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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

CAPS-POEIRA: um modo de intervenção no CAPS-ad

 

CAPS-Capoeira: a mode of intervention in CAPS-ad

 

CAPS-Capoeira: un modo de intervención en CAPES-ad

 

CAPS-Capoeira: un mode d'intervention dans les CAPS-ad

 

 

Natália Galdiano Vieira de MatosI; Anamaria Silva NevesII

IMestrado em Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia. End.: R. Icaraí, 505/. CEP 38400-248 - Copacabana. Uberlândia - MG. E-mail: nataliagaldiano@yahoo.com.br
IIPós-doutora em Psicologia. Professora Adjunta, Universidade Federal de Uberlândia. End.: Av: Alexandre Ribeiro Guimarães, 281/702. CEP 38408-050 - Santa Maria. Uberlândia - MG. E-mail: anamaria@umuarama.ufu.br

 

 


RESUMO

Este trabalho versa sobre o reduto das experiências da pesquisadora na condição de oficineira de Capoeira Angola em uma unidade CAPS-ad. Transitando entre a posição de oficineira e psicóloga, buscou-se compreender a dinâmica dos sujeitos usuários do serviço, além de nomear os sentidos proporcionados pelo encontro entre a Psicanálise e a Capoeira Angola nos grupos operativos do CAPS-ad, sendo este o objetivo geral delineado no trabalho. Em um cenário no qual muitos sujeitos usuários do serviço estavam absortos à droga, havia aqueles que se interessavam pelas oficinas e demonstravam atenção aos próprios tratamentos. A proposta era compreender a dinâmica observada no grupo de sujeitos drogadictos e provocar inquietações possíveis. Para isso, intensificava-se o entrelaçamento entre a Psicanálise, a Capoeira Angola e os grupos operativos, recursos que proporcionavam uma maior aproximação à psique humana, o reconhecimento da potencialidade humana de criação e de transformação da realidade, e a compreensão de que nos grupos poderia haver uma ressignificação das vivências pessoais e grupais. Foram desenvolvidos onze encontros, cuja proposta era a articulação dos grupos com os recursos da Capoeira Angola - música, narrativa e movimentação. A conclusão apresenta a complexidade da problemática droga e a possível movimentação provocada no grupo por meio da Capoeira Angola, arte ancestral marcada pela resistência na sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Capoeira Angola, psicanálise, grupos operativos, toxicomania, sociedade contemporânea.


ABSTRACT

This work deals with my experiences as a researcher and an Angola Capoeira workshop leader at a unity of CAPS-ad. Going from workshop leader position to the psychologist one, I sought both to understand the dynamics of people who use CAPS- ad services and to name the meanings produced by the meeting between psychoanalysis and Angola Capoeira in the operative groups formed by CAPS-ad users, which was the general aim of the work. In such a scenario, CAPS-ad, many users of CAPS-ad's services were absorbed in drugs, but others who grew interested in the workshops and in their own problems. The proposed was to understand the dynamics observed in the group of addicts and sought to cause uneasiness as much as I could. To do so, strengthened the links among psychoanalysis, Angola Capoeira and the operatives groups, which made possible a greater approaching to the human psyche and its singularities, the recognition of the human potential to be creative and to change reality, and the understanding that personal and collective experiences could be re- signified in these groups. Eleven meetings took place, following the proposal of articulating the operative groups with Angola Capoeira resources such as music, narrative, and movement. Combining apsychoanalytical work with an interpretative view - my own - has made possible to understand toxicomania in theoretical terms. The conclusion points out complex of trouble drug and a possible movement caused in group for Angola Capoeira, ancients' art marked with resistant in contemporary society.

Keywords: Capoeira Angola, psychoanalysis, operative groups, drug addiction, contemporary society.


RESUMEN

Este trabajo versa sobre el reducto de las experiencias de la investigadora en la condición de voluntaria de Capoeira Angola en una unidad CAPS-ad. Transitando por la posición de voluntaria y psicóloga, se buscó comprender la dinámica de los sujetos usuarios del servicio, además de nombrar los sentidos proporcionados por el encuentro entre el Psicoanálisis y la Capoeira Angola en los grupos operativos del CAPS-ad, siendo éste el objetivo general delineado en el trabajo. En un escenario en que muchos sujetos usuarios del servicio estaban absortos a la droga, había aquellos que se interesaban por los talleres y demostraban atención a los propios tratamientos. La propuesta era comprender la dinámica observada en el grupo de sujetos drogadictos y provocar inquietudes posibles. Para eso, se intensificaba el entrelazamiento entre el Psicoanálisis, la Capoeira Angola y los grupos operativos, recursos que proporcionaban una mayor aproximación a la psique humana, el reconocimiento de la potencialidad humana de creación y de transformación de la realidad, y la comprensión de que, en los grupos, podría haber una re-significación de las vivencias personales y grupales. Fueron desarrollados once encuentros, cuya propuesta era la articulación de los grupos con los recursos de la Capoeira Angola - música, narrativa y movimiento. La conclusión presenta la complejidad de la problemática droga y el posible movimiento provocado en aquel grupo por medio de la Capoeira Angola, arte ancestral marcada por la resistencia en la sociedad contemporánea.

Palabras-clave: Capoeira Angola, psicoanálisis, grupos operativos, toxicomanía, sociedad contemporánea.


RÉSUMÉ

Ce travail se concentre sur le bastion des expériences de la chercheuse en tant qu'instructrice d'atelier de Capoeira Angola dans une unité CAPS-ad. Quand l'on transite entre les situations d'instructrice et psychologue, l'on a cherché à comprendre la dynamique des individus usagers du service, en plus de nommer les sens créés à partir de la rencontre entre la Psychanalyse et la Capoeira Angola dans les groupes qui opèrent le CAPS-ad, en étant cela l'objectif général décrit dans l'essai. Dans cette situation là, dans laquelle beaucoup d'individus usagers du service étaient drogués, il y avait ceux qui s'intéressaient aux ateliers et démontraient attention aux propres traitements. La proposition était à comprendre la dynamique observée dans le groupe d'individus addictes à la drogue et provoquer des préoccupations possibles. Pour que cela soit possible, il y a eu l'intensification de l'entrecroisement entre la Psychanalyse, la Capoeira Angola et les groupes opérationnels, des ressources qui fournissaient une approximation plus importante à la psyché humaine, la reconnaissance du potentiel humain de création et transformation de la réalité, la compréhension du fait que dans les groupes il pourrait y avoir un recadrage des expériences personnelles et collectives. Onze rencontres ont été développés, dont la proposition était l'articulation des groupes avec les ressources de la Capoeira Angola - musique, narrative et mouvement. La conclusion présente la complexité de la problématique drogue et le mouvement possible provoquée par la Capoeira Angola dans ce groupe là, un art ancestral caractérisé par la résistance dans la société contemporaine.

Mot-clés: Capoeira Angola, psychanalyse, groupes opérationnels, toxicomanie, société contemporaine.


 

 

Introdução

Este artigo é o resultado do encontro entre a Psicanálise, a Capoeira Angola e os grupos operativos em uma unidade CAPS-ad, advindo da pesquisa desenvolvida no mestrado em Psicologia. Anteriormente à inserção no mestrado acadêmico, as oficinas de Capoeira Angola no CAPS-ad eram desenvolvidas com o intuito de promover o aprendizado dessa modalidade de Capoeira, e a reflexão sobre a terapêutica proporcionada pela prática era descartada.

A oficineira, também psicóloga, adentrava na pesquisa académica com o anseio de compreender a dinâmica observada no grupo de usuários da unidade. No CAPS-ad, onde eram atendidos sujeitos usuários de álcool e outras drogas, observava-se uma notória rotatividade dos usuários do serviço. Participavam da lógica institucional por um curto período de tempo e retornavam com um agravamento do problema, visível em seus corpos, comportamentos e falas. Nas atividades com a capoeira, muitos se envolviam com a prática, desapareciam dos encontros e depois retornavam às atividades como se nada lhes fosse familiar. Além disso, enquanto uns se dedicavam às oficinas, outros pareciam não compreender o movimento que acontecia.

Alguns participantes apresentavam experiências vivenciadas para além dos portões institucionais e relatavam conflitos familiares, abandonos e diversas experiências de exclusão social, sendo muitos moradores de rua, desempregados e rejeitados pela família. Em seus discursos, demonstravam passividade, observada em atos ou na falta deles, e uma ausência de responsabilidade sobre suas próprias vidas, sendo justificada pela condição de doente-adicto.

Nesse contexto, foi proposto o projeto CAPS-POEIRA com a integração dos grupos operativos, a Capoeira Angola e a Psicanálise, promovendo uma inquietação e reflexão no e sobre o cenário institucional. O termo CAPS-POEIRA, presente no título, simboliza a articulação entre CAPS e a capoeira, e apresenta, também, o prenúncio do trabalho prático: "fazer poeira", ou seja, provocar possíveis movimentações/transformações. O grupo operativo foi utilizado, cuja proposta é a realização de uma tarefa, mas tendo como atividade implícita o rompimento dos papéis assumidos socialmente e as estereotipias dos comportamentos, advindos de uma ideologia inconsciente. Nele, está presente a necessidade de tornar explícitas as contradições sociais mantidas implicitamente; além disso, nos grupos operativos, propõe-se refletir sobre os enfrentamentos dos problemas existenciais em busca de uma adaptação ativa da realidade. O autor considera que os sujeitos, diante de situações vivenciadas, assumem papéis possíveis de serem rompidos para a construção de uma nova comunicação e aprendizagem. No processo grupal, esses papéis se dispõem e podem ser ressignificados (Pichon-Rivière, 1960/1982).

Com o intuito de promover os grupos operativos, suscitar os discursos, a apresentação das vivências no processo grupal e provocar as reflexões e movimentações aos sujeitos usuários do serviço CAPS-ad, a Capoeira Angola cumpriu uma função fundamental. A Capoeira Angola, assim como outras manifestações culturais afrodescendentes, vem de um processo de transformação de práticas existentes na África, sendo mescladas no Brasil com as demais culturas presentes - a indígena e a europeia. Ela apresenta traços referentes à pluralidade de uma sociedade (Mintz & Price, 2003). Existem suposições diversas sobre a origem da Capoeira Angola, transmitidas por gerações de capoeiristas. Sua origem foi- -se constituindo a partir de uma comparação feita entre a Capoeira Angola e uma dança chamada N'golo. O N'golo era uma dança guerreira feita por homens, nos territórios do sul de Angola. Em um ritual chamado mufico, efico ou efundula, registrado pelas pinturas de Albano Neves e Souza, guerreiros, em um espaço demarcado e ao som de palmas, lutavam entre si imitando os passos da zebra. Essa dança era realizada com o intuito de desposar as mulheres da comunidade. Com a descoberta do N'golo, a Capoeira Angola passou a ser vista como uma expressão da cultura africana que foi transformada no Brasil, sendo essas transformações resultados da dinâmica social do país. Na condição de escravos, alforriados e marginalizados, os africanos e seus descendentes encontraram estratégias para manter sua autonomia cultural, tendo como exemplo a Capoeira (Assunção & Cobra Mansa, 2008).

Atualmente, a prática da Capoeira Angola visa à valorização da etnicidade e em seus ensinamentos estão o respeito aos ancestrais e às histórias de luta e resistência dos negros escravos, alforriados e mestiços (Bomfim, 2002). Na Capoeira Angola estão presentes cantigas que contam histórias de resistência ante a marginalização social. Suas movimentações também carregam histórias de sujeitos atores que lutaram e (re)criaram a realidade vivida. Suas narrativas, transmitidas pela tradição oral, são significativas para a compreensão da realidade atual, dos embates entre a norma social e seus excluídos (Abib, 2004). Com esses elementos - narrativas, musicalidade e movimentação - utilizados no desenvolvimento do projeto, foi possível incitar reflexões sobre os papéis assumidos no cenário social e provocar possíveis movimentações corpóreas, psíquicas e institucionais no grupo de usuários do CAPS-ad. Os encontros desenvolvidos alternavam semanalmente em rodas de conversa, movimentação e musicalização.

A psicanálise constituiu-se em uma aliada preciosa no processo de construção da prática, na constituição metodológica e na interpretação das estratégias grupais. A pesquisadora, movida pelo olhar psicanalítico, considerava os diversos sentidos suscitados ao longo do desenvolvimento do projeto. A Psicanálise também promoveu a compreensão teórica referente ao uso de drogas e à toxicomania. Neste artigo, é importante considerar tal compreensão, proporcionando reflexões e questões sobre a toxicomania no cenário atual.

 

Uma Compreensão Psicanalítica sobre a Toxicomania na Sociedade Pós-moderna

Diversos autores consideram a toxicomania um novo sintoma, pois não apresenta a formação de compromisso, característica dos clássicos sintomas (Marconi, 2009; Santiago, 2001; Teixeira, 2006). Na sociedade pós-moderna, na qual vivemos, há uma instantaneidade nas relações alteritárias, o consumismo desenfreado e a falta de tempo para estar com o outro. Esses aspectos se estenderam às relações necessárias à constituição psíquica, do outro mediador, o qual apresenta ao sujeito em constituição os significados simbólicos construídos socialmente; e do terceiro interditor, que interrompe o momento de completude ilusória, denominado ego-ideal, e propulsiona o sujeito ao ideal de ego, sendo esse o momento em que o sujeito sai em busca de substitutos dessa completude na cadeia simbólica. Com essas transformações sociais, pode ocorrer uma falha na apresentação ao sujeito do mundo simbólico e na interdição da completude ilusória; consequentemente, na busca por seus substitutos (Maia, 2003).

Como consequência dessa falha simbólica, as psicopatologias contemporâneas se manifestam no corpo e na ação, algo observado no aumento de pacientes com compulsões, bulimia, depressão, anorexia, síndrome do pânico (Birman, 2003), e adicção.

Para Maia (2003), os sujeitos contemporâneos recebem diversas imagens e modelos midiáticos, através dos quais, sem a mediação do pensamento, adaptam-se às identidades propostas e se alienam nessas imagens. O pensamento também é burlado pela instantaneidade e consumismo desenfreado, necessários para a manutenção do capitalismo contemporâneo. Essas intempéries impossibilitam o sujeito de pensar em seus próprios desejos e necessidades, recebendo e reagindo a tudo passivamente. No novo modo de viver, impera a "lógica da adicção", conceito formulado por Maia (2003). Os sujeitos são constituídos por essa lógica a fim de permanecerem em constante estado de insatisfação e acompanharem o consumismo descomedido e o ritmo acelerado da produtividade. Ainda se exige o prazer a todo custo, e aquilo que possa causar desprazer é descartado imediatamente.

É possível uma aproximação da "lógica adicta" com as características psíquicas do sujeito toxicómano. Os toxicómanos, através da droga, buscam o prazer a qualquer preço e se distanciam de qualquer ameaça que lhes cause desprazer. Acompanhando o individualismo e a superficialidade das relações, permanecem presos ao ego-ideal e ficam impedidos de abrir espaço para outros substitutos da cadeia significante (Maia, 2003).

É observada no toxicómano a perturbação no campo da ação pela compulsão repetitiva da busca constante à droga. A dificuldade em obter espaços alteritários para romper com essa lógica também representa essa perturbação. Como apresentado por Santos e Costa-Rosa (2007), na presença do objeto-droga, "o toxicômano se defronta com sua incapacidade de pensar, reagindo com uma ação compulsiva, correspondente de uma tensão que parece ser vivenciada como impossível de baixar por outros meios. Parecendo ser comandado pelo objeto, o indivíduo fracassa, sobretudo, quanto à capacidade de utilizar a linguagem e o pensamento como meios de ponderação e de dar significação ao impulso desencadeado" (p.489).

Marconi (2009) constata que o ato compulsivo representa a tentativa de adquirir um prazer irrestrito. A autora também compreende ser o corpo o alvo principal desse sintoma. Nesse sentido, a psicanálise pode contribuir em "escutar o sujeito que está por trás do corpo fragmentado, mutilado, constantemente recuperado" (p.15).

A compulsão e o recorrente uso de drogas representam a pulsão de morte, manifestada silenciosamente. Silenciosa por não ter representação, não ter palavras, ser independente do efeito do símbolo e por levar ao prazer advindo da materialidade da droga. Na toxicomania, o sujeito recorrerá sempre à droga para se afastar do pavor provocado pela falta do objeto perdido, sendo este um ilusor da completude, e o qual "não o encontramos ligado por vias associativas a outras ideias, e certamente não podemos reduzido às suas ressonâncias fantasmáticas" (Gurfinkel, 1995, p. 211).

Na toxicomania, a pulsão de morte se expressa e a negatividade da compulsão à repetição se instala por não permitir ao sujeito se abrir para outras experiências e por ter como única a tarefa de digerir a experiência traumática não elaborada. Com uma lógica de tempo não linear e a aproximação de uma vivência de eternidade, peculiares a Tanatos, ocorrem episódios de extremo risco de vida, associados ou não ao consumo de drogas (Gurfinkel, 1995; Silveira Filho, 1995; Souza, 2003).

De acordo com Silveira Filho (1995),

(...) o suicídio é outro risco constante na crise toxicomaníaca (...) Um dos componentes importantes no suicídio do toxicómano é o desprezo defensivo à vida e suas limitações, assim como o desejo de perpetuação no tempo (eternidade) da sua ligação com o mundo feérico que descobriu e cultivou na sua relação com a droga.

Nas formas mais graves de toxicomania, procura-se um sentimento oceânico, capaz de oferecer a paz por eliminação das perturbações da vida, mas também provocador da eliminação dos contornos do eu, da indiscriminação eu-mundo, e a eliminação do crescimento psíquico (Gurfinkel, 1995; Silveira Filho, 1995).

A perturbação no campo somático do drogadicto também se manifesta pelo descuido e escarificações feitas no próprio corpo. Silveira Filho (1995) analisa que "a nível corporal, diversos pacientes realizam verdadeiros rituais de escarificação, deixando marcas no próprio corpo, ou compartilham sangue da mesma seringa mesmo quando não há mais droga a ser injetada. Estas marcas assinaladas na própria pele, assim como o sangue, constituem testemunhos de uma identidade corporal, simbolicamente reassegurando e apaziguando dissociadamente o individuo do medo do não ser, da ameaça da não identidade, da marginalização e da solidão absolutas (Silveira Filho, 1995, p. 35).

Segundo Maia (2003), esses sujeitos provocam em si mesmos, em seus próprios corpos, marcas que representam e falam de suas constituições. Devido à lógica pós-moderna, os sujeitos podem apresentar marcas corpóreas como cuidadoras. A autora, ao analisar os relatos clínicos de seus pacientes, verifica que as práticas corporais, tal como a tatuagem, proporcionam sentimentos de autoproteção, de autoconfiança, de apropriação de uma identidade e de presença de um corpo que parecia não existir: "As práticas corporais apresentam-se como uma tentativa de restituição narcísica que remete a um processo defensivo: ocorre um apelo ao autoerotismo, no qual, através de investimentos pulsionais parciais, localizados em determinadas zonas erógenas, os sujeitos tentariam recompor e sanar as feridas expostas de seus narcisismos. Recurso defensivo que busca a atualização de um processo anterior ao narcisismo, anterior mesmo à imagem unificada do corpo" (Maia, 2003, p.68).

Na pós-modernidade, também há um declínio do referencial familiar, religioso, estatal, autoritário e patriarcal, instituidores de uma ordem simbólica, e a interdição ao gozo absoluto ou à completude ilusória. No modo de viver contemporâneo e na adicção, há uma falência paterna, reconhecida pela falha da imposição de poder hierárquica e vertical. Dessa forma, com as transformações e as peculiaridades da sociedade atual, em que tudo posso, há uma falha na castração simbólica e na inserção do sujeito na ordem social, no gozo fálico. Para Santiago (2001) "o sucesso da droga na modernidade não poderia ser concebido fora do contexto de declínio crescente da imagem do pai" (p.174), por ser o toxicómano um exemplo de repúdio à interdição simbólica e à condição de ser desejante própria do ser humano.

Acompanhando a lógica descrita, no sintoma toxicomaníaco, há um vazio desejante. Há pouco espaço para o simbólico, provocado por um curto-circuito da linguagem. O sujeito fica à deriva e, ao sair de cena, coloca em seu lugar o vazio do ato compulsivo dos rituais do uso da droga (Marconi, 2009; Santiago, 2001; Santos & Costa-Rosa, 2007). Cabe também considerar que, apesar da semelhança das características do sujeito toxicomaníaco com a perversão, todos os autores estudados relataram não ter a toxicomania uma estrutura psíquica fixa, podendo estar presente em neuróticos, perversos ou psicóticos (Gurfinkel, 1995; Marconi, 2009; Santiago, 2001; Santos & Costa-Rosa, 2007).

Autores também discutem a rotulação presente no discurso de sujeitos toxicômano - "eu sou dependente" ou "eu sou adicto" (Santos & Costa-Rosa, 2007). Tal auto identificação é consonante com o imaginário construído pela sociedade e reproduzido pelos dispositivos de tratamento, "(...) que reforçam a postura de impotência irremediável diante do controle do uso de drogas" (p. 494). Ocorre um aprisionamento em uma imagem assumida pelos sujeitos, sendo provocadora da impotência diante da droga e da desresponsabilização pelo ato de se drogar. Os autores acrescentam que o saber psiquiátrico, inserido na lógica de rotulação e desreponsabilização dos usuários de drogas, por seu método medicamentoso, gera uma cisão com a prática da escuta, que visa o reencontro do sujeito com sua história.

Marconi (2009) confirma relatando que a Medicina, com seus avanços tecnológicos, distanciou-se de seu paciente e da demanda de desejo presente no pedido de cura. As instituições especializadas e pautadas nesse discurso reforçam e mantém a não responsabilização do sujeito. A autora acrescentou uma discussão sobre a rotulação do sujeito toxicómano provocada pelo Direito e pela Medicina, gerando a postulação de que o objeto droga é um mal que deve ser eliminado. Segundo a autora, isso impede o toxicómano de inscrever o sintoma como algo singular, e o que permanece são as marcas identificatórias.

 

CAPS-ad: O Cenário Institucional

A formação dos CAPS - Centro de Atenção Psicossocial - foi uma estratégia encontrada pelo movimento antimanicomial de atender os pacientes em uma instituição aberta que, ao contrário da instituição fechada, promoveria a inclusão social. Em contraponto aos ideais da medicina moderna de medicalização e internação, no quais a doença é o foco principal da atenção, foi sendo construída uma clínica ampliada na qual o atendido é visto em sua condição cidadã e a atenção e cuidados não são focalizados na doença, e sim no sujeito e suas diversas facetas: sociais, culturais, familiares, psíquicas etc. (Hainz & Costa-Rosa, 2009; Silva & Fonseca, 2002). Os CAPS se configuram, então, como instituições abertas, regionalizadas, com equipes multidisciplinares e intersetoriais, inserindo-se em uma rede ampliada de dispositivos públicos e sociais.

Os CAPS-ad se tornaram específicos aos pacientes com dependência e/ou uso prejudicial de álcool e outras drogas. Segundo Moraes (2008), os CAPS-ad propõem que os participantes não sejam vistos como doentes, mas como cidadãos. Esse modelo de atenção integral à saúde visa uma reinserção social, uma intersetorialidade das ações e a redução de danos. Para a referida autora, é necessário um rompimento com a cultura de preconceito, da exclusão e da doença e uma reorientação da prática que dispense os modelos controladores baseados na psiquiatria hospitalocêntrica. Moraes (2008) também apresenta a necessidade de que os profissionais envolvidos nos CAPS-ad estejam cientes dos princípios de humanização e dispostos a romper com a exclusão e controle, envolvendo a sociedade, possibilitando uma reflexão sobre o uso de drogas de maneira mais ética e menos moralista e implementando a abordagem de redução de danos, para que os usuários sejam protagonistas do seu autocuidado.

A lógica de redução de danos reconhece cada usuário em suas singularidades, e se distancia da lógica da abstinência. É um método utilizado para aumentar a liberdade e a corresponsabilidade sobre o próprio tratamento. Para tanto, é necessária uma estruturação da rede de assistência, um diálogo entre os serviços de saúde e a comunidade, bem como a ênfase na reabilitação e reinserção social dos usuários (Brasil, 2004). Dessa maneira,

A abordagem se afirma como clínico-política, pois, para que não reste apenas como "mudança comportamental", a redução de danos deve se dar como ação no território, intervindo na construção de redes de suporte social, com clara pretensão de criar outros movimentos possíveis na cidade, visando a avançar em graus de autonomia dos usuários e seus familiares, de modo a lidar com a hetero e a auto violência muitas vezes decorrentes do uso abusivo do álcool e outras drogas, usando recursos que não sejam repressivos, mas comprometidos com a defesa da vida (Brasil, 2004, p.11)

No entanto, apesar das transformações ocorridas, provocadas pela Reforma Psiquiátrica, as novas modalidades de atenção e suas ações alternativas não garantem a efetiva superação dos modelos hospitalocêntricos e seu controle normatizador (Alverga & Dimenstein, 2006). Autores discutem e apresentam o processo de transformação dos CAPS e o embate entre instituído e o instituinte nele presente. Consideram a necessidade da contínua construção e reflexão dos saberes e competências profissionais. Os profissionais inseridos nos CAPS podem estar a serviço da manutenção da lógica manicomial ou da reinvenção e criação da vida (Sales & Dimenstein, 2009).

Ainda se encontram em unidades CAPS a heterogestão, a valorização do saber expert dos profissionais e uma apreensão da saúde deslocada do contexto social, das questões políticas, culturais e económicas, que tende a centrar no individual os sintomas e as queixas. As ações alternativas podem se acomodar na rotina e se transformar em instituído. Dessa forma, os projetos e as novas ações, quando questionadas, podem apresentar resquícios da lógica hospitalocêntrica. Na rotina dos CAPS, o olhar durante o acolhimento dos usuários pode se transformar em mera classificação nosológica. O projeto terapêutico, individualizado e diferente da massificação do hospital pode se configurar em uma nova institucionalização se não houver a participação do usuário em seu próprio tratamento e se houver uma superioridade do saber do profissional sobre o "doente". A assembleia, proposta nos CAPS a fim de proporcionar uma horizontalidade por meio do diálogo entre técnicos, usuários e familiares, se dirigida e regulamentada pelos técnicos, pode se configurar em verticalidade (Alverga & Dimenstein, 2006; Figueiredo & Dimenstein, 2010). Para Alverga e Dimenstein (2006), é importante a equipe se manter vigilante diante da aparente superação dos modelos, pois, para os autores, "somos constantemente capturados por nossos desejos de controle, fixidez, identidade, normatização, subjugação, ou, em outras palavras, nossos desejos de manicômio" (p. 314)

No CAPS, o movimento instituinte diante da possível paralisação instituída pode se apresentar na composição de novas redes, na potencialização do coletivo de usuários e no desenvolvimento dos projetos. São diversos os exemplos de projetos e movimentações instituintes nos CAPS (Hainz e Costa-Rosa, 2009; Santos & Nechio, 2010; Mecca & Castro, 2008; Liberato & Dimenstein, 2009).

 

CAPS-POEIRA: Um Modo de Intervenção

Concomitantemente ao desenvolvimento dos encontros, foram realizadas treze entrevistas com os usuários do serviço CAPS-ad, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram gravadas, transcritas e, em seguida, analisadas pelo viés psicanalítico interpretativo. A pesquisa conta com a aprovação do Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos.

O grupo, pelo funcionamento da unidade pesquisada, foi aberto, e o número de integrantes variava a cada dia, o que exigia uma breve contextualização inicial a cada encontro.

Em diário de campo, foram feitas anotações sobre as sensações e angústias da pesquisadora, surgidas durante a trajetória da pesquisa.

As atividades grupais foram semanais e, para cada encontro, uma atividade era estabelecida com propostas que se alternavam semanalmente em rodas de conversa, movimentações e musicalização, esclarecidas adiante. Os encontros foram assim distribuídos:

1. encontro: A história da Capoeira Angola e dos negros no Brasil (roda de conversa);

2. encontro: Brincando em duplas (movimentação);

3. encontro: Caxixis em mãos (musicalização);

4. encontro: Dialogando sobre os enfrentamentos diários (roda de conversa);

5. encontro: Brincando com a ginga e com as possibilidades de desterritorialização (movimentação);

6. encontro: Ritmo em grupo (musicalização);

7. encontro: A história do Mestre Pastinha (roda de conversa);

8. encontro: Um treino de Capoeira Angola (movimentação);

9. encontro: Os instrumentos (musicalização);

10. encontro: A história do Mestre João Pequeno (roda de conversa);

11. encontro: Um ritual, a roda de Capoeira Angola (movimentação, musicalização e roda de conversa).

As rodas de conversa foram assim denominadas porque nelas era proposto o diálogo grupal com os participantes. Eram iniciadas com a apresentação de uma ladainha, cantiga da Capoeira entoada no início da roda, ou uma história presente na Capoeira Angola e, logo após, era proposto um diálogo grupal. Os encontros tinham como temas o cotidiano, a família, as lutas diárias, e liberdade, temas escolhidos a partir da revisão bibliográfica referente à organização psíquica dos sujeitos drogadictos, e a partir da vivência prévia com os usuários do serviço e suas demandas. Em geral, nas rodas de conversa, a tarefa explícita era conhecer e refletir sobre as narrativas presentes nas ladainhas ou nas histórias da Capoeira Angola, mas, implicitamente, a proposta era refletir e (re)significar suas vivências familiares, cotidianas e os papéis assumidos nessas relações.

Os movimentos corpóreos - chamados de movimentações - da Capoeira Angola foram utilizados no projeto CAPS-POEIRA por reconhecer neles as histórias e os movimentos sociais que carregam, sendo realizados os encontros de movimentação com esse pressuposto. Para os encontros, era utilizado aparelho de som, fornecido pela unidade CAPS, e CDs com músicas de diversos mestres angolanos. Em cada encontro, era feito um alongamento inicial e um relaxamento final. Alguns dos movimentos utilizados foram: a ginga, au, meia-lua, chapa, rabo-de-arraia e negativa.

Nos encontros de musicalização, foram utilizados todos os instrumentos presentes na Capoeira Angola: berimbaus, atabaque, reco-reco, agogó, pandeiro e caxixi, além de cantigas entoadas no ritual da roda. Nesses encontros, o intuito era provocar, a partir do aprendizado das cantigas e ritmos, movimentações grupais, além de uma coesão grupal e a autorresponsabilização dos participantes. Era proposta a execução dos ritmos levando em consideração a importância da participação de todos para a harmonia rítmica. Para tanto, era necessária atenção na execução dos ritmos de cada instrumento, realizada por si e pelos colegas.

Todos os encontros, sentidos e construções somente puderam ser apreendidos e nomeados através da Psicanálise enquanto método de pesquisa. O método psicanalítico pode ser entendido como um trabalho de reflexão que interroga as experiências imediatas e recria ideias e sentidos. Para Frayze-Pereira (2004), a reflexão é dinâmica, um "movimento de interiorização da experiência externa enquanto não saber e de exteriorização do sentido obtido pela reflexão" (p.39). A pesquisa em Psicanálise sugere a reflexão sobre a experiência vivida e os sentidos advindos dela. Essa concepção de ciência apresenta flexibilidade a uma variação dos resultados de acordo com as circunstâncias culturais e históricas. Dessa maneira, inclui-se ao método a particularidade das experiências vividas e os possíveis sentidos advindos da proposta investigativa.

Sobre a pesquisa-ação a partir da psicanálise, Romera & Próchno (2007) consideram ser recurso do analista-pesquisador a "com-versa" ou a "comvers-ação". Transformar a ação em verso e instituir a ação de versejar a dois (ou três). Criar mais do que desvendar sentidos. E, antes de mais nada, respeitar o humano enclausurado, encapsulado em cada corpo, e esperar, no sentido de ter esperança, que ele poderá advir na e da relação terapêutica" (Romera & Próchno, 2007, p.201).

A Psicanálise, diante dos sujeitos toxicómanos, deve contribuir para desintoxicar a droga enquanto significante que os nomeia e os mantêm anónimos por trás do "eu sou drogadicto" e abrir as portas a novos sentidos sociais para a inserção do sujeito no universo da cultura (Marconi, 2009; Santos e Costa-Rosa, 2007).

 

Sobre as Entrevistas e os Encontros: Construções e Afetações

A partir das entrevistas realizadas, verificaram-se características comuns aos entrevistados. A droga e/ou o álcool pareciam possibilitar a existência e a identidade dos sujeitos. A droga parecia emergir como uma saída precária diante da vida.

O suicídio, a automutilação e a violência surgiram entre os vários momentos de aproximação junto aos drogadictos. Considerando a pulsão de morte e sua impossibilidade de representação (Freud, 1920/2006), observaram-se, na composição institucional, cenas de degradação. Parecia que as inscrições não representáveis não se calavam e levavam os sujeitos a recorrerem à droga repetidamente e compulsivamente.

Entre eles, emergia a argumentação biológica para justificar a dependência química. A instituição, por sua vez, com seus próprios discursos, considerava-a doença e buscava solução provisória e frustrada por meio dos remédios.

Os sujeitos contaram sobre sensações e sentimentos que os levaram às drogas. Exploraram sobre a trama familiar que os envolveram e os constituíram. O medo do abandono e o medo da solidão ecoavam e ressoavam no lugar institucional.

No grupo, era evidente o envolvimento dos usuários do serviço com a droga e o distanciamento gradativo de seus afazeres cotidianos. A droga centralizava a atenção da maioria dos sujeitos e, assim, suas vivências alteritárias e simbólicas se restringiam.

Os recursos presentes na Capoeira foram utilizados para proporcionar ou instigar a abertura para novas possibilidades, indo além do objeto droga. A proposta central do projeto CAPS-POEIRA, presente nas rodas de discussões, encontros de movimentação e musicalização, era provocar, por meio da Capoeira Angola e do saber popular dessa prática, um movimento contrário ao funcionamento instituído da unidade e promover movimentações no cenário institucional e nos papéis-lugares que os usuários do serviço foram assumindo ao adentrar a lógica da instituição e da sociedade. A Capoeira poderia vir para causar poeira, provocar movimentações corpóreas, físicas, institucionais, sociais, promovendo rupturas com as estereotipias dos sujeitos drogadictos ao demonstrar e apresentar àqueles usuários do serviço CAPS uma arte, cultura e luta construída no embate frente à marginalização. Como apresentado por Abib (2004):

A Capoeira Angola pode ser vista enquanto uma luta social, pois ainda que através do enfrentamento indireto e dissimulado, ela fornece elementos aos seus praticantes, que permitem a eles enfrentar determinadas dificuldades e obstáculos impostos por uma sociedade excludente e autoritária, bem como questionar os valores de uma sociedade consumista e mercadológica. Esse aprendizado desenvolvido nas rodas e no jogo da capoeira torna-se então um aprendizado social, a partir do momento que o praticante de capoeira é capaz de fazer analogias entre a sua prática na roda de capoeira e as possibilidades de utilizar esse aprendizado na "roda da vida" (p.132).

Pela lógica institucional o grupo era aberto, então, novos usuários surgiam a cada encontro. Psicóticos e neuróticos se misturavam, se apresentavam, desapareciam e ressurgiam, sendo esses movimentos desafiadores. A dificuldade de receber novas pessoas no grupo já iniciado e de lidar com sujeitos que, por vezes, estavam embriagados, eufóricos ou depressivos, instalava-se. Ao mesmo tempo, foi possível observar que, mesmo no caos, uma organização, ou melhor, uma desorganização era construída e era subjetivante.

Alguns pareciam não saber o que faziam naquele lugar, não sabiam que dia era e nem as horas. Vozes embriagadas interrompiam as atividades. Alucinados, também se movimentavam nas atividades de movimentação. Anestesiados por medicação, também tocavam e cantavam.

Assim como nas entrevistas, nos encontros grupais, o grupo contava sobre o que os levava às drogas, construíam e rediziam as vivências familiares, as histórias de abandono, a falta de emprego, as vulnerabilidades sociais e a morte ameaçadora. Narraram cenas de violências praticadas por policiais e por vândalos que os viam dormir nas ruas e nas praças. Histórias de abandono, solidão e descaso consigo e com o outro.

O grupo dizia sobre barreiras e interposições que se colocavam em seus tratamentos. Muitos continuavam no mundo das drogas e na rotina de ir ao CAPS-ad sem compreender, digerir e conseguir nomear o chamado tratamento. Eram situações estereotipadas, sujeitos embriagados e entorpecidos por drogas lícitas (os remédios) e ilícitas.

No entanto, havia também aqueles que buscavam o tratamento e a redução de danos, e assim, se distanciavam das estereotipias e participavam das atividades ativamente. E, no caos existente, era possível verificar rupturas subjetivantes. Houve revelações surpreendentes de inquietações diante de suas vidas, reflexões sobre seus conflitos interpessoais e provocações construídas a partir dos recursos da Capoeira.

A Capoeira, nesse contexto, com suas narrativas de resistência, luta e criação, teve importância fundamental para suscitar as frases ditas e as reflexões surgidas. Sua própria constituição representa a possibilidade de movimentações e inquietações diante da norma social vigente. A Capoeira foi se modificando a cada momento histórico, denunciando a capacidade do sujeito de se metamorfosear e de se regenerar. Segundo Abib (2004), "a capoeira é e sempre foi de constante inovação, pois ela sempre soube se adaptar aos diferentes contextos históricos nos quais estava inserida" (p.108).

No grupo operativo com os usuários dos serviços CAPS-ad, eram percebidas reflexões e movimentações nas posições sociais assumidas, e a verticalidade (histórias e vivências individuais) eram identificadas na horizontalidade (construção e diálogo que surgia no grupo). Assim, a proposta dos grupos operativos se desenvolvia.

Palavras como "radiante", "ótimo" e "muito bem" ao relatar o que sentiram ao final de um encontro de movimentação se contrapunham às palavras "abandono" e "desesperança". Desenvolvimento da coordenação motora e atenção, bem como a sintonia rítmica observada em encontros de musicalização se contrapunham à apatia e aos movimentos lentos e desajeitados. E os abraços aos colegas, o desabafo, o acolhimento e o presentear se impuseram diante da tristeza, do abandono familiar, do desprezo e do mau-trato.

Os encontros com a musicalização também solicitavam a memorização, o atentar-se, e proporcionavam uma ação subjetivante, que estimulava, cada vez mais, a expansão criativa e simbólica. Nos últimos encontros de musicalização foi surpreendente observar a satisfação dos integrantes do grupo pelo aprendizado dos ritmos de cada instrumento. Quando tocavam e cantavam, entreolhavam-se e sorriam, e, em tais momentos, as dificuldades da vida, da drogadicção e os enfrentamentos diários pareciam ser esquecidos

Os encontros de movimentação sugeriam energia, atenção e coordenação motora. Seus movimentos, no início desajeitados, transpunham suas próprias barreiras corporais. Gingavam e dançavam ao som dos corridos, buscavam a harmonia rítmica, observavam para aprender e para manter o diálogo dual dos jogadores. Era preciso responder ao movimento do colega e, assim, fazer sua própria movimentação. Era preciso estimular a memória para lembrar-se dos movimentos. Era necessário atentar ao som das músicas para dançar a ginga. E assim ocorreu.

Nos encontros cujo objetivo era a discussão grupal, os integrantes apresentavam, pelo diálogo suscitado e pelas narrativas contadas, suas próprias histórias e trajetórias de vida. Foi possível perceber a importância em escutá-los ao dar voz aos sofrimentos e enfrentamentos. O grupo também acolhia cada relato do colega e, em diversos momentos, não apenas escutavam, mas opinavam e diziam suas experiências para auxiliar nas dificuldades apresentadas. Era também uma maneira de relembrar, ressignificar e se reencontrar com o passado, o que, por vezes, produzia uma nova construção psíquica e interpessoal.

Histórias de acolhimento se contrapunham às de abandono familiar, e histórias do lar se contrapunham às histórias da rua. Constatou-se também a importância da família e suas relações, tanto como cuidadoras e auxiliares nos tratamentos dos drogadictos, bem como a parcela que lhe cabe na fuga dos sujeitos às drogas.

 

Sobre Conclusões e Possibilidades

Capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade.
Seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível
ao mais sábio capoeirista.
(Mestre Pastinha)1

Com a Psicanálise, a Capoeira Angola e os grupos operativos, foi possível provocar movimentações e reflexões no grupo de sujeitos drogadictos. Ao acessar o lugar assumido no seio familiar e social, novas afetações que provocavam o refúgio às drogas, e até então permaneciam silenciadas, podiam ser ditas e ecoadas no grupo. Neste, apesar de comportamentos e manobras institucionalizados e o prendimento às drogas de muitos usuários do serviço CAPS-ad, observou-se uma expansão e a construção de um movimento instituinte, delineando sujeitos-atores sociais.

Com o desenvolvimento desse trabalho, reconheceu-se a importância de considerar a história da constituição desse país, os antecedentes sociais e históricos do Brasil, a multifatorialidade que envolve o ser humano, a sociedade, a toxicomania e o uso de drogas, sendo tal complexidade abordada na proposta de redução de danos, aquela que visa a autonomia e a autorresponsabilização.

Naquele cenário do CAPS-ad, diante da morte, do assombro, da apatia e do medo, a vida, a criatividade e a expansão humanas puderam se fazer presentes, tornando aqueles sujeitos não apenas "doentes-adictos", mas sujeitos de dor, de aflição e sujeitos sociais que falam e são amparados.

A Capoeira Angola, o modo como se configura atualmente, também diz do quadro social pós-moderno. Como quilombola e em pequenos guetos, ela resiste às transformações sociais. Quando tudo deveria ser para ontem, a Capoeira Angola mantém as tradições que são passadas por gerações. Quando a fugacidade e liquidez são valorizadas, a Capoeira Angola resiste por manter o grupo unido e o ritual da roda. Quando as histórias são transformadas em vazios e a narrativa atrofiada, a Capoeira Angola faz questão de valorizá-las e resgatá-las. São capoeiristas, mantenedores da tradição oral que muitas vezes é esquecida, mas resiste ao longo dos tempos.

Como dizia o grande mestre Pastinha, a Capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade. Mandinga ao reagir e se movimentar diante das mazelas a eles deixadas. Mandinga ao se inquietar diante da escravidão e da condição a qual eram mantidos. A mandinga no CAPS-POEIRA foi visível nos corpos que suavam, sorriam, caíam, levantavam, choravam, lembravam, enfim, viviam. Mandinga e CAPS-POEIRA sem fim que se (re)configura a cada leitura, a cada vivência, a cada um que dele faça parte, seja como leitor, seja como ator.

 

Referências

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Recebido em 06 de março de 2010
Aceito em 17 de março de 2010
Revisado em 22 de abril de 2010

 

 

1 Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981), conhecido como Mestre Pastinha, é referência na arte da Capoeira Angola.