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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Abuso sexual e resiliência: enfrentando as adversidades

 

Sexual abuse and resilience: facing adversities

 

Abuso sexual y resiliência: enfrentando las adversidades

 

L'abus sexuel et résilience : face à l'adversités

 

 

Rosimeire de Carvalho Martins

Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, UFES e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, UFAM. E-mail: rosedcm@gmail.com

 

 


RESUMO

O estupro, um tipo de abuso sexual, é um crime universal, ilegal e subnotificado, praticado contra a liberdade sexual de uma pessoa. Pode ser definido como um ato de força em que a pessoa agressora obriga outra a manter relação sexual contra a vontade desta. As vítimas preferenciais têm sido do sexo feminino, mesmo quando crianças e adolescentes. É considerado um problema de saúde pública devido à sua elevada incidência e às graves consequências para a saúde. Esta pesquisa investigou a percepção de jovens mulheres vitimadas sexualmente sobre as consequências que a violência trouxe para a saúde em relação aos aspectos emocional, físico e comportamental, bem como as estratégias de superação dos agravos oriundos da violência e que indicadores elas usaram para afirmar que superaram os efeitos. Foram entrevistadas dezoito mulheres, sendo doze vítimas de abuso extrafamiliar e seis de abuso intrafamiliar. Os dados foram analisados através da utilização da técnica de análise de conteúdo temática. Verificamos que, para as mulheres do grupo extrafamiliar, os efeitos negativos da ocorrência na saúde permaneciam, mesmo após a passagem de um ano do ocorrido, dificultando seus relacionamentos sexuais, sociais e familiares. Elas não contaram com o apoio de familiares e de profissionais. Nas mulheres do grupo intrafamiliar, identificamos uma crescente mobilização para superar o estresse e as consequências nocivas da ocorrência e retomar a vida. O apoio familiar e social atuou como facilitador no desenvolvimento de comportamentos resilientes e no enfrentamento dos efeitos adversos da violência sofrida.

Palavras-chave: Abuso sexual, agravos à saúde, resiliência, família, violência.


ABSTRACT

Rape, a type of sexual abuse is a universal crime, illegal and sub notified, practiced against the sexual liberty of a person. It can be defined as an act of power in which the aggressor forces another person to maintain intercourse against her will. The preferential victims are, in general, of the feminine gender, even when they are children and adolescents. It is considered a public health problem due to its elevated incidence and its serious consequences. This research investigated young women perceptions which were victims of sexual abuse over the consequences that violence brought to their health in relation to emotional, physical and behavioral aspects, as well as the strategies for overcoming the wicked aspects caused by the violence and what indicators they use to reassure that they overcame the malicious effects to their health. Eighteen women were interviewed; twelve of them were victimized by an unknown person (extrafamily abuse) and six by someone from her own family group (intrafamily abuse). The data was analyzed by the technique of theme analysis of content. We verified that in 50% of the women the negative effects in their health remained, even after one year after the violence, making their sexual, social and family relations difficult. They could not count on the support of the family or professionals. In the other 50% of the cases, we identified a growing movement to overcome the stress and harmful consequences to retrieve their lives. The social and family support, as well as the psychological support service acted as helpers in the development of resilient behaviors and the confronting of adverse effects of the suffered violence.

Keywords: Sexual abuse, damages to health, resilience, family, violence.


RESUMEN

El estupro, un tipo de abuso sexual, es un delito universal, ilegal y muchas veces no notificado, practicado contra la libertad sexual de una persona. Puede ser definido como un acto de fuerza en que la persona agresora obliga otra a mantener relación sexual contra la voluntad ajena. Las víctimas preferenciales son, con frecuencia, del sexo femenino, aun cuando niñas y adolescentes. Es considerado un problema de salud pública debido a su elevada incidencia y a las graves consecuencias para la salud. Este estudio ha investigado la percepción de jóvenes mujeres victimadas sexualmente sobre las consecuencias que la violencia ha traído a su salud con relación a los aspectos emocional, físico y comportamental, así como las estrategias de superación de los agravios oriundos de la violencia y que indicadores ellas han usado para afirmar que han superado los efectos aciagos a su salud. Fueron entrevistadas dieciocho mujeres, siendo doce víctimas de abuso extrafamiliary, seis de abuso intrafamiliar. Los datos han sido analizados a través de la utilización de la técnica de análisis de contenido temático. Hemos verificado que, para las mujeres del grupo extrafamiliar, los efectos negativos de la ocurrencia en la salud permanecían, aun después del pasaje de un ano del suceso, dificultando sus relaciones sexuales, sociales y familiares. Ellas no han contado con el apoyo de familiares y de profesionales. En las mujeres del grupo intrafamiliar, hemos identificado una creciente movilización para superar el estrés y sus consecuencias nocivas de la ocurrencia y reanudar a la vida. El apoyo familiar y social ha actuado como facilitador en el desarrollo de comportamientos de recuperación y en el enfrentamiento de los efectos adversos de la violencia sufrida.

Palabras-clave: Abuso sexual, agravios a la salud, recuperación, familia; violencia.


RÉSUMÉ

Le viol est une agression sexuelle illégale, un rapport sexuel imposé à quelqu'un par la violence, obtenu par la contrainte et constitue un crime dans la plupart des législations. Il peut être défini comme un acte de violence et de relation sexuelle ou pénétration sans consentement valide des deux parties. La plupart des victimessont du sexe féminin, même entant qu'enfants et mineures. Il est aussi compris comme un problème de santé publique car il affecte, parfois pendant de longues années, la personnalité et la santé de la victime. Cette recherche a etudié le comportment des jeunes femmes violées sur le résultat que cet acte a porté à leur santés et comportments sur le plan personnel et social, ainsi que les stratégies et les moyens qu'elles ont utilisées pour surmonter cette violence. On a interviewé dix-huit femmes, douze victmes dabus hors de la famille et six dabus au domicile par un membre de la famille. Les données se sont soumies à la tecnique d'analise de contenu tematique. On a vérifié que dans le groupe dabusées hors de la famille les effets négatifs à la santé sont restés même aprés un an du fait, dificultant leur rapport sexuel, social et familial.Elles nont pas eu de soutien ni familier ni professionnel. Dans le groupe dabusées par un membre de la famille on a identifié une mobilisation croissante pour surmonter le stress et le conséquances nocives de cet abus, permettant de reprendre la vie ordinaire. Le soutien familial et social a joué un rôle de facilitation du développement d'un comportement de récupération d'une adversité, ainsi que pour combattre cette violence.

Mots-clés: Labus sexuel, l'agression à la santé, récupération d'une adversité, famille, violence.


 

 

Introdução

Entre as múltiplas violências a que estão submetidas as mulheres desde a adolescência, e, frequentemente, desde a infância, a violência sexual se coloca, hoje, como uma questão preocupante. É uma das manifestações violentas mais perversas, visto que destrói a manifestação mais humana que a civilização construiu - o direito à liberdade, ferindo outros direitos humanos fundamentais, como o direito à vida e à segurança. No presente estudo, focamos nossa atenção na percepção de jovens mulheres vitimadas acerca das consequências que a situação de violência sexual trouxe à sua saúde, as estratégias resilientes utilizadas por elas para superar os agravos, e que indicadores elas utilizaram para se referirem à superação do trauma vivido.

No Brasil, encontramos dificuldades em conhecer a incidência da violência sexual. Se para alguns tipos de violência, como a violência psicológica e relacional, o quadro é impreciso, devido, principalmente, às diferentes nomeações para o mesmo tipo de ocorrência, no caso da violência sexual, o quantitativo é ainda mais difícil de avaliar. A falta de notificação da ocorrência desse tipo de abuso parece estar associada, também, ao silêncio que cerca as vítimas e a reticência das mesmas em se queixarem (Martins & Jorge, 2010).

A principal dificuldade para coibir essas ocorrências é a naturalização dos papéis tradicionais de gênero, que colocam as mulheres em uma posição de subalternidade legitimada pela cultura. Damergian (1986) alerta que "nossa sociedade é tolerante com a violência, incorpora-a a seu cotidiano, de forma tal que não nos espantamos mais com as notícias de brutalidades sexuais cometidas indiscriminadamente contra crianças, adolescentes ou adultos, inundando jornais e noticiários" (p. 3).

Mesmo considerando os reflexos fortemente negativos da violência sexual, como depressão, ansiedade e dificuldades nos relacionamentos afetivos e sociais, dentre outros, na saúde das mulheres, nota-se que parte considerável dos estudos epidemiológicos desenvolvidos na área da saúde sobre violência sexual permanece no nível descritivo, deixando de aprofundar a discussão, e, inclusive, ignorando outras formas de violência, como as agressões verbais e humilhações que afetam a autoestima e a capacidade de reação e decisão das pessoas agredidas (Araújo,1996).

A preocupação com a violência sexual no Brasil é recente e só despertou maior interesse nos campos científico, institucional e político a partir da década de 1980. As pesquisas de Guerra (1985), Marques (1986), Santos (1987) e de Azevedo & Guerra (1989) podem ser consideradas pioneiras na área e, embora a produção científica nessa área tivesse sido ampliada, geralmente, os trabalhos produzidos permaneciam preocupados com a caracterização desse tipo de ocorrência, a demonstração dos níveis de incidência e a sistematização das características dos agressores, buscando construir o perfil dos abusadores.

O quadro atual apresenta mudanças significativas, fortemente influenciadas pelas investigações realizadas, principalmente, nos Estados Unidos e na França, que têm como principal foco a saúde das mulheres vitimadas. Pesquisas recentes nesses dois países e no Brasil, como as de Amazarray & Koller, 1998; Charam, 1997; Furniss, 2002; Gabel,1997; Hirigoyen, 2002; Mees, 2001; Rangel, 1998; Santos, 1997; Sobreira, 1997; Teicher, 2003, destacam diversos problemas decorrentes do abuso sexual, tais como depressão, ansiedade, dificuldades nas relações sociais, afetivas e sexuais. Esses autores mostram ainda que a violência sexual é um sério problema de saúde pública, implicando em fortes impactos físicos e emocionais para crianças e/ou adultos que a ela são expostos.

Pesquisas como a de Habigzang, Corte, Hatzenberger, Stroeher e Koller (2008) tem estudado o impacto, principalmente, em crianças pequenas, captando seus efeitos no desenvolvimento, a partir de estudos longitudinais e avaliações psicológicas com essa população. Poucos estudos têm dado atenção específica à violência sexual praticada contra mulheres jovens ou adultas, e aos possíveis impactos na sua saúde. Mais raro ainda, conforme informam Dantas-Berger e Giffin (2005), é encontrar notificações e estudos sobre violência sexual conjugal - nomeação mais usual para os casos de abuso sexual praticado por maridos e companheiros. De acordo com as autoras, "sexo cedido ou sob resistência foi recorrente, mas pouco nomeado como violência" (p.422).

No entanto, pode-se afirmar que, na literatura atual, predomina o consenso de que as pessoas vitimadas, sejam homens, sejam mulheres, encontram forças e conseguem superar a situação de adversidade vivida; ou seja, conseguem superar as consequências negativas, geralmente traumáticas, deixadas pelo abuso sexual, enquanto outras ficam presas a uma teia de sofrimento e sucumbem de forma drástica através de atentados à própria vida. É possível pensar que, seguindo uma tendência presente na maior parte das abordagens psicológicas, a literatura tenha priorizado focalizar, involuntariamente, o sofrimento e a patologia, explicitando com maior veemência os efeitos deletérios do abuso sexual. Um conceito que tem fundamentado algumas das investigações recentes sobre o tema é o de resiliência.

Desde o final da década de 1970, o conceito de resiliência tem sido estudado pela Psicologia e tem se tornado bastante popular, sendo usado para entender as consequências e a evolução de eventos considerados danosos. Assim, ao invés de ressaltar a impotência e o sofrimento, a preocupação se voltou para o entendimento da capacidade de resistir às adversidades, bem como sobre a força necessária para a saúde mental se restabelecer após a exposição a riscos. Procurava-se, portanto, compreender melhor a habilidade que algumas pessoas desenvolvem para se reequilibrar frente às adversidades.

A noção de resiliência foi criada pelas ciências exatas, em especial, a Física e a Engenharia, referindo-se ao grau de resistência de um corpo. Quando adaptada para as ciências humanas, enfatiza os aspectos emocionais do ser humano quando exposto ao estresse e à adversidade psicossocial. Portanto, deve sempre ser entendida e relativizada dentro de um conjunto amplo de fa- tores, tanto intrínsecos quanto extrínsecos (Assis, Pesce, & Avanci, 2006).

Resiliência é um conjunto de processos sociais e psíquicos que possibilitam o desenvolvimento de uma vida saudável, ainda que a pessoa viva em um ambiente considerado pouco sadio. Constitui-se de um processo resultado da combinação dos atributos que a pessoa possui e do meio social e cultural em que está inserida, e pode ser entendida como uma variação individual em resposta ao risco. No entanto, os mesmos fatores causadores de estresse podem ser experienciados de forma diferente, não constituindo a resiliência um atributo fixo do indivíduo (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004). Com efeito, o termo resiliência se refere à capacidade de recuperar e manter um comportamento adaptado após um dano (Gamezy, 1991; Rutter, 1999).

É possível apostar, então, que, não obstante a situação de adversidade que a violência sexual (como o estupro) traz para a vida de uma pessoa ou uma família, a perspectiva da resiliência permite pensar essas pessoas a partir das capacidades potenciais para se desenvolverem e alcançarem níveis aceitáveis de saúde e bem-estar. Essas capacidades permitem conviver, manipular e aliviar as consequências psicológicas, fisiológicas, comportamentais e sociais, provenientes de experiências "traumáticas", evitando que as pessoas tenham que se desviar muito do curso de seu desenvolvimento (Pynoos, 1993).

O conceito de resiliência vem evoluindo e se tornando mais complexo, principalmente, com as pesquisas da Psicologia e Psiquiatria ao longo das últimas décadas. Já foi entendido como sinónimo de invulnerabilidade, capacidade individual de adaptação em um ambiente "desajustado" e como qualidades flexíveis do ser humano. A utilidade do conceito foi questionada, segundo Célia e Souza (2002), porque parecia corresponder a uma resistência absoluta ao dano. Sabemos que, na realidade, a suscetibilidade ao estresse é um fenómeno gradual, visto que algumas pessoas são mais resistentes, mas todas têm seu limite.

As pesquisas pioneiras que iniciaram na década de 1970 se preocupavam em entender a diferença entre a criança que vivia em risco social e não se adaptava positivamente, das outras crianças que se adaptavam positivamente. Eram pesquisas preocupadas com a identificação de fatores de risco e de resiliência que influenciam no desenvolvimento da criança. Alguns autores pioneiros situavam a resiliência no indivíduo e enfatizavam que os atributos individuais poderiam ser estimulados em pessoas que não conseguem desenvolvê-los espontaneamente, ou seja, os traços e as disposições pessoais de crianças e adolescentes é que lhes confeririam a capacidade de resistir e ter êxito diante das adversidades. Ademais, questionavam se a resiliência seria possível por uma constituição particular no indivíduo ou pela interação entre o que é subjetivo e o que o meio externo oferece como base ao sujeito (Assis et al., 2006).

Para Infante (2005), o objetivo desse primeiro grupo de pesquisadores era a identificação dos fatores protetores que estão na base da adaptação positiva do comportamento em crianças e adolescentes que vivem em condições de adversidade. Uma segunda geração de pesquisadores expandiu o conceito de resiliência em dois aspectos: a noção de processo, que implica a dinâmica entre fatores de risco e de resiliência, permitindo ao indivíduo superar a adversidade; e a busca de modelos para promover resiliência de forma efetiva através de programas sociais. A maioria dos pesquisadores dessa geração se identificou com o modelo triádico de resiliência, o qual, segundo Infante (2005) "consiste em organizar os fatores resilientes e de risco em três grupos: os atributos individuais, os aspectos da família e as características dos ambientes sociais a que as pessoas pertencem" (p. 24). Nessa perspectiva, a ênfase é no desenvolvimento humano em contexto, considerando a influência de relações com pessoas significativas e próximas - importantes fontes de apoio para a superação das adversidades da vida (Rutter, 1999; Werner, 1993; Werner & Smith 1992).

Rutter (1999) afirma que a resiliência é um processo que relaciona mecanismos de proteção que não necessariamente eliminam os riscos, mas encorajam a pessoa a se engajar na situação de superação. Nessa mesma perspectiva, entendemos que o enfrentamento da adversidade passa pela relação dos fatores de risco e os de proteção.

O termo superação de adversidades, comumente associado à resiliência, não significa que a pessoa escape completamente ilesa de situações consideradas muito estressantes. As adversidades deixam maiores ou menores marcas e podem ser mais ou menos duradouras, pois isso varia de acordo com a forma específica de cada um responder às situações de risco às quais está exposto (Assis et al., 2006).

A maioria dos pesquisadores que vem utilizando o conceito simpatiza com o modelo ecológico de resiliência, que tem suas bases no modelo ecológico-transacional de Bronfenbrenner (1996). De acordo com esse modelo, o indivíduo está imerso em uma ecologia determinada por diferentes níveis, que se interrelacionam, exercendo uma influência direta em seu desenvolvimento. É importante ressaltar que os níveis contextuais influenciam, mas também são influenciados por características dos indivíduos. Os níveis que formam o marco ecológico são quatro: individual, familiar, comunitário e cultural. O processo desenvolvido por Bronfenbrener diz respeito à consideração da pessoa nas suas disposições gerativas e disruptivas, dos recursos de competência e disfunção, bem como das demandas positivas e negativas. No que diz respeito ao tempo, considera o microtempo, mesotempo e macrotempo; e ao contexto, denomina de microsistema, mesosistema, exosistema e macrosistema.

Para Bronfenbrenner (1996), a perspectiva ecológica leva em conta os muitos fatores que influenciam a resiliência durante o tempo de vida: a família, os amigos, a escola ou os ambientes de trabalho, e os sistemas sociais mais amplos podem ser vistos como contextos associados que fomentam a competência social.

A plena compreensão da resiliência requer um modelo interacional mais complexo, que avance para além da visão restrita de adaptação individual e inclua o sistema familiar e social, para, assim, tratar a mutualidade das influências por meio dos processos transacionais (Walsh, 2005).

Um dos expoentes da abordagem desenvolvimental, Rutter (1999), afirma que, mais que um conjunto de traços determinados, também o enfrentamento e a adaptação abrangem processos multideterminados que perduram ao longo da vida. Para esse autor, a maioria das formas de estresse não pode ser compreendida como um estímulo isolado, mas como um conjunto complexo de condições que podem mudar no futuro.

Ressalta Walsh (2005) que é importante entender a resiliência de forma que se ultrapasse a perspectiva desenvolvimental e familiar e se faça uso da perspectiva sistêmica, que nos permita compreender como os processos familiares intervêm no estresse e permitem à família superar a crise e enfrentar dificuldades prolongadas.

Walsh (2005) entende a resiliência como a capacidade de superar os golpes da vida, desfazendo os mitos de que o trauma precoce ou grave não pode ser desfeito; de que a adversidade sempre prejudica as pessoas, mais cedo ou mais tarde; e de que os filhos de famílias perturbadas ou "destruídas" não superarão o trauma vivido.

Desse modo, resiliência é mais do que apenas sobreviver, pois os sobreviventes nem sempre são necessariamente dotados de "boa resiliência"; alguns ficam presos numa posição de vítima, alimentando seus sofrimentos (Wolin & Wolin, 1993, p. 4). As qualidades da resiliência, por outro lado, permitem às pessoas se refazerem de feridas dolorosas, assumirem as rédeas de suas vidas e irem em frente.

Assim, ela é mais do que um atributo fixo e estável ao longo da vida, é uma capacidade de renascer da adversidade mais fortalecido. Nessa mesma direção, também Grotberg (2005, p. 17) informa que as condutas resilientes supõem a presença e a permanente interrelação de fatores que vão mudando nas diferentes etapas do desenvolvimento, pois as situações adversas não são estáticas, mudam e requerem mudanças nas condutas resilientes.

Considerando, por um lado, o quadro apresentado pela literatura da área, que enfatiza a fraqueza, a impotência e o sofrimento; e, por outro, as evidências de que o ser humano, desde seu nascimento, defronta-se com circunstâncias adversas e se defende delas ao longo de sua existência, transformando-se interminavelmente durante a vida, a depender de sua capacidade de elaborar, superar problemas e se reformular cotidianamente (Assis et al., 2006), pareceu-nos necessária a investigação sobre a percepção de jovens mulheres vitimadas acerca das consequências que a situação de violência sexual trouxe à sua saúde, sobre as estratégias resilientes utilizadas por elas para superar os agravos, e que indicadores elas utilizaram para se referirem à superação do trauma.

É importante considerar que o termo "abuso sexual" tem diferentes acepções, que variam de sociedade para sociedade, transformam-se com o tempo, e dependem, também, do enfoque utilizado nas investigações. No presente estudo, será considerado abuso sexual qualquer relacionamento interpessoal no qual a relação sexual é praticada sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas, implicando violência psicológica, social e, muitas vezes, física.

 

Método

Participaram da pesquisa 18 mulheres, distribuídas em dois grupos: 12 vítimas de abuso sexual extrafamiliar e 6 vítimas de abuso sexual intrafamiliar, todas atendidas pelo SAVAS (Serviço de Atendimento à Vítima de Abuso Sexual), um programa desenvolvido pelo governo federal no hospital da Universidade Federal do Amazonas, e pelo Programa Sentinela. O critério para inclusão nos grupos foi a decorrência de, no mínimo, um ano do abuso sexual, de modo a possibilitar uma melhor percepção das entrevistadas sobre as mudanças ocorridas na sua saúde.

Na época do abuso sexual, a idade das jovens variava de 14-25 anos. Das 18 entrevistadas, uma era casada, uma era separada e 16 eram solteiras. Quanto à profissão, os dados revelaram que, na época da ocorrência do abuso sexual, 14 (77%) eram estudantes, 2 eram domésticas, 1 era babá e a outra era industriária. No que se refere à residência, 9 que já moravam com os pais e irmãos no momento do abuso continuaram a residir com a família; das restantes, somente 2 mudaram seu local de residência após a violência sofrida: uma que morava com a irmã, depois de um ano passou a morar sozinha, e outra, que residia com a mãe e irmãos e era abusada pelo padrasto, passou a morar com a avó e tias. A escolaridade, no momento da entrevista, variou de séries iniciais do ensino fundamental ao ensino superior: 11 se encontravam no nível médio de escolaridade, 2 cursando o terceiro grau e 5 cursando o ensino fundamental.

 

Instrumento

Após o consentimento da vítima e/ou de seu responsável, utilizou-se uma entrevista que seguiu um roteiro semidiretivo, coletando, inicialmente, informações sócias demográficas, como idade, endereço, escolaridade, com quem residia, entre outras. Logo após a coleta dessas informações, a entrevista se manteve totalmente aberta para que fosse possível obter informações sobre as percepções das entrevistadas com respeito a possíveis impactos do abuso sexual em sua saúde. Para que identificássemos suas percepções a respeito disso, pedíamos que nos relatassem como ficou sua saúde, seus relacionamentos sociais, afetivos e sexuais após o trauma vivido, e se ela conseguia perceber a relação do trauma sofrido com as dificuldades que diziam estar vivendo nesses relacionamentos, as estratégias de superação dos agravos oriundos da violência, e quais indicadores elas usaram para afirmar que superaram os efeitos nefastos a sua saúde.

As entrevistas foram contextualizadas considerando a escolaridade e a cultura da participante entrevistada (Lisboa & Koller, 2002), realizadas seguindo as sugestões de Chizzotti (2001) e Monteiro (1991), pressupondo-se que a entrevistada era competente para se exprimir com clareza sobre questões da sua experiência, comunicar representações e análises particulares, prestar informações fidedignas e manifestar, em seus atos, o significado que têm no contexto em que eles se realizam, revelando tanto a singularidade quanto a historicidade dos atos, das concepções e das ideias. O registro foi feito com o uso de gravadores, procedimento previamente autorizado pelas participantes. Durante a entrevista, o entrevistador se manteve com atenção receptiva a todas as informações fornecidas, quaisquer que fossem, intervindo somente com discretas interrogações de conteúdo ou com sugestões que estimulassem a expressão mais circunstanciada das questões investigadas.

 

Procedimentos

Para a realização das entrevistas, foi necessário colher autorização formal junto ao setor de Psicologia do Programa SAVAS, pertencente ao Hospital Universitário, e junto ao Programa Sentinela, hoje CREAS. Obtidas todas as autorizações, submetemos o projeto de pesquisa ao Comitê de Ética, requisito fundamental para a obtenção da autorização para realização de pesquisa no Hospital. Antes da entrevista, quando a entrevistada aceitava participar da entrevista, assinávamos o Termo de Consentimento Informado. É importante esclarecer que, para não revitimá-las, só entrevistamos mulheres cuja ocorrência do abuso sexual tenha transcorrido há, no mínimo, um ano.

Após a obtenção do consentimento do Setor de Psicologia nos programas para o acesso às informações sobre as mulheres vitimadas, procedemos à identificação das possíveis participantes. Tais dados foram coletados a partir dos documentos de atendimento preenchidos pelos profissionais da equipe de psicologia. As entrevistas foram realizadas individualmente na sala de atendimento psicológico, no Setor de Psicologia dos dois programas e tiveram a duração aproximada de uma hora e meia a duas horas.

Após a transcrição literal das entrevistas, os dados coletados foram analisados qualitativamente através da análise de conteúdo temática orientada por Bardin (1979). A transcrição foi feita respeitando a linguagem das participantes, devido à preocupação em preservar o discurso das entrevistadas. Seguindo sugestão de Bardin (1979), a partir da leitura flutuante e tomando como referência os objetivos do trabalho, foram destacados os conteúdos de interesse. A retomada frequente do material possibilitou a elaboração de categorias temáticas e o reagrupamento do conteúdo considerando as categorias: impactos na saúde, relacionamentos sociais e afetivo-sexuais, e estratégias de enfrentamento das dificuldades sentidas após abuso sexual.

 

Resultados

Nas categorias de análise utilizadas na pesquisa, como impactos na saúde e relacionamentos sociais, afetivos e sexuais, as entrevistadas fizeram uma avaliação do impacto do abuso sexual nos seus relacionamentos afetivos e falaram dos sentimentos que vivenciavam em relação à sexualidade antes e depois do abuso sexual.

Todas as entrevistadas nos dois grupos perceberam, como consequências do abuso, dificuldades que apareceram logo após o ocorrido, e incluem os medos generalizados, depressão, isolamento, baixa autoestima, e o que pode ser entendido como estresse pós-traumático. O indicador usado por elas foi o tempo de duração das dificuldades. Os efeitos considerados por elas como de longo prazo são os que ainda persistem, mesmo tendo decorrido um ano do abuso sexual. São eles: insegurança, pesadelos, nervosismo, falta de apetite, gastrite, depressão crónica, frieza nas relações sexuais, raiva da família e medo constante da repetição do abuso.

Nessa pesquisa, identificamos que, nas participantes do grupo que sofreram abuso extrafamiliar, todas as consequências anunciadas pela literatura foram vivenciadas. Após um ano do abuso sexual, algumas ainda não superaram os problemas gerados pelo evento violento que sofreram, apresentando várias dificuldades de natureza comportamental, emocional e física, como: medo de dormir sozinha, gravidez, aborto, cansaço, dificuldades de manter relações sexuais com o namorado, interferência nos estudos, nas relações familiares, depressão etc. É importante ressaltar, portanto, que o impacto do abuso sexual não se restringe à questão emocional, física ou comportamental, ele estabelece conexões com outras áreas de atuação do sujeito, pois essas questões são conectadas umas às outras, mantendo relação de dependência entre si.

No entanto, nas participantes do grupo que sofreram abuso intrafamiliar, nem todos os agravos à saúde referidos na literatura e indicados acima foram mencionados nas entrevistas. Consideramos que o fato de elas não terem se referido de forma tão intensa aos efeitos negativos do abuso não pode ser tomado como evidência de que o impacto em sua saúde tenha sido menor nesse tipo de abuso sexual. Elas podem não ter mencionado essas consequências porque o tempo decorrido e a forma continuada com que o ato ocorreu fez com que o efeito em suas vidas fosse experimentado por elas como algo vergonhoso de ser relembrado e tornado público.

Os resultados evidenciam os efeitos perversos do abuso sexual sobre a vida das mulheres vitimizadas, sobretudo à sua saúde. Identificamos que, para todas as mulheres do grupo extrafamiliar, uma boa parte dos efeitos negativos na saúde permanecia, mesmo após a passagem de um ano do ocorrido, alterando de maneira significativa sua qualidade de vida.

No grupo intrafamliar, identificamos uma crescente mobilização para superar o estresse e tentar retomar o curso normal da vida, uma clara evidência de desenvolvimento de processo de resiliência. Relataram que o apoio dado pela família e pelos amigos ajudou-lhes no enfrentamento e superação do trauma sofrido, confirmando o que Walsh (2005) diz sobre a importância da família e dos amigos para a superação de situações adversas. Segue fragmentos da entrevista para ilustrar:

(...) pessoas que eu nem imaginava me apoiaram, me ajudaram bastante, que se não fosse elas eu não estaria viva (...) entreguei a minha a Deus (...)

(...) se não fosse o meu irmão, também não estaria viva... um dia parei de chorar e segui em frente, procurei dar aulas...

(...) eu tive muito apoio dos meus amigos, eles não me deixaram um só momento...

(...) o apoio da família fez um diferencial, foi o que está me ajudando a superar isso...

(...) a minha vida sexual está melhorando, melhorando, fui superando... as pessoas se preocupavam comigo, ligavam e diziam "vai em frente"... então, eu fui e encarei assim, dessa maneira... e foi passando aquele medo... acho que eu me cheguei um pouco mais para a família ...

(...) minha família, eles me deram muito apoio... eu recebi muito apoio mesmo, da minha família, dos meus amigos que souberam, da mãe, do meu namorado... eu recebi apoio de todas as pessoas que estavam à minha volta, me deram bastante apoio, carinho, compreensão e acho que isso me fortaleceu para com que eu saísse dessa situação o mais rápido possível...

Como os dados demonstram, o abuso sexual é um tipo de violência perniciosa e perversa ao desenvolvimento de quem o sofre. No entanto, neste estudo, verificamos que nem todas as entrevistadas vitimizadas por esse tipo de violência reagiram do mesmo modo, contrariando as predições de sintomas e danos referidos na literatura sobre violência sexual, demonstrando o desenvolvimento de estratégias de resiliência.

O comportamento resiliente é dinâmico e pode ser construído e/ou desenvolvido através de interações entre o indivíduo e seu ambiente, sendo dependente, também, do contexto sociocultural. Desse modo, a resiliência pode estar presente, ou ser desenvolvida, antes, durante ou após uma agressão; pode possibilitar uma adaptação às adversidades ou a superação do trauma sofrido, o que não significa que a experiência negativa tenha sido apagada. A ressignificação do trauma vivido pode ser feita em distintas fases da vida, como a infância, a adolescência ou a vida adulta, desde que estabelecido um vínculo de confiança.

Apesar dos efeitos deletérios do abuso, as mulheres vitimadas que puderam contar com a ajuda de pessoas que lhes são significativas foram impulsionadas para a superação ou amenização do sofrimento. As entrevistadas buscaram alternativas para enfrentar o impacto da violência sofrida recorrendo ao auxílio da própria família, de amigos e de serviços que promovem atendimento às vítimas de violência.

As participantes que não puderam contar com o auxílio da própria família e de pessoas próximas para superar as consequências advindas da situação de abuso sexual sofrido apresentaram mais dificuldades para enfrentar a situação. Identificamos que as maiores dificuldades parecem estar relacionadas à falta de atenção e apoio da família, visto que muitas delas disseram que o relacionamento familiar, antes do ocorrido, já era muito conflituoso.

Rouyer (1997) ressalta a importância de um ambiente suficientemente bom, que permita às crianças e adolescentes confiarem em um adulto, a despeito do que lhe tenha acontecido. Desse modo, para esse autor, a família, qualquer que seja sua configuração, deveria se constituir em um espaço de proteção e afeto, com o qual as crianças e os adolescentes pudessem contar.

Para Walsh (2005), Koller (1999) e Rouyer (1997), a família também pode desenvolver processos interativos que fortaleçam a resiliência, tanto individual quanto do grupo familiar. Para esses autores, a família pode ser entendida como uma unidade funcional que pode incrementar a resiliência em todos os seus membros. Para compreender o funcionamento de uma família, segundo eles, deve-se levar em conta o contexto, as condições de estresse, os desafios enfrentados, as limitações e os recursos. Os desafios estão inseridos como tensores nas transições normativas do ciclo da vida, como a violência sexual sofrida. O modo como cada família lida com esses desafios é crucial para a readaptação individual e familiar.

Walsh (2005) defende que a resiliência familiar é uma "resiliência relacional" (p. 262), ou seja, "depende da interação entre os membros da família e da família como um todo em sua relação". Segundo Koller (1999), a resiliência pode contar com a rede de apoio que pode ser de parentes, amigos, conselho tutelar e serviços de atendimento a vítimas, que fornecem os recursos externos adequados para que esta possa enfrentar, satisfatoriamente, os eventos da vida.

Desse modo, é importante lembrar que a mudança de enfoque no conceito de resiliência inclui a passagem de um modelo tradicional, centrado na fraqueza e na doença, para outra perspectiva, que inclui, também, a capacidade de enfrentamento e o estímulo às potencialidades e à esperança como componentes indispensáveis para o desenvolvimento das pessoas, ampliando o conceito para englobar a resiliência familiar, pois os processos individuais e coletivos são necessários para enfrentar os desafios psicossociais que surgem.

É importante reconhecer que nem todo jovem submetido a situações adversas termina necessariamente como um sujeito problemático. Exemplo importante pode ser observado em Rangel (1998), que pesquisou sobre abuso sexual intrafamiliar recorrente e verificou que, nos casos de abuso investigados, "não havia evidências de trauma extremo ou prejuízo irreversível para a vida dos vitimados, visíveis em seus comportamentos, diretamente decorrentes de sua vitimação, que pudesse ser comparável aos descritos em trabalhos publicados na área" (p. 115). No estudo em que realizou, a pesquisadora verificou que todos conseguiram superar as experiências pelas quais passaram.

As mulheres entrevistadas que disseram ter superado as dificuldades vivenciadas após a violência sofrida relataram que uma das estratégias de superação dessas dificuldades vividas ocorreu porque puderam contar com o apoio da família e de amigos que as apoiaram após a violência.

Essas evidências nos permitem concordar com Assis et al. (2006), quando afirmam que "se a resiliência é um fenómeno promotor de fortalecimento psicossocial, possível de ser construído, o seu manejo pode, pedagogicamente, ser transformado em uma ferramenta capaz de subsidiar formas de intervenção, principalmente com a família" (p.114). Para esses autores, é importante incluir os pais e a família em programas de intervenção e acompanhá-los nas dificuldades cotidianas para aumentar a efetividade das ações, posto que o fortalecimento do meio social se torna crucial para que se alcance maior proteção. Assim, ressaltamos as potencialidades do conceito de resiliência para as ações sociais, educativas e de saúde que englobem os indivíduos de todas as idades, suas famílias, e, se possível, toda a comunidade para desenvolver e fortalecer as características que permitem resistir às adversidades presentes no cotidiano.

A Organização Mundial de Saúde se refere à saúde não meramente como ausência de doença, mas, também, como bem-estar. De forma semelhante, resiliência não é meramente ausência de risco, adversidade ou estresse, mas ter ou criar condições para enfrentá-los. Se o maior motivo de sofrimento se relaciona a problemas sociais e comportamentais, nossa preocupação deveria ser a de diminuir o impacto dos fatores adversos e ampliar os fatores de proteção, favorecendo, dessa forma, a resiliência.

Uma visão sistêmica de resiliência é importante, segundo Walsh (2005), para ajudar indivíduos, casais e famílias a enfrentarem e se adaptarem às crises e adversidades. Para essa autora, a família tem sido um recurso negligenciado nas intervenções que visam estimular a resiliência em crianças e adultos. O enfoque estreito na resiliência individual tem levado os clínicos a tentar salvar os "sobreviventes" individuais, sem explorar o potencial de suas famílias, levando-os, inclusive, a descrever algumas famílias como irrecuperáveis.

Para Walsh (2005), é necessária uma postura que estimule uma compreensão mais profunda dos desafios da vida dos pais, para, assim, identificar fatores positivos potenciais na rede dos relacionamentos familiares.

 

Considerações Finais

Constatamos que o impacto traduzido em consequências na saúde das mulheres, mesmo depois de decorrido um ano, ainda atrapalha a vida de metade das mulheres entrevistadas, interferindo negativamente em seus relacionamentos sociais, sexuais e familiares. O impacto na saúde se estabelece de forma mais prolongada quando a jovem vitimada não pode contar com uma rede de apoio de amigos, familiares e, principalmente, o apoio da mãe ou do cuidador mais próximo. A pesquisa nos revelou que a forma como o cuidador desempenha seu papel não abusivo, sendo receptivo e continente para as angústias das crianças e adolescentes, é primordial para que a vítima enfrente de maneira positiva a violência sofrida, independentemente do tipo de abuso, se extra ou intrafa- miliar. No grupo extrafamiliar, o impacto em curto prazo parece ser mais nocivo, tendo em vista que o abusador geralmente se utiliza de violências adicionais, como ameaça de morte, o que raramente ocorre no grupo intrafamiliar, no qual a principal arma dos abusadores é a sedução e o estabelecimento do segredo.

O que é importante ressaltar é a identificação de uma crescente mobilização de uma parte das vítimas para a superação desse impacto em suas vidas, acreditando que é possível "sobreviver" a essa situação estressante, ainda que sempre seja inaceitável que ela continue ocorrendo. Além dos serviços especializados prestados diretamente às vítimas, principalmente por médicos, psicólogos e psiquiatras, entendemos ser de fundamental importância um trabalho de apoio aos cuidadores para evitar a culpabilização das vítimas ou a autoculpabilização, o que também causa muito sofrimento. Além do sofrimento decorrente do abuso e do envolvimento nos procedimentos para sua elucidação e responsabilização, os cuidadores terão que enfrentar as drásticas transformações familiares e os reflexos emocionais delas decorrentes, como bem indica o estudo desenvolvido por Costa, Borba, Rufini, Mendes e Penso (2007).

Com isso, queremos dizer que há pessoas que, apesar do horror vivenciado, conseguem elaborá-lo e lhe dar um significado que possibilita dar continuidade à sua vida sem repercussões tão graves. Parece claro que não há um esquecimento ou mesmo eliminação da dor, mas o desenvolvimento da capacidade de lidar de modo mais saudável com o evento.

O enfrentamento da violência se coloca como um grande desafio, dada sua crescente complexidade. Muito ainda precisa ser feito para que a população possa identificar os efeitos perversos da violência e reconhecer a perigosa mensagem que as experiências de vitimação por abuso sexual transmitem aos jovens, entendendo a necessidade de se empreender esforços contra isso, para que a própria sociedade não se torne cada vez mais produtora de violência. Se desejarmos relações sociais menos violentas, o primeiro passo é conhecer como os problemas relacionados a ela se configuram, garantindo sua articulação com o respeito à integridade humana, respeito que é necessário para o pleno exercício da cidadania (Alvim & Souza, 2005).

Entendemos também que o resgate da cidadania, em todos os níveis em que se apresenta violentada, depende de mobilização política e da criação de mecanismos jurídicos, o que certamente se constitui em solução de longo prazo. No entanto, as vítimas não podem esperar e devem contar com assistência em serviços de qualidade. No nível dos Programas de Assistência às Vítimas, acreditamos que a incorporação do conceito de resiliência aos planos de intervenção pode contribuir para que as vítimas desenvolvam mais segurança para lidar com as adversidades.

 

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Recebido em 10 de agosto de 2010
Aceito em 01 de dezembro de 2010
Revisado em 22 de dezembro de 2010