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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza Mar. 2011

 

RESENHAS

 

A Geração pós-moderna carece de quê? Uma análise a partir do filme A Nova Geração Cristiane F

 

What the postmodern generation needs? An analysis of the movie Cristiane F The Next Generation

 

 

Mirela Figueiredo Iriart

Professora adjunta do Departamento de Educação. Universidade Estadual de Feira de Santana. End.: Av. Princesa Isabel, 135/1001 Barra. Salvador - Ba. E-mail: mifis36@gmail.com

 

 

Título Original: Engel & Joe

Gênero: Drama

Direção: Vanessa Jopp

País de Origem: Alemanha

Estreia Mundial: 2001

Distribuidora: Sonar

 

 

Engel e Joie ou a Nova Geração Cristiane F.: o que estes jovens têm a dizer?

O filme se passa em Berlim, no tempo atual, e coloca em cena jovens urbanos undergrounds e suas experiências em bando, usufruindo dos prazeres e das dores de vivenciar um ideal contracultural anticapitalista, anarquista e experimentar a solidão de uma geração desfiliada, sem referências e sem modelos de socialização seguros.

A renúncia às regras sociais e às suas convenções é uma das marcas de identificação destes jovens punks que trocam a vida em família, o "conforto" do mundo convencional, circunscrito por instituições como a escola e o trabalho, por uma liberdade expressa através dos comportamentos, das roupas, do consumo de álcool e drogas e da ocupação dos espaços subterrâneos da cidade. Moram em construções abandonadas, arrombam lojas e pedem trocados na rua, vivendo como bando. Encontram-se em determinados locais durante o dia (em frente à catedrais, praças, fontes), sempre consumindo bebidas e cigarros e, à noite, desaparecem da superfície e ocupam os espaços baixos da cidade (estações de metrô, galpões). Estes planos: alto e baixo são uma constante no filme, assim como o claro e o escuro, a alegria e a solidão, metaforizando os altos e baixos vividos pelos personagens principais da trama: Engel e Joie.

Engel é um garoto que já vive na rua, mora num galpão abandonado e sonha em fundar uma sociedade anarquista nas montanhas. É um "órfão típico," como denomina uma das suas amigas, abandonado pelos pais, atualiza o seu abandono em cada encontro que possa significar vínculo, escapando das convenções, assim como do amor, dos laços familiares e das normas sociais. Ele diz que escovar os dentes, "retira o gosto da boca", numa alusão ao seu modo quase antropofágico de sorver e anular o sabor das coisas mundanas. Quando encontra Joie, sua trajetória se modifica. Joie é uma jovem que foge de casa por não suportar o desequilíbrio mental da mãe e sua instabilidade amorosa, e acaba se encontrando por acaso com o bando de Engel, quando seu cão escapa das suas mãos. O cão é o elo afetivo mais familiar, que a mantém segura. Ao encontrar Engel, ela se enlaça com um "destino" inesperado. Apesar de todas as diferenças (e em função delas também), eles se apaixonam quase instantaneamente, como única possibilidade de filiação que ainda os manterá vivos. Anunciando um horizonte existencial como projeto de futuro: alcançar as montanhas sonhadas pelo protagonista, como memória afetiva de algo que quer reencontrar e começar a vida a partir daquele ponto.

O enlace dos dois se constrói na complexidade de suas existências e inexperiências, na solidão e nas ausências. Numa cena em que Joie reencontra sua mãe, ainda no início da trama, quando não havia renunciado à escola, resolve ceder à chantagem desta, volta para casa e some de Engel por uns dois dias. Em casa, invertem-se os papéis, Joie precisa evitar que a mãe se suicide. Nesta cena dramática, percebe-se a condição de órfã a que a protagonista também está submetida, quando os papéis parentais não são assumidos, quando os adultos deixam de ser referências civilizatórias, como representantes da lei na constituição subjetiva dos mais jovens. Não aguentando habitar o espaço da casa, Joie volta para rua à procura de Engel. Este se desfigura diante da ameaça de abandono e volta a consumir crack, como se assim pudesse preencher seu vazio existencial.

Neste e em alguns outros momentos do filme, insinua-se uma linha invisível entre seus dois mundos ("não sabia que uma garota bonita poderia se apaixonar por uma cara como eu", expressa Engel em um dos seus primeiros encontros), quando Joie, sabendo que o amado voltou para as drogas, deixa-o, dizendo que já tem problemas demais. A trajetória amorosa dos dois é cheia de rupturas, mostrando que ao mesmo tempo a paixão é algo que os mantém, como que alimentando um projeto de vida (tênue), mas as diferenças e instabilidades são entraves para a evolução e a construção de uma relação mais madura.

O desenrolar da história é marcada por um ponto de virada, quando a vida dos dois passa a ser o foco principal da trama, e a perspectiva de futuro vai se encurtando, em vez de ir se estendendo. Há um presentificação do horizonte temporal dos personagens, quando precisam encarar a gestação, o nascimento e a sobrevivência de um bebê, gerado de forma não planejada, cuja paternidade é questionada. Pode ter sido fruto de uma relação sexual inconsequente com um garoto de outro grupo (skatista), num momento de separação do casal, em que Engel passa oito semanas preso.

Ao se reencontrarem, quando Engel toma conhecimento da gravidez, mesmo sem a certeza de ser o pai biológico, assume a paternidade e coloca o bebê como herdeiro do sonho de crescer nas montanhas. Moisés é o nome escolhido para o filho, "como aquele cara da bíblia", resume Engel e como o personagem bíblico "terá de ser muito forte", profetiza a mãe. Moisés é o portador do futuro dos país. O futuro como horizonte temporal, como campo de possibilidades do ainda não realizável, vai se tornando cada vez mais indeterminado na modernidade contemporânea, como elucida Leccardi (2005). A globalização, o pluralismo dos valores e das autoridades, o individualismo institucionalizado e a ausência de controle sobre riscos envolvem o futuro com um caráter de incerteza, segundo a análise da autora. Como se aos sujeitos faltassem estratégias de alcance de projetos a longo prazo, encurtando o arco temporal.

Os jovens cada vez mais se utilizam de táticas de alcance mais imediato, em resposta à fragilização dos vínculos familiares, à precária inserção no mundo do trabalho, à fragilização de algumas redes de sociabilidade (vizinhança, vida comunitária) e das agências tradicionais de socialização (escola, família, igreja). Leccardi considera que há um esvaziamento da noção de futuro e uma centralidade da vivência de experiências no tempo presente "[...] como a única dimensão temporal disponível para a definição das escolhas, um verdadeiro horizonte existencial que, em certo sentido, inclui e substitui futuro e passado" (2005, p.46).

O drama do casal de jovens chega ao ápice quando Engel, sem conseguir cumprir com as promessas de conseguir emprego e um lar para os três morarem, símbolos da transição para a vida adulta, demonstrando a sua inadptação social, resolve assaltar o caixa de um supermercado. Até este ponto da história, o filme alterna cenas de exaltação do amor e da esperança de tempos melhores, com cores claras, luz e o movimento de liberdade dos personagens correndo pela relva, com as sombras, o subterrâneo, o desencanto, protagonizado por Joie quando questiona "para onde vamos quando sairmos do hospital?" "não quero que o meu filho cresça num cemitério" - local ocupado por eles até o momento de dar à luz. Ao que o jovem responde: "é hora de irmos para a montanha" - lugar imaginário, irreal, mas repleto de simbolismo, carregado do seu desejo de apaziguamento e, ao mesmo tempo, de fuga do mundo convencional. Sem saber qual a direção das montanhas, o jovem protagonista perde-se e, como num conto de fadas às avessas, o seu encanto dá lugar a uma dura realidade: a repressão em nome da lei social (não suficientemente introjetada) e o encarceramento. O confinamento o leva de volta à heroína, e Joie volta para a casa da mãe.

Sem completar a transição social para o mundo adulto, os personagens dançam soltos sobre uma corda bamba, na ausência de pontos de ancoragem que lhes deem suporte existencial. Começam do zero como uma geração sem história, sem filiação, sem lugar no real. Como se a ausência de uma moldura social não mais fizesse coincidir o tempo da vida e o tempo social, não garantindo a continuidade biográfica. Hoje "uma trajetória socialmente normalizada em direção à idade adulta deixou de existir" (LECCARDI, 2005, p.49).

Numa transição que não se completa, os sonhos ficam pelo meio do caminho. O filme vai estreitando os horizontes dos personagens, que vão ficando mais desamparados e solitários do que nunca. Mas, na linha tênue que separa os seus mundos, algum vínculo se mantém e é neste vínculo que o filme ainda aposta, fazendo um elo com a vida.

Passados alguns meses, Joie recebe uma carta de Engel, escrita da prisão, perguntando por ela e pelo bebê, ao que responde: "não acredito mais nas montanhas, mas quando olho para Moisés vejo um futuro". Em seguida vê-se Joie e Alex (o garoto do skate, possível pai biológico de Moises) juntos, em família, numa noite de Natal. Nada mais patético do que a construção desta "pseudo" família forjada pela mãe e encenada por Joie, que, nesta cena, demonstra toda a sua amargura ao lado do rapaz que a induziu ao sexo inseguro, num momento de carência, resultando neste desenlace. Ela o rejeita, assim como a mãe e o seu novo namorado. Neste momento, é surpreendida por Engel, que recebe o indulto de Natal e resolve fugir mais uma vez, sem destino, sem sonhos, em busca da liberdade e do amor.

Voltam ao subterrâneo, e Engel, agora já viciado em heroína, aplica-se, enquanto o bebê e a mãe dormem ao chão. São surpreendidos pela polícia, que levam o bebê e os chamam de drogados cretinos. "Em que estamos nos tornando?" - Joie questiona, numa cena posterior em que roubam a carteira de um homem vítima de espancamento. Ela ainda consegue manter alguma lucidez, mas o que lhe resta é o próprio corpo e, com dignidade, vende-o para conseguir retirar Engel da decrepitude das drogas. Com o dinheiro que ganha, compra passagens de trem em direção às montanhas. Recupera o seu bebê do orfanato para onde o levaram. e os três embarcam nesta última viagem. O plano da superfície reaparece no final do filme. Com dificuldade de olhar para a claridade do reflexo do sol nas montanhas brancas, Engel tenta enxergar por trás do vidro. O que podem vislumbrar? Sem passado, só lhes resta o futuro.

 

Uma geração desfiliada: sobre o debilitamento dos laços sociais no contemporâneo

A desfiliação da geração caracterizada no filme nos questiona sobre a fragilidade dos laços sociais e da filiação geracional. A referência aos adultos é minima; quando eles aparecem não são portadores de um discurso que inscreva os mais jovens no plano simbólico, como portadores de uma herança cultural, como cadeia de significantes por onde os sujeitos podem se ancorar e construir suas individualidades. Sem o encontro com a alteridade, como pode o sujeito reconhecer- se, se não presentificando-se e coisificando-se no consumo de drogas, no próprio corpo, nas sensações efêmeras?

A recusa ao reconhecimento do outro como princípio ou como possibilidade de encontro consigo, condição de estar no mundo e de construir sua subjetividade, lança os sujeitos na solidão e na hostilidade de um mundo social, cujos representantes adultos são anulados ou rejeitados. Segundo Castro (2006, p. 256), em face do individualismo contemporâneo, as novas gerações "têm que se encarregar de construir o próprio destino, dar sentido às suas ações e decisões, se afirmar como singularidade" [...].

Na sua análise. a autora reconhece prováveis "rachaduras" entre a transmissão da herança cultural por parte dos mais velhos e a sua recepção pelos mais jovens, podendo significar a anulação dos laços com o coletivo, com a tradição e com o passado, colocando em risco as trocas geracionais. Mesmo que se reconheça que essas trocas nunca são pacíficas, pois não se trata de uma mera recepção, mas de uma reconstrução negociada de sentidos, cuja agência do sujeito é fundamental que seja reconhecida.

Se pudéssemos reconstruir o seu passado, qual seria a herança desta geração? O que guardam de semelhante ou de diferente com a geração de Cristiane F. (roteiro escrito pelo mesmo autor deste filme)? O vazio de significantes em relação ao que pode ser transmitido pela geração dos pais produz um vazio difícil de suportar (KEHL, 2004). Quando os filhos passam a ser herdeiros das projeções ou dos desejos não realizados de uma geração que viveu a liberdade sexual e o boom do consumo de drogas, não oferecendo referências que os autorize a interditar o "mais gozar"- o gozo para além do prazer, desmedido, alia-se à pulsão de morte - dos filhos, em nome de uma eterna juventude que não querem perder, segue a análise da autora.

A geração pós-moderna carece de quê? Para Alfredo Jeruzalinsky (2003), a sociedade contemporânea caracteriza-se pelo "debilitamento" do laço social, onde o objeto (de consumo) passa a tomar o lugar central na cena social, ocupando o lugar do semelhante. A busca do sujeito não é mais pelo outro, mas pelos objetos, simulacros da herança cultura, porém sem historicidade. Ao consumi-lo antropofagicamente, o sujeito acaba por anular a sua existência. Na busca incessante do novo, tornam-se nômades, sem laços sociais mais duradouros. "O consumível como materialização de uma cultura, tem efeito fantasmagórico [...]", segue Castro (2006), na sua análise da geração atual, desmobilizada, não se compromete com sentimentos duradouros.

Podemos considerar que estes jovens punks construíram uma trilha, mesmo que subterrânea? Embora não carreguem bandeiras, até mesmo por conta da sua invisibilidade, se posicionam anarquicamente, negando tudo o que é convencional, familiar, burguês, como se este fosse um valor em si mesmo. São marcas de uma identidade provisoriamente construída e negociada na relação entre o semelhante e o diferente. Ao se identificarem com o diferente/diferença, como aquilo que perturba, que questiona o instituído, inserem-se precariamente na ordem social, à margem em relação aos que estão dentro (geográfica e simbolicamente). As identidades como construções discursivas são representações culturais construídas nas relações sociais, que oferecem certo continente aos sujeitos, posicionando-os como parte pertencente a um coletivo, que pode ser desestabilizada pela diferença, tanto como fonte de conhecimento, como de exclusão, quando a diferença é vista como ameaça e passa a ser marginalizada. (CASTRO, et. al., 2006).

A posição niilista destes jovens e a impressão de que, por serem jovens, podem arriscar tudo, lança um incomodo ao expectador, que, mesmo sem querer cair num julgamento moral dos personagens, muitas vezes acaba os condenando pelas suas escolhas, quando, na verdade, existe um mecanismo de exclusão ativo, que os mantém fora do tecido social.

Para além das soluções fáceis, o filme nos convida (educadores, pais, estudiosos da juventude) a reencontrar o elo esgarçado entre as gerações, apostando, como desafia Castro (2006), na horizontalidade da transmissão cultural, desnaturalizando as posições hierárquicas de destinatário e remetente, invertendo as posições, quando os mais velhos também podem e devem aprender com os mais novos, convidando-os à cena, como interlocutores.

 

Referências

Castro, L. R. de (2006). Admirável mundo novo: A cadeia das gerações e as transformações do contemporâneo. In D. Colinvaux, L. B. Leite & D. D. Dell'aglio, Psicologia do desenvolvimento: Reflexões e práticas atuais (pp. 249-268). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Coleção Psicologia e Educação).         [ Links ]

Castro, L. R de, Mattos, A. M., Juncken, E. T., Villela, H. A., & Monteiro, R. A. de P. (2006). A construção da diferença: Jovens na cidade e suas relações com o outro. Psicologia em Estudo, 11(2), 437-447.         [ Links ]

Jerusalinsky, A (2004). Adolescência e contemporaneidade. In Conselho Regional de Psicologia 7ª Região. Conversando sobre adolescência e contemporaneidade (pp. 1-4). Porto Alegre, RS: Libretos.         [ Links ]

Kehl, M. R. (2004). A juventude como sintoma da cultura. In R. Novaes, P. Vannuchi (Orgs.), Juventude e sociedade: Trabalho, educação, cultura e participação (pp. 89-114). São Paulo: Perseu Abramo.         [ Links ]

Leccardi, C. (2005). Por um novo significado do futuro, mudança social, jovens e tempo. Tempo Social, 17(2), 35-57.         [ Links ]

 

 

Recebido em 09 de Janeiro de 2010
Aceito em 25 de Agosto de 2010
Revisado em 22 de Dezembro de 2010