade ocidental privilegia, desde a Grécia antiga, a visão como o sentido principal por meio do qual o pensamento se dá. Tal hegemonia da visão em relação aos outros sentidos origina-se na oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual da sociedade escravagista grega, em que o primeiro era valorizado em detrimento do segundo. Sem nos darmos conta, herdamos, no nosso vocabulário filosófico e científico, termos relacionados à visão para nos referirmos a tudo que é da ordem do pensamento: "(...) ver, contemplar, visão, vidência [itálicos do autor], 'idéia' (que significa originariamente 'forma visível'), 'evidência', 'teoria', perspectiva', 'ponto-de-vista', visão de mundo', 'enfoque', etc." (Pessanha, 1994, p. 15).

Esse "vício de ocularidade" subordinou, tradicionalmente, a imaginação à modalidade de imaginação formal e menosprezou a imaginação material, a última ligada aos quatro elementos do cosmos - terra, fogo, água e ar. A cada um desses elementos Bachelard dedica uma obra, que, no âmbito poético, a partir de imagens poéticas, mostra como cada um desses elementos provoca e suscita o homem.

(...) a imaginação formal, que nutre a formalização, resulta de uma operação desmaterializadora, que intencionalmente 'sutiliza' a matéria ao torná-la apenas objeto de visão, ao vê-la [itálico do autor] apenas enquanto figuração, formas e feixes de relações entre formas e grandezas, como fantasmática incorpórea, clarificada mas intangível. E é, na verdade, resultado da postura do homem como mero espectador do mundo, do mundo-teatro, do mundo-espetáculo, do mundo-panorama, exposto à contemplação ociosa e passiva.

Já a imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem: do homem-demiurgo, artesão, manipulador, criador, fenomenotécnico, obreiro - tanto na ciência como na arte. (Pessanha, 1994, p. 15).

A imaginação formal é própria do pensamento abstrato, racional, do formalismo. O que Bachelard remonta ao considerar a imaginação material é a dimensão da imaginação articulada à vontade - para ele, as duas grandes funções psíquicas. A água, o fogo, a terra e o ar são dimensões materiais que só podem ser apreendidas no seu ser por meio da imaginação poética em que vem à tona em sua materialidade. Os conceitos desses elementos nada acrescentam sobre o que eles têm de fundamental; só contribuem para uma formulação científica. O que eles têm de fundamental tem a ver com nossas possibilidades humanas de ser junto às coisas. Assim, um estudo sobre imaginação material pode-nos trazer, por meio da singularidade que cada imagem poética suscita, modalidades de elementos da natureza que dizem respeito à singularidade de nossas próprias vivências e de nossas possibilidades de ser. Na seguinte imagem de Bachelard, a água revela-se como elemento que acolhe o desespero, elemento em que o desespero pode encontrar seu repouso, sua morte.

A água fechada acolhe a morte em seu seio. A água torna a morte elementar. A água morre com o morto em sua substância. A água é então um nada substancial. Não se pode ir mais longe no desespero. Para certas almas, a água é a matéria do desespero.[itálicos do autor]. (Bachelard, 2002, p. 95).

A fundamentação da imagem poética nos elementos materiais marca, conforme mostramos até aqui, a materialidade da imagem; mostra que a imaginação acontece materialmente, que a imaginação não pode ser abstração pura. Sua materialidade pode envolver a articulação de mais de um elemento. Por exemplo, em imagens da argila, a água é misturada ao elemento predominante terra. Graças a essa mistura, a terra ganha maleabilidade, torna-se massa. Essa massa provoca o artesão a lhe dar forma. São as mãos que são chamadas a sonhar pela matéria. Em outra mistura de água e terra, o lodo, a água predomina. A mistura da terra ao lodo gera viscosidade. Em imagens de lodo, são os pés do sonhador que são provocados pela matéria; são chamados a vencer a força da terra que o prende; trata-se de um jogo de forças entre o caminhante que quer passar e a terra que o prende.

Marcado o aspecto fundamental da materialidade da imaginação (preocupação central das obras A psicanálise do fogo, A terra e os devaneios da vontade, A terra e os devaneios do repouso, A água e os sonhos, e O ar e os sonhos), Bachelard vai mais além, passa a explorar os aspectos de sua originalidade, da especificidade, da inutilidade de uma busca de explicações causais para as imagens poéticas. Isso se consuma a partir de A poética do espaço, obra que o autor inicia com a seguinte colocação:

Um filósofo que formou todo o seu pensamento atendo-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências, que seguiu o mais exatamente possível a linha do racionalismo ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer o seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os problemas propostos pela imaginação poética. Aqui o passado cultural não conta; o longo trabalho de relacionar e construir pensamentos, trabalho de semanas e meses, é ineficaz. É necessário estar presente à imagem no minuto da imagem: se há uma filosofia da poesia, ela deve nascer na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem. (Bachelard, 2000, p. 1).

Para Bachelard, o ato poético não tem passado. Embora a imagem poética se situe em diversos contextos, como o social, o político, o histórico, e embora ela tenha dimensão causal, não é nem pela sua contextualização nem pela sua causalidade que podemos apreendê-la em seu ser. Ela não é consequência da cultura, da percepção, de um estilo, nem mesmo de um estado psicológico do poeta. Para acolher a imagem poética, é preciso permitir que ela nos fale, que ela nos tome por inteiro, que sintamos que poderíamos tê-la criado, que ela fala por nós. Doutrinas causalistas não podem alcançar essa ontologia do poético. "Por princípio, a fenomenologia liquida um passado e encara a novidade". (Bachelard, 2000, p.16). E é com essa intenção de procurar apreender a imagem nela mesma, no que ela diz por ela, no modo como o leitor pode colocá-la em sua atualidade, no modo como pode apropriar-se dela, que Bachelard caracteriza sua reflexão como fenomenológica.

Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a mesma emerge na consciência como o produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade. (Bachelard, 2000, p.2).

Bachelard adota duas concepções que nos ajudam a compreender as dinâmicas da imaginação poética. Na primeira ele retoma da filosofia alemã dois termos - der Geist e die Seele - cuja tradução é, respectivamente, alma e espírito. Esses termos, em línguas latinas, não têm grande distinção e estão ligados a noções espiritualistas. Bachelard dá outro sentido aos termos, sem estabelecer entre eles um par dualístico em que um se coloca em oposição ao outro, mas distingue duas possibilidades de ser, articuladas. Para ele, alma diz respeito à sensibilidade própria para o que vem ao nosso encontro, já espírito tem a ver com a elaboração, a evidenciação de um trabalho. No caso da imaginação poética, é a alma que sonha, é ela a tocada. O espírito estrutura o devaneio da alma, inaugurando sua forma ao torná-la literária.

'A poesia é uma alma inaugurando uma forma'. A alma inaugura. Ela é aqui potência inicial. É dignidade humana mesmo que a 'forma' fosse conhecida, percebida, talhada em 'lugares-comuns', antes da luz poética interior ela seria um simples objeto para o espírito. Mas a alma vem inaugurar a forma, habitá-la, comprazer-se nela. (Bachelard, 2000, p. 6).

Na outra concepção trata-se do par repercussão-ressonância. O autor caracteriza a partir desse par os modos como lidamos com a imagem poética que lemos. A ressonância, própria do espírito, vem depois. Ela pode tanto dar um sentido à repercussão (própria da alma) como situar o poema nos seus inúmeros contextos - na ressonância (própria do espírito).

As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso.

A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso ser. A multiplicidade das ressonâncias sai então da unidade do ser da repercussão. (Bachelard, 2000, p.7).

O autor limita sua pesquisa à imagem poética em sua origem, a partir da "imaginação pura"; faz um estudo da repercussão poética. Para ele, a poesia é criação absoluta. As imagens têm significação poética, e não passional, psicanalítica ou psicológica. Reduzi-las a explicações destas ordens seria trair seu significado original. As coisas nos falam. Se dermos valor a essa linguagem, teremos um contato com as coisas. O devaneio poético é a revelação do mundo tal como ele é. E o mundo não é apenas aquilo que tem realidade concreta, palpável, o aspecto objetivável; vivemos também a partir de nossas possibilidades ainda não vividas, as quais constituem nosso mundo. Imaginar é viver o possível, o que não se deu, mas pode-se dar. Por isso o autor afirma sobre seu estudo: "(...) trata-se de passar, fenomenologicamente para imagens não-vividas, para imagens que a vida não prepara e que o poeta cria. Trata-se de viver o não-vivido e abrir-se para uma abertura de linguagem" (Bachelard, 2000, p.14).

Aliás, antes de passarmos a refletir diretamente sobre algumas imagens poéticas elaboradas ou analisadas por Bachelard, acreditamos que vale uma consideração a respeito do modo como o filósofo as articula com a linguagem. Para ele, a imagem poética "(...) é uma emergência de linguagem, está sempre um pouco acima da linguagem significante" (Bachelard, 2000, p.11) ou ainda, "(...) a poesia põe a linguagem em estado de emergência" (Bachelard, 2000, p.11). A vida de uma língua se renova com a emergência de uma imagem poética nova. A originalidade essencial da imagem poética é um fenômeno do "ser falante". A imprevisibilidade da linguagem é recuperada com a imagem poética. Os aspectos instrumentais e conceituais da linguagem são construções racionais somente possíveis a partir do que a linguagem é fundamentalmente; a linguagem não se limita a esses aspectos. Fundamentalmente, como aquilo que concede ser às coisas, a linguagem é imprevisível como a imagem poética evidencia. A significatividade infindável de nosso mundo torna-se possível com a expressão poética. A palavra no seu sentido próprio é expressão do novo. A palavra não é o meio de comunicação, ela é a própria comunicação. A poesia busca esse sentido próprio da palavra.

Passemos, agora, à análise de algumas imagens poéticas trabalhadas por Bachelard.

Não tivemos aqui a intenção de classificar as imagens poéticas em temas, o que iria contra a natureza do trabalho do autor que procuramos caracterizar. Trazer imagens que Bachelard utiliza e seus comentários e fazer uma reflexão baseada nelas significa que pretendemos mostrar a riqueza das mesmas para expressar as vivências humanas e seus significados. Assim sendo, escolhemos quatro imagens, como uma pequena "amostra" da diversidade da expressão poética. As duas primeiras, imagens da cabana, falam do habitar, trazem diferentes aspectos da mesma, diferentes aspectos do habitar. A cabana, para o autor, é uma imagem que expressa diretamente a habitação da casa, como se fosse uma "síntese do habitar". Em outras imagens, mais presentes em A terra e os devaneios do repouso e em A poética do espaço, Bachelard explora aspectos mais específicos que cada ambiente da casa, como os quartos - imagens da intimidade -, o sótão - espaço dos nossos devaneios, dos nossos sonhos voltados para o alto - e o porão - lugar onde guardamos nosso passado, onde enraizamos nossa habitação no mundo.

A Cabana é o centro de um universo. Toma-se posse do universo ao se tornar dono da casa.

Por toda parte da vastidão que há entre céu e terra, eu tomo posse, em teu nome desta casa; o espaço que serve de medida à imensidão indistinta, transforma-o, para mim, num ventre inesgotável, em tesouros, e em nome dele eu tomo posse da Cabana... (Bachelard, 1990, p.92).

Esse hino do Atharva-Veda (apresentado por Bachelard) mostra a cosmicidade da casa, que, ao mesmo tempo nos abriga e nos abre para o cosmos. Em nossa sociedade contemporânea capitalista, a casa tornou-se mais um objeto entre outros, adquiriu valores quase exclusivamente imobiliários, um objeto de morar, com tantos cômodos dispostos de tal maneira, localizada em determinado bairro com tais facilidades, o que resulta em certo valor monetário. No entanto, a casa, em seu valor humano fundamental, afirma nossa existência no mundo, dá-nos um lugar no mundo, é o centro do nosso universo, é o centro do universo. A imagem da cabana nos leva, logo de início, para longe de qualquer concepção imobiliária da casa. Tomamos posse do universo e não de um imóvel ao habitarmos a cabana. Colocando-nos assim no mundo, este realmente me pertence; ao mesmo tempo, pertenço a ele. Eis "os tesouros" de que fala o hino.

Na seguinte imagem não só comentada mas também construída por Bachelard, a cabana revela seus valores de solidão. Solidão que é refúgio, mas não isolamento. Refúgio dos apelos que o mundo faz a se buscar riquezas "deste mundo", ou seja, poder autoritário, status, e tudo que está ao alcance do dinheiro. A riqueza da cabana é uma riqueza da ordem do poder ser.

A cabana do eremita, eis uma gravura-prínceps! As verdadeiras imagens são gravuras (...). A cabana do eremita é um tema que dispensa variações. A partir da mais simples evocação, a 'repercussão fenomenológica' apaga as ressonâncias medíocres. A cabana do eremita é uma gravura que sofreria de um excesso de pitoresco. Deve receber sua verdade da intensidade de sua essência, a essência do verbo habitar. Logo a cabana é solidão centralizada. Na terra das lendas não há cabana média. O geógrafo pode bem trazer-nos, de suas longínquas viagens, fotografias de aldeias de cabanas. Nosso passado de lendas transcende tudo o que foi visto, tudo o que vivemos pessoalmente. A imagem nos conduz. Vamos à solidão extrema. O eremita está [itálicos do autor] diante de Deus. A cabana do eremita é o antitipo do mosteiro. Em torno dessa solidão centrada irradia um universo que medita e ora, um universo fora do universo. A cabana não pode receber a menor riqueza "deste mundo". Tem uma feliz intensidade de pobreza. A cabana do eremita é uma glória da pobreza. De despojamento em despojamento, ela dá acesso ao absoluto do refúgio. (Bachelard, 2000, p. 49).

A solidão do eremita é a solidão de quem "está só diante de Deus", de quem busca a felicidade nessa solidão. Não é a solidão de quem se afastou do mundo e dos outros por desgosto, por amargura, por não mais acreditar na vida; em suma, não é uma desistência. Em muitos momentos de nossa vida, principalmente quando nos sentimos pressionados pelo mundo, quando sentimos que não podemos e ou não queremos atender às suas solicitações, procuramos a cabana do eremita. Nela entramos para meditar, para orar, para reencontrar as nossas forças que nos ligam ao mundo. Corajosamente, admitindo nossa impotência, nos colocamos nus e sós diante de Deus procurando receber d'Ele o reconhecimento de nossa condição humana, a validação de nossa existência.

Passemos, agora, a uma imagem de Aurora Sand em que as bétulas voam em direção ao vulcão, queimam-se e morrem.

'Por que não tenho os olhos de uma formiga para admirar essa bétula abrasada? Com que transportes de cega alegria e de frenesi brancas aí se precipitam! Eis, para elas, o vulcão em toda a sua majestade! Eis o espetáculo de um imenso incêndio. Essa luz deslumbrante as embriaga e as exalta, como faria comigo a visão de toda a floresta incendiada' O amor, a morte e o fogo são unidos por um instante. Por seu sacrifício no coração das chamas, a falena nos dá uma lição de eternidade. A morte total e sem vestígios é a garantia de que partimos para o além. Tudo a perder para tudo ganhar. (Bachelard , 2008, p.27).

O fogo, nessa imagem, mostra-se sob o aspecto de poder de consumação total. Mas a imagem não se encerra aí, ela não traz somente a marca do fogo; através do fogo é que o sonhador pode sonhar com uma morte com absoluta plenitude, sem pendências, sem dívidas. Como poderíamos pensar em tal morte, em alcançar tamanha leveza, como atingir o ar, como chegar aos céus sem antes termos sido completamente consumidos? O amor e a morte, como muito bem coloca Bachelard, são unidos ao fogo neste instante. A poética do fogo permite o sonho com uma morte plena.

Antes de passarmos para a próxima seção, em que discutimos questões referentes à psicoterapia, analisamos uma imagem que, para nós, diz muito a respeito da escuta terapêutica. Trata-se da imagem do Pequeno Polegar, personagem que, de tão pequeno, é capaz de furar um grãozinho de areia com a cabeça.

(...) o Polegar instalado na orelha do cavalo domina as forças que puxam o arado.

Naturalmente, na orelha do cavalo, o Polegar diz ao animal hue et dia. Ele é o centro de decisão [itálicos do autor] que os devaneios de nossa vontade nos levam a constituir num pequeno espaço. Dizíamos mais acima que o minúsculo é a morada da grandeza.

Quando o Polegar falou, o cavalo, o arado e o homem tiveram de obedecer-lhe. Quanto melhor esses três seres subalternos obedecerem, mais reto será o sulco.

(...) O Polegar instalou-se na orelha do cavalo para falar baixo, ou seja, para comandar com força, com uma voz que ninguém ouve a não ser aquele que deve "escutar". (Bachelard, 2000, p. 172-173).

Numa leitura apressada, poder-se-ia objetar como uma imagem de obediência e subordinação poderia ser, como afirmamos acima, significativa para expressar a escuta terapêutica, afinal o cavalo e o homem, como bem enfatiza Bachelard (2000), "obedecem" ao Pequeno Polegar. A psicoterapia, por sua vez, constitui um espaço em que as pessoas se podem apropriar de suas experiências, de suas possibilidades de ser e de suas escolhas, de um modo mais próprio de ser, portanto, incompatível com a obediência a um comando de outro, à decisão que o outro possa tomar por elas. Mas, tomada com mais atenção, a imagem mostra que não se trata de servilidade. O Pequeno Polegar não é um patrão, não é um fazendeiro, não explora o trabalho do homem nem do cavalo; ele não se beneficia desse trabalho. Na verdade, o homem se põe a arar a terra e o Polegar simplesmente se presta a ajudar nessa tarefa. Ele fala, na "miniatura do som", aquilo que somente quem deve escutar escuta. Fala intimamente. Ele facilita o trabalho do homem que se põe a arar, a trabalhar a terra para que ela lhe devolva os alimentos que o nutrem. Ele ajuda o homem a se ligar ao seu mundo por seu trabalho na terra.

Na terapia, acreditamos que o terapeuta deva escutar poeticamente, ou seja, ele deve acolher a fala do cliente na dimensão da evidenciação, e não da explicação. Ele não deve procurar causas e efeitos nem submeter a experiência do cliente a um corpo racional preestabelecido, mas receber a fala nela mesma, do mesmo modo que Bachelard propõe que recebamos uma imagem poética. É nesse sentido que consideramos o estudo realizado pelo autor de riquíssima importância à prática clínica psicológica. Além de nos ensinar como nos colocarmos diante do cliente, a cada imagem poética, aprendemos um pouco mais sobre as infindáveis possibilidades de expressão humana. Colocando-se e escutando poeticamente, o psicólogo pode falar na "miniatura do som", pode falar aquilo que somente o cliente precisa ouvir para conduzir o trabalho que lhe faz sentido conduzir em direção aos seus sonhos, àquilo que lhe é próprio, que lhe é íntimo. É assim que "o minúsculo é a morada da grandeza", que uma fala baixinha, de dentro do ouvido, é capaz de mobilizar as forças mais enraizantes da pessoa, forças que a ligam fortemente ao mundo e, ao mesmo tempo às forças que expandem, que ligam a terra ao céu, para onde o Pequeno Polegar conduz ao final do conto. "Para Gaston Paris, a chave da lenda do Pequeno Polegar está no céu: é o Polegar que conduz a constelação do Grande Carro (Ursa Maior)." (Bachelard, 2000, p.173).

 

A Poética como Via de Linguagem na Psicoterapia

Sá (2002a, 2002b) caracteriza a psicoterapia como uma modalidade de prática clínica na qual são explicitados verbalmente idéias e sentimentos. O mesmo autor comenta que, além disso, é fundamental estar presente sempre algum grau de apropriação temática do conteúdo explicitado. Colocado desta forma o "falar de si", ao evitar o "falatório impessoal" deve-se dispor a uma atitude de suspensão (epochè), no interior da qual deve ser possível a diferenciação entre as coisas de fato da experiência e a experiência que temos dela. Refletindo sobre as relações entre teoria e prática neste campo, pensamos como Figueiredo (1996) que é preciso que a teoria, agindo em silêncio, crie a condição inicial para a escuta do novo, estabelecendo assim uma área de atrito na qual a prática sendo um desafio à teoria, provoque relações dialéticas entre ambas. Fazendo um recorte no amplo campo da clínica, pretendemos contribuir, a partir das questões que traz a linguagem poética à clínica fenomenológica existencial. Acreditamos que assim estamos aceitando a provocação que a prática lança à teoria, conforme tem demonstrado exaustivamente nossa experiência clínica. Sendo assim, a reflexão de Pompéia e Sapienza (2004, 2011) se mostrou adequada aos nossos objetivos, já que os autores também focam a linguagem poética na psicoterapia.

A princípio, alguns pontos merecem esclarecimento, no que diz respeito à psicoterapia por constituírem crenças equivocadas frequentes. O primeiro diz respeito à idéia bastante corrente no senso comum de que a terapia é um espaço de correção de conduta. Caberia ao terapeuta, segundo essa concepção equivocada, orientar as pessoas a agirem de acordo com preceitos morais, para se adaptarem ao convívio social.

A psicoterapia, entretanto não é um recurso de repressão social destinado a corrigir as pessoas que estão erradas, que se julgam erradas por qualquer tipo de grupo. O que temos a dizer diante desse mal-entendido é que a terapia é um recurso para quem está com grande dificuldade, arcando o peso de uma situação; alguém que de alguma maneira está 'pagando o pato', não importa se a situação foi motivada por ele mesmo ou por outros. (Pompéia e Sapienza, 2004, p. 154).

O segundo tipo de equívoco, frequente também entre leigos e terapeutas, é a crença de que o psicólogo é aquele que sabe. Seu saber o tornaria capacitado a orientar as pessoas a se adaptarem às normas e regras sociais e a apresentar soluções para as situações difíceis vivenciadas pelos clientes. Mas, na verdade, o terapeuta é "aquele que não sabe". Nessa perspectiva, não se nega nem se desmerece o conhecimento psicológico na atuação clínica, mas considera-se que o processo de aquisição desse conhecimento se constitui na ocasião de "aprender a aprender", e não no acúmulo de um saber que permita classificar e normatizar o relato do cliente.

O que caracteriza afinal a psicoterapia? É a procura. Pró-cura quer dizer "para cuidar" - "cura" em latim tem o significado de "cuidar". Portanto, não se procura algo que seria encontrado no final do processo psicoterápico, mas a procura é "(...) algo que se dá passo a passo, através do modo como ela se realiza. Esse modo constitui o próprio acesso ao 'o quê se procura" (Pompéia e Sapienza, 2004, p.156).

Tendo caracterizado o modo de procura como modalidade de atuação psicológica, passemos, agora, a pensar no modo como a terapia se dá, o que diz respeito fundamentalmente à sua linguagem. Seria essa linguagem racional (ou intelectual)? Pensemos no caso de um cliente que se sente apavorado ao falar em público. Ele sabe que não há razão para se sentir ameaçado. Em geral, o próprio cliente é crítico de suas dificuldades, pode conceber explicações racionais plausíveis a elas, mas isso o não impede de sentir essas dificuldades. Nesse sentido, a "(...) verdade racional é impotente diante das dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicularizar a razão". (Pompéia e Sapienza, 2004, p. 157)

Não sendo a via racional, por qual via a linguagem da psicoterapia caminha? O diálogo entre paciente e terapeuta acontece na via da poiesis. O termo de origem grega é explicitado no seguinte trecho de Platão (trad. 1999) que diz que poesia

(...) é um conceito múltiplo. Em geral, se denomina criação ou poesia a tudo que passa da não existência para à existência. Poesia são as criações que se fazem em todas as artes. Dá-se o nome de poeta ao artífice que realiza essas criações.

Segundo Pompéia e Sapienza (2004, p.158), poeisis "(...) é um levar à luz, é trazer algo para a desocultação". A linguagem da razão ou do conhecimento também leva algo para a desocultação, no entanto somente o faz na âmbito da explicação, âmbito no qual duas pessoas que acompanhem dada explicação devem chegar à mesma conclusão e concordarem uma com a outra. No âmbito poético, a pessoa com quem me comunico não deve necessariamente concordar ou não comigo, não há nenhuma expectativa nem sentido para isso. Na via da poiesis o outro pode me compreender ou não. A linguagem poética

(...) pode aparecer na poesia propriamente dita, num texto em prosa, num diálogo ou mesmo numa piada engraçada. A piada não é para ser explicada. Propomos também que a terapia acontece basicamente na via da poiesis. A linguagem da terapia é poética. (Pompéia e Sapienza, 2004, p.158).

Na via poética, quando comunico uma experiência a alguém, posso ser ou não compreendido. Se não sou compreendido, posso sentir-me exposto ou, até mesmo, ridicularizado. Se sou compreendido, sinto que minha experiência é validada; sinto-me não só muito próximo do outro com quem me comunico como também muito próximo da experiência que tive, aproprio-me dela. Sentimos o quanto precisamos não da aprovação, mas da compreensão e da disponibilidade do outro. É nesse sentido que o terapeuta atua na compreensão do cliente.

Dando continuidade à nossa reflexão, seguindo a concepção de Pompéia e Sapienza (2004), chegamos ao ponto de afirmar que a psicoterapia é procura via linguagem poética. Podemos ir mais além e perguntar o que procuramos na psicoterapia, não no sentido de um processo com final planejável, como ressaltamos anteriormente, mas como nossa forma de cuidado. Procuramos verdade. Verdade vem do latim, veritas, que quer dizer verificável, o que nos remete a certeza no âmbito da explicação e do conhecimento. Por isso, o termo aletheia, "verdade" em grego, nos é mais próximo da verdade procurada na terapia. "Aletheia é formada por um prefixo de negação (a) e por um radical (lethe), que significa esquecimento. Aletheia pode ser o não esquecido." (Pompéia & Sapienza, 2004, 160).

Para nos aproximar de aletheia, podemos recorrer poeticamente a um termo originário do latim, "recordar", cujo radical etimológico é cor-cordis, que significa "coração". Recordar não é simplesmente trazer novamente à luz algo que estava esquecido, mas quer dizer colocar o coração de novo. Assim, chegamos a aletheia como verdade: "(...) não meramente o não esquecido - mas aquilo em que se pode pôr de novo o coração." (Pompéia e Sapienza, 2004, p.161).

Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente daquelas coisas que já nos foram caras, que já foram coisas do coração, mas que perderam esse vínculo em função de dificuldades de comunicação, tornando-se desgastadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura através da linguagem poética [negrito do autor], podemos reencontrá-las. Quando isto acontece, encontramos uma verdade. (Pompéia e Sapienza, 2004, p.161).

Uma verdade assim encontrada jamais é relativa como é a verdade encontrada mediante a linguagem do conhecimento, da verificabilidade. A verdade do coração nos diz respeito, é nossa, pertence-nos, é-nos íntima demais; por isso não pode ser relativizada. Enquanto a verdade como veritas diz respeito a um contexto cultural, social e específico de dada época e de determinado povo, a verdade recordada situa-se na nossa própria existência, no modo como nos situamos no mundo. Ela nos envolve, dela participamos; dela temos uma vivência plena e absoluta.

Existe ainda outro aspecto fundamental da verdade: ela liberta.

Nos mitos, a verdade revelada pela divindade tinha o caráter de libertar o homem do jugo de sua identidade com o restante da criação. Na história de Édipo, a cidade de Tebas encontra-se escravizada pela Esfinge, que só a libertará no momento em que alguém puder desvendar seu enigma. Quando ele consegue, por trás do enunciado obscuro, reconhecer a verdade e responder ao enigma, a Esfinge se mata e liberta Tebas. (Pompéia e Sapienza, 2004, p.162).

Na psicoterapia, a verdade liberta o cliente de sua situação dificultosa - neurose, sentimento de angústia, ansiedade, culpa. A verdade encontrada pode recolocar o cliente novamente em situação de liberdade , perdida pela sua dificuldade. Até aqui, podemos dizer que "terapia é a procura, via poiesis da verdade que liberta" (Pompéia e Sapienza, 2004, p.162).

A liberdade, embora pareça, a princípio, uma conquista absoluta, pode incomodar. As pessoas, muitas vezes, passam tanto tempo para conseguir se libertarem de algo que, quando conseguem, sentem um incômodo, um vazio, pois nem sempre surge um sentido claro ao qual elas se sentem chamadas, convocadas, motivadas a se dedicarem. Isso ocorre, com frequência na morte de um sonho - compreendido como aquilo que "ainda não é".

Diferentemente dos animais, o homem é movido por aquilo que ainda não é. O que ainda não é é expectativa, projeto, imagem, sonho; mesmo que nunca venha a ser, que permaneça como pura possibilidade, esse ainda não é é exatamente o que permite a possibilidade de ser (se já fosse não seria possibilidade). A força maior dessa perspectiva de futuro pode vir desse ainda não [itálicos do autor]. (Pompéia e Sapienza, 2004, p.18).

Os sonhos, no entanto, morrem, e, quando isso acontece, ficamos provisoriamente sem um sentido ao qual nos dediquemos; nossa vida fica sem sentido. Não achamos graça nas coisas ao nosso redor. Até mesmo a disponibilidade, a preocupação, o cuidado dos outros para conosco nos fazem sentir mais sós e vazios, pois estão, nesse momento, desarticulados de sentido. Um sonho nos pode ser tão caro, ao ponto de a ele vincularmos nossa dignidade de viver; quando ele morre, morre a nossa dignidade de viver.

Entretanto, quando descobrimos que apenas os sonhos morrem, mas nossa possibilidade de sonhar permanece, damo-nos o direito de sonhar novamente; aí outro sentido pode estabelecer-se. Damos abertura para encontrar novo sentido e podemos habitar novo sonho.

Aqui vale mais uma breve ressalva sobre o habitar.

Sabemos que somos frágeis; por isso, precisamos de um lugar para morar. Isso vai além da concretude do lugar, queremos habitar "em-casa". Mas a necessidade de habitar ainda vai mais longe. Dotados de linguagem, percebendo significados, e capazes de sonhar o precisar "estar-em-casa" tem uma amplitude maior. Precisamos habitar no sentido das coisas, habitar nossos sonhos, que são os grandes articuladores de sentido. (Pompéia e Sapienza, 2004, p.167).

A morte de um sonho é tão dolorosa, que, muitas vezes, nos apegamos a um sonho que já se mostrou impossível de ser vivenciado, mas insistimos em defendê-lo, privando-nos de vivenciar outras possibilidades. Trata-se da experiência de um aprisionamento terrível.

Nós, seres humanos, somos destinados a nos desenvolvermos não no sentido de um desenvolvimento por etapas previsíveis e sucessivas, mas no sentido de "des-envolver", de ir além de algo que nos envolva por aprisionamento; no sentido de "des-cobrirmos" o mundo, sendo-no-mundo. Temos no nosso horizonte uma gama infinita de possibilidades de ser. Por isso somos destinados a nos desenvolvermos. O destino também não é aqui compreendido no seu sentido usual, como um futuro predeterminado ou estabelecido por causalidade, que, uma vez conhecida, possamos por meio dela prevê-lo; destino nesta reflexão significa destinar-se. Tal significado aproxima-se mais do destino para o qual se destina o passageiro quando pega um transporte com destino a determinado dado lugar. "Dessa forma, também somos destinados a nos desenvolver na direção do horizonte para o qual caminhamos" (Pompéia e Sapienza, 2004, p.169). Embora sejamos destinados, podemos nos perder. Por isso, é preciso cuidado. Retomamos assim, assim, à "pro-cura" da terapia, a terapia como um "para cuidar".

Se um sonho morre, não conseguimos habitar no sentido, estamos sem casa. Também estamos perdidos quando não sabemos o que fazer com nossa liberdade. Estamos perdidos, pois não conseguimos nos apropriar de nosso destino. Sentimo-nos literalmente sem rumo. "Estamos chegando a poder dizer que a terapia é a procura via poiesis, pela liberdade que liberta para a dedicação ao sentido" (Pompéia e Sapíenza, 2004, p. 169). Quando estamos perdidos, podemos re-encontrar, através da "pro-cura", via linguagem poética, aquela verdade do coração (recordação), não a de um sonho específico que morreu e cuja morte desarticulou o sentido que vínhamos vivendo, mas a nossa própria possibilidade e acima de tudo o nosso próprio direito de sonhar.

Apresentaremos em seguida uma série de recortes de casos clínicos que embora ficcionais são perfeitamente verossímeis - recurso utilizado por Sá (2009) -, uma vez que se baseiam em nossa experiência no atendimento de populações de baixa e média renda em instituições ligadas à saúde pública.

Certa vez uma jovem relatou que em sua casa as pessoas não conversavam, deixavam os problemas no ar, evitando magoar uns aos outros, mas tornando a atmosfera extremamente pesada. Enquanto ela ia me contando, eu imaginava de certa forma a casa, a expressão das pessoas, sentia o ambiente. Ninguém fala na casa, cada um fecha-se em seu canto. O silêncio oprime, sufoca. As paredes do quarto não preservam a intimidade. Por elas os fantasmas do não-dito atravessam livremente. Suporta-se a dimensão não dada, o sofrimento sem nome, em nome de não magoar, pactuando em silêncio. Tudo pode ser ao mesmo tempo, carregando consigo as mais diversas inquietações... e ao mesmo tempo, não é. A palavra falta.

Devolvo para minha cliente a imagem enquanto foi se formando em mim. Imediatamente, ela que tinha tanta dificuldade em se comunicar, com o rosto iluminado me responde: "Agora já posso falar, não preciso mais ter medo das palavras". A afetação mútua e a possibilidade de compreensão, da cliente e terapeuta, se devem em parte à imagem da casa, que oferece ao homem

(...) a segurança da restauração, a segurança do repouso, que não são estados privilegiados e típicos de individualidade, de enclausuramento de cada homem. Fazem parte, sim, dessa individualidade, mas são um dos momentos em que o próprio do homem é cultivado e este momento, em que a intimidade é reencontrada no interior de uma casa, confere ao homem confiança e disponibilidade para ele ser sensível aos apelos do mundo. Sim, porque só um homem feliz na sua intimidade reencontrada, pode sair de casa e ir a encontro daquilo que há no mundo"(Dichtchkenian, 2011, p.3).

A casa, para Bachelard (2000) é o elemento que articula e conjuga a intimidade com o mundo. Portanto se trata igualmente de um abrir-se para o encontro com o terapeuta e com o espaço clínico que permitem a experiência de cultivar sua intimidade. Esta experiência não é simplesmente um mero registro das possibilidades vividas, mas o testemunho de sua autoria, de um dar-se conta de sua solidão e de se responsabilizar por sua própria existência. Neste sentido a imagem liberta para a dedicação a novas possibilidades.

Passando agora para outro caso, um paciente se queixava de cansaço e de uma sensação de que não estava fazendo progressos em sua vida. Afirmava mesmo que se sentia muito pior que algum tempo atrás, quando se sentindo "distante da vida", observava os acontecimentos com leveza e de forma morna. Agora tudo lhe parecia mais sufocante, úmido e pesado. Tinha vivido até então sem quaisquer implicações com fatos e pessoas. Nunca se arriscava a conquistar aquilo pelo que realmente se interessava. Tendo se apaixonado pela primeira vez e sendo correspondido, sente o mundo inteiramente transformado. Entretanto, sua companheira tendo alcançado um cargo importante na firma onde trabalhava é transferida para outro estado sem previsão de volta, o que interrompe o romance. Ao mesmo tempo, é demitido de seu emprego por ter se colocado de maneira crítica à filosofia da empresa, fato que nunca tinha acontecido antes em sua vida.

Neste momento a sua sensação de peso lhe vai se tornando ainda mais insuportável. Ao ouvir seu relato imediatamente me vem a imagem de alguém que carrega montanha acima um grande feixe de lenha. Comunicado minha imagem com cuidado, ao que recebo como resposta: "Engraçado, eu que não assumia nada me vejo obrigado a carregar tamanho peso". Ao que retruco: "Carregar peso é o que dá força". Imediatamente recebo como resposta "Realmente, se carrego tal peso é porque estou mais forte". O cliente então passa a comentar sobre a possibilidade da lenha que carrega poder aquecer a ele e outras pessoas que porventura estejam próximas no inverno. Finalmente, compreende que carregar este peso não é "não fazer nada", como a princípio lhe pareceu. "Não fazer nada era ficar na sombra" conclui. Agora "carrego o MEU peso". Nesse momento, fica claro para ele que ao assumir as possibilidades que antes recusava, estas podem ser penosas, mas suportáveis uma vez que experimentadas como dele. O peso é assumir a responsabilidade pela própria existência.

Esse último caso se trata de uma jovem que me procura após ter passado por diversos psicólogos e psiquiatras sem ter conseguido dar sequencia a nenhum dos tratamentos que havia iniciado. Em todas as suas tentativas, vinha com a mesma queixa: Tinha muito medo de se ferir dormindo. Seus principais temores eram furar seus olhos e perder sua virgindade com a entrada de um besouro em sua vagina - como havia visto em seriado de televisão. Ela relatou que os profissionais que a atenderam anteriormente lhe haviam assegurado que durante o sono as funções motoras ficam muito reduzidas o que impossibilitava que ela se cegasse por acidente. Quanto ao besouro, afirmavam que não tinham conhecimento de nenhum caso semelhante ou até considerando tal hipótese discutiam com ela se isso lhe tiraria realmente a virgindade. Apesar de muitos atendimentos, ela permanecia com esses medos que lhe impediam de dormir bem. Relata que um dos profissionais, quando ela lhe perguntou se ele achava que era bobagem, disse que não, que se deveria respeitar muito quem tem esse tipo de pensamento, que isso deveria ser cuidado.

Quando ouço sua preocupação, no nosso primeiro encontro, rio de forma bem espontânea e digo: "Então você terá que dormir com uma armadura para o resto de sua vida, hein!". A paciente tem um intenso ataque de riso, chega a lacrimejar; depois suspira fundo, bem aliviada. Começa a trazer diversas questões de sua vida que estavam lhe incomodando, que lhe deixavam insegura, de diversas escolhas que teria que fazer e que teriam implicações para outras pessoas de quem gostava. A partir deste momento, criamos um vínculo muito forte de confiança, e ela passou a vir com assiduidade aos encontros e nunca mais falou sobre o medo de se ferir durante o sono, passando a tratar de outras questões.

Nesse caso, a abordagem dada à queixa, ao fugir da racionalidade, permitiu outros modos de expressão que aproximaram terapeuta e cliente. Isto não significa que ela tivesse dificuldade em compreender as explicações racionais dadas anteriormente, mas quando sua queixa é levada para um tom de bom humor, e lhe é oferecida uma imagem do absurdo evidente - inclusive para ela - da queixa, ela sente abertura e confiança para colocar as questões que realmente lhe incomodavam.

Concluindo nossas considerações sobre as ilustrações clínicas, pensamos como Sá (2007): "A conseqüência desses movimentos experienciais é uma flexibilização das significações enrijecidas, antes tomadas como naturais e simplesmente dadas, ou seja, uma ampliação no horizonte de possibilidades de sentido do que nos vem ao encontro no mundo, um aumento da liberdade de correspondência à vida."

 

Considerações Finais

Acreditamos que a poética não é simplesmente uma forma de expressão, uma modalidade de linguagem como outra qualquer. Partindo da concepção de linguagem de que a palavra concede ser às coisas, a poesia apresenta-se como modalidade linguística que consolida o sonho e a liberdade humana que se estão pouco valorizados no nosso mundo contemporâneo capitalista e consumista.

A poética é modalidade de linguagem capaz de poder significar e dar sentido às nossas experiências e vivências; permite aprofundamento em nós mesmos. Permite que ao aprofundarmos em nós mesmos - o que sempre ocorre na perspectiva de ser-no-mundo, e não nos isolando do mundo, como, à primeira vista, pode parecer -, possamos sentir, com mais clareza, o que nos toca, como somos tocados pelo mundo, o que nos sensibiliza e nos motiva pelo que achamos que vale a pena lutar.

A psicoterapia constitui-se como proposta de esclarecer o modo como cada um se coloca no mundo, é por ele afetado, afina-se com ele, vê e o compreende, sendo nele. Ela procura desvelar às pessoas as possibilidades de ser que elas têm para que façam as escolhas mais apropriadas, aquelas que realmente lhes façam sentido.

Por meio dessa reflexão, propomos que a disposição afetiva de abertura à linguagem poética seja acolhida como possibilidade de elaboração da experiência e desvelamento de dimensões ainda não tematizadas da experiência do cliente. Assim se constitui nossa proposta de ação clínica a partir da poética: como postura do terapeuta diante do cliente na compreensão de sua fala e no exercício de sua possibilidade poética de ser, e não como proposição de uma nova técnica psicoterápica.

Diante de um posicionamento e de uma escuta poética, o terapeuta apresenta uma possibilidade de escuta e compreensão da fala do cliente a qual pode atender não apenas às populações de baixa renda usuárias do serviço público de saúde, para quem - ante a constatação da insuficiência da atuação psicológica tradicional - esta reflexão teórica inicialmente se dirigiu, mas também à atuação psicológica de modo geral, independentemente da classe social ou de qualquer diferença a priori do cliente. Pretendemos, assim, não cair no erro de desenvolver reflexão teórica que servisse de base para uma psicologia especializada na população de baixa renda. Consideramos tal possibilidade um erro, pois, acreditamos, do mesmo modo que a psicologia tradicional se mostrou limitada e insuficiente por ser elitista, uma psicologia para a população de baixa renda constituiria a mesma limitação e a mesma insuficiência daquela para a qual procuramos alternativa mais adequada. Propomos, portanto, e reforçamos, outro modo de escutar e compreender a fala do cliente como disposição afetiva de abertura à linguagem poética. Como disposição afetiva, ela perpassa todas as modalidades de prática psicológica.

Poder-se-ia objetar, com razão, que as diferenças de cliente, incluídas as suas diferenças socioeconômicas, demandam diferentes atuações do psicólogo. No entanto, acreditamos, a diferença no atendimento de cada cliente deve ir-se desenhando no próprio desenrolar do encontro, necessariamente único e imprevisível, entre o terapeuta e o cliente. Acreditamos que o estabelecimento de técnicas ou concepções teóricas psicológicas que se coloquem a priori, como as mais adequadas a determinado cliente pelo fato de ele pertencer a certo grupo sociocultural, engessam, inclusive, a atuação do psicólogo na compreensão singular e única daquele cliente em particular. Para dar conta das diferenças de cada cliente - o que inclui também seu aspecto sociocultural como inúmeros outros que o constituem -, o terapeuta deve, reforçamos, no encontro terapêutico, estar aberto, sem planejamento de sua atuação que anteceda ao modo como o cliente se mostra a ele. Um posicionamento, uma escuta e, sobretudo, um encorajamento poéticos, acreditamos, auxiliam e muito nesse processo.

 

Referências

Andrade, A. N., & Morato, H. T. P. (2004). Para uma dimensão ética da prática psicológica em instituições. Estudos de Psicologia, 9, 345-353.         [ Links ]

Bachelard, G. (1990). A terra e os devaneios do repouso: Ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bachelard, G. (1994). O direito de sonhar (4ª ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Bachelard. G. (2000). A poética do espaço (5ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bachelard, G. (2001). A terra e os devaneios da vontade: Ensaio sobre a imaginação das forças (2ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bachelard, G. (2002). A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bachelard, G. (2008). A psicanálise do fogo (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Critelli, D. M. (1984). Ontologia do cotidiano ou resgate do ser: Poética heideggeriana. In M. F. Dichtchekenian (Org.), Temas fundamentais de fenomenologia (pp. 17-25). São Paulo: Moraes.         [ Links ]

Dichtchekenian, N. (2010). O mundo é a casa do homem. Recuperado em 13 fevereiro 2011, da http://www.fenoegrupos.com/JPM-Article3/pdfs/Nichan_Mundo.pdf        [ Links ]

Dimenstein, M. D. B. (1998). O psicólogo nas unidades básicas de saúde: Desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos em Psicologia, 3(1), 53-81.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. M. (1996). Revisitando as psicologias da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. São Paulo: EDUC.         [ Links ]

Lima, M. (2005). Atuação psicológica coletiva: uma trajetória profissional em unidade básica de saúde. Variáveis demográficas. Revista Psicologia em Estudo, 10(3), 431-440.         [ Links ]

Michelazzo, J. C. (2002). Fenomenologia existencial e os modos de coexistência. In D. S. P. Castro (Org.), Existência e saúde (pp. 187-196). São Bernardo do Campo, SP: UMESP.         [ Links ]

Pessanha, J. A. M. (1994). Introdução. In G. Bachelard, O direito de sonhar (4ª ed., pp. 5-31). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Platão (trad.1999). Diálogos. Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2004). Na presença do sentido. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2011). Os dois nascimentos do homem: Escritos sobre terapia e educação na era da técnica. Rio de Janeiro: Via Verita.         [ Links ]

Sá, R. N. (2002a). A noção heideggeriana de cuidado (Sorge) e a clínica psicoterápica. Veritas, 45(2), 259-266.         [ Links ]

Sá, R. N. (2002b). A psicoterapia e a questão da técnica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 54(4), 348-362.         [ Links ]

Sá, R. N. (2007, Novembro). Atitude fenomenológica e atenção psicoterápica. Texto apresentado no Seminário A Clinica Fenomenológica Existencial na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Recife, PE.         [ Links ]

Sá, R. N. (2009). Fenomenologia da experiência de si-mesmo e psicoterapia como experiência de abertura. In A. M. L. C. de Feijoo (Org.), Psicologia clínica e filosofia (pp. 73-100). Belo Horizonte, MG: Fundação Guimarães Rosa.         [ Links ]

Yamamoto, O. H., & Cunha, I. M. F. F. O. (1998) O psicólogo em hospitais de Natal: Uma caracterização preliminar. Psicologia Reflexão e Crítica, 11(2), 345-362.         [ Links ]

 

 

Recebido em 05 de Janeiro de 2010
Aceito em 21 de Março de 2010
Revisado em 22 de Setembro de 2010

 

 

1 Agradecemos ao Fundo de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) pela concessão de bolsa de doutorado que permitiu a realização do presente artigo.