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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza Mar. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A fragmentação do eu na esquizofrenia e o fenômeno do transitivismo: um caso clínico

 

The fragmentations of I in schizophrenia and the transitivism phenomenon: a clinical case

 

 

Luciane Loss Jardim

Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Psicanalista Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). End.: Rua João Simões da Fonseca, 362. Campinas, São Paulo, Brasil. CEP 13085-050. Email: lulossjardim@uol.com.br

 

 


RESUMO

Nesse artigo, busca-se compreender a fragmentação do eu no quadro clínico da esquizofrenia a partir de uma leitura psicanalítica. Nessa perspectiva, apresenta-se uma breve digressão histórica do conceito de esquizofrenia elaborado por Eugéne Bleuler, destacando sua proposição relativa à cisão do eu e sua visão mais abrangente da psicopatologia que vai ao encontro da teoria de Jacques Lacan sobre a dissolução imaginária do eu na psicose. Dessa forma, apresenta-se o caso clínico de Julio, paciente esquizofrênico, que é um caso paradigmático para compreender essa sintomatologia, a partir do enquadre psicanalítico que pressupõe a existência de formações do inconsciente na organização psicopatológica da esquizofrenia. O caso clínico é analisado sobre dois segmentos, a saber, o momento do desencadeamento da psicose relativo a falta na estrutura simbólica no que concerne à função paterna. A falta do referente simbólico relativo desencadeia uma dissolução ao nível do eu na psicose; dessa forma, um dos fenômenos muito encontrados na esquizofrenia é a fragmentação egóica. Julio apresenta uma identificação imaginária aderida ao outro, uma captura pela imagem do outro sem exclusão recíproca, o que é próprio ao fenômeno do transitivismo. O fenômeno do transitivismo ocorre no estádio do espelho e surge em certos momentos do desenvolvimento psíquico, caracterizado por este momento de báscula em que as ações da criança e do seu semelhante se equivalem. Dessa forma, ao vincularmos o fenômeno do transitivismo aos sintomas do eu na esquizofrenia é possível articular uma leitura da clínica com psicose a partir desse operador.

Palavras Chaves: Esquizofrenia. Psicanálise. Psicopatologia. Transitivismo. Eu.


ABSTRACT

In this article we search for understanding and fragmentation of the ego in the clinical picture of schizophrenia from a psychoanalytic reading. From this perspective, it presents a brief historical tour of the concept of schizophrenia developed by Eugen Bleuler highlighting his proposition concerning the splitting of the ego in schizophrenia and its broader view of psychopathology that meets the theory of Jacques Lacan's dissolution of the imaginary ego in psychosis. Thus, it presents a case of Julio, a schizophrenic patient, that is a paradigmatic case for understanding the symptoms, from the psychoanalytic frame that assumes the existence of unconscious formations in the organization psychopathology of schizophrenia. The clinical case is examined on two segments, namely the time of onset of psychosis related to lack in the symbolic structure in relation to the father role. The lack of respect on symbolic level triggers dissolution of ego in psychosis, so a lot of phenomena found in schizophrenia and ego fragmentation. Julio has an imaginary identification attached to the other; an image captured by the other without mutual exclusion, itself the phenomenon of transitivism. The phenomenon of transitivism occurs in the mirror stage and appears at certain moments of psychic development, characterized by this moment of scales in which the actions of the child and his neighbor are equal. Thus, tying the phenomenon of transitivism and the ego symptoms in schizophrenia is possible to articulate a reading clinic with psychosis from this operator.

Keywords: Schizophrenia. Psychoanalysis. Psychopathology. Transitivism. I.


RESUMEN

En este artículo buscamos entender la fragmentación del yo en el cuadro clínico de la esquizofrenia desde una lectura psicoanalítica. Por lo tanto, se presenta una breve digresión histórica del concepto de esquizofrenia por Eugene Bleuler destacando su propuesta sobre la escisión del yo y su visión más complexa de la psicopatología que es consistente con la teoría de la disolución imaginaria de Jacques Lacan acerca del yo en la psicosis. Entonces, se presenta el caso de Julio, un paciente esquizofrénico, que es un caso paradigmático para la comprensión de los síntomas, desde el marco psicoanalítico que presupone la existencia de formaciones inconscientes en la organización de la psicopatología de la esquizofrenia. El caso clínico se analiza en dos segmentos, es decir, el momento de la aparición de la psicosis vinculada con la falta en la estructura simbólica en relación a la función paterna. La falta del padre simbólico desencadena una disolución del yo en la psicosis, entonces, muchos de los fenómenos encontrados en la esquizofrenia es la fragmentación del yo. Julio presenta una identificación imaginaria colmada al otro, una captación por la imagen del otro, sin exclusión recíproca inherente al fenómeno del transitivismo El fenómeno del transitivismo ocurre en el estadio del espejo y aparece en determinados momentos del desarrollo psíquico, que se caracteriza por este momento de báscula, donde las acciones del niño y su semejante son iguales. Por lo tanto, la articulación entre el fenómeno del transitivismo y los síntomas de la esquizofrenia nos permite hacer una lectura de la de la psicosis a partir de este operador.

Palabras clave: Transitivism. Esquizofreni. El Psicoanálisi., Psicopatología. Yo.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous cherchons à comprendre la fragmentation du moi dans le tableau clinique de la schizophrénie d'une lecture psychanalytique. Par conséquent, il présente une brève digression historique du concept de schizophrénie par Eugène Bleuler préparés soulignant sa proposition sur la scission de moi et son point de vue plus globale de la psychopathologie qui est cohérent avec la théorie de la dissolution imaginaire de Jacques Lacan de je dans la psychose. Ainsi, nous présentons un cas de Julio, un patient schizophrène, qui est un cas paradigmatique pour la compréhension des symptômes, du cadre psychanalytique qui présuppose l'existence de formations inconscientes dans l'organisation de la psychopathologie de la schizophrénie. Le cas clinique est analysé sur deux segments, à savoir, le moment de l'apparition de la psychose liée à un manque dans la structure symbolique par rapport à la fonction paternelle. Le manque du pére symbolique déclenche une dissolution de soi dans la psychose, donc beaucoup de phénomènes trouvés dans la schizophrénie est la fragmentation du moi. Julio a une identification imaginaire attachés les uns aux autres, en capturant une image de l'autre, sans exclusion réciproque inhérente au phénomène de la transitive. Le phénomène se produit dans le stade du miroir et semble à certains moments du développement psychique, caractérisée par ce moment de bascule où les actions de l'enfant et son voisin sont égaux. Ainsi, en reliant le phénomène des symptômes transitivisme soi dans la schizophrénie est possible d'articuler une clinique de lecture avec la psychose de cet opérateur

Mots clés: Schizophrénie transitivisme, la psychanalyse, psychopathologie, et je.


 

 

Sobre a descrição fenomenológica da esquizofrenia

A clínica da psicose, desde os seus primórdios,interroga continuamente os diversos campos do conhecimento que se ocupam de seu tratamento, remetendo às origens históricas de disciplinas como a medicina psiquiátrica, a psicopatologia e a psicanálise.

Em sua História da loucura na idade clássica, Foucault (1999) mostra como apenas a partir do Grande Internamento e com o progressivo interesse médico pelos internados nos Grands Hôpitaux foi que a "loucura" passou a constituir uma entidade psiquiátrica, tal como conhecida nos dias de hoje. Entretanto, a definição das diferentes categorias nosológicas da psicose percorreu muitos debates nesse campo, de tal forma que, já ao final do século XIX, era empregada a expressão "babel teminólogica" para caracterizar o estado da nosografia psiquiátrica.

Eugen Bleuler (1911) estabeleceu as bases para o conceito nosológico e nosográfico do quadro que é conhecido hoje como esquizofrenia. Ele foi influenciado pela psicanálise freudiana, através de Jung, que era seu principal assistente e o líder de aproximação da psiquiatria à psicanálise. O propósito de Bleuler "era o de definir para além das meras constelações sintomatológicas regulares estabelecidas por Krapelin, o fundamento psicopatológico daquela afecção [...]" (PEREIRA, 2000, p.159). Em sua célebre monografia intitulada Dementia praecox ou o grupo das esquizofrenias (1911), Bleuler mostrou que o fenômeno psicopatológico fundamental da esquizofrenia era a ruptura da integração entre as diversas funções psíquicas. O termo esquizofrenias, utilizado pelo autor desde 1906, denota a ruptura em relação ao pensamento krapeliano, ou seja, de que não se trataria apenas de uma única afecção, mas "de um grupo ainda determinado de condições com um núcleo psicopatológico em comum" (PEREIRA, 2000, p.161).

Com efeito, Bleuler se afastou da concepção descritiva de demência precoce de Kraepelin, em função de sua visão mais abrangente das esquizofrenias. Dessa forma, postulou que o fenômeno central da esquizofrenia era a cisão do Eu, em função do rompimento dos vínculos associativos, os quais, em condições normais, assegurariam um funcionamento unitário da personalidade. A cisão do Eu é apontada como um dos fenômenos primários da esquizofrenia, o qual provoca um rompimento de sua unidade e a tentativa de restituição dessa coesão perdida será manifesta através dos sintomas mais diretamente observáveis, a saber, alteração do fluxo do pensamento, a ambivalência afetiva, os delírios e as alucinações que buscam fazer frente à dissensão do eu. Portanto, para Bleuler, do ponto de vista psicopatológico, os fenômenos primários da esquizofrenia não eram os delírios e as alucinações, mas a desintegração do funcionamento unitário e coerente de diferentes dimensões psíquicas. O termo "autismo", empregado por Bleuler, visava descrever o fenômeno explicado na tese de Jung, segundo o qual o paciente tendia a dedicar um interesse maior às suas fantasias internas do que ao mundo exterior. As criações imaginárias desses indivíduos arrebatam seu interesse e têm para eles um estatuto de realidade autoevidente, o que faz com que estes tendam a se fechar nessa nova realidade interior, tornando-se relativamente impermeáveis ao contato com os outros. Na verdade, a ambivalência característica desses sujeitos era considerada por Bleuler como expressão da ruptura da integridade do eu e da hipervalorização das fantasias mentais. Do mesmo modo, a alteração da afetividade, também considerada como sintoma fundamental para o diagnóstico da esquizofrenia, manifesta o ensimesmamento do sujeito, seu isolamento e a incongruência de seu funcionamento psíquico.

Segundo Pereira (2000), os sintomas fundamentais visavam superar o inconveniente clínico introduzido pela perspectiva diacrônica e evolutiva proposta por Kraepelin, ou seja, buscavam-se sintomas que estivessem presentes em todas as formas de esquizofrenia e em qualquer momento de sua evolução. Todavia, os sintomas acessórios não estão, necessariamente, presentes em todos os casos e/ou em todos os momentos, e são denominados também como secundários, representados pelos delírios, pelas alucinações e pelos quadros catatônicos, entre outros.

A demência precoce kraepeliana tinha como traço clínico clássico o desenvolvimento lento e insidioso da enfermidade até sua deterioração terminal, característica considerada por Bleuler como apenas um dos destinos possíveis da esquizofrenia. Dessa forma, Bleuler estabeleceu uma nova concepção das esquizofrenias, menos descritiva e naturalista do que a de Kraepelin, pois se apoiava mais claramente em uma complexa teoria psicopatológica subjacente, mais útil do ponto de vista clínico, pois permitia um diagnóstico mais imediato e mais otimista quanto ao prognóstico dessa afecção, pois podia prescindir da ideia de uma evolução inexorável em direção à demência (Verblödung).

Outro problema da teoria de Kraepelin sobre esse quadro psicótico foi o fato de, durante muito tempo, esse autor ter considerado que a paranoia era apenas uma das manifestações, em geral terminal, da forma paranóide da demência precoce (dementia paranoides). Foi apenas na oitava edição de seu Tratado de Psiquiatria, em 1915, que Kraepelin aderiu à posição da escola francesa de psiquiatria, definindo o quadro clínico da paranoia de forma autônoma, distinguindo-a do tipo paranóide da demência precoce. Tal mudança de posição teórica delimita, em suas grandes linhas, a forma como se concebe atualmente o campo dos fenômenos paranóicos e paranóides (GARRABÉ, 1992).

Neste contexto, a psicanálise pôde contribuir para a clínica das psicoses, primeiramente a partir da doutrina freudiana e, em especial, do famoso estudo de 1911 de Freud sobre o presidente Schereber: Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia paranoides). Neste trabalho, Freud encontrou os fundamentos de sua teoria das psicoses, esclarecendo os mecanismos psíquicos que levam à psicose e delimitando seu campo em relação ao da neurose.

Segundo Freud (1911), a esquizofrenia de Bleuler é uma entidade clínica que se distingue dentro do grupo das psicoses por uma fixação predisponente situada em uma fase muito precoce do desenvolvimento da libido, o autoerotismo. Na análise do caso Schreber, Freud formula a hipótese de que há uma regressão narcisista, chegando até um abandono completo do amor objetal e a retomada de uma satisfação autoerótica. Aponta que os delírios de grandeza são uma consequência do desinvestimento do mundo externo e uma manifestação do retorno da libido sobre o eu, ameaçado por um grande afluxo de energia. Neste estádio, já houve uma escolha objetal, porém o objeto confunde-se com o próprio eu do indivíduo.

O delírio, para Freud, é uma tentativa de cura, uma reconstrução do mundo exterior pela restituição da libido ao objeto ainda que por uma via completamente imaginária. Essa concepção freudiana de que o delírio é uma tentativa de cura, também é encontrada na interpretação de Bleuler, como verificamos anteriormente no que concerne aos sintomas secundários da esquizofrenia.

Nessa constelação sintomatológica do quadro clínico da esquizofrenia, interessa-nos destacar a proposição de Bleuler relativa à cisão do Eu na esquizofrenia e sua concepção mais abrangente da psicopatologia, que vai ao encontro da explicação psicanalítica sobre a dissolução, na psicose, de toda a organização imaginária do Eu, tal como proposto na teoria de Jacques Lacan, a qual discutiremos no decorrer desse artigo.

Com efeito, através de uma pesquisa psicanalítica1 realizada com pacientes esquizofrênicos, uma dimensão psicopatológica específica, relativa ao Eu e à imagem corporal do sujeito, pode ser destacada. Os atendimentos clínicos com esse paciente foram realizados no âmbito do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Unicamp. Os fragmentos do caso clínico que apresentamos nesse artigo são paradigmáticos para compreender essa sintomatologia, a partir do enquadre psicanalítico que pressupõe a existência de formações do inconsciente na organização psicopatológica da esquizofrenia. Desse modo, aplicamos aos pacientes com diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia a regra fundamental da psicanálise, a saber, a escuta de suas associações livres.

 

Sobre o desencadeamento da psicose: um caso de esquizofrenia

Julio2 é um homem de trinta e quatro anos, solteiro, mora com os pais e passa praticamente o dia dentro de casa, assistindo à televisão e ouvindo o rádio, saindo eventualmente para fazer algumas caminhadas ou ir ao supermercado com a mãe. Ele concluiu o ensino médio, fez um curso técnico de mecânica e estava trabalhando como mecânico em uma oficina de automóveis na época de seu adoecimento, há dezesseis anos, quando se desencadeou seu primeiro surto psicótico. A crise eclodiu após uma das inúmeras brigas que tinha com o pai, as quais geralmente acabavam em agressões físicas.

Julio sofreu aproximadamente trinta internações em hospitais psiquiátricos, sendo a maioria delas contra sua vontade. Em muitas ocasiões, a polícia foi chamada para que o levassem e, muitas vezes, além de maciçamente sedado, foi contido fisicamente. As crises dele sempre foram muito violentas, tendo sido circunscritas sob o diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia paranóide. As histórias de suas internações são repisadas invariavelmente em seu discurso.

Na época de sua primeira crise, portanto, Julio contava com 18 anos de idade, era introspectivo, tímido, escutava Raul Seixas3 e lia livros de Paulo Coelho4, os quais alimentavam suas fantasias místicas e sexuais. Entretanto, se via confrontado com uma impossibilidade de responder aos apelos sexuais de sua adolescência. Quando seus amigos contavam suas experiências e aventuras sexuais com as meninas, Julio fabulava, inventava histórias sobre seu suposto aproach com as meninas durante o final de semana, para não se sentir excluído do grupo. Ele buscava se constituir como homem através da identificação imaginária com seus pares, entretanto, uma carência radical em sua vida se apresentava.

A identidade do sujeito precisa ser sustentada por uma referência que se encontra além da dimensão imaginária, o que implica a inscrição desse sujeito em um lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo das palavras. Julio se encontrava diante de interpelações que o convocavam a ocupar um lugar simbólico novo, ou seja, ele precisava, pela primeira vez em sua vida, após a infância, dar provas para si mesmo e para os outros de sua sexualidade. Isso implica uma rearticulação da sua posição sexuada e de sua filiação. Em outras palavras, a identidade do sujeito não é sustentada apenas por aquilo que se reflete no espelho ou aos olhos de seus iguais; necessita estar articulada a elementos da estrutura do sujeito vinculados à passagem pelo complexo de Édipo e a respectiva inscrição do significante paterno em seu psiquismo.

Segundo Lacan (1955-1956), o desencadeamento da psicose está associado à constatação de que todo o saber que aquele sujeito até então possuía e utilizava para se sustentar dentro da ordem simbólica desaba após sofrer algum tipo de acometimento. No caso de Julio, a violência cotidiana vivenciada com o pai e a experiência fracassada de seus intentos sexuais tornaram explícita a falta de consistência de seu saber relativo à sexualidade e à filiação. Com efeito, constatamos elementos sugestivos da precipitação de Julio no quadro clínico da esquizofrenia, apesar da preservação de certas funções psicológicas, pois Julio estava trabalhando na época do desencadeamento da doença e chegou a concluir o ensino médio, cursando paralelamente um curso técnico.

A eclosão da psicose é um momento em que se abre para o sujeito um buraco no simbólico, um vazio no centro da cadeia significante, e que tem como consequência para o psicótico um estado por vezes duradouro de perplexidade. Os desdobramentos destas ocorrências são principalmente dois: há um intenso remanejamento na cadeia significante que se explicita através dos neologismos e das alterações sintáticas que os psicóticos apresentam, e por outro lado, da constatação da proliferação ou dissolução imaginária, quando o mundo do sujeito parece explodir em milhares de fragmentos, perdendo a coerência e desdobrando a identidade formal do sujeito e de seus semelhantes em diversas identidades autônomas entre si.

 

Sobre a dissolução do Eu na esquizofrenia

O caso de Julio nos mostra claramente esse fenômeno de dissolução imaginária encontrado nas esquizofrenias, à medida que a sua mente passou a ser habitada por inúmeros "outros". Ele fala, invariavelmente, que diversas pessoas ingressam em sua cabeça e que essas estão "tirando o meu são" (sic). Queixava-se que fica "impregnado de pessoas na cabeça" (sic), o que acaba lhe acarretando muita dor de cabeça (literalmente), queixa constante em seu discurso. Quando Julio está assistindo à televisão, conta que se sente "falando na tv" (sic), pois percebe que as pessoas da televisão estão falando aquilo que ele está pensando. Em determinada ocasião fala que: "a feição da pessoa que ta na tua cabeça eu vejo diante do espelho" ao referir-se a sua experiência diante do espelho.

A fase do espelho é um conceito elaborado por Lacan (1949) para explicar o narcisismo primário, a constituição do Eu e as identificações secundárias no ser humano. Essa fase está situada entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida do bebê, período caracterizado pela imaturidade do sistema nervoso. A imagem especular dá à criança a forma intuitiva de seu corpo, bem como a relação do seu corpo com a realidade que o cerca. A imagem instaura, no nível psíquico, uma identificação com ela. Trata-se, pois, da transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem como representando a si mesmo.

Lacan busca nessa abordagem dar conta da teoria freudiana relativa ao narcisismo, ao fato de que, para Freud, a imagem do eu investida eroticamente constituiria um objeto de amor específico e daria a unidade da experiência da função "Eu". Em outras palavras, para Freud, o "Eu" não é um elemento psíquico primário, mas o resultado de um processo pelo qual as diferentes dimensões subjetivas, inicialmente autônomas e caóticas, passam a ser integradas a partir dessa imagem unitária e amada, que o sujeito começa a constituir de si próprio. A contribuição específica de Lacan nesse processo, já descrito anteriormente por Freud, consiste em destacar o papel fundamental e indispensável do Outro, na medida em que fornece a essa imagem uma parte de seu próprio narcisismo e a valida simbolicamente, dando o reconhecimento que a criança solicita de que aquela imagem - idealizada - que essa começa a fazer de si mesma corresponda, de fato, a ela própria. Ao subscrever junto à criança uma imagem que, em última instância, é um legado de seu próprio narcisismo, o adulto termina por validar na criança o reconhecimento de um Eu unitário, portador inconsciente e alienado das expectativas e fantasias desse adulto depositadas na criança. O ponto central dessa dimensão de alienação intrínseca à constituição do Eu repousa no fato de que, doravante, a criança passará a tratar essa imagem subscrita pelo outro na qual se reconhece como se fosse a expressão mesmo de seu próprio ser. É nesse sentido que, ao se referir aos ideais do Outro, inscritos inconscientemente nessa imagem na qual a criança passará a se reconhecer, Lacan evoca a famosa frase de Rimbauld: Je est um autre.

O estádio do espelho concerne, assim, a uma identificação com uma imago, que "lhe é dada como Gestalt, isto é, numa exterioridade em que decerto essa forma é mais constituinte do que constituída [...]" (LACAN, 1949, p.98). Essa imagem é a matriz em que o eu se precipita. O sujeito toma consciência do seu corpo como unidade. A visão da forma unitária do corpo humano permite que o sujeito tenha o domínio imaginário do seu corpo prematuro em relação ao domínio real. A imagem do corpo é a primeira forma em que o sujeito situa aquilo que é e o que não é o eu.

No estádio do espelho, ocorre um fenômeno denominado transitivismo, que surge em certos momentos do desenvolvimento psíquico, caracterizado por este momento de báscula em que as ações da criança e do seu semelhante se equivalem. Esse transitivismo imaginário é próprio da criança que bateu no seu semelhante e diz, sem mentir: "ele me bateu". Pois, para ela, é exatamente a mesma coisa.

Lacan (1955-1956) propõe, assim, que o eu do psicótico está atrelado ao seguinte enunciado: "o outro sou eu", acima evocado, peculiar ao fenômeno do transitivismo. Trata-se da impossibilidade de separação entre o eu e o não eu na constituição do eu e da imagem corporal do sujeito.

Julio se mantém em um transitivismo especular, identificando-se com qualquer outro que lhe apareça. O eu de Julio adere ao eu de seu semelhante, o que o faz vivenciar em seu corpo acontecimentos do corpo do outro. Essa relação especular sem mediação de um terceiro é vivenciada por Julio, à medida que, por exemplo, os enunciados das pessoas da televisão equivalem-se às suas próprias enunciações. A imagem da forma do outro é assumida por Julio ao assistir à televisão, à medida que Julio se percebe falando nela. É justamente nesse movimento de báscula com o outro que o sujeito se apreende como corpo, que Julio se reconhece na televisão, pois os outros/ele manifestam seu pensamento, fala(m) sobre ele, ele se vê falado pelos outros.

Julio assume a forma de muitos outros, não sem sofrimento, pois esses outros que o invadem retiram sua sanidade mental. A expressão que Julio usa para contar o que lhe acontece quando os outros entram em sua cabeça é: "eles tiram o meu são". Essa expressão aponta tanto para a saúde mental que Julio perde com a invasão desses outros especulares, quanto para a conjugação do verbo ser na terceira pessoal do plural. Com efeito, podemos articular a seguinte interpretação: A apreensão que Julio tem de si mesmo é relativa àquilo que os outros são.

Julio fala que passa o dia inteiro conversando com Julia por telepatia. Referindo-se à Julia, diz: "o sentido da cabeça dela funciona no meu". Julio relata que Julia é uma antiga colega de escola, pela qual ele sempre foi apaixonado. Hoje são vizinhos e, segundo Julio, a moça tem problemas mentais e faz tratamento psiquiátrico. O delírio de Julio com Julia tem um colorido autoerótico, pois os dois fazem sexo em seu corpo. Diz que faz "sexo por telepatia... Imagino e masturbo... ela entra em mim... ela está comigo". Julio conta que ela encarna em seu corpo e que assim realizam a cópula.

Na clínica psicanalítica com pacientes psicóticos, assim como na leitura da novela de Marguerite Duras, intitulada O Deslumbramento (La ravissemente de Lol V. Stein), ingressamos em um mundo desconcertante; a narração da tragédia subjetiva em determinados momentos perde seu narrador e passa a ser feita por muitas vozes. Todavia, a literatura antecipa, através da ficção, a realidade do inconsciente e possibilita uma interrogação sobre as vicissitudes da clínica psicanalítica. Nesta perspectiva, podemos ler a novela de Marguerite Duras em dois tempos, escandindo duas cenas para orientar um percurso da leitura e transpô-las para a clínica psicanalítica: uma primeira cena, na qual os acontecimentos podem se equivaler ao desencadeamento da psicose; e um segundo momento, equivalendo-se a uma sessão analítica, no qual o desejo do personagem pôde ser rearticulado.

Lacan (1965), a partir da novela de Duras, no texto Homenagem a Marguerite Duras, do rapto de Lol V. Stein caracteriza a relação imaginária na psicose, descrevendo uma identificação imaginária aderida ao outro, uma captura pela imagem do outro sem exclusão recíproca, que é próprio da clínica com pacientes esquizofrênicos.

Nesse trabalho, Lacan precisa a posição do sujeito psicótico, caracterizando-a como a rememoração de uma cena. Os acontecimentos transcorrem em um salão de baile e tem, como personagens principais, uma jovem chamada Lol, seu namorado, Michael, a amiga de Lol, Tatiana e uma intrigante mulher Anne-Marie Stretter, que chega ao baile acompanhada de sua filha. No momento em que estas irrompem no baile, a cena tem seu início. No final desta, Lol enlouquece por conta da partida de seu namorado com Anne-Marie.

Tatiana, a amiga, é a narradora dessa cena e conta com riquezas de detalhes o impacto que aquela mulher produziu ao entrar no salão de baile: ninguém pôde deixar de olhar para ela. Revela-nos também a transformação que sofre Michael pela presença de Anne-Marie; ele fica fascinado pela mulher e, em determinado momento, diz: "Preciso convidar esta mulher para dançar" (DURAS, 1986, p.12).

Diante da resposta inesperada de Lol, que apenas sorri quando ele a olha pedindo autorização, Michael se junta à intrigante mulher e jamais irá separar-se dela. Lol permanece toda a noite olhando a dança de seu noivo com essa mulher, deslumbrada e sem mostrar nenhum sinal de sofrimento.

Ao amanhecer, quando o leitor pensa que finalmente a cena dolorosa para Lol vai terminar, surpreendentemente para nosso desconcerto, ela grita argumentos para que o baile siga e não termine. Quando o casal sai do salão, Lol os segue com seu olhar e, quando os dois desaparecem, ela cai desvanecida no solo. Imediatamente enlouquece, permanecendo trancada em seu quarto por semanas, sem encontrar nenhuma palavra para dar conta do vazio que vive.

Quando o casal desaparece, irrompe o desvanecimento subjetivo de Lol, momento típico do desencadeamento de uma crise psicótica. Tatiana, completamente mobilizada pela cena, pronuncia muitas palavras pela falta de saber que esta lhe provoca. Lol, além de não dizer uma só palavra, permanece petrificada, em silêncio, e, consequentemente, desfalece quando finaliza a cena.

O que deduzimos daí, Lacan nos propõe: falta uma palavra que separe Lol da imagem do outro, o que permitiria que a inexplicável mulher que seu namorado tinha nos braços fosse outra mulher para ela. No momento da cena, Lol e Anne-Marie formam apenas uma mulher, um só corpo abraçado pelo amor Michael. Lol está presa em um transitivismo, tempo de inclusão do vivente na condição de ser humano, mediante a imagem de outro.

Os nomes fictícios, Julio e Julia, guardam a mesma relação que os nomes de fato, do paciente e de seu duplo (a). Julio e Julia são inseparáveis, Julio se funde na imagem de Julia. Julio e Julia formam um só corpo. Julio está preso em um transistivismo que se precipita a partir da imagem do outro. Esse transistivismo é a impossibilidade de separação entre o eu de Julio e o eu de Julio. Julia faz parte do eu de Julio, sem ela/ele não há como ele se reconhecer, ou melhor, não há possibilidade de existência separada. Formam um só Eu.

Julio percebe a si mesmo como outro. Atribui as sensações próprias a um outro que o invade, pois suas percepções do próprio corpo lhe são alheias, como se estas fossem de um outro e não de seu próprio eu. As sensações voluptuosas de Julio são percebidas a partir da entrada de Julia em seu corpo, como ele nos fala que ela entra nele e que os sentidos dela funcionam nele.

Portanto, Julio se encontra preso ao espelho e, assim como Narciso, o desfecho é trágico, e a morte subjetiva é o ônus a ser pago.

 

Considerações finais

Bleuler, ao apontar que a cisão do Eu era o sintoma predominante na esquizofrenia, indicou um caminho no qual conseguimos avançar. Através da clínica e da teoria psicanalítica, demonstramos a importância fundamental de uma compreensão da constituição do eu e da imagem corporal na psicopatologia da esquizofrenia.

Na alienação imaginária da psicose, particularmente na esquizofrenia, encontramos o sujeito capturado a este fenômeno fundamental do transitivismo, no qual o eu é o outro. A imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito. É o que nos revela o caso de Julio, através de suas vivências com seu duplo, o qual formam apenas um, um só corpo impossibilitado de realizar uma separação entre o eu e o não eu.

O sujeito psicótico se aliena nesta gestalt dada pelo outro. O resultado é o desmoronamento da estrutura significante, produzindo a insustentabilidade do eu e da imagem corporal, levando o psicótico a vivenciá-los de modo fragmentado e confundido com muitos outros. O psicótico fica na relação especular, na perspectiva do eu ideal, se reconhecendo em qualquer outro, alienado a um outro que é o seu eu.

Na novela de Marguerite Duras, existe a montagem da uma segunda cena, a qual nos proporciona o desfecho da estória, no qual Lol V. Stein consegue engendrar o desejo. Lol descobre o romance de Tatiana com Jacques Hold e começa a segui-lo, isto lhe desperta um novo entusiasmo. Os amantes encontram-se no Hotel du Bois, o qual tem uma janela que dá para um campo de centeio, aonde Lol permanece durante os encontros de amor entre Tatiana e Jacques Hold. Jacques a vê deitada na relva e aceita entrar no jogo, sacrificando Tatiana à lei de Lol, à medida que dá a ver Tatiana na janela para Lol, sem se comover que sua amante não perceba nada.

Segundo Lacan, nessa segunda cena, com Tatiana e Jacques Hold, trata-se do "ser a três". Diferentemente da primeira, nesta, é Lol quem vai coordenar a cena. E em função disto pode oferecer-se ao olhar de um homem, fazer-se ver, ser uma mancha no desejo de Jacques Hold sobre o fundo do campo de centeio. A diferença da montagem desta cena com o fantasma neurótico é que aqui se constrói o fantasma na realidade, como marco propiciatório do desejo, que, de certa forma, faz uma suplência daquilo que não existe.

Na psicose não falta apenas a imagem narcísica que pode ser revestida pelo amor de outro, como no caso do amor de Michael por Lol que a re(vestia) narcisicamente e que logo foi perdido na noite do baile. A ausência na psicose é a do fantasma, ou seja, daquilo que oculta o agalma, o objeto causa do desejo.

Jacques Hold como narrador vai operar a constituição do olhar como mancha colocada sobre a janela do Hotel Du Bois, lugar do fantasma por advir para Lol. Desta forma, Lol pôde articular para Jacques Hold seu fantasma fundamental: "Nua, nua sob seus cabelos negros - essas palavras,- nos dirá Lacan - vindas da boca de Lol, engendram a passagem da beleza de Tatiana à função de mancha intolerável pertinente a esse objeto"(LACAN, 1965, p.202). Esta inscrição da mancha do olhar converte-se no olhar próprio de Lol colocado sobre a janela do Hotel Du Bois. Portanto, pela primeira vez, Lol se faz mancha para um homem, engendra o desejo do Outro que sustenta o objeto a causa do desejo.

 

Notas

1 Pesquisa de pós-doutorado intitulada O imaginário na esquizofrenia : o fenômeno do transitivismo realizada pela Dra. L.L. Jardim no âmbito do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da UNICAMP.

2 Nome fictício do paciente.

3 Cantor e compositor brasileiro. Uma de suas músicas denomina-se Maluco Beleza, a qual Julio conhece com muita propriedade a letra.

4 Escritor brasileiro reconhecido internaciolmente por sua literatura esotérica.

 

Referências

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Recebido em 03 de Fevereiro de 2010
Aceito em 11 de Agosto de 2010
Revisado em 22 de Novembro de 2010