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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A diversidade sexual na escola: produção de subjetividade e políticas públicas

 

Sexual diversity at school: production of subjectivity and public policies

 

Diversidad sexual en la escuela: producción de subjetividad y políticas públicas

 

Diversité sexuelle à l'école: production de la subjectivité et politiques publiques

 

 

Eliana Teresinha QuartieroI; Henrique Caetano NardiII

IPsicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional. Doutoranda do Programa de Pós-graduação de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: eliana@quartiero.com.br
IIProfessor e Coordenador do Programa de Pós-graduação de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero da UFRGS. E-mail: hcnardi@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo investiga os efeitos dos enunciados das atuais políticas públicas acerca da diversidade sexual propostos para a educação, principalmente através do programa Brasil sem Homofobia. A análise das práticas instaladas no cotidiano escolar tem como foco compreender efeitos da proposição de uma educação inclusiva e não sexista, particularmente no que tange à homofobia. A pesquisa foi realizada em duas escolas da rede pública de Porto Alegre, uma estadual e a outra municipal, onde foram realizadas observações do cotidiano escolar e entrevistas com professores(as). Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de uma orientação genealógica utilizando a produção teórica de Michel Foucault como meio de refletir sobre as condições de possibilidade do surgimento e da implantação dessas políticas públicas e seus efeitos nas práticas escolares. Nessas práticas, existe um lugar bem marcado para o "outro", a lógica geralmente utilizada se refere a um ideal, o que deveria ser, o esperado H a heteronormatividade. Diferentes discursos são utilizados para manter o "diferente" em um lugar distanciado. A proposta de inclusão está vinculada a uma carência, desvantagem, desvio do indivíduo que necessita da intervenção do processo inclusivo. As justificativas da intervenção estatal são de proteção e constituem um lugar para a população alvo, como o de pessoas em risco e vulnerabilidade. A conquista de direitos jurídicos se mostrou fundamental para a garantia de espaços e legitimidade e há uma apropriação pelos(as) professores(as) do discurso jurídico de direitos humanos e de direitos sexuais. A possibilidade de inclusão dos diferentes/diversos sexuais está amparada no discurso que todos têm direito à escolarização, porém, um questionamento que se apresenta acerca da proposta de inclusão é sua utilização como uma prática de tolerância e tentativa de acabar com as diferenças, tendo como referência a "normalidade".

Palavras-chave: Diversidade sexual, formação de professores, políticas públicas, direitos humanos, genealogia.


ABSTRACT

This study investigates the effects of the statements of the current public policies on the sexual diversity proposed for education, mainly through the program Brasil Sem Homofobia (Brazil without homophobia). The analysis of the practices installed in the school daily has as a focus understand effects of the proposition of an inclusive and non-sexist education particularly regarding homophobia. The research was done in two public network schools of Porto Alegre, one belonging to the state and the other to the municipality, where daily observations of the school and interviews with teachers were made. This research was developed from a genealogical orientation using the theoretical production of Michel Foucault as a means to reflect on the conditions of possibility of the emergence and implementation of these public policies and their impact on school practices. In these practices there is a well-marked place for the other, the logic usually used refers to an ideal, what should be, the expected - the heteronormativity. Different discourses are used to keep the different in a distant place. The proposal of inclusion is bound to a deficiency, disadvantage, deviation, of the individual that needs the intervention of the inclusive process. The state intervention justifications are of protection and constitute a place for the aimed population of people in risk and vulnerability. The achievement of legal rights is being fundamental for the guarantee of spaces and legitimacy and there is an appropriation by the teachers of the legal discourse of human rights and sexual rights. The possibility of inclusion of the sexual different is supported in the discourse that all have rights to schooling, but a question that presents itself on the proposal of inclusion is its use as a practice of tolerance and attempt of ending the differences having the normality as a reference.

Keywords: Sexual diversity, teacher training, public policies, human rights, genealogy.


RESUMEN

Este estudio investiga los efectos de los enunciados de las políticas públicas actuales sobre la diversidad sexual propuesta para la educación, principalmente a través del programa Brasil sin Homofobia. El análisis de las prácticas instaladas en la vida escolar se centra en la comprensión del propósito de proponer un criterio integrador y no sexista, en particular con respecto a la homofobia. La encuesta se llevó a cabo en dos escuelas públicas de Porto Alegre, una del Estado y la otra municipal, donde fueron realizadas observaciones diarias y entrevistas con los(as) maestros(as) de las escuelas. Esta investigación se desarrolló a partir de una orientación genealógica, con el trabajo teórico de Michel Foucault como un medio para reflexionar sobre las condiciones de posibilidad del surgimiento y de la implementación de estas políticas y sus efectos en las prácticas escolares. En estas prácticas, hay un lugar bien marcado para el "otro", la lógica utilizada generalmente se refiere a un ideal, lo que debería ser, el esperado - la heteronormatividad. Distintos discursos son utilizados para mantener el "diferente" en un lugar distante. La propuesta de inclusión está vinculada a una necesidad, desventaja, desviación, del individuo que necesita la intervención del proceso integrador. La justificación de la intervención del Estado es proteger y proporcionar un lugar para la población objetivo, como las personas en situación de riesgo y vulnerabilidad. El logro de los derechos legales ha demostrado ser fundamental para garantizar los espacios y legitimidad, y hay una apropiación por parte de los(as) maestros(as) del discurso jurídico de los derechos humanos y los derechos sexuales. La posibilidad de inclusión de diferentes/diversos sexuales está amparada en el discurso de que toda persona tiene derecho a la educación, pero una cuestión que se presenta en la propuesta de inclusión es su uso como una práctica de la tolerancia y el intento de terminar con la diferencia, que tiene como referencia la "normalidad".

Palabras-clave: Diversidad sexual, formación del profesorado, políticas públicas, derechos humanos, genealogía.


RÉSUMÉ

Cette étude cherche à comprendre les effets des énoncées de politiques actuelles sur la diversité sexuelle dans le domaine de l'éducation, surtout par le programme Brésil sans Homophobie. L'analyse des pratiques courantes dans le quotidien scolaire a pour but de comprendre les effets des propositions d'une éducation inclusive et non sexiste particulièrement en ce que concerne l'homophobie. La recherche a été conduite en deux établissements scolaires publiques de Porto Alegre, une appartenant à l'Etat et l'autre à la municipalité, ou nous avons conduit l'observation du quotidien scolaire et des entretiens avec les enseignant-e-s. L 'étude a suivi une démarche généalogique utilisant l'approche théorique de Michel Foucault comme mode de réfléchir sur les conditions de possibilité pour l'émergence et implantation de ces politiques dans lês pratiques scolaires. Dans ces pratiques il existe une place bien démarquée pour l'autre, la logique usuellement utilisée s'appuie sur un idéal, ce que devrait l'être, l'attendu, ça veut dire, l'hétéronormativité. Différents discours sont utilisés pour garder le différent dans une place éloignée. La proposition d'inclusionest justifiée par un manque, handicap, déviation, par la définition d'un individu qui a besoin d'un processus inclusif. Les justifications d'intervention de l'Etat sont liées à la protection et produisent une population à risque et vulnérable. La conquête de droits légaux a été fondamentale pour la garantie des espaces de légitimité et pour l'appropriation par les enseignant-e-s du discours juridique sur les droits humains et sexuels. La possibilité d'inclusion des divers/ différents est soutenue par le discours du droit à l'éducation pour tous, néanmoins il existe une mise en question des propositions d'inclusion comme une pratique de tolérance et une tentative de finir avec les différences à partir d'um processus de normalisation.

Mots-clés: Diversité sexuelle, formation d'enseignantes, politiques publiques, droits humains, généalogie.


 

 

 Este artigo apresenta uma pesquisa proposta dentro de um projeto de mestrado em Psicologia Social. Este estudo foi realizado no contexto da rede pública de educação, buscando olhar os processos de construção de subjetividades nesse espaço em específico relacionados com a instituição de verdades veiculadas por discursos inseridos em programas oficiais que se propõem a promover a discussão do tema da diversidade sexual no espaço escolar. Investigamos os efeitos dos enunciados das atuais políticas públicas acerca da diversidade sexual propostos para a educação, principalmente através do programa Brasil Sem Homofobia. A análise das práticas instaladas no cotidiano escolar tem como foco compreender os efeitos da proposição de uma educação inclusiva e não sexista, particularmente no que tange à homofobia.

Reivindicações feitas desde 1980, exigindo cidadania e consolidação de direitos, pressionaram a opinião pública e as esferas deliberativas do poder político estatal. Na elaboração do Plano Plurianual (PPA 2004-2007), o Brasil definiu, no âmbito do programa Direitos Humanos, Direitos de Todos, a ação denominada Elaboração do Plano de Combate à Discriminação contra Homossexuais. Na área da educação, a implementação de ações visando à igualdade de gênero, identidade de gênero, orientação sexual e ao enfrentamento ao sexismo e à homofobia está amparada nas propostas de ações governamentais relativas à educação, que se encontram no Programa Nacional de Direitos Humanos II (2002), no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2004), no programa Brasil sem Homofobia (2004) e no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2006). Essas ações surgiram a partir de lutas e reivindicações que se fortaleceram e cresceram a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido:

As políticas educacionais precisam levar em conta as discussões acerca da função social da escola na construção de masculinidades e feminilidades, contrapostas ao modelo convencional, masculino, heteronormativo, branco e de classe média. Não podem ignorar os efeitos que os processos de construção de identidades e subjetividades masculinas, femininas, hetero, homo ou bissexuais produzem sobre a permanência, o rendimento escolar, a qualidade na interação de todos os atores da comunidade escolar e as suas trajetórias escolares e profissionais. (Brasil, 2007, p. 35)

Em 2004, as discussões em torno das metas e da formulação de políticas destinadas às mulheres e à população LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e transgêneros) resultaram nos lançamentos do Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres e do programa Brasil sem Homofobia (BSH). Esses programas se comprometeram a desenvolver ações no âmbito da educação, tendo como meta uma educação inclusiva e não sexista, propondo, além da produção de materiais didáticos, a formação inicial e continuada de professores(as) na área da sexualidade. Para isso, entre outras ações, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) desenvolveu, a partir de 2005, o projeto Formação de Profissionais da Educação para a Cidadania e Diversidade Sexual. Na introdução do Caderno 4, produzido pela SECAD, temos que:

A crescente mobilização de diversos setores sociais em favor do reconhecimento da legitimidade de suas diferenças tem correspondido a uma percepção cada vez mais aguda do papel da educação para a diversidade. Ela é vista como fator essencial para garantir inclusão, promover igualdade de oportunidades e enfrentar toda sorte de preconceito, discriminação e violência, especialmente no que se refere a questões de gênero e sexualidade.

Dessa forma, ao falar de diversidade sexual, a SECAD/ MEC procura, antes, situar questões relativas a gênero, orientação sexual e sexualidade no terreno da ética e dos direitos humanos, vistos a partir de uma perspectiva emancipadora. Assim fazendo, evita discursos que, simplesmente, relacionam tais questões a doenças ou a ameaças a uma suposta normalidade. (Brasil, 2007, p. 9)

Além de outras atividades voltadas à implementação do BSH, o Ministério da Educação abriu concorrência para financiar Projetos de Formação de Profissionais da Educação para a Cidadania e a Diversidade Sexual. Na edição de 2006, dos 28 projetos aprovados no Brasil, três deles são no Rio Grande do Sul: dois em Porto Alegre (propostos pela ONG Nuances e outro pela ONG Somos) e um deles foi implantado pela Fundação Universidade Federal de Rio Grande. Em Porto Alegre, os dois projetos que tiveram suas propostas de intervenção aprovadas nos editais do PBSH, o Educando para a Diversidade, da ONG Nuance, e o projeto da ONG Somos, Desconstruindo Preconceitos, Construindo Identidades, iniciaram em 2006.

 

Metodologia

Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de uma orientação genealógica, utilizando a produção teórica de Michel Foucault como meio de refletir sobre as condições de possibilidade do surgimento e da implantação dessas políticas públicas e seus efeitos nas práticas escolares, uma vez que as propostas dessas ações oficiais se configuram dentro de um campo social em que concorrem verdades e se estabelecem disputas por visibilidades e direitos.

Tendo Foucault como suporte teórico, tomamos a linguagem como constituinte da realidade e buscamos olhar os depoimentos obtidos como fruto de práticas discursivas, as quais, por suavez, são históricas. Os sujeitos entrevistados não nos remetem a uma essência, e sim a uma posição que pode ser ocupada por indivíduos variados, pois existem condições de possibilidade ou de impossibilidade para a produção discursiva. O que precisa ser considerado é que, nos enunciados, existe um lugar determinado e vazio que pode ser ocupado por diferentes indivíduos. Se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser considerados enunciados, diz Foucault, não é porque houve um dia alguém para proferi-los, mas porque houve uma posição que foi ocupada por um sujeito. Portanto, assim, "descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo o indivíduo para ser sujeito" (Foucault, 1987, p. 109).

Propomo-nos a utilizar a produção teórica de Foucault para podermos analisar o campo das sexualidades, pois sua contribuição produziu uma mudança de perspectiva em relação à análise da sexualidade. Foucault propôs pensar a sexualidade não como um domínio somente de repressão, obrigação, interditos morais e/ou sociais; ao contrário, enfocando a positividade do poder, Foucault perguntava: como, em nosso espaço de pensamento, a sexualidade - as práticas sexuais, a escolha sexual - tenha se tornado o fundamento de nossa identidade? Como nossa relação com o sexo diz o que nós somos?

Foucault vê no dispositivo da sexualidade um dos elementos mais estratégicos e de maior instrumentalidade para o biopoder. O dispositivo da sexualidade se instala, principalmente, através de mecanismos de poder ligados à função de intensificação e gestão da vida. "(...) a tecnologia do sexo, basicamente, vai se ordenar, a partir desse momento, em torno da instituição médica, da exigência de normalidade e, ao invés da questão da morte e do castigo eterno, do problema da vida e da doença." (Foucault, 1999b, p.111). O biopoder funciona como um poder que não exclui a técnica disciplinar, mas a integra, modifica-a parcialmente, e, sobretudo, utiliza-a como suporte.

A instalação generalizada do dispositivo da sexualidade vem proporcionando, na sociedade ocidental, um enquadramento da expressão dos desejos e práticas sexuais relacionadas a identidades específicas. Essa dinâmica tem demarcado possibilidades de formas de viver e expressar a vida afetiva e erótica, caracterizando e conformando os olhares e interpretações que os sujeitos fazem de sua realidade e julgam suas experiências e ações, as quais possibilitam determinadas trajetórias possíveis e aceitáveis.

O sistema de ensino tem proposto um olhar para as identidades como um lugar fixo para os sujeitos. Nessa ótica, podemos entender como um desafio a discussão do tema da diversidade sexual e de gênero na área da educação. Segundo análises de pesquisadores(as) como Silva (1994, 1998, 2000) e Larrosa (1994), há uma persistência na educação de proposições cristalizadas e essencialistas para pensar a identidade, que podemos transferir, também, para o campo das sexualidades e acerca do gênero. A educação foi marcada por uma concepção do sujeito baseada em proposições herdadas da Psicologia da Aprendizagem e da Psicologia do Desenvolvimento, nas quais predominam descrições normativas e naturalizadas, legitimadas pela Biologia e, particularmente, por uma determinada leitura darwinista da evolução, fazendo com que o olhar sobre a diversidade fosse ordenado e sistematizado em uma escala hierárquica de desenvolvimento. Contudo, para Larrosa (1994):

O sujeito individual descrito pelas diferentes psicologias da educação ou da clínica, esse sujeito que se desenvolve de forma natural sua autoconsciência nas práticas pedagógicas, ou que recupera sua verdadeira consciência de si com a ajuda das práticas terapêuticas, não pode ser tomado como um dado não problemático. Mais ainda, não é algo que se possa analisar independentemente desses discursos e dessas práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas (pedagógico e/ou terapêuticos, entre outros), que ele se constitui no que é. (p. 40)

Neste estudo, propomo-nos a pensar as produções de subjetividade, ou seja, as identidades construídas no interior de discursos e práticas. Lançamos um olhar para as condições de possibilidade de emergência de discursos e práticas constituintes de regimes de verdade que constituem as subjetividades dos indivíduos nesse momento em particular. Discursos que se apresentam contraditórios, paradoxais, e que não são recebidos de maneira passiva pelos sujeitos, os quais, uma vez expostos a eles, os traduzem nas suas histórias.

A teorização de Foucault nos traz três aspectos fundamentais, que nos guiaram para a elaboração da pesquisa: (1) que todo conhecimento será sempre parcial; (2) de que a realidade é uma construção e; (3) de que a identidade é sempre um estado em processo.

 

Diversidade Sexual

A escola tem sido alvo de várias propostas de intervenção no campo da sexualidade. Em propostas mais recentes, podemos perceber o surgimento e a discussão da nomeada diversidade sexual. Esse termo tem surgido no campo da educação sexual e de programas voltados à questão dos direitos humanos, em especial no programa Brasil sem Homofobia. Diversidade sexual é uma expressão que vem sendo muito utilizada pelo movimento social para designar questões relativas à homossexualidade ou às homossexualidades. O termo diversidade vem se constituindo como opção ao termo "diferente" ou "diverso", que traz consigo, incorporado, o referencial de "normal". Sua utilização de maneira ampla traz questionamentos:

O termo diversidade sexual está sendo utilizado de uma maneira ampla tanto na área das políticas públicas como dos movimentos sociais e da educação. Sua utilização como um termo dado tende a colocá-lo como um conceito naturalizado, constituindo um lugar, um campo e constituindo sujeitos que o possam habitar. Nos é necessário refletir sua constituição e os embates, por vezes bastante acirrados, que determinaram e determinam seu significado e os discursos e saberes que daí decorrem. (Ávila, 2003, p. 26)

Na educação, o conceito da diversidade foi, num primeiro momento, utilizado como uma inovação da educação especial, mas, progressivamente, foi se expandindo em todo o contexto educativo como parte do discurso de reivindicações de uma educação para todos. Suas reivindicações fundamentais são a não discriminação das deficiências, da cultura e do gênero. O discurso da educação inclusiva coloca que o que deve ser enfatizado é a diversidade, mais que a semelhança; defende uma educação eficaz para todos.

Nesses argumentos, o que aparece é uma diversidade relacionada a diferenças culturais e de aprendizado, sem discutir os valores que geraram classificações, como se o processo de diferenciação fosse da ordem do natural. Naturalmente, somos diferentes, mas essa maneira de compreender deixa de lado os valores e as hierarquias que definem as diferenças. Esse tratamento da questão tem sido discutido por diversos autores.

Suspeito, como muitos outros, do termo "diversidade". Este termo confere um perfume às reformas educativas e implica uma rápida e pouco debatida absorção de alguns discursos igualmente reformistas. Diversidade tem sempre me parecido "biodiversidade", isto é, uma forma leviana, ligeira e descomprometida, de descrever as culturas, as comunidades, as línguas, os corpos, as sexualidades, as experiências de ser outro, etc, E me parece, outra vez, uma forma de designação do outro, dos outros sem que se curve em nada a onipotência da mesmice "normal". (Skliar, 2006, p. 30)

Com o tratamento da diversidade, no geral, as políticas públicas de inclusão, da maneira que estão sendo feitas no Brasil, defendem a inclusão do "diferente", aquele que possui algo que os normais não têm.

O "atendimento respeitoso às diferenças" dos(as) alunos(as), a partir de suas especificidades, torna-se uma tarefa complexa quando se pensa em maneiras de lidar com a tarefa de "acolher todas as diferenças" dos(as) alunos(as) nas escolas, sem a necessidade de categorizá-los(as) de uma forma generalista; sem a criação desse espaço do indivíduo que necessita ser acolhido, apesar de sua dificuldade, da individualização, da vulnerabilidade; sem a necessidade de colar uma característica de risco a esse sujeito.

Ao pensar as políticas públicas que hoje propõem trabalhar a diversidade sexual, percebe-se que os discursos veiculados por tais campanhas sugerem, implícita ou explicitamente, concepções de sexualidade. Nesse sentido, também se pode entender essas campanhas de órgãos públicos como inseridas num discurso de fabricação de sujeitos e de sexualidades desejáveis, juntamente com o de aceitação de sexualidades nem tão desejáveis, traduzindo-se por propostas de políticas de inclusão.

 

Constituição do Outro/Diverso

Quando a escola é legitimada a intervir sobre a sexualidade, busca-se intervir na vida do corpo e na vida da espécie, na saúde individual e coletiva, na vida dos alunos(as) e professores(as), bem como na regulação e organização da população. Portanto, nas propostas das políticas educacionais brasileiras, é possível identificar que há uma série de justificativas para que essas ações sejam realizadas, e elas determinam um sujeito alvo desses esforços, o que traz consigo um processo de constituição desse sujeito e de construção de subjetividades.

Estamos considerando a existência de uma articulação entre subjetividade e jogos de verdade, pois é através de jogos de verdade que nos pensamos e nos constituímos como indivíduos sexuados, alunos(as), educadores(as); que nos julgamos e nos colocamos ao lado da norma ou como desvios dessa. A subjetividade é produzida a partir de formas de subjetivação, cuja existência depende de um jogo de verdade estabelecido na produção e circulação de enunciados, práticas e instituições, que, para se consolidarem, tiveram que chegar a uma visibilidade se impondo sobre outras formas de verdade, criando uma divisão entre o verdadeiro e o falso, reforçando tanto um quanto outro - o que pode ser denominado de estratégia de veridicção, quando um tipo de verdade torna-se a verdade. Nesses termos é que Foucault nos diz: "só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se forma o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade". (Foucault, 1999a, p. 27)

Para podermos discutir essa questão, é necessário problematizar aquilo que foi construído como regime de verdade, compreender o discurso da inclusão buscando revelar que o ob- jeto desse discurso - a pessoa que está pensada em situação de vulnerabilidade ou risco - está sendo construído dentro dos processos sociais, históricos, económicos e culturais que regulam e constituem a forma como são pensados e inventados os corpos e as identidades desse outro. A meta da inclusão é entendida como um processo de modificação dos procedimentos normativos, estando implicados aí, principalmente, dois saberes interiores ao regime de verdade que participam da construção dos discursos acerca desse sujeito, que é o diverso sexualmente, e colocado no registro da inclusão: o saber médico e o pedagógico.

 

As Escolas

A pesquisa foi desenvolvida em duas escolas da rede pública, situadas no município de Porto Alegre, sendo uma delas da rede municipal de educação e a outra da rede estadual. A proposta de desenvolver a pesquisa em duas escolas, uma estadual e outra municipal, deve-se à maneira diferenciada que essas redes têm abordado o tema, às características muito diferenciadas no gerenciamento proposto pelas administrações, diferenças essas sempre mencionadas pelos profissionais dessas redes, que evidenciavam: há uma diferença salarial; a rede municipal, diferentemente da estadual, funciona por ciclos; as escolas estaduais são geograficamente mais centrais, enquanto as municipais são localizadas na periferia da cidade.

Apresentam, também, uma diferença importante no que se refere à temática da pesquisa: a Secretaria Municipal de Porto Alegre desenvolveu um projeto, já em 1988, que consistia em uma qualificação de professores(as) para o trabalho com oficinas de sexualidade. Em 1990, com os mesmos referenciais, o projeto Sexo em Debate na Escola formou professores, que tiveram uma prática de oficinas sobre sexualidade em escolas da rede prática, o qual se manteve durante vários anos, tendo os professores carga horária dedicada a esse trabalho. A rede estadual, por sua vez, não tem proposto formações contínuas para seus/suas educadores(as); seus profissionais interessados em trabalhar o tema procuram se qualificar por iniciativa própria, tendo sido exceção a parceria, em 2006 e 2007, com a ONG Somos, para que gestores de escolas se qualificassem através da formação proposta pelo programa Brasil sem Homofobia, financiado pelo governo federal.

A escolha das escolas para o estudo se deu considerando dois aspectos: (1) a escola já ter a experiência de algum projeto desenvolvido, ou em andamento, acerca da sexualidade e abordando o tema da diversidade sexual; (2) a presença, no corpo docente, de pelo menos um educador ou educadora que tivesse passado por uma formação ou qualificação proposta por um órgão público (ou financiada por verbas públicas) direcionada ao trabalho com alunos e alunas acerca da sexualidade. A pesquisa de campo foi realizada de abril a outubro de 2008 e consistiu de observações do cotidiano escolar e entrevistas com professores e professoras dessas escolas. Acompanhou-se uma variedade de atividades nas escolas e, principalmente, foi se constituindo uma maneira de pesquisar baseada na convivência com as educadoras e educadores em seu espaço de trabalho: conversas na sala de professores e professoras, no pátio, nas salas da supervisão etc. A intenção foi a de perceber como se atualizavam as dinâmicas dos discursos.

A pesquisa de campo reuniu uma grande variedade de registros: conversas informais, recreios de professores e professoras, alunos e alunas, reuniões pedagógicas, festas juninas, acompanhamento semanal das reuniões pedagógicas do corpo docente na escola municipal e conselhos de classe na escola estadual. No final de julho, foram iniciadas as entrevistas nas duas escolas: com três professoras, dois professores, três educadoras responsáveis pelo Serviço de Orientação Educacional (SOE), duas educadoras encarregadas pela supervisão pedagógica, diretor e diretora. Foram, no total, doze entrevistas, feitas em vários espaços da escola, no SOE, nas salas de supervisão, sala de professores e professoras.

 

A Escola Estadual

A escola estadual estava implementando uma proposta para trabalhar as questões de diversidade sexual e homofobia. Era um projeto de autoria de quatro professoras dessa escola que frequentaram a formação da ONG Somos Construindo identidades, Desconstruindo Preconceitos. Quando entramos em contato com essas professoras, elas estavam iniciando um processo de adaptação; uma professora estava se afirmando como travesti na escola, e isso estava trazendo à tona várias questões para a equipe diretiva e educadores(as). A discussão sobre diferença e diversidade estava se dando na prática desses profissionais.

O fato de essa professora, que trabalhou na escola por anos e "nunca escondeu que era gay", ter passado a se colocar como travesti trouxe o assunto à tona e a equipe pedagógica, juntamente com a direção e o SOE, têm optado por não deixar o tema acontecer apenas de maneira informal, mas abordá-lo de forma sistemática, em forma de conteúdo previsto nas matérias. A experiência de ter uma professora "diferenciada" na escola possibilitou que várias outras situações que aconteciam na escola pudessem ser explicitadas, que se falassem das lésbicas que não eram nomeadas, dos conflitos referentes ao preconceito etc.

As professoras que estão na escola há mais tempo relatam outro momento em relação à visibilidade das sexualidades, quando isso ficava apenas implícito, o assunto não era conversado entre os(as) educadores(as) e não se pensava em levar essa discussão para dentro das salas de aula como conteúdo do currículo. Essa é uma possibilidade, um novo momento, bem recente na educação, em que esse assunto ganhou uma legitimidade suficiente para que seja tratado como um conteúdo a ser trabalhado dentro do conceito de cidadania.

Não era novidade na escola a existência de professores(as) homossexuais, mas a postura sempre foi de discrição: "Todos sabiam de casais dentro da escola e pessoas que tinham seus parceiros fora da escola, porém, nunca se falou abertamente sobre isso." Então, a comunicação da professora que faria uma cirurgia e colocaria silicone desestabilizou a equipe de profissionais: "Naquela época, a gente trabalhava com a Constituição debaixo do braço, toda a equipe diretiva com a Constituição embaixo do braço. A gente não sabia o que vinha pela frente"

O discurso jurídico parece ser central na legitimidade da reivindicação dessa professora, e é amplamente usado por educadores(as) dessa escola. O fato de estarem explícitos na lei os direitos da livre expressão da sexualidade confere uma legitimidade que autoriza situações novas, como a vivida nessa escola. Participando da rotina dessa escola, pudemos perceber, nos relatos e nas práticas, um funcionamento diferenciado, uma mudança, parecia uma modificação na maneira de se lidar com o que poderíamos chamar de fronteiras que delimitam o possível, o estranho e mapeiam o que deve ser incluído e o que deve permanecer circunscrito ao terreno da estranheza e permanecer fora de visibilidade. A "transformação" da educadora foi um processo que a comunidade escolar acompanhou, o que parece ter barrado, de alguma forma, o processo do total estranhamento, com o bizarro atribuído a essa transposição de fronteira. A escola, no seu cotidiano, foi conformando suas rotinas e códigos de maneira a incorporar esse fenómeno, que, na prática, vai assumindo outro tom, não mais o do extraordinário.

A escola estadual referida tem um processo diferenciado das outras escolas. Foi a única escola da rede estadual, das que tiveram profissionais nas formações da ONG Somos, que construiu e implementou um projeto pedagógico em sua escola. Isso parece estar relacionado à presença de uma professora travesti na escola, mas, também, a um comprometimento assumido pelas professoras do SOE e pela supervisão pedagógica, que se apropriaram dos debates e puderam levar à frente uma discussão, com o apoio da direção da escola.

O fato de a equipe diretiva ter assumido institucionalmente o tema da diversidade sexual e referendado a legitimidade da permanência da professora foi determinante para o processo na escola. Percebe-se que essas educadoras consideram a possibilidade de sua postura não ser apoiada pela Secretaria Estadual de Educação, mas avaliam a discussão do tema importante e se propõem a mantê-la. Elas não escondem suas discordâncias com o tom dado ao trabalho proposto para o tema das sexualidades, com ênfase no discurso médico e da prevenção da gravidez adolescente. Essa professora da escola estadual provoca, com sua presença, uma desnaturalização de comportamentos e uma desconstrução de verdades, na medida em que sua postura e reivindicações são do âmbito dos direitos de cidadania e ela está em um lugar onde estão inscritas marcas de um poder outorgado ao cargo de professora.

A opinião das professoras, quando se toca na temática das políticas públicas, é unânime: não há apoio institucional para as questões nas quais a escola está envolvida. Percebi que as professoras constroem estratégias para introduzirem questões que consideram pertinentes e buscam conquistar espaços pedagógicos - nessa escola, na matéria obrigatória Ensino Religioso, a temática dos direitos humanos e diversidade sexual são abordadas.

 

A Escola Municipal

A escola municipal que foi selecionada para a pesquisa tem em seu quadro uma professora que realizou, em 1990, a formação da Secretaria da Educação Municipal e trabalhou por 14 anos com oficinas sobre sexualidade com os alunos dessa escola, projeto suspenso há alguns anos; ela participou da 3a edição da formação da ONG Nuances Educando para a Diversidade, também vinculada ao projeto federal Brasil sem Homofobia.

A pesquisa sobre diversidade sexual, para esses(as) professores(as), está relacionada a um público em especial - os diversos -, não dizendo respeito ao conjunto de pessoas da comunidade escolar. Segundo eles(as), o motivo que levaria um(a) educador(a) a realizar uma qualificação nesse sentido seria com o objetivo de ter instrumentais para lidar com dificuldades inerentes ao trabalho com esse público diferenciado. A associação do termo diversidade sexual a indivíduos classificados como anormais, diferentes e diversos é imediata.

Na escola municipal, o que parece prevalecer é uma dinâmica de fronteiras bastante rígidas, fronteiras entendidas como entre "dois mundos". Nesse contexto, as ideias de diferenças de classe e etnia, associadas a uma questão moral, estão bastante estabelecidas e fortalecendo o lugar de "outro".

Os/as profissionais da rede municipal trabalham com um público com o qual os/as educadores(as) têm uma diferença de classe grande. Isso parece estar justificando um enfrentamento e, por vezes, a colocação de um abismo entre os/as professores(as) e as pessoas da comunidade, que são percebidas como fazendo parte de outra cultura. Esse processo permite que lógicas que atribuem comportamento promíscuo às classes populares se instalem e determinem um tratamento às sexualidades diversas como desvios. A lógica eugênica/higienista está profundamente instalada e, nesse contexto, é o que vai reger as justificativas das necessidades de implantação de políticas públicas que se mantém dentro de olhares marcados pela patologização da pobreza. As ações, muitas vezes, são demandadas no sentido de maior controle social, e direcionadas a um público em específico: os que não conseguem gerir suas vidas a bom termo, como os pobres. A eles estão associadas toda uma série de incompetências e comportamentos desregrados em relação à sexualidade.

Uma abordagem da qual se lança mão é a dos saberes vindos do campo da psicologia, associando-se um entendimento de que os conflitos surgem por uma inadequação desse indivíduo em particular. A ele é dada responsabilidade de "se fortalecer", posicionar-se frente à situação de conflito, pois, em última análise, é devido à sua opção que a vulnerabilidade surge. Quando o "problema" é individualizado, ou seja, considera-se que o indivíduo "opta" por ser diverso, então, as possíveis intervenções são muito limitadas, não são percebidas como de responsabilidade dos educadores, e nem que os acontecimentos são decorrentes de um cotidiano escolar em específico.

Nas entrevistas, em relação às perguntas de como se agia nesses "casos", as respostas foram de ações individuais e, quando coletivas, circunscritas à disciplina e contenção da violência explícita. As educadoras tiveram dificuldade em responder de maneira clara, demonstrando um tratamento da questão sem reflexão sistemática. O processo de discriminação é naturalizado: "Então chega um ponto em que eles não querem mais vir à aula.", "quantas vezes a gente foi conversar com a turma, ia lá e conversava: as diferenças, o respeito, patati patatá, ficava tudo calmo, no outro dia era aquele fuzuê!" A dificuldade de contornar ou de solucionar essas situações parece ficar incorporada ao cotidiano do exercício da profissão ("é assim...").

A questão da falta de preparação dos(as) professores(as) para trabalhar temas específicos, como o das sexualidades, reapresenta-se, muitas vezes, para justificar a atitude omissa dos(as) educadores(as), entendida como uma não atuação. As dinâmicas das relações dentro de uma sala de aula são atravessadas pelo lugar de autoridade do(a) professor(a), conseguindo o "domínio da turma" ou não, é ele/ela quem está autorizado(a) a falar e "colocar cada um no seu lugar". Skliar (2006) questiona se é necessário ou não criar ou recriar e reproduzir um discurso racional, técnico, especializado sobre esse outro específico que está sendo chamado à inclusão.

Afirma-se que a escola e os professores não estão preparados para receber os "estranhos", os "anormais" nas aulas. Não é verdade. Parece-me que ainda não existe nenhum consenso sobre o que signifique "estar preparado" e, muito menos, acerca de como se deveria pensar a formação quanto às políticas de inclusão propostas em todo o mundo. (Skliar, 2006, p. 32)

Nessa escola, não parece haver uma discussão acerca da postura dos professores frente a seus alunos, não se percebe reflexões ou questionamentos das atitudes do corpo docente frente ao alunado. Parece cristalizada uma visão de que o público atendido é difícil, então "se faz o que se pode". O respeito que é trabalhado é aquele em que os alunos devem adquirir, não aquele que poderia faltar ao(à) professor(a). Não se coloca em pauta um possível preconceito ou desrespeito que partiria do(a) professor(a), pois este está colocado no lugar naturalizado como adequado e os/as alunos(as) daquele(as) que necessita(m) ser corrigido(as).

A inclusão tem uma legitimidade, é difícil falar contra ela, porém, a todo o momento, fala-se de suas dificuldades: a escola não está preparada para recebê-los, os(as) professores(as) ficam sobrecarregados(as) e preferem turmas na quais não tenha nenhum "de inclusão". A chamada diversidade sexual parece ter iniciado sua instalação e busca de legitimidade dentro desse contexto geral de inclusão, pois a argumentação de boa parte dos textos oficiais parte daí. A possibilidade de inclusão dos diferentes/diversos sexuais está amparada no enunciado de que todos têm direito à escolarização, porém, alguns vão conseguir se educar e outros não vão conseguir aprender. Quanto a estes, a compreensão éde que eles, muitas vezes, fracassam por serem psicologicamente instáveis, provocarem conflitos, não terem tanto interesse pela aprendizagem, ou seja, são alunos(as) vistos(as) como tendo em sua sexualidade o ponto central de suas atitudes. Nesse caso, fica evidente um julgamento moral e uma menor legitimidade por se tratar de uma opção: o sujeito opta por ser "destrambelhado", diferente de um "cadeirante" ou um "Down", que não tem culpa de sua condição. Muitas vezes, os gays, lésbicas e travestis são vistos numa situação de escolha, na qual poderiam, em algum momento, "se acertar", serem mais discretos, não precisaria dessa "purpurina" toda. Alguns comportamentos são avaliados como desnecessários, muitos conflitos em sala de aula são percebidos como controláveis pelo sujeito que é alvo dessa situação: "eles poderiam ficar na sua, não tumultuar, não dar bola para as provocações". As explicações beiram à responsabilização do indivíduo pelos conflitos, já que ele chama, desnecessariamente, a atenção.

 

Considerações Finais

O movimento de educação inclusiva, que, no Brasil, está sendo proposto com a estratégia dos direitos humanos, tem legitimidade legal: a todos(as) se deve garantir o direito à escolarização. E observamos que esses argumentos conseguem se instalar nas escolas, porém, deslizam com facilidade para uma prática em que o sujeito alvo das políticas de inclusão se constitui a partir de características negativas a ele atribuídas. Essa marca negativa é acompanhada de uma prática de lógica assistencialista, a qual é sempre presente, não só em relação à diversidade sexual, mas no que tange à hierarquia de classe e etnia.

Nas práticas escolares, foi possível perceber que existe um lugar bem marcado para o "outro"; a lógica geralmente utilizada se refere a um ideal, o que deveria ser, o esperado M a heteronormatividade. A norma se mostra instalada: é o referencial a que todos vão se reportar, a heteronormatividade atinge a todos e todas, mesmo quando está sendo desacomodada e reclassificada. Quando se fala em inclusão, está implícita a carência, a desvantagem, o desvio, o indivíduo que necessita da intervenção do processo inclusivo. Vários discursos são utilizados para entender, fazer uma leitura daquele "diferente", ocorrendo um processo de mantê-lo afastado, tendo como base um estranhamento e a consequente valorização daquele que aceita e acolhe. As justificativas da intervenção estatal vão no sentido de proteção e colocam a população alvo em uma situação desqualificada e vitimizada: em risco, em vulnerabilidade.

A possibilidade de inclusão dos diferentes/diversos sexuais está amparada no enunciado de que todos têm direito à escolarização, porém, um questionamento que se apresenta acerca da proposta de inclusão é sua utilização como uma prática de tolerância e tentativa de acabar com as diferenças, tendo como referência a "normalidade". Enunciados homofóbicos e sexistas estão profundamente articulados com os de discriminação de classe e etnia; desigualdades se sobrepõem e se reforçam. Ao se compreender a tolerância como uma virtude, ignora-se a relação de poder que a legitima, pois sempre aquele que tolera o outro se coloca em uma posição de poder pouco intercambiável, estabelecendo a hierarquia do "normal" que tolera o "anormal". Por esse motivo, Mendus (1989, citada por Skilar, 2004) diz que a tolerância implica que o objeto tolerado é moral e necessariamente censurável.

A tolerância surge como uma palavra branda, frágil, leviana, que muitas vezes nos exime de assumirmos posições e de nos responsabilizarmos por elas. Mencionamos a palavra 'tolerância' e já não tendemos a fazer mais nada. Como se a palavra dita ocupasse o lugar da ação, do movimento; de fato, quanto mais fragmentada se apresenta a vida social, mais ressoa o discurso da tolerância e mais se 'toleram', portanto, formas desumanas de vida. Além disso, ao entender a tolerância como uma virtude natural ou como uma utopia incontestável, se ignora a relação de poder que lhe dá razão e que lhe dá sustento. (Skliar, 2004, p.80)

O discurso dos direitos humanos parece estar sendo apropriado como direcionado a alguns que necessitam legitimar sua humanidade. Parece haver uma suposta visão no imaginário social de que se produzem demandas em interesse próprio, que as reivindicações estão relacionadas a grupos específicos, não são percebidas como de interesse da sociedade como um todo. Os direitos sexuais se colocariam para quem necessita legitimar sua diversidade; quanto à heterossexualidade, mantém-se como natural.

No Brasil, este momento em particular permite que se olhe com mais proximidade para o "outro", ele está mais próximo no sentido de que está adquirindo uma maior visibilidade geral na sociedade, ele pode ser visto. A temática da diversidade sexual tem adquirido visibilidade na mídia, nos locais públicos e nas ações públicas. As conquistas jurídicas têm contribuído de uma maneira central para uma modificação do olhar dirigido a esses outros ("no mínimo, tem que respeitar...").

A repercussão do programa Brasil Sem Homofobia nas escolas que pesquisamos se deu de maneira diferenciada. Na escola municipal, a maioria dos professores e professoras não tinham conhecimento do programa, não havia nenhum envolvimento institucional em relação às propostas desenvolvidas por ele, apesar de existirem, na escola, educadoras comprometidas com esse tema. Como coloca a supervisora: "Fica tudo a nível individual, tem muito material, mas é daquela professora, ela não socializa, os cursos não são socializados." Uma professora da escola trabalha com o tema da travestilidade fora da escola, mas isso não se reflete em seu trabalho pedagógico, e a professora que teve a experiência de ser orientadora sexual, formada pela capacitação municipal em 1991, procura parcerias para discutir esses temas, mas também fora da escola. Essas ações/atitudes individualizadas produzem, no que foi possível compreender durante o trabalho de campo, uma repercussão muito restrita do trabalho dessas educadoras no contexto da escola e como modificação de comportamentos.

A conquista de direitos jurídicos se mostrou fundamental para a garantia de espaços e legitimidade. Há uma apropriação pelos(as) professores(as) do discurso jurídico de direitos humanos e de direitos sexuais. Porém, o termo "homofobia" não se encontra incorporado ao linguajar cotidiano das escolas; sua utilização é tímida. Na escola municipal, em especial, não há uma apropriação desse conceito e algumas educadoras dessa escola perguntaram seu significado quando respondiam ao questionário.

Podemos perceber que os discursos que se constituem como verdades em determinado espaço institucional, num momento histórico específico, não se estabelecem de maneira absoluta, determinando o desaparecimento de verdades anteriores ou contraditórias. Verificamos uma variedade de discursos que se compõem como uma trama e conformam as práticas dos(as) educadores(as), discursos que não são homogêneos, alguns relacionados a práticas ditas extintas no campo da educação, mas que ainda deixam suas marcas na escola. As inclusões/exclusões estão inseridas em sistemas de reconhecimento, divisões e distinções que constroem identidades.

Estão presentes determinadas concepções negativas que socialmente se construíram a respeito daqueles que são o público alvo dessas políticas, principalmente quando se refere à criança e ao/à adolescente oriundos(as) das camadas populares. Achamos importante discutir como tais concepções atravessam as práticas e configuram as maneiras com que são compreendidas as ações governamentais e sua instalação no cotidiano escolar. Turmas nas quais é identificado um(a) aluno(a) "diferente" é nomeada, é apontada com a fala: "naquela turma tem aluno de inclusão", "os professores não querem pegar uma turma que tem aluno de inclusão." Uma série de dificuldades que surgem na sala de aula são atribuídas ao público que compõe o alunado: indisciplina, desrespeito, pouca higiene, violência, uso de drogas.

Quanto à sexualidade, as propostas de intervenção relacionadas ao erotismo e ao prazer não são percebidas como interferências fora de ordem, como coloca Ávila: "Do meu ponto de vista, foi tornado tão natural o controle do Estado sobre a intimidade, a sexualidade, que muitas vezes isso não é considerado um dilema." (Ávila, 2003, p.26) Muitas vezes, essas ações são justificadas no âmbito da saúde, mas no que tange à diversidade sexual, ela se justifica, nesse momento, como uma ação protecionista do Estado, destinada a uma população em situação de vulnerabilidade. O discurso dos direitos humanos parece estar sendo apropriado como direcionado a alguns que necessitam legitimar sua humanidade. No entanto, esforços mais amplos que envolvem verbas mais significativas se relacionam, geralmente, a justificativas de ordem da saúde. Isso se apresenta nos argumentos em relação à prevenção da gravidez na adolescência, nos programas direcionados à violência doméstica e aos sempre utilizados dados sobre suicídio de jovens de diferentes orientações sexuais.

Não estamos ignorando a realidade desses fatos ou sua importância, porém, é necessário refletir sobre como se constroem as legitimidades dos grupos que podem se constituir como alvos de ações das políticas públicas. O indivíduo passa a poder ter benefícios na medida em que sua condição inspire cuidados ou traga problemas - como pode ser o caso de atitudes tidas como irresponsáveis quanto ao exercício da sexualidade, como a não utilização do preservativo, que pode comprometer toda uma população sadia.

Parece haver uma suposta visão no imaginário social de que se produzem demandas em interesse próprio, que as reivindicações estão relacionadas a grupos específicos, não sendo percebidas como de interesse da sociedade como um todo. Os direitos sexuais se colocariam para quem necessita legitimar sua diversidade; quanto à heterossexualidade ,mantém-se como natural.

As formações inseridas no programa Brasil Sem Homofobia se diferenciam das propostas anteriores, pois se apresentam centradas no discurso dos direitos humanos, característico deste momento contemporâneo, quando, mundialmente, esse é um assunto central e argumento utilizado pela grande maioria dos movimentos sociais. Na área da educação, esse enfoque teve sua entrada garantida pelo debate mais amplo da discussão sobre educação inclusiva, que traz como bandeira a universalidade de escolarização. Nesse sentido, essa proposta trouxe o discurso jurídico com uma ênfase que não aparecia anteriormente.

Quanto às ações do Estado, estão colocadas em debate as diferentes abordagens e que tipo de demanda se quer contemplar. Parece que se colocam separadamente as demandas por direitos humanos, que envolveriam reivindicações de direitos sexuais e a diversidade sexual ("o direito de ir e vir como se é"); por outro lado, uma abordagem privilegiando a saúde, direitos reprodutivos, prevenção de DSTs e AIDS. Essa diferença está colocada na implantação de dois projetos federais propostos na mesma época: Brasil sem Homofobia e Saúde e Prevenção na Escola, cada um tendo sua entrada e instalação diferenciada nas escolas.

 

Referências

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Skliar, C. (2006) A "inclusão" que é nossa e a diferença que é do "outro". In D. Rodrigues (Org.), Inclusão e educação: Doze olhares sobre a educação inclusiva (pp. 15-34). São Paulo: Summus.         [ Links ]

 

 

Recebido em 03 de agosto de 2010
Aceito em 05 de dezembro de 2010
Revisado em 21 de dezembro de 2010