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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza Mar. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

"Paidescendo no paraíso": uma investigação sobre o pai e a religião na teoria de Freud e Lacan1

 

“Paidescendo in the paradise”: an investigation about the father and the religion in Freud and Lacan’s theory

 

 

Rita Helena Gonçalves NaniI; Wilson Camilo ChavesII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del Rei e mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Psicologia dessa mesma universidade. End.: Rua Napoleão Nunes Ribeiro dos Santos, 585/ap 302. Centro. CEP: 29190-026 Aracruz-ES. Email: rita_nani@hotmail.com
IIProfessor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João Del Rei. End.: Praça Dom Helvécio, 74. Fábricas. CEP: 36301-160. São João Del Rei-MG. Email: camilo@ufsj.edu.br

 

 


RESUMO

Este artigo, aborda a ligação existente entre a religião e o pai, mais especificamente, a proximidade da imagem de Deus com a imagem de um pai, elucidada por Freud e Lacan. Segundo Freud, o que move o sujeito a procurar a religião é o sentimento de desamparo experienciado na infância, inerente a todo ser humano. Assim, esse autor nos mostra como a religião se utiliza desse fato, trazendo a figura do pai para o centro de suas reflexões. Para pensarmos o pai em psicanálise, é indispensável recorrermos às contribuições de Lacan, que aponta para a pluralização do Nome-do-Pai, o que permite que uma multiplicidade de significantes atue nesse lugar, cabendo a cada sujeito responder o que melhor opera como função paterna. O pai, em Lacan, passa a funcionar como um nó que une os registros Real, Simbólico e Imaginário. Através do conceito de sinthoma, Lacan enfatiza que o pai deve mostrar suas falhas, possibilitando que o filho vá além dele. Porém, esse movimento só se torna possível se o filho tomar o pai como um instrumento a ser usado e ultrapassado. E este é o movimento que a religião não permite que aconteça; ela oferece para o sujeito um Deus-Pai perfeito. Como o referencial paterno tem se enfraquecido nas configurações familiares atuais, é essa imagem de pai que o neurótico busca. No entanto, não é possível ao pai ser a figura pacificadora que o neurótico tanto quer devido às suas falhas, que remetem a uma falta de garantia insuportável para este último. Ao sujeito, então, é oferecido um desafio: liberar-se de seu esforço de recompor o pai, aceitando suas falhas e servindo-se dele sem, apesar disso, servir a ele.

Palavras-chave: Psicanálise. Religião. Pai. Sinthoma. Nomes-do-Pai.


ABSTRACT

This paper addresses to the link between religion and the father, more specifically, the proximity of the God's image to the image of a father, elucidated by some texts of Freud and Lacan. According to Freud, what makes a person looks for religion is the feeling of helplessness experienced during the childhood, which is inherent for every human being. He shows us how religion uses this fact, bringing the image of the father to the spotlight of his reflection. If we think about the father in psychoanalysis, it is essential to use the Lacan's contributions, that points to the pluralization of the Name-of-the-Father which allows multiple meanings acting in a specific situation, and each individual is responsible for his best choice among the father's roles. The father, for Lacan, becomes like a node that joins the records Real, Symbolic and Imaginary. Through the concept of sinthome, Lacan emphasize that the father must show his faults, providing his children of going beyond it. However, this situation is only possible if the child sees the father as a standard to be followed or improved. It is what the religion does not allow to happen; it only offers a perfect Father-God to the individual. As the paternal reference has been weakened in the current family settings, the image of an unfaultable father is what a neurotic searches. Though, it is not possible for the father to be the peacemaker wanted by the neurotic because of his failures, which are related to the unbearable lack of assurance. So, the individual has a challenge: sets himself free of the effort of re-establish his father, accepting his faults and standing by him but not serving him.

Keywords: Psychoanalysis. Religion. Father. Sinthome. Names-of-the-Father.


RESUMEN

Este artículo analiza la relación entre la religión y el padre, más concretamente, la proximidad de la imagen de Dios con la imagen de un padre, aclarada por Freud y Lacan. De acuerdo con Freud, que se mueve al sujeto a buscar la religión es el sentimiento de desamparo en la niñez, inherente a todo ser humano. De este modo, el autor muestra cómo la religión utiliza este hecho, con lo que la figura del padre en el centro de sus reflexiones. Pensar en el padre en la psicoanálisis, es indispensable recurrir a las contribuciones de Lacan, cuando habla del función de padre, cuestionando la importancia de la presencia de una persona que ocupa ese lugar. Por otra parte, Lacan apunta a la pluralización del Nombre-del-Padre, lo que permite una multitud de significantes actuar en ese lugar, con cada sujeto que responde mejor actúa como la función de padre. El padre, en Lacan, que funciona como un nodo que se une los registros Real, Simbólico e Imaginario. A través del concepto de sinthome, Lacan insiste en que el padre debe mostrar sus defectos, lo que permite al hijo a ir más allá. Sin embargo, este movimiento sólo es posible si el hijo toma al padre como un instrumento para ser usado y pasado. Y este movimiento es que la religión no permite que ocurra, se ofrece a los sujetos un Dios-Padre perfecto. Como la referencia paterna se ha debilitado en las configuraciones de la familia actual, es esta la imagen del padre que la búsqueda neurótica. Sin embargo, es imposible que la figura del padre es el constructor de paz que tanto desea el neurótico por sus sus faltas, que se refieren a una intolerable falta de seguridad para el neurótico. El sujeto es entonces ofreció un desafío: la liberación de su esfuerzo por recomponer el padre, aceptando sus errores y sin el uso de él, pero que le sirvan.

Palabras clave: Psicoanálisis. Religión. Padre. Nombre-del-Padre. Sinthome.


RÉSUMÉ

Cet article examine le lien entre la religion et le père, plus spécifiquement, la proximité de l'image de Dieu avec l'image d'un père, élucidée par Freud et Lacan. Selon Freud, qui se déplace le sujet pour chercher la religion est le sentiment d'impuissance vécu dans l'enfance, inhérente à chaque être humain. Ainsi, l'auteur montre comment la religion utilise ce fait, apportant la figure du père au centre de ses réflexions. Pour penser le père dans la psychanalyse est indispensable de recourir à la contribution de Lacan, quand il parle du rôle du père, le questionnement sur l'importance de la présence d'une personne qui occupe ce lieu. Par ailleurs, Lacan se tourne vers la pluralisation du Nom-du-Père, qui permet une multitude de designifiant loi dans ce lieu, avec chaque sujet mieux que la réponse de l'Œuvre que le rôle de père. Le père, chez Lacan, il fonctionne comme un noeud à joindre les dossiers Réel, Symbolique et Imaginaire. Grâce au concept de sinthome, Lacan souligne que le père doit montrer ses fautes, permettant à le fils d'aller au-delà. Toutefois, ce mouvement n'est possible que si le fils prend le père comme un instrument pour être utilisé et désuet. Et ce mouvement est que la religion ne permet pas d'arriver, elle offre au sujet d'un Dieu le Père parfait. Comme la référence a été affaiblie dans les configurations de la famille paternelle présent, c'est cette image du père névrosée qui recherche. Toutefois, il n'est pas possible d'être la figure du père à la fois pacifier le névrosé ou à cause de leurs fautes, qui se réfèrent à une absence accablante de garantie pour les seconds. Le sujet est alors proposé un défi: pour libérer de ses effort pour recomposer le père, en acceptant ses défauts et sans lui à l'aide, mais le servir.

Mots clés: Psychanalyse. Religion. Père. Noms-du-Père. Sinthome.


 

 

Introdução

A religião, sob o ponto de vista cultural, é um dos componentes mais importantes e decisivos na caminhada da humanidade. Pode-se dizer que ela nasceu historicamente naquele estágio em que o homem percebeu sua finitude e sua incapacidade de lidar com suas angústias e medos. Ela sempre foi tomada como fonte de verdades, especialmente no que concerne às questões existenciais, apresentando-se como um sistema de crenças inquestionáveis.

Atualmente, observa-se um número crescente de publicações de diversos trabalhos contrários à propagação da religião em nosso tempo, questionando a postura do sujeito diante dessas "verdades", tratando-as como algo nocivo para a humanidade.

No entanto, analisando a população em geral, a religião continua sendo um apoio reconfortante que oferece respostas para suas inseguranças. Frente à falta de garantias trazidas pela incerteza do futuro, já que esse é desconhecido, o sujeito, angustiado, busca as respostas nas explicações oferecidas pelas religiões, na tentativa de amenizar sua sensação de desamparo e insegurança.

Buscando tamponar essa angústia provocada pela condição de derrelição, que é inerente ao ser humano, e também prometendo, de alguma forma, o reencontro com o objeto perdido (oferecendo o paraíso, por exemplo, depois da morte), a religião se constitui como uma ilusão, fato para o qual Freud atentou em seu texto de 1927, O Futuro de uma Ilusão.

Essa tentativa de tamponar a falta é um movimento constantemente renovado na cultura, sobretudo, pelas religiões. Nesse sentido, Goldenberg (2006) chama a atenção para o fato de estar ocorrendo, nos últimos anos, um retorno de Deus, o que se justifica pelas guerras geradas em Seu nome e também pela proliferação de crenças religiosas, tanto no que se refere às religiões tradicionais, quanto a outros tipos de crenças alternativas, como, por exemplo, o budismo ocidental.

Ainda em relação a essas crenças, dentro de uma doutrina religiosa, outro aspecto relevante é o quanto a imagem que se cria de Deus é próxima à imagem de um pai. O próprio gesto de oração, pregado pela religião católica, é um exemplo disso: em Nome do Pai. Fiéis, quando em oração, direcionam-se a Deus, chamando-o de Pai, pedindo proteção para suas vidas e perdão pelos seus atos.

Freud dedicou vários textos à abordagem da religião, especialmente no que diz respeito ao uso que esta faz do sentimento de desamparo experienciado por todo sujeito, amenizado pela concepção da imagem de Deus com contornos paternos, o que cria no sujeito uma falsa sensação de proteção.

Porém, ao contrário do que Freud apostou, mesmo com todas as transformações e mudanças a que a sociedade está sendo submetida e, apesar do avanço e crescimento das descobertas científicas, a religião não perdeu sua força. A partir dessa constatação, podemos questionar: que aspecto é esse que a religião possui e que continua atraindo as pessoas, fazendo com que elas ainda apresentem uma necessidade enorme de possuírem uma crença, ou um Deus?

É perceptível que a sociedade vem passando por várias transformações, tanto técnicas e tecnológicas, como de valores. A relação com o objeto e a maneira como este é visto foram bastante modificadas, se comparadas a cinquenta anos atrás. E apesar de todas essas mudanças, o desamparo humano não desapareceu. Ao contráio, mostrou-se mais insuportável e irremediável do que nunca.

Em meio a essas transformações sociais, está o lugar ocupado pelo pai dentro da família. Esta última não mais se constitui, basicamente, de forma triangular, com o pai no topo das relações e tendo sua palavra elevada à posição de verdade absoluta pelo filho.

Essa relativização do pai é que leva Goldenberg (2006) a afirmar que, já na década de 90, se dizia que o Nome-do-Pai não era mais tão eficiente, que a família e os laços que a uniam já não existiam e que haveriam de ser encontrados sintomas mudos, como a depressão e a anorexia, nos quais já não seria mais o recalcamento que estaria em ação.

Dessa forma, o pai, enquanto sujeito, é surpreendido por todas essas mudanças e pelas questões que envolvem a sua função. O que é ser pai é uma pergunta que cabe no contexto atual, uma vez que "a velocidade avassaladora das transformações em todos os sentidos da vida cotidiana afeta, como não poderia deixar de ser, as insígnias paternas" (CAMPOS, 2006, p.72). Então, muitas vezes, encontramos esse sujeito angustiado com relação à postura que deve ter não só perante o seu filho, mas também à sua mulher, frente a todas essas transformações.

Lacan traz diversas contribuições para que se pense a função do pai e o que vem sendo chamado de seu declínio. É interessante observar que este autor, mais especificamente em seu texto intitulado Nomes-do-Pai, fruto de um seminário proferido em 1953 e estabelecido por Jacques-Alain Miller (2005ª), utiliza não mais o conceito de Nome-do-Pai, que é o significante da função paterna, mas sim, Nomes-do-Pai, apontando para uma pluralização da função do pai, o que seria mais sensato de se pensar do que em um declínio da mesma. O pai, a partir dessa nova leitura, pode ter diversas funções e utilidades, dependendo do que for mais proveitoso para o sintoma do sujeito.

Portanto, tomando como ponto de partida o que foi exposto acima, pretende investigar as possíveis influências e usos da função do pai no campo da religião, bem como algumas consequências das transformações sofridas pela família e a "necessidade", apresentada, de busca de um Deus. Este artigo questiona, e permite que sejam abertas novas possibilidades de questionamentos, sobre até que ponto o fortalecimento dos movimentos religiosos pode ser considerado uma das consequências da queda de alguns referenciais paternos que se nota especialmente na contemporaneidade.

A pesquisa, de natureza bibliográfica, está dividida em três capítulos. No primeiro, abordamos alguns textos de Freud que enfatizam a questão de como a imagem de Deus reflete a imagem de um pai. A partir dos textos freudianos sobre o Pai Totêmico, demonstraremos como Freud elabora sua hipótese de que a ideia de um Deus, da qual a religião se utiliza, está imbuída da figura paterna. No segundo, elucidamos as contribuições que Lacan traz ao fazer uma releitura de Freud no que diz respeito ao pai. Lacan toma o pai como uma função e chama atenção para a pluralização do Nome-do-Pai, trazendo uma nova abordagem sobre o sintoma do sujeito. Já o terceiro capítulo enfoca o sintoma do neurótico de tentar salvar o pai, mantendo-o como algo sagrado, na tentativa de reaver sua autoridade, que é questionada pelas novas configurações familiares. Elucidaremos o posicionamento da religião com relação ao enfraquecimento dos referenciais paternos nas famílias, fazendo uso da imagem do pai que há na figura de Deus para manter sua força e não permitindo ao sujeito ir além do pai.

 

Freud, a religião e o pai

Nesse capítulo, abordamos especialmente a ligação que Freud faz da imagem de Deus com a imagem de um pai, chamando a atenção para o sentimento que promove essa ligação, a saber, o desamparo experienciado na infância e jamais esquecido. Assim, Freud mostra como a religião se utiliza desse fato; para isso, ele traz a figura do pai para o centro de suas reflexões.

Freud vai definir o pai utilizando-se do mito do pai da horda primeva, no qual se pode perceber o contraste entre o pai potente, idealizado, que corresponde exatamente à imagem que o pai da horda recebe após sua morte, e o pai do neurótico, bastante deficiente quando comparado àquele.

 

A concepção de religião nos textos freudianos.

Iniciaremos nossa discussão da visão de Freud sobre a religião, ressaltando um de seus textos considerado essencial para compreendermos a origem das crenças religiosas.

Freud (1912-13/1996a), em seu texto Totem e Tabu, inicia uma das mais importantes discussões desse texto. Ele recorre às colocações sobre a horda primitiva de Darwin, que foi formulada para os gorilas e adaptada para os hominídeos por Atkinson Mezan (1985). Segundo Atkinson, existia um pai ciumento e violento, ou um macho dominador e tirânico, que possuía todas as fêmeas, para si próprio e expulsava os filhos de seu convívio. Freud (1912-13/1996a), então, elabora uma descrição sobre um fato determinante que poderia ter ocorrido nessa época, o seu chamado "mito científico": os filhos, que tinham sido expulsos, certo dia se unem e voltam para matar o pai, findando a horda patriarcal. Como eram selvagens canibais, não só mataram, mas também devoraram o pai. Assim, "o violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força" (1912-13/1996a p.170).

Nesse sentido, a refeição totêmica pode ser vista como uma maneira de recordar, através de uma repetição, o ato criminoso, repetição esta que é considerada a base encontrada na organização social, nas restrições morais e nas religiões. No entanto, após terem matado o pai, a horda estaria fadada à desintegração, uma vez que os filhos lutariam entre si para disputarem o lugar do pai, visando possuírem todas as mulheres para si. Como nenhum possuía uma força tão grande para derrotar todos os outros e se tornar o chefe da horda, isso acabaria em uma luta de todos contra todos. Freud (1912-13/1996a), então, supõe que todos os filhos que cometeram o ato criminoso estavam repletos de sentimentos de ambivalência com relação ao pai: ao mesmo tempo em que o odiavam por ter proibido seus desejos sexuais e tomado todas as mulheres para si, o admiravam e o amavam também. Dessa forma, "após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso" (FREUD, 1912-13/1996a, p.171). Surgiu um sentimento de culpa que coincidia com o remorso experienciado por todo o grupo.

Desse modo, os filhos acabaram fazendo com que o pai se tornasse mais forte do que quando vivo: o que era interditado pela presença real do pai, foi proibido pelos filhos2. "Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas" (FREUD, 1912-13/1996a, p.172). Movidos por um sentimento de culpa filial, criaram os dois tabus fundamentais do totemismo: não matar o totem e não praticar o incesto. Essa primeira lei advém de um ato real, a saber, a morte do pai, que de nenhuma forma poderia ser desfeito. Já com relação ao tabu do incesto, pode-se pensar que os filhos, percebendo que se fossem colocar em prática todos os seus desejos sexuais fariam com que, inevitavelmente, a horda se desintegrasse; como já foi citado anteriormente, não tiveram outra escolha "do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai" (FREUD, 1912-13/1996a, p.172).

Assim, pode-se pensar o totemismo como uma primeira experiência religiosa. A partir de então, todas as religiões que surgiram posteriormente possuem em sua base tentativas de lidar com esse problema do sentimento filial de culpa. De acordo com Freud (1912-13/1996a p.173), as religiões

Variam de acordo com o estágio de civilização em que surgiram e com os métodos que adotam; mas todas têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento com que a civilização começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à humanidade um momento de descanso.

Freud (1912-13/1996a), ainda em seu texto Totem e Tabu, chama a atenção para o fato de que o deus dos seres humanos é feito semelhante ao pai, "que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado" (p.175, grifo nosso). A psicanálise endossa, então, a fundamental importância do elemento paterno no conceito de Deus. Na situação totêmica, o pai é representado duplamente com o ritual do sacrifício primitivo: uma vez, como Deus e outra, como o animal totêmico sacrificado. O autor nos mostra uma série de relações entre o deus e o animal sagrado, o que permite supor que o deus era o animal totêmico e dele foi derivado, em uma fase mais avançada da religião. "Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana" (FREUD, 1912-13/1996a, p.176).

Mas, como o pai foi elevado à condição de deus? O psicanalista argumenta que o sentimento que induziu os irmãos a matarem o pai, a saber, o de se tornar semelhante a ele, ocupando seu lugar, foi se tornando mais fraco, dando lugar a um sentimento de saudade, possibilitando o surgimento de um ideal que corporificasse o poder ilimitado desse pai e ao qual todos os membros do clã se submeteriam. Dessa forma, esse antigo ideal poderia ser vivido com a criação de deuses. Percebemos, então, a elevação do pai da horda primeva, que fora assassinado, a um lugar de deus, como uma tentativa muito séria de expiação da culpa filial.

Podemos pensar nas consequências trazidas ao campo social, ou melhor, na organização social. Com a criação desses deuses, que eram substitutos paternos, a sociedade foi se transformando gradualmente em uma organização com base patriarcal. "A família constituiu uma restauração da antiga horda primeva e devolveu aos pais uma grande parte de seus antigos direitos" (FREUD, 1912-13/1996a, p.178). Porém, a diferença existente entre os pais das famílias com o pai da ordem primeva era ainda muito grande, o que garantia que a religião, fundamentada na saudade não apaziguada do pai, mantivesse o seu espaço.

Percebemos que Freud, especialmente nesse texto de 1912-13, deixa claro, com a formulação sobre o assassinato do pai da ordem primeva, que a base tanto da religião e da moral, quanto da sociedade e da arte se situa no complexo de Édipo, ou seja, na relação com o pai. Essa relação da religião com a figura paterna só pode se sustentar se pensarmos no humano lançado em um desamparo, e que, portanto, busca incessantemente um sentido seguro, construindo e buscando para si uma ilusão. É o que Freud endossará em seu texto O Futuro de uma Ilusão, de 1927.

Freud (1927/1978a) inicia seu texto, O Futuro de uma Ilusão, discorrendo sobre as restrições que a civilização impõe aos indivíduos para que esta seja mantida. Além dessas privações, o homem ainda tem que lidar com o sofrimento imposto por outros homens e também pelos danos causados pela natureza, que até hoje não é passível de controle - é o que ele chama de Destino. Essa não-submissão da natureza ao homem nos remete ao nosso desamparo que acreditávamos ter vencido por meio da civilização.

Freud (1927/1978a) nos alerta que essa situação de desamparo e ambivalência experienciada frente ao Destino não é nova. Sentimento semelhante é experimentado por todas as crianças com relação aos seus pais. Ao mesmo tempo em que a criança teme seus pais, em especial a figura paterna, ela sabe que pode contar com sua proteção contra os perigos. Nesse sentido, o que o homem fez foi somente aproximar as duas situações, sendo que ele transforma "as forças da natureza não simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com seus iguais..., mas lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo... não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético" (p.97). Essa tentativa de personificar o desconhecido é uma forma não só de se aproximar dele, como também de tornar possível certa influência sobre o mesmo.

Apesar da tentativa do homem de controlar essas forças naturais, o desamparo humano ainda permanece. Assim, o homem continua necessitando da proteção de um pai ou de deuses que possuem a missão de protegê-lo contra os imprevistos naturais, reconciliá-lo com a não-possibilidade de controle do destino, em especial da morte, e propiciar alguma vantagem pelas privações a que é submetido em nome da civilização (FREUD, 1927/1978a).

Freud (1927/1978a), então, revela que, tanto no texto, O Futuro de uma Ilusão, como em Totem e Tabu, sua pretensão é de mostrar a vinculação entre os motivos manifestos e os latentes, "entre o complexo paterno e o desamparo e a necessidade de proteção do homem" (p.102). Lembra-nos que o primeiro objeto de amor do indivíduo é a mãe, e que é esta quem desempenha inicialmente a função protetora contra os perigos do mundo externo. Porém, essa função logo passa a ser exercida pelo pai que continua nesse lugar por toda a infância. O pai desperta sentimentos ambivalentes na criança: ela vivencia tanto um temor com relação a sua figura, devido à intromissão que este faz no relacionamento da criança com a mãe, quanto um anseio e admiração por ele.

Freud (1927/1978a) ainda faz uma revelação (talvez a mais polêmica) sobre a origem psíquica das idéias religiosas. O autor afirma que "estas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos" (p.107). Assim, as ideias religiosas são ilusões, não no sentido de erros, mas, sim, de realizações de um desejo a que o ser humano, em especial, o neurótico, se aferra: o desejo de prolongar a proteção paterna sentida na infância para toda sua existência. Nesse sentido, ao contrário dos delírios psicóticos, elas não precisam estar em contradição com a realidade, mas também não dão acesso à verificação. De acordo com Freud (1927/1978a), a terrível sensação de desamparo experienciada na infância despertou a "necessidade de proteção - de proteção através do amor -, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso" (p. 107).

Assim, para o ser humano, a possibilidade de realizar esse desejo, ou de projetar os conflitos vividos na relação com o pai em uma solução que é socialmente aceita, como o é a religião, constitui algo muito interessante para sua economia psíquica. Esses desejos, segundo Küng (2006), são oriundos de conflitos da infância - tanto da infância do indivíduo humano, quanto da infância da espécie humana, já que a primeira é uma imagem da segunda - que estão ligados ao complexo paterno. Esse mesmo autor afirma, ainda, que "em ambos os casos a raiz das necessidades religiosas é o desejo pelo pai, em ambos os casos o papel central é representado pelo complexo de Édipo" (p.41, grifo nosso).

Em seu texto O Mal estar na Civilização, Freud (1929-30/1978b) afirma que "um sentimento só poderá ser fonte de energia se ele próprio for expressão de uma necessidade intensa" (p.137). Pode-se pensar que não há anseio maior do que aquele, vivido na infância, de uma proteção paterna. Dessa forma, reafirma a hipótese, já elaborada e citada anteriormente em seu texto escrito em 1927, O Futuro de uma Ilusão, de que a necessidade de se possuir uma crença religiosa estaria ligada à necessidade do homem de se relacionar com o pai, sendo assim, uma reedição do sentimento de desamparo infantil. Ou seja, seria a reedição da necessidade de proteção de um pai vivida na infância, de uma proteção contra um poder superior do Destino. A religião, nesse caso, se explicaria pela nossa necessidade inconsciente de mascarar esse sentimento de desamparo, buscando uma proteção e orientação para nossas ações e procedimentos pessoais contra o Destino que é desconhecido. Nesse sentido, pode-se pensar que a religião, juntamente com suas crenças, figura-se como uma forma de mecanismo de defesa utilizado pelo eu contra os perigos advindos do mundo externo.

Segundo Freud (1929-30/1978b), uma das características da religião é a tentativa que esta realiza, muitas vezes até bem sucedida, de dar sentido à existência terrena. A questão sobre o porquê da vida humana, ou seja, seu objetivo ou seu propósito, já foi levantada diversas vezes, porém, sem respostas satisfatórias. A maioria dos homens descarta a possibilidade de não existir esse propósito e a religião entra como uma possibilidade para resolver essa questão.

O autor afirma ainda que "os juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões" (FREUD, 1929-30/1978b, p. 193). E é assim que a religião se utiliza dos valores morais da sociedade, fazendo com que esses apoiem seus preceitos advindos de realizações de desejos, configurando-se como uma ilusão.

A última contribuição sobre a questão da religião que Freud fez veio em 1939, com o texto Moisés e o Monoteísmo, o qual foi dividido em dois temas: um levantamento sobre a origem do Judaísmo, que acabou abarcando a origem do Cristianismo também, e uma consideração sobre o significado da religião de forma geral.

Freud (1939/1996b) comenta o surgimento da religião cristã. Para ele, Paulo de Tarso, um judeu romano, tomou para si o sentimento de culpa remanescente do assassinato ocorrido na horda primeva, remontando-o de forma correta à sua fonte de origem, denominando-a de pecado original. Esse pecado original nada mais era do que a morte do pai primevo. Porém, em vez da recordação do assassinato, apareceu uma fantasia de sua redenção. Para isso, "um filho de Deus se permitira ser morto sem culpa e assim tomara sobre si próprio a culpa de todos os homens. Tinha de ser um filho, visto que fora o assassinato de um pai" (FREUD, 1939/1996b, p. 106).

De acordo com Morano (2003), não existe sistema religioso que expresse de melhor forma o acontecimento da morte do pai do que o cristianismo. A morte do filho estaria relacionada com a expiação da culpa pelo pecado original, isto é, pelo assassinato do pai. Assim, a ambivalência que toda forma de expressão religiosa possui, "faz com que o pai renasça das cinzas e se imponha novamente, promovendo o dogma cristão da ressurreição e divinização do filho morto, o qual vem desse modo a suplantar mais uma vez o pai" (p.39).

Freud (1939/1996b) chama a atenção para o fato de que a religião cristã destronou o pai, colocando em seu lugar o filho. Nesse sentido, "o judaísmo fora uma religião do pai; o cristianismo tornou-se uma religião do filho. O antigo Deus-Pai tombou para trás de Cristo; Cristo, o filho, tomou seu lugar, tal como todo filho tivera esperança de fazê-lo, nos tempos primevos" (p.108). Paulo ainda abandonou a circuncisão, característica que o povo judeu tomava para reforçar o caráter de ser o povo escolhido, fazendo, assim, com que a religião cristã fosse mais acessível a todos os homens, mais universal.

Sobre o pai totêmico, frisando a sua relação com o pai castrado submetido ao Complexo de Édipo, o que podemos pensar é que sempre haverá uma distância inatingível entre eles. O pai da horda primeva, elevado à posição de Deus nas religiões monoteístas, será regularmente oposto ao pai da realidade, "como instância capaz de limitar a onipotência deste último" (MEZAN, 1985, p.352).

É percebendo o sentimento saudosista com relação ao pai totêmico, perfeito, encontrado especialmente no sujeito neurótico, que as religiões irão apelar para a imagem de Deus como uma corporificação desse pai, principalmente quando as falhas do pai da realidade, castrado, começam a ficar mais visíveis e insuportáveis para esse sujeito.

Ao longo desse capítulo primeiro, notamos, na teoria freudiana, como o pai vai se tornando uma instância não pacificadora. Entra-se em contato com uma ambiguidade que exige que o sujeito faça uma elaboração da ambivalência experienciada frente à figura do pai, da oscilação entre amor e ódio. Aqui, o amor é usado como proteção contra a angústia, velando a inconsistência paterna e impedindo, assim como o ódio, o contato com o desamparo irredutível presente na vida do sujeito.

Lacan, em seu Seminário livro 5, As formações do inconsciente, nos chama a atenção para o fato de que o indivíduo pode se valer do pai a partir do Édipo, afirmando que não existe Édipo se não houver pai, ao mesmo tempo em que falar desse complexo é mostrar como é essencial a função do pai. E é sobre essa nova leitura que Lacan faz da função exercida pelo pai, articulada no conceito de Nome-do-Pai, que discorreremos no nosso próximo capítulo.

 

Nome-do-Pai ou Nomes-do-Pai? Uma releitura da figura paterna freudiana

Neste capítulo, iremos abordar a visão da figura paterna que Lacan elaborou a partir de sua leitura da obra freudiana. Lacan avançou com relação à temática do pai, diferenciando o pai-personagem de sua função na estrutura subjetiva, considerando os três registros: imaginário, simbólico e real. A partir da elaboração do conceito de metáfora paterna, esse autor atenta para o fato de que o pai simbólico deixa no discurso um vestígio, denominado Nome-do-Pai, o qual metaforicamente se põe no lugar do desejo da mãe. O significante Nome-do-Pai é algo exterior: não se trata da pessoa do pai, e sim de uma metáfora que faz a substituição de outros significantes. Tentaremos elucidar como Lacan passa, ao final de sua obra, do conceito Nome-do-Pai para Nomes-do-Pai, no plural, atentando para as várias facetas que esse pai edípico pode tomar.

 

Metáfora paterna e Nome-do-Pai

É comum o uso do termo metáfora paterna na teoria sobre a função do pai. É Lacan quem traz à tona esse termo, explicando o porquê de sua utilização.

Para Lacan (1957-58/1999), o pai não é um objeto real, nem tampouco ideal, mas sim uma metáfora. Segundo ele, uma metáfora "é um significante que surge no lugar de outro significante. [...] O pai é um significante que substituiu um outro significante. Nisso está o pilar, o pilar essencial, o pilar único da intervenção do pai no complexo de Édipo" (p. 180).

Nesse sentido, é justificável que se pense em metáfora no sentido de que o que vai ocorrer é uma substituição de significante. Assim, podemos entender que o significante originário do desejo materno é substituído por um novo significante. Nesse processo, o primeiro se tornará inconsciente: é o que é chamado de recalque originário. Somente através desse recalque originário é que se pode provar que a criança renunciou ao seu primeiro objeto de desejo.

O significante que representa o desejo materno é chamado de S1. Quando a criança realiza aquele último deslocamento do objeto fálico, significando o pai como o que mobiliza o desejo da mãe e como possuidor do falo, ela aceita que um significante novo, o Nome-do-Pai3, que é o S2, substitua o S1, fazendo com que este último se torne inconsciente. E é assim que o pai real é investido como pai simbólico, processo que é mediado pelo pai imaginário4.

A partir daí, a referência ao pai passa a ser apenas um significante, o Nome-do-Pai. Nesse sentido, Lacan (1957-58/1999) insiste que "a função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno" (p.180).

Nesse processo de substituição de significantes, a atitude dessa mãe com relação à palavra do pai é primordial, para que a metáfora paterna aconteça efetivamente. É fundamental, então, que a mãe "funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou seja, pura e simplesmente, a lei como tal. Trata-se do pai, portanto, como Nome-do-Pai" (LACAN, 1957-58/1999, p.197).

Assim, não importa que o pai falte algumas vezes ou que haja uma carência paterna, por esse pai ser imbecil demais. "O essencial é que o sujeito, seja por que lado for, tenha adquirido a dimensão do Nome-do-Pai" (LACAN, 1957-58/1999, p.162). Isto é, o essencial é que o sujeito tenha feito essa substituição do significante do desejo de ter a mãe, perdido para sempre, pelo significante do Nome-do-Pai.

 

Nomes-do-Pai como sinthoma

Lacan segue Freud com relação à afirmação de que os sintomas neuróticos são formações do inconsciente, resultados de uma formação de compromisso entre pulsões contraditórias. Porém, Lacan muda a maneira de se referir a esses sintomas, estruturando-os como significantes. Trata-se de uma mensagem que é endereçada ao Outro, um significante do qual não conhecemos o significado. É a expressão camuflada de um desejo, de uma fantasia inconsciente, que inclui em si um gozo, e essa é a razão por persistir mesmo causando sofrimento ao sujeito.

A partir de 1975, em seu Seminário, livro 23, o Sinthoma, Lacan aproxima o conceito de sintoma com o de uma mensagem obscura do Real que, por seu caráter de gozo, não pode ser interpretada. De mensagem cifrada, o sintoma converteu-se em um meio do sujeito organizar seu gozo.

O sintoma, então, é o que se apresenta como demanda direcionada ao analista no início de uma análise, enquanto que o sinthoma, diferenciado do primeiro por ser escrito com th, é o responsável por estruturar a vida psíquica, é um reordenamento que se torna possível de ser utilizado como o quarto nó, na ligação dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário e que ajuda a estabelecer os laços sociais. O sinthoma passa a ser um equivalente do Nome-do-Pai, uma forma de amarração que dá ao Real um sentido e que tem a capacidade de suprir a ausência do Nome-do-Pai5. O sinthoma estará relacionado com o fim da análise, já que aí Lacan afirma que o sujeito deverá fazer uso de seu sinthoma, do que lhe é mais particular.

Vejamos, então, como o pai pode se fazer valer como um sinthoma, como um instrumento a ser usado e ultrapassado por seu filho.

Primeiramente o pai, no exercício real de sua função, deve permitir que suas falhas e faltas apareçam. A derrota da função do pai ocorre quando se identifica "o sujeito genitor ao Nome-do-Pai como universal do pai, como vetor do absoluto e do abstrato da ordem simbólica" (MILLER, 2003, p.10, como citado em Zenoni, 2007, Dois desdobramentos clínicos, para. 2). Assim, o pai identificar-se à lei, "com a exclusão de qualquer manifestação da particularidade do desejo, é o risco da falsa paternidade, risco tão eminente que a função ou missão simbólica a cargo do pai [...], tende a ser transposta para a vida familiar" (LACAN, 1966, p.579, como citado em ZENONI, 2007).

Segundo Oliveira (2006), "os desenvolvimentos desse laço do pai com a falta levam Lacan a considerar que o Nome-do-Pai não é mais do que um semblante desse lugar vazio, deixando de ser único para ser plural" (p.107). Devemos nos indagar sobre o que desempenhou essa função em cada caso, sendo que é primordial que a referência permaneça vazia e que ninguém se tome como autor da lei.

Quando encarna o saber absoluto sobre a paternidade, o pai gera uma suficiência que atrapalha sua função de anteparo realizada entre a mãe e a criança. Assim, ele deve se desvencilhar de sua auto-suficiência, de sua impressão de deter todo o conhecimento e segurança com relação aos seus atos na paternidade para realmente exercer sua função. Quando o pai insiste em se colocar como possuidor desse saber, o que se nota é que ele fracassa na transmissão simbólica e esse fato traz diversas consequências psíquicas para seu filho. Por outro lado, "quando o pai se deixa utilizar como um instrumento por seu filho e permite ser superado por seu ato, a transmissão simbólica apazigua a esfera do real" (CAMPOS, 2006, p.76). Portanto, é fundamental que o filho visualize o pai e faça uso do mesmo como um instrumento, para poder ir além dele.

Sobre a posição do pai como instrumento a ser usado pelo filho, Campos (2006) afirma que o segundo ensino de Lacan está às voltas com a utilidade do pai, "pela orientação de um pai outil6, que pode ser lido como um pai-ferramenta ou como um pai útil" (p.77).

Baseado nessa ideia, Campos (2006), ao descrever a função paterna, elabora uma metáfora muito interessante para refletirmos. Para ele, o pai age como se fosse um muro que se coloca entre a criança e o desejo da mãe, à sombra do qual o filho se desenvolve. Ao longo do crescimento do filho, esse muro tem sua altura e espessura reduzidas, deixando transparecer suas frestas, falhas e rachaduras, mostrando que não é e nem nunca foi tão resistente e seguro quanto se supôs.

O filho faz uso do pai, e tem que saber fazê-lo em seu tempo certo, da mesma forma que o pai também tem que saber se deixar usar por seu filho. Mais importante do que saber usar o pai é saber desfazer-se dele em um determinado momento. Se esse tempo se estender demais, a relação pai-filho adoecerá (CAMPOS, 2006). Ou seja, não se trata simplesmente de utilizar-se do pai, mas saber o momento em que se faz necessário se desvencilhar do mesmo, momento este em que ele se torna dispensável, exatamente para que o filho possa ir além dele.

Zenoni (2007) enfatiza a questão de que no ensino lacaniano, "a noção de Nome-do-Pai tende a diferenciar-se, cada vez mais, do pai, passando a designar então uma função de nó, que múltiplos substantivos - inclusive o próprio pai - podem desempenhar" (Do significante último ao semblante múltiplo, para. 1, grifo do autor). Assim, Lacan vai pensar não só em uma possibilidade de amarração dos três registros, mas em tantas quanto forem necessárias para o sujeito. Lacan sugere, então, que os Nomes-do-Pai são os pontos de apoio que amarram os três registros: Real, Simbólico e Imaginário.

Nesse sentido, "não existe um nome próprio para a função de pai: existem tantos nomes quantos suportes demandem essa função. Lacan, então, deixa de enunciar o Nome-do-Pai, no singular, e passa a falar em nomes do pai, no plural" (CAMPOS, 2006, p.76). O Nome-do-Pai, fazendo-se múltiplo, faz com que cada sujeito responda o que operou, para ele, como função paterna.

Uma das consequências da pluralização do Nome-do-Pai é fazer com que o pai passe a ser visto também como testemunha, juiz, agente e, até parceiro e comparsa. Com isso, podemos dizer que a função do pai é absolutamente múltipla; função esta que depende da versão dada pelo sujeito a ela. Lacan (1974-75) já dizia, em seu Seminário RSI: "a versão que lhe é própria da sua pai-versão7. Única garantia de sua função de pai que é a função, a função de sintoma... Para isso, basta aí que ele seja um modelo da função" (p.23).

De acordo com Zenoni (2007), a clínica mostra que as maneiras de amarração do gozo e do semblante podem se produzir sem que para isso se tenha que utilizar a "pai-versão" do laço. A clínica "mostra que determinados sintomas podem garantir uma função análoga à do pai, sem ter que recorrer a ele, enquanto a incidência do pai comporta sempre algum resíduo sintomático" (Uma questão de sintoma, o pai, para. 2). Portanto, não é somente o Nome-do-Pai que pode exercer a função de amarração dos três registros, existindo outros sintomas que podem colocar em prática essa mesma função.

Quando o sintoma é reduzido ao que não depende mais do inconsciente, tendo se destacado do registro da metáfora e atingido o nível de opacidade em que se tem que fazer algo dele, o pai se torna dispensável, após, na maioria dos casos, ter sido usado. Concluímos então que, após servir-se do pai e prescindir-se dele, o filho poderá realizar diversas amarrações do nó borromeano. E mais importante do que utilizar-se do pai é saber desfazer-se e ir além dele.

A partir dessas reflexões, podemos nos questionar se ter fé pode ser sinônimo de agarrar-se à figura do pai em sua condição de ideal e ainda, não ultrapassá-lo para dele se servir. No próximo capítulo, tentaremos esclarecer como o sujeito neurótico, após a saída do Édipo, agarra-se à religião, na tentativa de tamponar as falhas do pai, esse pai inconsistente da realidade, através do amor, venerando a imagem de Deus, o pai perfeito, elevado à condição do 'ao menos um' não castrado da horda primeva.

 

A "necessidade" neurótica de salvar o pai

Elucidaremos, nesse terceiro capítulo, a tentativa que é realizada pelo sujeito, em especial, o neurótico, de manter o pai no lugar do sagrado, na esperança de recuperar sua autoridade, que é posta em questão nas configurações familiares atuais. É nítido que a família tem experienciado mudanças radicais ao longo do tempo. Mas, quais as consequências que esse fato pode trazer ao sujeito? Será que realmente a família dita tradicional - com pai, mãe e filho - é a mais 'normatizadora' para o sujeito?

O que percebemos é que a religião, notando essa desorientação com relação às novas formas de se relacionar com os objetos e com as pessoas, juntamente com o movimento deflagrado pelo sintoma do neurótico que chora sobre o túmulo do pai perfeito, utiliza-se do forte significante paterno que há na imagem de Deus, como promessa de uma reestruturação da ordem, mantendo sua atração aos fiéis insuperável.

 

Declínio da imago paterna e mudanças na estrutura familiar

Observamos que as últimas décadas, principalmente no Ocidente, têm sido marcadas por profundas mudanças de valores, identidades e comportamentos. Temos visto, na verdade, reorganizações de padrões, como modificações nas condições de procriação, sendo que o ato sexual deixou de ser a única forma de fertilização existente; mudanças nas maneiras de se criar um filho, considerando a homopaternidade e a monopaternidade; bem como a crescente demanda de modificação da identidade sexual.

As formas de reação a essa nova dinâmica social foram diversas, com especulações sobre suas possíveis consequências. Afirmou-se que era o fim da família, da moral e dos costumes; anteciparam-se os problemas psíquicos para as crianças submetidas às novas formas de filiação e sentenciou-se a queda do pai na família, o que traria prejuízos incalculáveis para que o indivíduo se constituísse como sujeito. A referência de normalidade e das melhores condições de organização psíquica é a família tradicional e que tem como base o pai, sendo que todo e qualquer modo de filiação que não se encaixasse nesse padrão produziria sujeitos com sérios problemas psíquicos.

Porém, avaliando as reais consequências decorrentes dessas transformações, o que nos parece é que nenhuma mudança radical aconteceu. Isso é, não estamos observando problemas mais sérios do que os que já havia com relação à subjetivação do indivíduo, devido à falta de um pai na família. Isso nos mostra que não há um caminho único ou uma maneira exclusiva de subjetivação, de acesso à ordem simbólica. Não é a presença do pai que faz a diferença, mas sim que o sujeito seja reconhecido pela palavra do Outro. O que nos parece é que essa 'crise da paternidade' é uma crise basicamente dos neuróticos, que não aceitam que o pai não ocupe o lugar principal na dinâmica familiar.

Em seu exercício da clínica psicanalítica, Lacan percebeu o declínio a que a figura paterna estava sendo submetida, notando que a presença paterna não era tão eficiente quanto Freud apostava. Segundo Teixeira (2006, p. 90),

foi por ter levado a sério essa dificuldade em lidar com os sintomas, diante do declínio da função paterna, que Lacan se pôs a elaborar sua lógica, desvelando-nos a estrutura do que, sob o semblant do pai, poderia condicionar a direção do tratamento.

Para Lacan (1938/1987), a imago paterna está em declínio. Porém, ao notar essa ocorrência e suas consequências na subjetividade, mostrada em diversas formas de sintoma, Lacan, ao contrário de Freud, "em vez de se queixar como um homem desconsolado sobre a tumba do ideal, observa que o nascimento da psicanálise se deveu, justamente, à crise paterna" (CAMPOS, 2006, p.73). Essa crise paterna é inerente à civilização humana, já que o pai é falho, furado, desde sempre.

Percebemos que houve a perpetuação de uma fantasia neurótica, a saber, a imagem do pai ideal, perfeito. Vimos que isso ocorre ao longo da construção da teoria freudiana, reflexo não só da estrutura psíquica desse autor, mas de uma necessidade já presente na sociedade daquela época.

Esse semblante de pai perfeito, tão vendido e cobrado pela mídia atual é de responsabilidade do filho, uma vez que é este que o coloca nesse lugar. O neurótico está sempre tentando dar consistência ao pai idealizado, criado por ele próprio e, perante o qual, prefere permanecer de olhos fechados, fingindo não ver que essa referência absoluta é impossível e não existe, o que o faz recorrer à figura de Deus.

Podemos pensar, então, que não é que o pai esteja falido de uns tempos para cá e a sociedade esteja tentando desenfreadamente tamponar o desmoronamento da função paterna. Esse pai já é caído desde sempre. O mito do pai da horda primeva serve para mostrar esse 'ao menos um' que não é submetido à castração. Todos os outros são, serão e sempre foram. As formas de constituição da família estão mudando e isso é fato. Mas isso não quer dizer que quando a família possuía mais fortemente uma base patriarcal, esse pai era completo. Talvez o que esteja ocorrendo agora é que com a sociedade guiada pelo imperativo do gozo, esse vazio, essa queda esteja ficando mais evidente. Dessa forma, o sujeito se depara mais escancaradamente com a falta de sentido que tanto o angustia. E tentando buscar esse sentido, ou uma segurança, na figura do pai, o sujeito se depara com suas falhas, com um pai que não consegue sustentar esse semblante de perfeito. Os furos do pai estão cada vez mais escancarados para o sujeito e ele tenta desesperadamente não encará-los.

A verdade é que, quanto mais se fala na queda do pai, mais se mostra que o desejo é de salvar esse pai, de não deixar que ele caia. Porém, como já foi dito, esse pai já é caído desde sempre. Aliás, assim como vimos em nosso segundo capítulo, ele deve ser caído, ou seja, suas falhas e faltas devem aparecer para que o filho possa fazer valer o seu desejo.

Do traço que o filho herda do pai é feito um sinthoma, algo muito particular que o ajuda a dar um sentido, uma orientação ao gozo. O filho, então, "deixa de se lamentar sobre a falta e se assume na diferença absoluta de seu gozo íntimo e singular" (ALBUQUERQUE, 2006, p.66). Essa é a verdadeira função e responsabilidade do pai: servir de suporte para que seu filho o use e, posteriormente, o ultrapasse.

Não há como negar que a sociedade em que estamos vivendo, com sua capacidade de produção excessiva, é o lugar de novos perigos, objetos e novas formas de se relacionar, que põem a singularidade em xeque. As formas tradicionais, antes suficientes para regular o gozo, não são mais eficazes, o que acarreta ao sujeito uma dificuldade de se orientar no campo do gozo. Ele se questiona sobre qual o melhor tratamento a ser dado a esse excesso, quando o mercado oferece uma variedade enorme de modos de gozo.

Por outro lado, a cultura oferece e põe à disposição do sujeito diversos sistemas simbólicos na tentativa de amenizar o mal estar vindo dessa desorientação vivida no campo do gozo. É o caso da religião, por exemplo, que mesmo se aproveitando de símbolos que representem o amparo, não tem a competência de abarcar esse vazio humano.

 

As falhas do pai e a religião da busca do sentido

A partir do que discutimos ao longo desse nosso terceiro capítulo, percebemos que o ser humano, ao que parece, não quer abrir mão do pai potente, perfeito e, por isso, busca a religião, mais precisamente o pai da religião. Em Nome-do-Pai, e como que para manter o culto milenar à figura paterna, a sociedade, basicamente neurótica, posiciona-se como defensora da autoridade do pai, atribuindo à sua ausência na família todas as transformações sociais vividas nas últimas décadas. Desde o momento em que o sujeito não encontra mais essa referência na família, ele pode buscá-la em outros lugares. Nesse sentido, a procura e a valorização da religião podem ser saídas bem utilizadas, uma vez que aí se consegue obter a personificação dessa figura do pai tão buscada.

E assim podemos pensar na principal diferença entre o pai outil e o pai da religião: o pai outil, mostrando suas falhas e lacunas, deve se deixar usar pelo seu filho para que este último vá mais além dele, enquanto que o pai da religião se coloca em um lugar inatingível, de pai morto, lugar de perfeição e que seu filho sempre verá de uma posição submissa. As religiões não disponibilizam a figura do pai para ser usada como maneira de ir além desse pai. Pelo contrário, por elas, o sujeito deve ficar agarrado ao Complexo de Édipo, venerando esse pai morto, o 'ao menos um' que não foi castrado, durante toda sua vida. Elas não têm interesse algum nesse desvencilhamento do indivíduo, de forma que possa posicionar-se como sujeito, lidando com a falta de sentido e se responsabilizando pelo seu gozo. Sob o ponto de vista religioso, o sujeito tem que continuar dependente da figura do pai como norteadora; caso contrário, as religiões perderiam o controle sobre as vidas de seus fiéis.

Frente à mudança de parâmetros da sociedade, a religião promove ainda mais fortemente a ideia de um Deus que detém a verdade sobre todas as coisas e que pode curar esse sujeito que se apresenta vazio de ideais, desprotegido e vulnerável quanto às várias ofertas de gozo a ele apresentadas, e que continua na busca desesperada de reviver ou de salvar a autoridade paterna.

Aliada a essa constante necessidade de proteção do pai, há também uma busca incessante de sentido, realizada pelo sujeito neurótico, e a religião os oferece aos montes. O neurótico se reporta ao Outro sempre com uma demanda de interpretação sobre o seu ser. A maioria das religiões proporciona um local específico para que essa comunicação aconteça, tido como sagrado, e um livro de regras e histórias que enchem de sentido a vida do sujeito, dando a ilusória sensação de segurança. Ela corporifica em um lugar o Nome-do-Pai, substancializa uma função e a transforma em um pai perfeito, contagiando fantasiosamente o sujeito.

Assim, movido pela sua ilusão, o sujeito quer alcançar o paraíso perdido, tão prometido pela religião. Um lugar onde não se experimenta a falta, fazendo com que ele seja completo, perfeito e, definitivamente, feliz. Sem perda, sem culpa, sem desejo. Ou seja, um lugar que não é possível de existir. Essa é uma oferta extremamente sedutora para o neurótico. Desse modo, a religião consegue manter-se muito presente em nossa sociedade até a atualidade, configurando-se como refúgio e fonte de garantia de felicidade para o sujeito.

Aqui, não poderíamos deixar de ressaltar como a afirmação de Freud, em O Futuro de uma Ilusão, de que a religião iria perder sua força conforme a ciência fosse avançando não se verifica. Ao contrário do que Freud previu, o sentimento religioso e a busca por Deus não diminuíram na atualidade, o que pode ser verificado com o crescente número de novas seitas que vêm proliferando em nossa sociedade.

Essa era a aposta de Lacan (1974/2005b) em O Triunfo da Religião, que como o próprio título de seu texto nos sugere, deixa claro que acredita que a religião triunfará, uma vez que esta atribui sentido àquilo que a ciência não consegue explicar. Em suas próprias palavras, "o real, por pouco que a ciência aí se meta, vai se estender, e a religião terá, então, muito mais razões ainda para apaziguar os corações. A ciência é novidade, e introduzirá um monte de coisas perturbadoras na vida de todos"8 (LACAN, 1974/2005b, p. 65). E, a esse respeito, continua afirmando que as religiões vão dar um sentido (o que elas sabem fazer muito bem) às reviravoltas que a ciência introduzirá. Vão dar sentido, inclusive, a algumas experiências frente às quais os próprios cientistas se sentem angustiados.

A partir dessas considerações, o que está claro é que a busca pela religião, com sua proteção contra o desamparo humano e a oferta de sentido para o que não há, não passa de uma estratégia que o sujeito utiliza para não admitir a inconsistência do Outro. Esse Outro que é e vai continuar sendo falho e barrado para todo o sempre. Amém.

 

Considerações finais

A questão sobre a existência de Deus, ou de deuses, constitui uma síntese de outras questões que movem a existência do sujeito: por que e para que estou aqui, o que é a morte, quem sou eu, o que é um pai. "São as perguntas que o simbólico abre, mas não consegue fechar. [...] É o simbólico quem nos mostra seu mistério. Mas o simbólico não consegue responder e delata, nestes pontos, a impossibilidade de dar conta do real" (JIMENEZ, 1998, p.21). Percebemos, então, que o real se apresenta mais frequentemente ao sujeito, assumindo o destaque de protagonista, lugar antes ocupado pelo simbólico. O real é algo da ordem do inapreensível, impossível de ser significado, o que gera angústia ao sujeito e que escapa também à apreensão da ciência.

Uma das formas de apaziguar a angústia despertada pela presença do real que a civilização oferece, que é da ordem do simbólico, é a religião, com o culto a uma divindade plena de poder e perfeição, doadora de sentido e garantias para a vida do sujeito. A raiz dessas ideias religiosas foi descrita como a conjugação de dois elementos: a necessidade de proteção, que surge em função do desamparo, e o anseio pelo pai. Desse modo, a figura de Deus vem ocupar o lugar que um dia esteve preenchido pelo pai.

No primeiro capítulo, abordamos a visão da psicanálise sobre a religião, tendo como base alguns textos em que Freud escreve sobre o fenômeno religioso, enfatizando principalmente a imagem paterna que há por trás da figura de Deus. Assim, Freud possibilita que utilizemos a psicanálise como instrumento que revela o que permanece velado na religião.

Como vimos, Lacan, em seus últimos Seminários, enfatiza uma noção de pai notadamente diferente da noção do pai como aquele que sustenta a ordem simbólica e portador da interdição. O que percebemos é que a leitura que o referido autor faz sobre o pai faz com que este deixe de ter a forma de oposição e passe a funcionar como um nó. Assim, Lacan desloca-se do aspecto do pai como representante de uma ordem simbólica, perfeito enquanto morto, para uma figura de pai com imperfeições, castrado.

Através dessas contribuições que Lacan faz à teoria psicanalítica do pai, abre-se também uma nova maneira de se pensar a religião. Com a noção de real, exposta no segundo momento do seu ensino, é que Lacan pôde ir além de Freud na leitura sobre a religião. Pois, se não se pode apreender, assimilar o real, a religião aí tem um lugar apaziguador: o da promessa de um mundo onde isso funciona, onde há a possibilidade da completude, do todo-sentido, onde a falta pode ser suturada pela promessa da vida eterna. É com esse recurso que a religião triunfa. Ao contrário do que previu Freud, ela só se fortalece com o passar do tempo. Diante do não querer saber, da evitação do real, faz-se necessário crer no Outro, em Deus, no pai todo poderoso, para encontrar o conforto frente ao desamparo fundamental da condição de existir. E Lacan já atentava para esse fato em 1974.

Na tentativa de aproximar a religião e o sinthoma, uma possibilidade nos chama a atenção. Percebe-se que o Nome-do-Pai começa a se apresentar como um semblante, uma máscara que vela a inconsistência do Outro. Ele não é propriamente o buraco, mas ele tampa o buraco, fazendo crer que não há buraco. Ao fazer isso, ele perde sua unicidade, já que termos variados podem cumprir essa função de tapa-buraco e nenhum deles é, por definição, o significante primeiro que está ausente. Se há vários Nomes-do-Pai, é porque nenhum deles é o Nome-do-Pai: nada corresponde a um nome próprio, todos não passam de semblantes (ZENONI, 2007).

Assim, sobre a questão da religião, podemos pensar então que ela também atua como um semblante, tentando velar a falta inerente ao ser humano, mais especificamente, a falta de um pai protetor, o desamparo infantil, como Freud já havia afirmado. Essa assertiva nos leva invariavelmente a algumas questões: poderia, então, a religião atuar como um dos tipos do Nome-do-Pai? E quais consequências esse fato traria ao sujeito? A religião poderia estar servindo como instrumento, como sinthoma, exercendo a função de nó com relação aos três registros?

Aqui, não se trata de menosprezar o Nome-do-Pai no que vai além do pai e, sim, utilizar-se dele, permitindo-se livrar de sua condição de ideal. Diante da falha do pai, o sujeito esforça-se em recompô-lo, velando essa falta. E a partir da leitura do pai em psicanálise, fica clara a irredutibilidade dessa falha paterna. O pai desce do pedestal de perfeição a que o filho o eleva, mostrando as marcas eternas de sua castração.

Se Deus está morto e o destino não oferece mais garantias, o sujeito encontra-se diante de um impasse que o obriga a se responsabilizar por seus atos. Ele entra em contato com a falta de garantias. Nesse sentido, "cada um, cada uma, é responsável pelo seu inconsciente e pela Lei que nele se articula" (JULIEN, 1996, p.94). E esse sujeito não parece estar preparado para assumir essa responsabilidade, o que é verificado pelo movimento de velar a inexistência do Outro através do amor. Ele toma como solução para a inexistência do Outro amá-lo, pois, dessa forma, ele pode fazê-lo existir. Ou seja, é através do amor que o sujeito vela a inconsistência do Outro, mantendo-se paralisado em sua posição de assujeitamento, sem poder avançar na direção da causa do desejo. Trata-se de salvar o pai encobrindo sua inconsistência através do amor.

Ao sujeito, então, é oferecido um desafio: liberar-se de seu esforço de recompor o pai, aceitando suas falhas e servindo-se dele sem, apesar disso, servir a ele. Desse modo, podemos pensar que um dos impasses a que o sujeito pode ser levado no processo analítico é a decisão fundamental entre submeter-se ao pior do pai, posicionando-se como objeto de sacrifício e dependente desse pai, amando-o incondicionalmente, ou enfrentar o desamparo experienciado com as falhas paternas, fazendo valer o seu desejo.

Então, o que o sujeito deve fazer com a inconsistência desse pai é saber utilizar suas falhas para ir além dele. Percebemos que esse é o movimento que a religião não permite que aconteça. Nela, Deus-pai é elevado a um ideal de perfeição ética. Ele é exaltado e glorificado pelos filhos, tornando-se um objeto de seu amor.

Essa pesquisa caminhou nesta direção: apontar, a partir da leitura de Freud e Lacan, como a imagem de Deus é próxima de um pai, o que é extremamente sedutor para o sujeito, que tem que lidar com seu inerente desamparo, e como a religião se utiliza desse significante para manter sua força, mesmo diante das mudanças que a sociedade e, consequentemente a família, vêm sofrendo.

 

Notas

1 Este trabalho é fruto da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São João Del Rei. A pesquisa contou com o financiamento da CAPES.

2 A esse respeito, Serge Cottet (1989) afirma que o assassinato do pai reforça a proibição. Ou seja, a transgressão da lei (o assassinato do pai) não só não possibilita o desejo como também reforça a interdição e a inibição. É o que Lacan (1986/1997) enfatiza, afirmando que "não apenas o assassinato do pai não abre a via para o gozo que sua presença era suposta interditar, mas ele reforça sua interdição" (p.216). Pode-se pensar, assim, nas consequências da máxima de Nietzsche de que "Deus está morto", uma vez que Ele ganha muito mais força. Segundo Cottet (1989), "quando o pai está aí, presente, não se goza muito e quando ele desaparece é ainda pior, ele é mais forte morto do que vivo... quanto mais reduzido ao significante morto, mais perseguidor, mais imperativo" (p.12). COTTET, S. (1989). O paradoxo do gozo. Salvador: Fator.

3 O Nome-do-Pai é definido por Chemama (1995) como o "que atribui a função paterna ao efeito simbólico de um puro significante e que, em um segundo momento, designa aquilo que rege toda a dinâmica subjetiva, [...] o Nome-do-Pai consiste, principalmente, na regulação do sujeito com seu desejo, em relação ao jogo dos significantes que o animam e constituem sua lei" (p.148). CHEMAMA, R. (Org.). (1995). Dicionário de psicanálise: Larousse. Porto Alegre: Artes Médicas.

4 O pai, então, é enfatizado na teoria lacaniana nos três registros: real, simbólico e imaginário. O pai real é o agente da castração, aquele que intervém na relação fusional da mãe com a criança. A transmissão da lei é de responsabilidade do pai simbólico. E o pai imaginário é o pai da realidade.

5 A ausência do Nome-do-Pai é uma característica da psicose; ele é foracluído nessa estrutura. A ausência da metáfora paterna é o que determina a aparição de anomalias de significação e sentido na fala psicótica. E foi analisando a obra de James Joyce, como sinthoma, que Lacan atenta para a possibilidade dessa outra amarração. Segundo Machado (2004), pode-se "destacar a Conferência Joyce, o sintoma como o ponto onde, ainda falando de sintoma, Lacan já esboça o que, em seu seminário daquele mesmo ano, vai aparecer como sinthoma. Ele parte da observação de que Joyce faz alguma coisa surpreendente com aquilo do qual deveria se queixar ou mesmo delirar - a inoperância de seu pai. Lacan percebe que Joyce faz do seu modo de gozo um nome próprio. Ele se identifica com aquilo que o faz gozar" (Sobre o sinthoma, para. 2). E esta é definitivamente uma característica do sinthoma. MACHADO, O. (2004). Qual a relação entre sintoma e sinthoma? [Versão eletrônica], Cadernos de Psicanálise, v.20, n.23.

6 Aqui, o autor cria um neologismo jogando com as palavras utilidade e outil, que em francês significa ferramenta.

7 Zenoni (2007) chama atenção para o jogo de palavras que Lacan utiliza, nomeando o "modo de se dirigir ao pai, cujo protótipo é a imaginação de ser redentor, de 'pai-versão' [père-version, em francês, homônimo de pervesion], como relação do filho com o pai, em que o filho se priva do gozo por amor ao pai" (Lacan, 2005, p.85, como citado em Zenoni, 2007, Do significante último ao semblante múltiplo, para.11).

8 A ciência parece demonstrar, cada vez mais, que há sempre algo do imprevisível, do inapreensível, que escapa ao trabalho racional de previsão e explicação, deixando clara a parcela do real, responsável por angustiar o sujeito.

 

Referências

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Recebido em 05 de Outubro de 2010
Aceito em 11 de Outubro de 2010
Revisado em 22 de Dezembro de 2010