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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Retrato de uma vida contida: estudo de um caso de autismo com internação prolongada*

 

Portrait of a contained life: a case study of autism with prolonged hospitalization

 

Retrato de una vida contenida: un estudio de caso de autismo con hospitalización prolongada

 

Portrait d'une vie contenú: une etude de cas d'autisme avec hospitalisation prolongée

 

 

Yzy Maria Rabelo CâmaraI; João Joaquim Freitas do AmaralII; Adriana Melo de FariasIII; Yls Rabelo CâmaraIV; Eveline Mourão de AraújoV

IPsicóloga. Assistente Social e Mestre em Saúde Pública (Universidade Federal do Ceará). End.: R. Vicente Nobre Macedo, 10, Messejana, CEP: 60841-110 - Fortaleza - Ceará. E-mail: yzycamara@gmail.com
IIPediatra e Doutor em Epidemiologia (Universidade Federal de Pelotas, RS). End.: R. Prof. Costa Mendes 1608, Rodolfo Teófilo. CEP: 60430-140 - Fortaleza - Ceará. E-mail: joaoamaral@terra.com.br
IIIPsicóloga e Mestre em Educação (Universidade Federal do Ceará). End.: R. Virgílio Paes, 2379, Cidade dos Funcionários. CEP: 60822-370 - Fortaleza - Ceará. E-mail: adrianamelodefarias@gmail.com
IVLicenciada em Letras e Doutoranda em Letras (Universidade de Santiago de Compostela). End.: Calle Burgo das Nacións, s/no/3014. C.P 15705 - La Coruna - Espana. E-mail: ylscamara@hotmail.com
VPsicóloga e Mestre em Psicologia (Universidade Federal do Ceará). End.: R. Vicente Nobre Macedo, 10, Messejana. CEP: 60841-110 - Fortaleza - Ceará. E-mail: eveline71@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo visa a compreensão do autismo a partir de um caso com internação prolongada. O autismo será fundamentado em duas óticas: psiquiatria e psicanálise winnicottiana. Pela psiquiatria, serão abordados conceito, possíveis causas e sintomas; pela teoria winnicottiana, serão discutidas a importância do suporte familiar e do meio saudável para um desenvolvimento emocional que tenda à integração do indivíduo, sendo o autismo mostrado como uma possível falha nessa estrutura. O caso clínico escolhido se refere a uma paciente abandonada pela família, com forte e constante estado de auto agressividade, que passou 21 anos internada no hospital público cearense de referência em saúde mental, onde, na maioria das vezes, esteve sob contenção, como uma maneira de preservação de sua integridade física. Esse sujeito deu, postumamente, nome ao primeiro CAPS infantil do estado do Ceará, que atende ao público infanto-juvenil de 67 bairros do município de Fortaleza. Para tanto, foi feito um levantamento documental de todos os prontuários do sujeito pesquisado, no período correspondente entre dezembro de 2009 e maio de 2010. Os resultados mostram relatos colhidos dos prontuários que apontam para comportamentos característicos de autismo, assim como episódios de agressividade, inquietação, tentativas de sociabilização pela equipe multidisciplinar, condutas terapêuticas adotadas e limitações sofridas pela equipe diante do comprometimento global do sujeito.

Palavras-chave: Criança, autismo, hospitalização, Psicanálise, teoria winnicottiana.


ABSTRACT

This article aims at an understanding of autism taking as starting point a case with prolonged hospitalization. Autism here will be based in two viewpoints: psychiatry and winnicottian psychoanalysis. Concepts, possible causes and symptoms will be approached by psychiatry; the importance of the familiar support and a healthy environment for an emotional development will be approached by winnicottian theory. The lack of familiar support and of a healthy environment can hinder the subject's integration and autism is shown as a possible failure in this structure. The clinical case chosen refers to a patient abandoned by family, with strong and constant states of self-aggression, who spent 21 years hospitalized in public hospital mental health reference center, where, most of the time, was under restriction, as a way of preserving their physical integrity. The first children's CAPS in the State of Ceará, which caters to children and teenagers of 67 districts of the city of Fortaleza, was named, posthumously, after this patient. To this end, a survey was made of all documentary records of the subject, in the period between December 2009 and May 2010. The results show reports collected from medical records that point to the characteristic behaviors of autism, as well as episodes of aggression, restlessness, attempts of socialization by the multidisciplinary team, therapeutical adopted and limitations suffered by the team before the global commitment of the subject.

Keywords: Child, autism, hospitalization, psychoanalysis, winnicottian theory.


RESUMEN

Este artículo visa comprender el autismo a partir de un caso con internación prolongada. El autismo será fundamentado bajo dos ópticas: la Psiquiatria y el Psicoanálisis Winnicotiano. A través de la Psiquiatría, el concepto, las posibles causas y los síntomas serán abordados; a través de la teoría Winnicotiana, será discutida la importancia del soporte familiar y del medio saludable para un desarrollo emocional que conlleve a la integración del individuo, siendo el autismo mostrado como un posible fallo en esta estructura. El caso clínico elegido se refiere a una paciente abandonada por la familia, con fuerte y constante estado de auto-agresividad, que estuvo ingresada por 21 años en el hospital público de referencia en cuanto a la salud mental en la provincia de Ceará, donde, en la gran mayoría de las veces, estuvo bajo contención, como una forma de mantener su integridad física. Este sujeto dio, póstumamente,su nombre al primero CAPS infantil de la provincia de Ceará, que atiende al público infanto-juvenil de 67 barrios del municipio de Fortaleza. Para tanto, se llevó a cabo un levantamiento documental de todos los prontuarios del sujeto investigado, desde diciembre de 2009 hasta mayo de 2010. Los resultados muestran las narraciones cogidas de los prontuarios que apuntan hacia comportamientos característicos del autismo, así como episodios de agresividad, inquietud, intentos de sociabilización por parte del equipo multidisciplinar, conductas terapêuticas adoptadas y limitaciones sufridas por el equipo delante del comprometimiento global del sujeto.

Palabras-clave: Niño, autismo, hospitalización, psicoanálisis, teoría winnicotiana.


RÉSUMÉ

Cet article vise à comprendre l'autisme à partir d'un cas avec hospitalisation prolongée. L'autisme est basée sur deux points de vue: Psychiatrie et psychanalyse Winnicott. Pour la psychiatrie, le concept sera discuté, les causes possibles et symptômes et Winnicott, nous discutons de l'importance de la soutien à la famille et l'environnement sain pour le développement affectif qui tend à l'intégration de l'individu, étant montré que l'autisme une éventuelle défaillance dans cette structure. Les cas choisis se réfère un patient a abandonné sa famille, avec une forte, l'état d'équilibre automutilation, qui a passé 21 ans à Thôpital Ceará référence publique en matière de santé mentale ou, dans la plupart des de Tépoque, était sous la contrainte comme moyen de préserver leur l'intégrité physique. Ce mec a décerné à titre posthume, le premier nom Enfants CAPS dans l'état de Ceará, qui s'adresse à enfants et les adolescents de 67 quartiers de Fortaleza. À cette fin, a réalisé une enquête documentaire sur tous les dossiers l'objet de recherches dans la période correspondant à Décembre 2009 au Mai 2010. Les résultats montrent des rapports recueillis à partir des dossiers médicauxquel point les comportements caractéristiques de l'autisme, ainsi comme des épisodes d'agression, l'agitation, les tentatives de la socialisation par l'équipe pluridisciplinaire, thérapeutiques adoptée et les contraintesimposées par l'équipe avant l'engagement sujet global.

Mots-clés: Enfants, l'autisme, d'hospitalisation, psychanalyse, la théorie Winnicott.


 

 

 Conversando sobre o Autismo: Visões Multidisciplinares

Termo introduzido por Bleuler, em 1911, segundo Ajuriaguerra e Marcelli (1991), o autismo se refere à perda de contato com a realidade, interferindo diretamente de modo negativo nas interações sociais e sendo manifestado ainda na mais tenra idade. Devido a isso, é considerado por Ajuriaguerra e Marcelli (1991) como um distúrbio psicótico precoce, que se revela através de limitações na comunicação, motricidade e relação interpessoal, fazendo com que a criança se embote em seu próprio mundo particular. Conforme Lopes (1995), descrendo as ideias de Kanner:

(...) no autismo precoce infantil há desde o início uma extrema solidão autística que desdenha, ignora e exclui tudo o que vem do exterior até a criança (...) essas crianças vêm ao mundo com uma incapacidade inata de constituir biologicamente o contato habitual com as pessoas. (p. 4-5)

A ciência médica define o autismo como uma síndrome de alterações cerebrais compreendida como um transtorno invasivo do desenvolvimento psiconeurológico. Segundo a DSM-IV (APA, 1995, p.66), há um desenvolvimento patentemente anormal, com interferência ampla e persistente nas áreas de comunicação, interação social e comportamentos.

As manifestações sintomatológicas variam de sujeito para sujeito, sendo muitas vezes acompanhadas de comorbidades, como retardo mental. Não existe ainda uma causa bem estruturada que defina o autismo. O que se sabe é que possíveis fatores podem desencadear o espectro autístico; entre eles: desordens metabólicas, intolerância imunológica, toxinas, poluições, vírus, influência genética, entre outros.

Conforme Ajuriaguerra e Marcelli (1991), a criança, ao nascer, aparenta normalidade compatível com a idade. Entre o quarto e o oitavo mês, mudanças podem ser percebidas, quando a criança não tem movimentos antecipatórios de ser segurada no braço nem movimentos de ajustamento ao corpo de quem a segura. Gradativamente, vai havendo a predominância de hábitos motores cada vez mais restritos e ritualizados, assim como um progressivo desinteresse e apatia pelo meio que a cerca.

No entanto, seu retraimento para um mundo interior não significa desconhecimento de uma determinada realidade (...) mas que está polarizada e investida ou simbolizada fora do campo das múltiplas possibilidades de utilização social. (...) Pode-se dizer que a criança autista vive em um mundo de objetos, os quais ela utiliza de forma esteriotipada. (Ajuriaguerra & Marcelli, 1991, p. 670)

Por volta dos três anos de idade, já é possível o diagnóstico definitivo, que persistirá pelo decurso da vida do sujeito e, segundo a DSM-IV (APA, 1995), esse é um fator importante para excluir a esquizofrenia e o transtorno desintegrativo da infância, para os quais são necessários anos ou meses de desenvolvimento normal para que comportamentos ditos anormais sejam percebidos: "As características essenciais do transtorno autista são a presença de um desenvolvimento acentuadamente anormal ou prejudicado na interação social e na comunicação e um repertório marcadamente restrito de atividades e interesses" (APA, 1995, p.66). Ainda que a criança venha mostrando um desenvolvimento esperado, essa normalidade, no autismo, não pode se estender por mais de três anos de idade.

Para Ajuriaguerra e Marcelli (1991), o autismo é um transtorno que afeta o sujeito de modo intrusivo e amplo, além de comprometer severamente áreas diversas do desenvolvimento. A comunicação é prejudicada pelo fato do afetado não se interessar pelo outro, muitas vezes parecendo surdo, demonstrando suas demandas de forma limitada e sem utilização do recurso verbal. Quanto ao prejuízo na comunicação, o impacto negativo é presente nas habilidades verbais e não verbais, como atraso no processo de aquisição da linguagem ou uma linguagem empobrecida (permeada de ecolalias, limitação para manter o curso de uma conversação, estereotipias) ou mesmo ausência da fala e de brincadeiras imaginativas, como os jogos de faz-de-conta. Quando existe a linguagem, ela é marcada pela anormalidade na entonação, ritmo, timbre, velocidade, pelo uso de uma linguagem metafórica que só quem convive muito próximo é capaz de compreender, além de estruturas gramaticais muitas vezes imaturas.

Em relação ao comportamento, Ajuriaguerra e Marcelli (1991) apontam que tendem a desenvolver habilidades motoras irregulares, marcada por padrões incongruentes, como: riso inapropriado, raivas imotivadas, poses bizarras, além de girar objetos sem finalidade definida, cheirar, lamber, olhar fixamente determinados objetos, apresentar maneirismos, estereotipias (bater as mãos, estalar os dedos, balançar-se), rituais específicos, movimentos repetitivos, interesses restritos e limitados, insistência no seguimento de rotinas não funcionais, apego irracional a objetos inanimados e fascinação com movimentos.

Quanto ao campo da interação emocional e/ou social recíproca, Ajuriaguerra e Marcelli (1991), ainda colocam o prejuízo que atinge o sujeito em grande dimensão e de modo persistente, pois o repertório de comportamentos não verbais acaba sendo limitado, com o contato visual direto ficando por demais restrito, breve ou mesmo inexistente. A expressão corporal, facial e gestos também passam a não expressar relação com a interação social, apresentando distanciamento em relação aos pais, no sentido de resistirem ao contato físico, quer sejam como carícias, toques ou movimento antecipatório.

Diferente da curiosidade que é natural em uma criança que está conhecendo o mundo por seus próprios mecanismos, a criança autista não toma a iniciativa de explorar oportunidades e novas descobertas. Tende a ficar muito isolada em um mundo particular, preferindo atividades solitárias e se utilizando de adultos como instrumentos para alcançar algo que deseja e não consegue sozinha. Essa interação não envolve o afeto, apenas a satisfação de uma necessidade.

Pode haver um fracasso em desenvolver relacionamentos com seus pares que sejam apropriados ao nível de desenvolvimento (...) os indivíduos mais jovens podem demonstrar pouco ou nenhum interesse pelo estabelecimento de amizades; os mais velhos podem ter interesses por amizades, mas não compreendem as convenções da interação social. (APA,1995, p. 66)

Diante da severidade do quadro clínico do autismo, pontuado pela visão psiquiátrica como um transtorno invasivo que compromete três grandes áreas do desenvolvimento: comunicação, comportamentos e interação social, o próximo tópico abordará o autismo a partir da ótica da psicanálise infantil winnicottiana, que aponta prejuízos na tendência inata ao desenvolvimento, quando existem falhas no suporte familiar e no meio que cerca o bebê.

 

O Olhar Winnicotianno sobre o Autismo

D. W. Winnicott (psicanalista e pediatra) elaborou uma teoria do desenvolvimento pautada no conceito da tendência natural que cada sujeito tem de amadurecer e se integrar. Esse processo é inato e vai sendo desenvolvido naturalmente e a contento, quando o bebê se encontra em um ambiente favorável ao seu processo interno. Isso implica em um suporte familiar e meio salutares e estimulantes, o que Winnicott (1994) considera como condições suficientemente boas.

Para Winnicott (1994), o bebê, ao nascer, é completamente dependente do meio que o cerca. Somente atinge sua independência quando ultrapassa processualmente os estágios de dependência absoluta (quando a mãe se identifica com as demandas de seu bebê para supri-lo e lhe dar o devido suporte em relação às necessidades de alimentação, acalanto e higiene, sem se perder do seu papel de adulta).

A saída de uma dependência absoluta para uma dependência relativa acontece, segundo Winnicott (1997), por volta do primeiro ano de vida, quando o bebê, gradativamente, sai da condição de passividade absoluta diante do meio que o cerca. Essa passagem da dependência rumo à independência, muito tem a ver com o grau de maturidade que o bebê vai atingindo.

Com o advento da maturidade progressiva, surgem também as falhas maternas que vão acontecendo no instante em que a mãe vai se desvencilhando da ligação simbiótica que desenvolveu por alguns meses com seu bebê. Suportar as falhas maternas surgidas com essa quebra provoca no bebê uma tolerância que até então lhe era desconhecida. Aprender a lidar sozinho com o choro e com suas vontades sem que haja alguém sempre de prontidão para supri-las, é, para Winnicott, conforme Shepherd, Johns e Robinson (1997), o que impulsiona a criança ao desenvolvimento emocional.

Na teoria winnicottiana, a mãe assume uma função primordial no sentido de favorecer ou não suporte egóico forte o suficiente para o estabelecimento do self do bebê. Segundo Winnicott (1997, p.24): "Quando o par mãe-filho funciona bem, o ego da criança é de fato muito forte, pois é apoiado em todos os aspectos (...) capaz de organizar defesas e desenvolver padrões pessoais fortemente marcados por tendências hereditárias". Não há como considerar o autismo desvinculado das relações mãe-filho e de seus impactos para o bebê quando existem alterações de ordem diversa.

Para Winnicott (1994), o suporte egóico da mãe para o bebê faz com que este tenha condições de se tornar independente o mais rápido possível e que possa constituir o seu próprio self. Mais ainda, afirma que: "Na ausência deste estado especial da mãe, a que já me referi, a criança não consegue emergir verdadeiramente do estado original. Na melhor das hipóteses, pode desenvolver um falso self que esconde todo vestígio que possa haver do self verdadeiro" (Winnicott, 1997, p.27).

Esse processo de amadurecimento não segue uma trajetória linear. Existem momentos diversos pelos quais o bebê, ao não conseguir lidar com adversidades, acaba tendo alguns comportamentos regredidos para atingir, em momento posterior, maior integração, o que, em absoluto, implica anormalidade: "Muito normalmente, um certo grau de independência pode ser diversas vezes conquistado, perdido e novamente conquistado; é bastante frequente que uma criança retorne à dependência, tendo já sido deveras independente com um ano" (Winnicott, 1997, p.6).

Conforme Winnicott (1994), cabe às mães a responsabilidade pelo destino subjetivo de seus filhos. Isso não equivale dizer que ele culpabilizava os pais, em especial as mães, por falhas nesse processo. No entanto, ele faz a distinção entre responsabilidade e culpa. Cabe à família a responsabilidade de prover um ambiente salutar para o desenvolvimento de uma criança que tenda para a autonomia e integração; a culpa não. Houve um erro, mas como ele mesmo coloca, não houve intencionalidade nesse erro.

Dessa forma, a transição das fases naturais de amadurecimento nem sempre ocorre sem intercorrência. O suporte, por demais necessário, no instante em que o bebê é completamente vulnerável e dependente do meio que o cerca aponta (quando falho ou mesmo quando interrompido) para o que Araújo (2003) comentou: "(...) corresponde à vivência de uma agonia impensável e à organização de defesas no sentido da invulnerabilidade contra a 'revivescência' dessa agonia que é o autismo". (p.18).

Araújo (2004) coloca que, durante o processo de amadurecimento, quando a criança vai se tornando cada vez mais integrada, e essa integração sofre alguma falha pelos mais diversos motivos, ela tenderá a se defender e, muitas vezes, essa defesa é para torná-la invulnerável; acontece no modo mais primário, que é o isolamento. A defesa por meio do isolamento como estratégia de se tornar invulnerável impede o surgimento de outras defesas por formar uma barreira à relação da criança com o outro e com o meio que a cerca, limitando em muito o seu desenvolvimento emocional.

Shepherd et al., (1997) colocam que Winnicott considera que, pela Teoria do Amadurecimento Emocional, uma criança tenderia, naturalmente e de modo inato, à autonomia e à integração, sendo o autismo uma imaturidade emocional ocasionada pelas falhas no suporte familiar e/ou no seu meio. Dessa forma, quando uma criança sofre interrupção de qualquer natureza nesse processo, torna-se emocionalmente imatura.

A teoria psicanalítica de Winnicott, segundo Araújo (2004), considera o autismo como uma não constituição do ser no sentido pleno, não chegando a ser nem estrutura, muito menos um estado, de modo que a compreensão do autismo fora do contexto de uma entidade nosológica reforça a importância do suporte familiar e do meio para o surgimento ou não do problema.

Winnicott aponta para o fato de que a criança portadora de autismo, na verdade, construiu uma defesa interna para lidar com sua realidade permeada de falhas. Segundo Araújo (2004), a visão winnicottiana entende que a criança, ao vienciar uma agonia ameaçadora de sua integridade (diante de uma falha no suporte familiar e/ou do meio) no instante em que se encontrava em fase de extrema dependência, torna-se vulnerável. Para lidar com esse fator adverso, a criança produz um sistema interno de defesa, no sentido de adquirir uma invulnerabilidade que a proteja de sentir novamente uma agonia insuportável.

Winnicott (1997) realmente acreditava que o ambiente saudável, tanto familiar como externo a este núcleo, seria fator de proteção para o desencadear de casos de autismo. Isso não equivale, em absoluto, a afirmar que uma criança que tenha um suporte emocional forte não venha a adoecer; mas, segundo Winnicott, em muito estaria minimizada essa possibilidade por meio de vivências salutares que possibilitem um bom desenvolvimento infantil e compensem tendências que podem vir a ser autísticas.

Partindo da compreensão do autismo pela sua definição, manifestações e falhas/limitações no seu processo de desenvolvimento emocional, o caso clínico que será exposto diz respeito a uma menina-moça-mulher, que ficou internada dos 8 aos 29 anos no hospital de referência em saúde mental do Ceará e que, postumamente, deu nome ao primeiro Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) do estado, atendendo ao público infanto-juvenil de 67 bairros do município de Fortaleza.

Devido ao fato de seu nome (Maria Ileuda Verçosa) ser exposto diariamente no serviço público de saúde, não houve, por nossa parte, a intenção de reduzi-lo a siglas, mas deixar patente sua trajetória de vida pautada no sofrimento psíquico intenso e na solidariedade e ética dos profissionais que a acompanharam durante os seus 21 anos de internação hospitalar.

 

Convivendo com um Caso de Autismo

Maria Ileuda Verçosa sofreu, desde a mais tenra idade, um histórico de descuido e abandono familiar. Até os três anos de vida conviveu com sua família de origem até ser raptada pelo próprio pai e conduzida à casa de terceiros. Ficou sem o convívio direto de sua família até os seis anos; a genitora conseguiu resgatá-la e trazê-la de volta para o seio familiar, no qual, nesse momento, já apresentava problemas de desenvolvimento cognitivo-afetivo-social, sendo encaminhada para atendimento ambulatorial na citada instituição.

Segundo relatos da genitora, colhidos na revisão de prontuários, Maria Ileuda Verçosa não apresentava mudanças de comportamentos antes da ação invasiva do genitor, mas foi sabido que a mãe tinha forte comprometimento psíquico, havendo, então, uma dúvida quanto aos cuidados adequados de maternagem que a possibilitasse observar sua criança de modo a perceber anormalidades comportamentais, linguísticas e sociais.

Apresentando necessidade de assistência intensiva e cuidados de maternagem, o atendimento ambulatorial não conseguiu atender à complexidade das demandas da criança, iniciando-se, aos 8 anos de idade, seu processo de internação. Maria Ileuda Verçosa passou a ocupar o Leito 1 da Unidade de Internação Infantil (Infanto).

Submetida a exames neurológicos, tomografia computadorizada e avaliações psiquiátricas, foi definida, em vários trechos de prontuários da médica que a assistiu por vários anos, como tendo quadro psicótico e deficitário grave e sintomatologia autística, sem lesões neurológicas evidenciadas, incluindo prolongada e precoce privação afetiva, sensorial e material, além de processo evolutivo muito comprometido, sem desenvolvimento de linguagem verbal, capacidade de se alimentar com as próprias mãos e controle esfincteriano. Desde então, passou a manifestar variedade pequena de sintomatologia durante todo seu período de institucionalização.

Ainda nos primeiros anos de internação, relativos à sua segunda infância e adolescência, Maria Ileuda Verçosa estabeleceu frágil contato físico com seus cuidadores (funcionários da instituição hospitalar), acariciando seus rostos e também deambulava sozinha, ainda que de forma muito limitada.

Com o passar dos anos, foi perdendo, gradativamente, tais repertórios comportamentais, passando a apresentar progressiva agitação psicomotora (chegando, por vezes, a tumultuar sozinha toda a unidade onde se encontrava internada, com gritos ininterruptos e por se mexer com força na cama fazendo muito barulho, apesar das contenções, química e física dos tornozelos e punhos).

O suporte familiar foi precário em demasia. Recebeu assistência materna por um período relativo de dois anos, aproximadamente. Depois de então, a genitora abandonou a criança, não mais buscando contato com a filha. Muitas foram as condições que justificaram suas altas inalteradas e a moradia hospitalar. Em especial, o quadro severo de autismo associado à esquizofrenia simples e ao mais absoluto abandono familiar, o que a fez ficar sob tutela do Estado.

Já moradora há muitos anos (uma vez que se manteve nessa condição por receber, de modo contínuo, uma sucessão de altas inalteradas), aos 17 anos, foi transferida para a unidade de internação de pacientes adultas: Pavilhão III e, posteriormente, Pavilhão Frota Pinto.

Após inúmeras tentativas do setor de Serviço Social, apenas treze anos depois da internação de Maria Ileuda Verçosa foi possível um contato breve com familiares através do CAPS do município cearense de Quixadá. Nessa oportunidade, foi sabido que a genitora tinha oito filhos menores de idade e que o genitor já era falecido. Tentativas futuras de contato com demais membros da família de Maria Ileuda Verçosa foram completamente inglórias.

Sua vida adulta foi marcada por perdas dos repertórios comportamentais frágeis adquiridos na mais tenra idade e, principalmente, por muito impulso autodestrutivo, o que obrigava a equipe a mantê-la quase que constantemente contida, como uma forma de manutenção de sua integridade física.

Maria Ileuda Verçosa apresentava condutas severas de automutilações. Feria-se constantemente, inclusive quando contida, das mais diversas maneiras: batendo fortemente a cabeça contra joelhos, espaldar da cama e paredes; batendo o dedo polegar contra a testa até sangrá-la; arranhando-se e se contorcendo na cama; enfiando a mão na região genital e no ânus; e jogando fezes a esmo.

Com notável comprometimento global psicofísico expresso em infantilismo, apresentava, ainda, comunicação frágil por meio de gritos contínuos e pouco contato visual. Incontáveis foram as buscas de vinculação afetiva da equipe com a paciente. É possível identificar nos prontuários várias tentativas da equipe de possibilitar a interação de Maria Ileuda Verçosa por meio de brinquedos, televisão, deambulação pelas dependências da instituição, bem como tentativas de minimizar o impacto de seus comportamentos auto agressivos através da proteção da cabeça com capacete de motoqueiro e cadeira de rodas para facilitar a integração social, além da manutenção dos punhos e tornozelos envoltos em faixas por prescrição médica.

Com relação ao plano terapêutico multidisciplinar, a Enfermagem se encarregou dos cuidados da vida diária, da administração de medicamentos e da contenção quando prescrita. A Medicina cuidou do diagnóstico, da avaliação, prescrição medicamentosa e contenção. Quanto à Psicofarmacologia, eis alguns medicamentos utilizados por Maria Ileuda Verçosa: Amplictil, Anatensol, Biperideno, Carbamazepina, Clorpromazina, Diazepan, Haldol, Leponex, Levomepromazina, Neozine, Nootriptil, Prometazina, Tegretol, entre outros.

A fisioterapia fez uso intenso de cinesioterapia motora para membros inferiores (MMII) e membros superiores (MMSS), respiratória (aerosol e tapotagem) e também (quando mais debilitada) fisioterapia realizada no leito.

Quanto à psicologia e à terapia ocupacional, estes dois campos do saber trabalharam de maneira muito similar, tentando integrar Maria Ileuda Verçosa ao seu meio através de estímulos, como: segurar objetos e soltá-los, brincar de boneca, assistir televisão ou se permitir estar diante do aparelho de televisão, ouvir música, desenvolver estímulos auditivos e visuais com uso de cores e formas, fazer relaxamento conduzido e deambular pelas dependências da instituição hospitalar até quando houve condições de fazê-lo.

Devido à contenção quase em tempo integral, passou a apresentar muitas co-morbidades, que resultaram em uma série de complicações clínicas, como: presença muito forte de distúrbios gastrointestinais e infecciosos, obstruções nasais, gripes, quadros de pediculose, corrimentos e infecções vaginais, infecções urinárias, escabioses, infecções nos olhos, prisões de ventre, muitos hematomas e ferimentos por auto agressividade.

Maria Ileuda Verçosa ficou internada até os 29 anos, quando foi vitimada por um câncer na região abdominal. Precisou se ausentar do seu hospital para ser encaminhada ao hospital clínico onde faleceu, mas voltou para ser velada no pátio externo da instituição que a acolheu por 21 longos anos, na companhia dos servidores (que, aos poucos, foram se tornando sua verdadeira família) e sepultada em cemitério público do município de Fortaleza.

Por fim, passados quatro anos de seu falecimento, Maria Ileuda Verçosa doou merecidamente seu nome ao primeiro CAPS Infantil de Fortaleza. O motivo também de não omitirmos o nome de Maria Ileuda Verçosa diz respeito ao fato de resgatar uma história que não merece ficar retida nas brumas do esquecimento e do desconhecimento de quem foi a menina-moça-mulher que viveu 21 dos seus 29 anos contida no ambiente hospitalar.

 

Percurso Metodológico

O estudo desenvolvido teve um enfoque qualitativo e foi realizado a partir de análise documental do sujeito em pesquisa.

A instituição escolhida para a realização da pesquisa foi o Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM), hospital terciário de referência no estado na assistência aos serviços de saúde mental. A razão da escolha da citada instituição diz respeito ao local onde o estudo de caso aconteceu.

O levantamento documental (revisão de todos os prontuários) foi realizado entre dezembro de 2009 e maio de 2010. Nos meses subsequentes, foram realizadas as etapas de levantamento bibliográfico, elaboração de categorizações e análise dos resultados.

A pesquisa teve apenas um sujeito, por ser um estudo de caso. O critério da escolha deste caso, dentre tantos outros do Hospital de Saúde Mental de Messejana, deveu-se ao fato de ser este um caso ímpar. Em toda a história da citada instituição, não houve um só paciente que tenha passado tantos anos de internação em estado de contenção quase em tempo exclusivo.

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a revisão de prontuários. Foram estudados todos os prontuários referentes ao período de 1982 a 2002. Serviram de consolidação das informações dos prontuários os comentários de profissionais que conviveram direta ou indiretamente com o sujeito da pesquisa. Tais comentários foram conseguidos de modo informal, havendo o cuidado da pesquisadora de registrá-los em diários de campo.

Quanto à técnica de interpretação, foi utilizada a Análise de Conteúdo de Bardin (1977), que tanto pode interpretar dados de uma pesquisa de modo quantitativo quanto qualitativo. A Análise de Conteúdo busca categorizar as unidades de texto, palavras e frases que se repetem ao longo das falas dos sujeitos, inferindo uma expressão que as representem.

A análise de conteúdo, segundo Bardin (1977), é um conjunto de instrumentos metodológicos que considera o conteúdo, buscando ir além do que está patente, mas debruçando-se no significado latente, (re)descobrindo novas e incontáveis realidades, indo além do superficial.

O conteúdo analisado foi de natureza documental, no qual a análise dos dados se deu pela leitura do material (obtido a partir das anotações dos estudos feitos de cada prontuário revisado) tendo sido anotadas, de forma sistemática, as categorias qualitativas evidenciadas após leituras flutuantes seguidas de leituras exaustivas para comparação de contextos obtidos por meio de interpretação. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, sob o número 214/09.

 

Resultados

Os resultados foram consequências das categorias criadas a partir da análise documental de todos os prontuários de Maria Ileuda Verçosa, do hospital onde ficou internada. Como os relatos são excessivos, foram escolhidas amostras das evoluções dos profissionais, de modo a não deixar exaustiva a leitura do material obtido.

 

Características Autísticas

Alves (1995, p 167), descreve o autismo através do mutismo, da não estruturação de jogos, além da produção de gritos e sons isolados, da não interação com o olhar nem verbalmente, mostrando-se indiferente ao meio. Conforme o DSM-IV(APA, 1995), o comportamento autístico tende a desenvolver alguns repertórios comportamentais, como: rituais, movimentos repetitivos, apego e insistência no seguimento de rotinas não funcionais, apego irracional a objetos inanimados, fascinação com movimentos, interesses restritos e limitados. Maria Ileuda Verçosa, a partir das observações da médica assistente, mostrava comportamentos característicos de autismo.

A paciente mostra-se ensimesmada .... Parecia não enxergar, mas, eventualmente, olhava fixando partes do interlocutor. Cheirava dedos, objetos e outras partes do próprio corpo ou de alguém ao seu alcance. Excitação reativa intensa à aproximação de outrem. (Terapeuta Ocupacional - 27/03/1986)

(...) quadro autístico severo, com conduta de automutilações e comprometimento global psicofísico, manifesto em infantilismo, puberdade interrompida (ciclos menstruais iniciados e interrompidos) (... ) cicatrizes múltiplas na região frontal, autoprocedente (?) por condutas repetitivas de automutilação, bate a cabeça contra superfícies (???) Movimentos repetitivos com as mãos e os dedos. Emissão de sons concretos: fungados, estalos etc. Incontinência esfincteriana. Postura torpe ao andar na ponta dos pés ou curvando as costas, por permanência prolongada ao leito. Pega minha mão e cheira e encosta no rosto fortemente. Agarra-se ao acompanhante ao andar. (Médica Assistente - 15/03/1991)

 

Privação Familiar

Pelos relatos das evoluções clínicas, Maria Ileuda Verçosa teve uma privação familiar com o decurso do período de internação, mas, a princípio, recebeu um suporte materno, ainda que frágil. Alves (1995, p. 75) coloca que: "(...) sem dúvida, foi uma criança que recebeu cuidados de sua mãe, mas que lugar esta criança ocupava? (...) Os gritos, os choros incansáveis puderam ser escutados? Puderam retornar enquanto apelo?" O abandono familiar ficou refletido de forma muito presente na revisão de prontuário, nos tantos escritos dos profissionais, como se pode conferir.

Menina portadora de quadro psicótico e deficitário grave, sem lesões neurológicas evidentes; inclusive até com tomografia computadorizada (1981 - normal); tem história de grave e prolongada privação afetiva, sensorial e material (de 3 a 6 anos). Viveu abandonada por rapto do pai, que a entregou a estranhos que não a cuidaram devidamente. Não tem familiares responsáveis. A mãe é perturbada emocionalmente e sem recursos, tendo abandonado a filha há mais ou menos dois anos, sem que se saiba seu paradeiro. (Médica Assistente - 10/04/1987)

Estado grave. Não apresenta linguagem. Tem exaltação psicomotora e automutilação, desenvolvendo-se desde época indeterminada. Raptada e entregue a estranhos pelo pai aos 3 anos (abandono e privação emocional e material). Na época, sem linguagem, autoagressiva. (Médica Assistente - 07/07/1997)

 

Agressividade

Maria Ileuda Verçosa tinha muitos impulsos agressivos, em especial, auto agressivos. Sua auto agressividade constante fazia com que permanecesse em estado de contenção física quase em tempo integral, cujo objetivo era a tentativa da equipe de minimizar a violência que ela imprimia contra si própria.

Paciente no momento apresentou-se agitada, se autoflagelando e com o couro cabeludo ferido de tanto flagelar-se com a unha. (...) o tratamento fisioterápico será dado aqui mesmo na unidade, conforme o fisioterapeuta fala. O mesmo deseja contato com o médico assistente. (Enfermeira - 04/09/1991)

Paciente agitada com impulsos de agressividade e automanipularão. Solta-se diversas vezes da contenção e bate com a cabeça. Chegou a cortar o supercílio. Mesmo medicada, encontra-se aos gritos, pulando sem parar no leito. Medicada de urgência. (Auxiliar de Enfermagem - 05/08/1999)

Paciente apresentou crise de agressividade com impulsos autodestrutivos; mesmo medicada, encontra-se aos gritos, pulando sem parar no leito. (Enfermagem - 25/06/2001).

 

Heteroagressividade

Foram relativamente poucos os relatos de heteroagressividade, e quando esse comportamento aconteceu sempre foi como uma defesa para evitar o que estava lhe desagradando (seja em relação a profissionais, alimentação, procedimentos clínicos e de higienização):

(...) apresenta-se inquieta, rejeitando qualquer aproximação da Enfermagem. Quando nos aproximamos dela, ela nos empurra com as mãos para sairmos de perto dela (...) (Auxiliar de Enfermagem - 21/12/1987)

 

Inquietação

Muito inquieta, Maria Ileuda Verçosa passava horas incontáveis se mexendo em seu leito (por vezes, gritando muito e sozinha, desestabilizando a harmonia da unidade de internação). Sua inquietação intensa era uma das razões de sua contenção física.

(...) paciente em estado de grave agitação psicomotora, rasgando suas vestes e se batendo contra o leito, gritando e automutilando-se, reabrindo o ferimento da testa (...). (Auxiliar de Enfermagem- 13/06/1990)

Paciente a partir das 20h continuou a gritar e a se debater na cama, sendo necessário chamar plantonista. Mesmo medicada, só conseguiu dormir por volta das 3h... (Auxiliar de Enfermagem - 28/09/1991)

Paciente agitada com impulsos de agressividade e au- tomanipulação. Enfia a mão na vagina e no ânus e joga fezes nas paredes. Se solta diversas vezes da contenção e bate com a cabeça. Chegou a cortar o supercílio. Medicada de urgência. (Enfermeira - 05/08/1999)

 

Justificativas para Contenção

Devido ao severo grau de inquietação e auto agressividade, a contenção foi uma estratégia necessária que a equipe utilizou, não como meio de punição para Maria Ileuda Verçosa, mas como uma maneira de protegê-la de si própria.

Paciente crônica com aproximadamente 10 anos de internação. Tem hoje 17 anos. É extremamente agitada, o que obriga a contenção para impedir a automutilação (...). Não estabelece comunicação verbal. (...) tem capacidade de deambular, não o fazendo porque se machuca. Abandonada pela família. Alimenta-se bem. Diagnóstico inicial de autismo. (Médica Assistente - 29/05/90)

 

Atividades Terapêuticas

Nos primeiros anos de internação, Maria Ileuda Verçosa frequentava atividades terapêuticas, ainda que de modo muito limitado, mas, com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais restrita ao leito.

(...) as atividades em sala, a mesma gosta de pegar objetos relativamente grandes e jogar em direção específica. Realizamos também exercícios de esquema corporal frente ao espelho. (Terapeuta Ocupacional - 20/11/1987)

Paciente permanece em quadro inalterado. Realiza suas atividades de rotina diariamente (passeios, jogos de encaixe simples, esquema corporal frente ao espelho). Sua afinidade com a monitora de T.O. tem sido sólida, pois a mesma chega a sentir sua falta quando esta se ausenta. Realizamos caminhada com a paciente pelas dependências do Hospital. Continua com comportamento auto agressivo. (Terapeuta Ocupacional - 27/11/1987)

A paciente já está permitindo a realização de atividades recreativas individuais: passeios, jogos com blocos etc., embora tenha participação passiva, restrita a segurar enfeites e soltá-los. (Psicóloga - 8/2/1988)

 

Tentativas de Sociabilização

Inúmeros foram os esforços da equipe no sentido de socia- bilizar Maria Ileuda Verçosa; fosse através de atividades lúdicas com bonecas, música, jogos, televisão; fosse com caminhadas e cuidados com a integridade física da paciente. Colhendo alguns relatos citados em prontuários, tem-se que:

A paciente mantém-se contida no leito a maior parte do tempo, sendo solta apenas para as refeições e banhos (higiene), além de eventuais atividades recreativas de T.O. Passeios pela área externa do hospital. (Terapeuta Ocupacional - 04/05/1987)

(...) passeou pela T.O. e permaneceu sentada, sozinha, nas almofadas, brincando de boneca (...). (Psicóloga - 16/12/87)

(...) a paciente permanece contida no leito a maior parte do seu tempo. O tratamento terapêutico ocupacional torna-se dificultado pela intensa auto agressividade. Indico a possibilidade de uma cadeira de rodas, mesmo que ela continuasse contida, porém, facilitaria o trabalho dos técnicos e a paciente iria dispor de estímulos (Fisioterapeuta - 17/12/1987)

Iniciado trabalho fisioterápico (massagens nas panturrilhas, contato físico) com duração de 20 minutos. Deambulação pela área do hospital indo até a T.O. por 45 minutos. (Terapeuta Ocupacional - 15/3/1991)

 

Cuidados da Equipe

As evoluções de prontuários mostram o quanto a equipe se empenhou para levar bem-estar para Maria Ileuda Verçosa; tanto através dos cuidados de maternagem, ainda nos primeiros anos de internação, quanto do esforço sincero para lhe prestar uma assistência humanizada.

(...) a referida paciente teve um declínio em sua evolução, pois a sua assistente tirou férias neste período. Porém, no início desta semana, Ileuda teve uma melhora acentuada, quando a funcionária retornou às suas atividades. Quando Ileuda está em uma boa fase, ela é capaz de executar movimentos de deambulação sozinha, porém, já passados alguns instantes, a mesma insinua, através de gestos, que quer ficar contida em sua cadeira, ficando, assim, concluído que esta forma de contenção é um mecanismo de defesa que a mesma possui em relação ao meio exterior. (Terapeuta Ocupacional - 07/08/1984)

Apresenta-se "agarrada" à sua atendente, mas, por certos momentos, caminhando ao lado dela (pegando sua mão de modo comum), senta-se ao seu lado e em seu colo. Procura contato físico prolongado. Põe a mão da moça em seu rosto (... ) e a separação mais ou menos prolongada, de mais ou menos um mês, quando esta foi demitida. (Terapeuta Ocupacional - 04/12/1984)

Ultimamente sem assistência individual satisfatória (pelos requisitos que seu estado impõe), deveria ter uma atendente cuidadora individual que desempenhasse cuidados básicos de "maternagem" e treinamento de hábitos. Tem o hábito de golpear-se na cabeça com o punho ou os joelhos, e fica, por isso, contida, levemente, no leito ou em uma cadeira, na maior parte do dia. Sai para ser banhada, trocada a sua roupa ou alimentar-se e para o atendimento médico e de T.O., além de dar voltas "agarrada" às pessoas que fazem isso. (Médica Assistente - 18/09/1985)

Durante o atendimento, reconheceu o ambiente e as pessoas (objetos parciais). Cheira meu braço e leva minhas mãos aos seus ombros para andar comigo. Treino-a durante mais ou menos 15 minutos para deambular apenas segurando minha mão. Ao cabo de inúmeras tentativas, consigo que ande segurando a minha mão. (Médica Assistente - 26/10/1986)

Está havendo empenho por parte da chefia de Enfermagem em conseguir para Ileuda uma cadeira mais apropriada, mais confortável, já que ela necessita de contenção permanente. Sugiro um breve relato das condições da paciente e da necessidade de contê-la para evitar automutilações. (Médica Clínica - 12/11/1987)

Paciente, calma, contida no leito. Esboçou sorrisos quando lhe apresentei uma "bruxa". Fiquei brincando com ela, fazendo com que beijasse a "bruxa". Fiquei impressionada. (Enfermeira - 16/08/1990)

(...) solicitar da chefia de Enfermagem roupa adequada e um protetor para o tornozelo para a paciente não se machucar com as faixas (...). (Auxiliar de Enfermeira - 14/09/1991)

Mudar sempre as posições dos MMSS. Faz parte do tratamento e deve-se deitar a paciente. Abdução mais adução constante. (Médica Assistente - 03/08/1991)(...) Por favor, mudar a posição dos braços a cada 2 horas paralelo com os ombros - adução e abdução. (Médica Assistente- 13/08/1991)

 

Limitações Sofridas pela Equipe Multidisciplinar

A paciente mantém-se contida no leito a maior parte do tempo, sendo solta apenas para as refeições e banhos (higiene), além de eventuais atividades recreativas de T.O. Passeios pela área externa do hospital. (Terapeuta Ocupacional - 04/05/1987)

(...) a paciente permanece contida no leito a maior parte do seu tempo. O tratamento terapêutico ocupacional torna-se dificultado pela intensa auto agressividade. Indico a possibilidade de uma cadeira de rodas, mesmo que ela continuasse contida, porém, facilitaria o trabalho dos técnicos e a paciente iria dispor de estímulos. (Fisioterapia - 17/12/87)

Paciente no momento apresentou-se agitada, se autoflagelando e com o couro cabeludo ferido de tanto flagelar-se com a unha. (...) o tratamento fisioterápico será dado aqui mesmo na unidade, conforme o fisioterapeuta fala. (Enfermeira - 04/09/1991)

Paciente com grande dificuldade de ressocialização, é vista nos corredores e no pátio, sempre contidas as mãos para evitar automutilação, o que hoje é menos acentuada. Tem dificuldade de fala. Alta inalterada. (Médica Assistente - 30/04/1992).

 

Tentativas Sucessivas de Reinternação

Maria Ileuda Verçosa teve sua primeira internação em 18/06/1982, mas, por não apresentar melhoras significativas e por não ter suporte familiar mínimo que fosse, passou, então, a ter recebimento contínuo de altas inalteradas, uma vez que o tempo válido para cada internação era de 120 dias. Esse aspecto é mencionado reiteradamente na revisão de prontuários:

(...) Está internada há vários anos neste hospital e não vem recebendo visita de familiares. Alta hospitalar inalterada. (Médica Assistente - 17/03/1992).

Solicitamos prorrogação do período de internação da paciente Maria Ileuda Verçosa por mais 30 dias, pois a mesma não se apresenta em condições de alta hospitalar. (Médica Assistente. 30/3/1993).

 

Comorbidades

Pelo fato de permanecer muito tempo contida em seu leito de enfermaria, Maria Ileuda Verçosa passou a desenvolver muitas afetações de saúde, descritas frequentemente nos prontuários, tais como: distúrbios gastrointestinais, infecciosos, hematomas e ferimentos auto impostos.

Obstrução nasal, gripe, diarreia (escura e fétida), infecções nas mãos, pediculose, corrimento e infecção vaginal, infecção urinária, escabiose, infecção nos olhos. (Médica Assistente - 10/12/1987)

De tudo o que foi abordado, pode-se caracterizar Maria Ileuda Verçosa como portadora de sofrimento psíquico de natureza autística, assim como é válido ressaltar o cuidado com que a equipe multidisciplinar tratou a severidade do seu comprometimento clínico na ausência absoluta de sua família.

 

Conclusão

Este artigo teve como objetivo maior o resgate de um caso de autismo severo e de abandono familiar, que favoreceu uma internação psiquiátrica por demais prolongada. Faz-se necessário apontar o quanto o suporte familiar e o meio saudável são fatores vitais para um desenvolvimento emocional salutar e uma capacidade de integração ao meio que gere autonomia no sujeito. Na ausência desses fatores, falhas podem resultar em prejuízos gradativos e perenes.

Apesar de todo o intenso e prolongado sofrimento de Maria Ileuda Verçosa, houve o cuidado da equipe multiprofissional em prover melhores condições (com todos os recursos que tinham à disposição) no sentido de fazer algo pelo seu bem-estar. Se não foi possível modificar seu quadro clínico, todo o esforço de buscar integrar a paciente, assim como minimizar seus ferimentos, foi tentado.

A relevância de conhecer quem foi Maria Ileuda Verçosa diz respeito ao fato de não se deixar esquecer ou mesmo negar casos críticos cotidianamente vivenciados por profissionais da saúde mental, uma vez que a compreensão de tais experiências pode redirecionar melhores práticas para lidar com os portadores de sofrimento psíquico que precisem de internação psiquiátrica. Tomando como exemplo a instituição onde ocorreu o caso clínico (que segue preceito da Reforma Psiquiátrica), as internações duram, atualmente, em média, 20 dias, tempo considerado breve para debelar a crise, devido a um trabalho conjunto da equipe multidisciplinar focado na socialização extra hospitalar, evitando, assim, o deletério processo de institucionalização. A maior contribuição que este estudo pode dar é que, ao se fazer conhecida a história de Maria Ileuda Verçosa, outros casos similares não sejam perpetuados e/ou soçobrados ao esquecimento e descaso.

 

Referências

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Recebido em 12 de agosto de 2010
Aceito em 17 de dezembro de 2010
Revisado em 20 de dezembro de 2010

 

 

* Nossos mais sinceros agradecimentos à Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), assim como aos profissionais do Hospital de Saúde Mental de Messejana: Nonato Filho, Antônio de Oliveira e Cleiton Duarte, pelo acesso facilitado a todos os prontuários do SAME; Dra. Maria de Fátima Araújo (Terapeuta Ocupacional), Ana Stela Salgado (Auxiliar de Terapia Ocupacional) e ao corpo de Enfermagem das Unidades Femininas II e III pelas valorosas informações das reminiscências vividas com Maria Ileuda Verçosa.