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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.4 Fortaleza Dec. 2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O papel do exame ultrassonográfico na representação do bebê imaginário em primigestas

 

The role of ultrasound examination in the representation of the imaginary baby in first time mothers

 

El papel del examen ultrasonográfico en la representación del bebé en primerizas

 

Le rôle de l'examen ultrasonographique dans la représentation du bébé imaginaire en primigestes

 

 

Eliana de Jesus da Costa de SouzaI; Janari da Silva PedrosoII

IMestre em Psicologia, Universidade Federal do Pará. Psicóloga do Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza. End.: R. Coletora, QB/228, Parque Verde. CEP: 66635-490 Belém - PA. E-mail: eliana.jcs@gmail.com
IIDoutor em Ciências, Universidade Federal do Pará. Professor Adjunto da UFPA na Faculdade de Psicologia e no PPGP. Coordenador do Grupo LADS. End.: Av. Alcindo Cacela, 3145, Cremação. CEP: 66065- 205 -Belém - PA

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou analisar a influência do exame ultrassonográfico na representação psí-quica do bebê imaginado em mulheres que engravidaram pela primeira vez. O mundo repre-sentacional desempenha um importante papel na determinação da natureza do relacionamento dos pais com o bebê. Para este autor convém pensar em dois mundos paralelos: o mundo externo real e o mundo das representações, imaginário e subjetivo, onde existem o bebê real no ventre ou nos braços da mãe e o bebê imaginado em sua mente. O confronto do bebê imaginário com o bebê real, via de regra, acontece após o nascimento, porém atualmente com o advento da ultrassonografia obstétrica, alguns aspectos concretos do bebê podem ser reconhecidos durante a gestação. Os dados apresentados neste estudo de cunho qualitativo consistem no relato de três primigestas que não haviam se submetido à ultrassonografia antes do contato para a participação nesta pesquisa. Foram realizadas duas entrevistas com as participantes: uma anterior e outra posterior ao exame. Com base em teóricos psicanalíticos, foram analisados os relatos das grávidas relacionados ao bebê imaginado e a influencia da ultrassonografia sobre o exercício imaginativo das mulheres acerca do futuro filho, uma vez que o exame pode revelar alguns aspectos concretos do bebê durante a gestação. Entre outros achados observou-se que a ultrassonografia introduz uma nova temporalidade à gravidez, permitindo reformulações em suas representações e uma aproximação com o bebê real.

Palavras-chave: Bebê imaginário, bebê real, primigestas, gravidez, exame ultrassonográfico.


ABSTRACT

The aim of this is study is to analyze the influence of ultrasound test in the mental representation of the imagined baby in women who became pregnant for the first time. The representational world plays an important role in determining the nature of the parents' relationship with the baby. For the author is important to think of two parallel worlds: the external real world and the representational subjective world of ideas and imagery, where there is the real baby in the womb or in the mother's arms and the baby pictured in her mind. The comparison of the imaginary baby with the real baby, usually happens after birth, but now with the advent of obstetric ultrasound, some specific aspects of the baby may be recognized during pregnancy. The data presented in this study, of a qualitative nature, consisted of three first-time mothers' reports that had not undergone ultrasound tests before contact for participation in research. There were two interviews: one before and another after the ultrasound test. Based on psychoanalytic theory, we analyzed the reports of the pregnant women related to the imaginary baby and the influence of ultrasound on their imaginative exercise about the future child, since the examination can reveal some specific aspects of the baby during pregnancy. Among other findings results showed that ultrasound introduces a new temporality to pregnancy, allowing reformulations in their representations and a rapprochement with the real baby.

Keywords: Imaginary baby, real baby, first pregnancy, pregnancy, ultrasound examination.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo analizar la influencia del examen ultrasonográfico en la repre-sentación psíquica del bebé imaginado para casos de madres primerizas. El mundo represen-tacional desempeña un importante papel en la determinación de la naturaleza de la relación de los padres con el bebé. Para este autor, conviene pensar en dos mundos paralelos: el mundo externo real y el mundo de las representaciones, imaginario y subjetivo, en los que existen el bebé real en el vientre o los brazos de la madre, y el bebé imaginado en su mente. La confron-tación del bebé imaginario con el real ocurre generalmente después de su nacimiento, pero actualmente con el avance de la ultrasonografía obstrética, algunos aspectos concretos del bebé se pueden reconocer durante la gestación. La información presentada en este estudio de carácter cualitativo consiste en el relato de tres primerizas que no habían sido sometidas a ultrasonografía antes del contacto para la participación en la pesquisa. Fueron realizadas dos entrevistas con las participantes: una anterior y otra posterior al examen. Basándose en la teoría psicoanalítica, fueron analizados los relatos de las mujeres embarazadas referentes al bebé imaginado y la influencia de la ultrasonografía sobre el ejercicio imaginativo acerca de su futuro hijo, una vez que el examen pudiera revelar algunos aspectos concretos del bebé durante la gestación. Entre otros, se observó que la ultrasonografía introduce una nueva temporalidad a la gravidez, permitiendo reformulaciones en sus representaciones y una aproximación con el bebé real.

Palabras-clave: Bebé imaginario, bebé real, primerizas, gravidez, examen ultrasonográfico.


RÉSUMÉ

Cette étude a pour but analyser l'influence de l'échographie dans la représentation psychique du bébé imaginé par les femmes qui tombent enceintes pour la première fois. La représentation du monde joue un rôle important dans la détermination de la nature de la relation des parents avec le bébé. Pour cet auteur il existe deux mondes parallèles : le monde extérieur et le monde réel des instances, imaginaire est subjective, où il y a le vrai bébé dans l'utérus ou dans les bras de la mère et le bébé imaginé dans son esprit. La confrontation des bébés imaginaires avec le bébé réel, se fait toute fois après la naissance, mais aujourd'hui, avec l'avènement de l'échographie obstétricale, certains aspects spécifiques de l'enfant peuvent être reconnu au cours de la grossesse. Les données présentées dans cette étude sont de nature qualitative se composent des rapports des trois primigestes qui n'ont pas participé à l'examen ultrasonographique avant le contacte pour la participation à la recherche. Deux entretient on été réalisé avec les participants: une antérieure et l'autre après l'examen. Basé sur des approches théoriques et psychanalytiques, les rapports des femmes enceintes sur leur bébés imaginaires ont été analyse, ainsi que l'influence de l'échographie médicale en ce que concerne à l'exercice d'imagination des femmes sur le futur de l'enfant, étant donné que l'examen peut révéler certains aspects spécifiques du bébé pendant la grossesse. Parmi les autres conclusions, il a été remarqué que l'examen ultrasonographique introduit une nouvelle temporalité à la grossesse, permettant des reformulations aux représentations ainsi qu' un rapprochement avec le bébé réel.

Mots-clés: Bébé réel, bébé imaginaire, primigestes, grossesse, l'examen ultrasonographique.


 

 

Introdução

A mulher, em geral, durante o seu ciclo de vida, vivência acontecimentos marcantes e complexos nos quais ocorrem alterações tanto no seu funcionamento psíquico, quanto orgânico. Entre eles, pode-se apontar a gravidez como um evento único em que alterações hormonais e metabólicas causam diversas mudanças na mulher. Estes aspectos, tanto fisiológicos quanto psicológicos não são episódios dicotômicos, estando, pelo contrário, intimamente ligados.

A gestação é apontada por diversos autores como um período importante, no qual a relação com o bebê já ocorre desde então (Debray, 1988; Lebovici, 1987; Winnicott, 1978). Para Debray (1988), no entanto, o desejo de ter um filho é um processo contraditório e ambi-valente e está relacionado a fantasias infantis e processos internos dos próprios pais.

Um aspecto levado em consideração para este estudo é a relação imaginária que a mulher estabelece com o feto desde o início da gravidez. Para Stern (1997) na medida em que o feto cresce no útero materno, o bebê imaginário desenvolve-se paralelamente em sua men-te. Sendo que, segundo Aulaginer, (1990) a representação que a mãe faz dele não é a de um embrião em desenvolvimento, mas de um corpo imaginado já desenvolvido.

Pode-se afirmar que a maternidade biopsicológica tem seu início mais nítido na fecun-dação do óvulo, tendo a mulher, consciência ou não do filho e do desejo pelo ser em gestação. Porém o processo imaginativo consciente, muitas vezes, tem início apenas com a confirmação da gravidez.

 

As Mudanças na Gravidez

O primeiro sinal de gravidez é a suspensão da menstruação. No primeiro trimestre há um aumento no volume das mamas, surgimento de náuseas e vômitos que podem ser resul-tantes de mudanças hormonais e/ou de razão emocional. Neste período ocorrem os primeiros movimentos fetais que podem causar sobressaltos e sentimentos de prazer bem como temor de algo estranho e insólito. No segundo trimestre os seios preparam-se para a amamentação e a mulher pode apresentar um acentuado inchaço nas pernas e o surgimento de varizes (Mal-donado, 1996). No terceiro trimestre o aumento da barriga provoca uma modificação no ponto de equilíbrio da gestante, sendo necessária uma readaptação no modo de caminhar, sentar e realizar qualquer movimento (Eizirik, Kapczinski & Bassols, 2001). Em fim, no nono mês a gestante tem tendência a estar ansiosa, cansada, alegre e com medo. Muitos sentimentos instalados no início da gravidez estarão presentes, além de uma intensa vontade de conhecer seu bebê, ver seu rosto, e assim por diante.

Porém, durante toda a gravidez pode-se identificar períodos em que determinados sentimentos prevalecem, ficando clara a associação entre a percepção da gestação e o início de um período pleno de atribulações, no qual temores, ansiedade e alegrias estão presentes e refletidos na conduta da futura mãe. Para Brazelton (1988), muitas das mulheres experimentam sentimentos ambivalentes como desamparo, ansiedade e agradável expectativa. Neste período, segundo o autor, a mulher aprende tanto sobre si e seu novo papel quanto possível.

Todas estas elaborações psíquicas não são necessariamente entendidas de modo ra-cional e, na maioria das vezes, são percebidas apenas como um desconforto ou nervosismo. Os temores presentes durante a gravidez mobilizam defesas psíquicas importantes como, somatizações, reações maníacas e negação.

Em geral quando confirmada a gravidez a mulher apresenta sentimentos ambivalentes que, muitas vezes, geram muitos conflitos, pois são interpretados como rejeição à gravidez, e consequentemente do bebê (Soifer, 1992; Szejer, 1999).

Para Maldonado (1996) em alguns casos, o desejo de abortar pode aparecer disfarça-do por um mecanismo de formação reativa, como, por exemplo, sentimentos exagerados de autoproteção e cuidados, que fazem com que a mulher reduza muitas de suas atividades, até mesmo as relações sexuais, por medo de lesar o feto. Sintomas comuns na gestação como náuseas e vômitos, desejos e aversões, constipação e diarréia, podem apresentar significados psicológicos. "Uma das teorias mais populares a respeito das náuseas e vômitos é a de que se devem à rejeição da gravidez" (Maldonado, 1996, p. 36). A autora aponta, ainda que estas alterações correspondam tanto a mudanças hormonais como a influência de fatores psicológicos.

Segundo Soifer (1992), a sonolência na gravidez pode ser interpretada como uma res-posta a uma regressão, uma identificação fantasiada com o feto, em uma percepção inconsciente. Esta sonolência traz consequências na vida familiar, geralmente das multíparas. Alguns filhos, de forma inconsciente, percebem esta mudança e podem apresentar inquietação, dificuldade de sono e alimentação.

O aumento do apetite pode surgir, ocasionalmente com uma extrema voracidade que, para Maldonado (1996), corresponde a um mecanismo de autoproteção, no qual a mãe tenta compensar as "perdas" de suas reservas sugadas, sem parar, pelo feto.

A mulher também sofre mudanças no aspecto emocional e pode vivenciar a gravidez de maneiras distintas durante sua vida. Esta experiência pode variar dependendo da relação com o companheiro, outros filhos, situação de aborto, etc. A grávida também se torna mais sensível e emotiva, experimentando sentimentos e sensações novas, chorando e rindo com mais facilidade. Há uma elevação do nível de ansiedade por causa da ideação do parto e da mudança de vida com a chegada do bebê, gerando sentimentos ambivalentes como a vontade de tê-lo, paralelo com o desejo de estender a gestação adiando a necessidade de novas adaptações com a vinda da criança.

 

Imaginando um Novo Ser

Concomitante às transformações peculiares a esta fase estabelece-se uma relação imaginária com o feto (Fonseca, Magalhães, Papich, Dias & Schimidt, 2000). Segundo Debray (1998) o exercício imaginativo sobre o bebê gestado se apoia justamente, nas modificações corporais da gestante, o que avigora todas as fantasias anteriores à concepção.

Segundo Stern (1997), este mundo representacional desempenha um importante papel na determinação da natureza do relacionamento dos pais com o bebê. Para o autor convém pensar em dois mundos paralelos: o mundo externo real e o mundo das representações, imaginário e subjetivo, onde existem o bebê real no ventre ou nos braços da mãe e o bebê imaginado em sua mente.

Com isto, pode-se dizer que para a mãe, o ser que está sendo gerado não representa somente um embrião em desenvolvimento, este já é idealizado como um ente com todas as atribuições de um corpo completo, que Aulaginer (1990) considera como corpo imaginário. Segundo o autor a gestação deveria ser considerada em dois níveis: o biológico e o da relação de objeto. O plano biológico refere-se à lenta transformação das células do ser humano, enquanto que, na relação de objeto essa célula já é representada desde o principio pelo corpo imaginado que precede e acompanha a criança.

Para Lebovici (1987), na mente da grávida convivem três tipos de bebês: O edípico, o imaginário e o propriamente dito. O bebê edípico é considerado o mais inconsciente, e resulta da história pueril da mãe e constituído pelos seus desejos infantis de procriar com o pai e, posteriormente, reprimido com a resolução do Complexo de Édipo, chamado de o bebê da fantasia. O bebê imaginário deriva do desejo da maternidade e se constitui durante a gravidez, é o bebê das expectativas e dos sonhos diurnos da mãe. E o bebê propriamente dito é aquele em que a mãe verá após o nascimento.

É importante ressaltar ainda que, conforme afirma Stern (1997), o bebê imaginado não começa de fato na concepção, mas está presente em toda a história de vida de brincar de boneca e fantasiar que mãe apresenta em sua infância e adolescência. Para Battikha (2001) o bebê já está concebido no psiquismo de seus pais anterior à fecundação, no qual seu nome e seus atributos lhe são peculiares e constitui sua inserção na história familiar do casal.

Porém, é a partir do momento da confirmação da gestação que a mulher passa a "imaginar" com mais ênfase o seu bebê. Por exemplo, por volta dos quatro meses de gravidez existe uma transformação significativa na representação materna sobre seu bebê, período no qual ocorre, segundo o autor supracitado, "uma grande emoção por volta dos quatro meses, pois é quando a mãe começa a sentir o feto a se mover e a realidade da existência do futuro-bebê torna-se palpável e mais imperativa" (Battikha, 2001, p. 27).

Stern (1997) avança na discussão e aponta que entre o quarto e o sétimo mês de ges-tação há um crescimento acelerado na riqueza, quantidade e especificidade das representa-ções maternas a cerca do bebê que gera, onde esta elaboração poderia continuar até o nas-cimento. Porém o autor, apoiado em estudos a cerca do tema, revela que, a partir do oitavo mês de gravidez, existe uma espécie de "anulação" das representações relatadas pela grávi-da, onde as mesmas tornam-se menos claras e delineadas, menos ricas e específicas. Tal declínio no imaginar o filho pode estar ligado ao fato de as mães instintivamente, tentarem proteger a criança que irá nascer e a si mesmas, de uma potencial discordância excessiva entre o bebê real e o imaginário.

 

A Influência do Exame Ultrassonográfico na Representação Materna

O confronto entre bebê imaginário com o bebê real, via de regra, acontece após o nascimento, porém atualmente com o advento da ultrassonografia obstétrica, alguns aspectos concretos da criança podem ser reconhecidos durante a gestação.

A ultrassonografia é uma técnica de diagnóstico utilizada a mais de 30 anos, sem que tenha sido identificado nenhum risco para o feto e ou para a mãe. O exame ultrassonográfico constitui-se em um método não invasivo, sem nenhum contato direto com o espaço intrauteri-no, mas que permite resultados imediatos, tanto para o médico quanto para grávida. O exame esclarece a real idade gestacional, o sexo do bebê, a localização do feto, o diagnóstico de gestações múltiplas e a previsão ou o diagnóstico de malformações fetais (Gomes & Piccinini, 2005).

Como já foi apontado, Stern (1987) afirma que por volta dos quatro meses de gravidez existe um salto significativo na representação materna sobre o feto em gestação. Piontelli (2000) coloca que este salto costuma ser desencadeado por um exame ultrassonográfico, quando os pais podem ver a imagem do feto.

Para Grigoletti (2005) este exame pode se apresentar como uma ruptura no tempo, pois ele apresenta a imagem do bebê antes da hora do nascimento e ainda o apresenta como um corpo à parte do corpo da mãe. Assim, o exame ultrassonográfico também se revela como uma ferramenta importante na construção do conhecimento à cerca do desenvolvimento humano.

Com o advento da ultrassonografia, segundo estudos realizados por Piontelli (2000), as grávidas passaram a se sentir mais vulneráveis, pois o exame abre a possibilidade de en-trar em contato com problemas na gravidez antes do nascimento do bebê. Antes deste proce-dimento, as mulheres se sentiam mais suficientes para gerar e proteger o feto, e, atualmente, têm maior consciência da fragilidade de seus corpos. Com, isto, a gestante pode vivenciar o momento do exame com um alto grau de ansiedade, por temer os resultados e também por não compreender o que está sendo dito e mostrado pelo médico. Este fato pode trazer impli-cações tanto positivas quanto negativas sobre as representações da grávida relacionadas ao bebê que gestam.

A partir destas considerações teóricas, é evidente o fato de a gravidez ser um momento decisivo na vida de uma mulher e de como este momento pode influenciar no psiquismo da gestante; as representações geradas nesta fase, sobre o feto e com os dados concretos que o exame ultrassonográfico disponibiliza a respeito do bebê, a grávida pode, desde então, confrontar o bebê imaginário com o bebê real. Partindo destas discussões, este trabalho teve como objetivo analisar a influencia do exame ultrassonográfico na representação psíquica do bebê imaginado de três primigestas atendidas na Santa Casa de Misericórdia de Belém.

 

Método

O presente estudo foi pautado na abordagem qualitativa, uma vez que, segundo Den-zin e Lincoln (1994), trata-se de um método flexível quanto ao foco, que envolve uma aborda-gem interpretativa na qual o pesquisador estuda os objetos em seu setting natural, e tenta dar sentido ou interpretar fenômenos em termos das significações que os sujeitos trazem para eles.

Foram entrevistadas três mulheres primigestas, com idade entre 19 e 30 anos, em média com quatro meses de gestação, que não haviam realizado o exame ultrassonográfico e que não tiveram problemas na gestação (gravidez de risco). Foram escolhidas primigestas, por acreditar-se que as expectativas destas são mais intensas, por se tarar de uma experiência nunca vivenciada pela participante, assim acredita-se que o suporte para o imaginário ocorre com maior intensidade nestes casos.

As participantes foram selecionadas dentre mulheres atendidas na Santa Casa de Mi-sericórdia do Pará e realizaram o exame ultrassonográfico no Centro de Diagnose por Imagem do referido local. As entrevistas ocorreram primeiramente na residência da participante, quatro dias antes a realização do procedimento, seguida da observação do mesmo, sucedendo-se uma entrevista posterior, também com espaço de quatro dias.

No primeiro contato foram explicados os objetivos da pesquisa e foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de acordo com Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (CEP-CSS/UFPA) ao qual o projeto foi submetido.

O procedimento técnico utilizado na coleta de informações para o estudo foi a entrevista semiestruturada, o que possibilitou que as participantes falassem livremente sobre seus sentimentos e pensamentos dentro dos assuntos propostos no roteiro da entrevista. A utilização da entrevista semiestruturada baseia-se no que coloca Triviños (1992), em que a mesma valoriza a presença do investigador e oferece perspectivas possíveis para que o participante alcance a liberdade e a espontaneidade, necessárias, enriquecendo a investigação.

Como ocorre na clínica psicanalítica a escuta em pesquisa se faz presente, pois o pesquisador entra em contado com o "dizer" e utiliza este como uma via de acesso a informa-ções passíveis de análise e interpretações. Em paralelo com a situação analítica, na pesquisa ocorre como denominado por Macedo e Falcão (2005) uma "situação de comunicação" na qual circulam demandas nem sempre lógicas ou de fácil deciframento, mas as quais, em seu cerne, comunicam o desejo e a necessidade de serem escutadas.

Para o registro dos dados, as entrevistas foram posteriormente transcritas e as análi-ses divididas a partir de temas como: sentimentos de ambivalência em relação à gravidez; o exame ultrassonográfico como confirmação da gravidez; características físicas imaginadas pela gestante; características psicológicas imaginadas pela gestante; preferências quanto ao sexo do bebê; preocupações em relação ao bebê e sonhos com o bebê. Todas as participan-tes tiveram suas identidades preservadas, e para tanto foram apresentadas apenas as iniciais das mesmas.

 

Resultados

A seguir estão ordenados os resultados obtidos nas entrevistas com as grávidas participantes, e posterior análise. Os pontos observados para discussão foram os já acima citados. Cada um deles será abordado na sequencia, com intuito de serem mais bem explicitados.

 

Sentimentos de ambivalência em relação à gravidez

Foram observados, no relato das grávidas entrevistadas, sentimentos ambivalentes em relação à gestação. Todos foram referidos antes do exame ultrassonográfico. Após a submissão ao procedimento, não houve referencias quanto a este aspecto.

Pode-se observar que, ao mesmo tempo em que as grávidas demonstravam a satisfação de serem capaz de gerar um novo ser, estes sentimentos misturam-se às angústias e vivências individuais, como pode ser notado nos discursos abaixo, quando as mesmas fazem referência a sua gravidez:

Este é o primeiro e quem sabe o ultimo... porque eu to sofrendo muito, tenho muito enjoo e não to gostando muito de estar grávida, não (...) Eu pensei em tirar por que eu sou a única filha. (...) Agora, ta tudo bem. (G. V., 21 anos)

Ah! Quando eu descobri que estava grávida eu fiquei desesperada... eu até pensei em fazer besteira, mas graças a Deus que eu não fiz nada. (A. L., 30 anos)

Eu sempre quis engravidar, foi tudo, assim, um plano. Mas não podia porque tinha um cisto no ovário (...) Eu tinha medo do cisto, de alguma forma fazer mal para a minha gravidez, ao, eu não acreditava que estava grávida. (D. C., 19 anos)

Estes relatos estão condizentes com o que Soifer (1992) e Szejer (1999) apontam e seus estudos que, em geral, as mulheres quando confirmam a gravidez, apresentam sentimen-tos ambivalentes que podem ocasionar alguns conflitos. Tais sentimentos podem ser interpre-tados como rejeição à gravidez, e consequentemente ao bebê.

Para Maldonado (1996), mesmo uma gravidez não planejada, que em geral, traz prin-cipalmente sentimentos de rejeição, a reação inicial não se cristaliza para sempre e uma atitu-de inicial de rejeição pode dar lugar a um comportamento predominante de aceitação e vice-versa.

Duas das grávidas entrevistadas relataram o desejo de realizar um aborto por se tratar, segundo as mesmas, de uma gravidez não planejada e não desejada, no início. Porém, após a decisão de não abortar o discurso revela arrependimento, culpa e conciliação.

Ah! Agora eu to feliz, to aceitando mais, né?! Tá todo mundo feliz em casa, esperando o neném. Tá tudo bem (...) Espero que ele venha para trazer muita felicidade pra gen-te, por que ele não era esperado, mas agora ele já é bastante. (G. V., 21 anos)

Meu Deus do céu, foi besteira mesmo... eu não gosto nem de lembrar (...) eu nem penso, nem me imagino mais sem minha barriga! (A. L., 30 anos).

Para Maldonado (1996) muitas vezes, o desejo de abortar pode aparecer dissimulado por um mecanismo de formação reativa, como, por exemplo, sentimentos exagerados de autoproteção e cuidados, para proteção do feto.

Porém, segundo Winnicott (1978), desde a gravidez a mãe precisa adaptar-se às ne-cessidades iniciais do bebê e para tanto, ocorre um aumento em seu estado geral de sensibilidade para prepará-la para a chegada de um novo ser.

 

O exame ultrassonográfico como confirmação da gravidez

No momento anterior ao exame ultrassonográfico uma participante referiu, apesar de já estar grávida, não se acreditar nesta condição, pois não observava, em seu corpo, os as-pectos e as mudanças físicas que lhe proporcionariam este sentimento.

Eu olhava no espelho e não via barriga. Ai eu pensava "Mentira dessa médica, eu não estou grávida". Mas depois foi crescendo mais um pouco e eu fui acreditando. (D. C., 19 anos)

Eu sei que eu to grávida, mas é como se não fosse verdade, eu penso muito nisso, mas é como se ainda não fosse de verdade. (G. V., 21 anos)

Ao serem indagadas, após o exame, de como se sentiam em relação à gravidez as participantes relataram:

Agora eu me sinto grávida sim, ver o bebê no exame fez com que eu acreditasse mais. Era, assim, uma prova né (...) quando eu cheguei em casa que eu vi o rosto dele na foto, eu pensei, 'eu estou grávida de verdade, olha a foto dele'. (D. C., 19 anos)

Antes parecia que eu nem estava grávida, sabe como é, foi sem eu planejar, no início foi aquele choque, ai quando eu vi a foto parece que tudo mudou. Eu estou até so-nhando com ela. (G. V., 21 anos)

Faz-se importante notar que estas falas tiveram apenas oito dias de tempo separando-as, período no qual não ocorreram mudanças físicas significativas nas gestantes. Estes relatos corroboram a colocação de Fonseca et al. (2000), que considera ser muito comum no início da gestação, após a realização do exame ultrassonográfico, as mães relatarem que, só após verem o bebê no monitor, ou sua foto no exame, sentem-se realmente grávidas. Stern (1997) afirma que nos quatro meses de gestação existe um notável avanço nas representações maternas em relação ao seu bebê e esse avanço importante, geralmente é desencadeado pelo exame ultrassonográfico, quando os pais veem a imagem do feto.

 

Características físicas imaginadas para o bebê antes e após o exame ultrassonográfico

Quanto aos aspectos físicos imaginados pelas mães para o bebê esperado por elas, todas as entrevistadas referiram-se a características como: cor dos olhos, cor e aspecto dos cabelos e da pele, tamanho, peso e sexo. Como este ultimo aspecto, apresenta pontos importantes a serem discutidos durante o processo imaginativo na gravidez, será tratado mais detalhadamente em outro tópico. Também constaram os relatos relacionados a semelhanças do bebê com alguém da família, geralmente o marido ou elas mesmas.

Eu penso só na cor mesmo, bem moreninho, cabelinho bem enroladinho, pequenini-nho. Acho que vai puxar pro meu marido. (G. V., 21 anos)

Eu acho que ela é branquinha e cabeluda. Acho que ela vai ser bem cabeluda, vai ser bem pequena por que quando eu nasci eu era bem pequena. (D. C., 19 anos)

Eu imagino, como eu queria que fosse... (risos) bem moreninho, por que o pai é more-no e eu também, com os olhos pequenos, igual ao dele, grandão, cabelo bem pretinho, muito sorridente. Eu penso nos olhos, nos olhos pequenos por que eu acho bonito. Eu sempre formo a figura na minha cabeça, sorrindo assim. (A. L., 30 anos)

Após o exame, a percepção de algumas destas características mudou e as mesmas passaram a ser descritas de uma forma mais detalhada:

Esse exame mudou tudo o que eu pensava, por que eu sempre pensei nele como uma menina. Mas eu acho que ele ainda vai ser branquinho, como eu. Eu acho que agora vai ser maior, por que os meninos são maiores né?! Mas vai ter o cabelo e olho bem pretinho. (D. C., 19 anos)

Mas eu fico imaginando ela, os olhinhos, vão ser bem "espichadinhos", igual o meu, bem morena [...] todas as pessoas estão dizendo que ela é parecida comigo. Minha mamãe disse "É a cara da G. quando era pequena". (G. V., 21 anos)

Mesmo com o bebê imaginário, sendo considerado como um movimento imaginativo, oriundo das fantasias conscientes e inconscientes das grávidas, pode-se notar que suas ca-racterísticas estão pautadas no que é familiar às mulheres entrevistadas. O fato de atribuir as características físicas do marido ou de si próprias, pode estar relacionado à possibilidade de que, ao imaginar o bebê a partir das peculiaridades que lhe são comuns, a mãe insere a crian-ça em uma linhagem, que permite reconhecê-la como pertencendo ao mesmo grupo familiar (Szejer & Stewart, 1997).

Além do exposto, segundo Debray (1988), mesmo um bebê que já está no psiquismo da mãe, delineado entre as figuras primitivas de seu mundo interno, pode sofrer diversas modificações tanto físicas quanto psicológicas durante a gravidez a partir de informações como o sexo, por exemplo, que são repassadas em no momento do exame ultrassonográfico.

 

Características psicológicas imaginadas para o bebê antes e após o exame ultrassonográfico

O relato das mães entrevistadas apontava para a construção da imagem psicológica do bebê, de acordo com as suas percepções e impressões baseadas nos movimentos fetais (Brazelton & Cramer, 1992).

Eu acho que vai ser muito agitado, por que começou a mexer quando eu estava com três meses, e, do quinto mês pra cá mexe muito, mexe bastante. Eu acho que ele vai ser muito danado. (A. L., 30 anos)

Mas, estas ideias também podem estar pautadas nos desejos e necessidades narcisistas das mães (Brazelton & Cramer, 1992), como mostram os relatos abaixo.

Mas eu quero que ele seja uma criança boazinha pra tomar conta, por que como eu vou para o ultimo ano eu ainda preciso estudar, ai a minha mãe vai me ajudar, ai eu não quero que dê muito trabalho. (A. L., 30 anos)

Eu queria que ela fosse assim, calma, entender quando a gente fale, e o pai dela é muito calmo... a gente fala e ele nem liga. (G. V., 21 anos)

O jeito de ser imaginado além de estar relacionado às percepções concretas dos mo-vimentos do bebê, também estão ligados aos "sinais", como a representação do nome e, principalmente, à possibilidade de fazer com que esse filho assemelhe-se, tenha um traço comum a ela e/ou a seu companheiro.

Ela vai se chamar A. M., A. porque é o nome da mamãe e M. por que é uma pessoa doce, calma e é assim que eu quero que ela seja. (G. V., 21 anos)

Eu queria que fosse um pouco de cada, porque eu sou muito agita e o pai dela é muito calmo, então eu não queria que ela fosse tão agitada como eu. Tomara que venha um pouco dela e um pouco de mim também. (G. V., 21 anos)

Estas expectativas parecem estar muito ligadas à transgeracionalidade, uma vez que muitas mães expressassem suas crenças de que o bebê seguiria "o jeito" de um ou dos dois genitores. O ato de desejar que um filho apresente o "jeito" de um dos genitores pode ter ori-gens numa mescla de razões conscientes e inconscientes e dentre as quais está o desejo de garantir a própria continuidade e de se auto- duplicar (Brazelton & Cramer, 1992; Maldonado, 1997).

Todas as mães referiram que mudaram de opinião quanto às características psicológi-cas que imaginavam para seu bebê, muitas ligadas àquelas que julgam ser próprias ao sexo do bebê.

Com certeza, o jeito que eu imaginava que ela ia ser mudou, olha só pra essa foto, acho que ela vai ser muito metida (risos), e também acho que ela via ser muito danadi-nha, porque ela já fica pulando na minha barriga. (G. V., 21 anos)

Eu espero, na verdade que ela seja mais tranquila. Tranquila assim, como eu digo, não é que ela seja muito quietinha, por que eu não quero que ela seja quietinha, parece que é doente. Eu não quero menina tola, chorona, acostumada no colo aquela coisa assim. (A. L., 30 anos)

Com certeza mudou, acho que ele vai ser bem danado. Como eu te disse eu tenho a impressão que ele ta se mexendo mais agora, acho que ele não vai ser muito chorão como eu, pelo contrário acho que vai ser bem briguento, quero ver quando estiver na escola, acho que não vai levar desaforo pra casa. To sentindo que ele vai me dar tra-balho (risos), por que menino é assim né?! Eu não tenho irmãos, mas eu vejo os filhos das minhas vizinhas eles são bem danadinhos. (D. C., 19 anos)

Porém, tanto as características físicas, quanto psicológicas foram ressaltadas e mais detalhadas após o exame ultrassonográfico, confirmando o que diz a literatura, de que o exa-me marca um processo complexo para simbolizar e para imaginar o bebê por nascer. A situa-ção de visualizar o feto no monitor do aparelho (que também pode ser descrita pelo médico) funciona como um suporte para o imaginário, com a gestante redescobrindo este, o que pode estabelecer uma nova ligação com o ser que se mostra distinto dela (Grigoletti, 2005).

 

Preferência quanto o sexo do bebê e suas nuances antes e após o exame

É nesta categoria que há uma evidencia mais significativa quando se trata da confron-tação do bebê imaginário, com real, que está sendo gerado no útero da grávida, pois ela pode ser fonte de alívio, frustrações ou resignação.

Todas as gestantes entrevistadas relataram ter preferência em relação ao sexo do be-bê. Uma desejava que seu filho fosse do sexo masculino e duas que fosse do sexo feminino, todas justificaram suas preferências. A manifestação pela preferência ao sexo feminino pode ser uma forma de identificação direta com o bebê.

Eu quero menina. Menina a gente pode ajeitar, cuidar, sair toda bonitinha, menino não... menina é mais com a gente. Menina é mais cuidadinha, a gente tem um cuidado especial. (G. V., 21 anos)

Eu quero uma menina por que eu acho mais meiga, mais calma. Eu não gosto de me-nino. Eu acho que menino é muito danado e a minha filha vai ser bem meiga. (D. C., 19 anos)

Eu quero que seja menino. (...) Por que... a minha irmã já teve filho e ela é daquele tipo que só teve filho e nunca tomou conta. Quem tomou conta foi eu e a mamãe. Ai sempre tomei conta de menina, (...), e eu quero ter um menino, por que não tem homem em casa. (A. L., 30 anos)

Apenas para uma das entrevistadas o sexo correspondeu à preferência da gestante entrevistada.

Depois do ultrassom eu fiquei feliz por que eu queria uma menina e depois que eu saí de lá a mamãe ligou e ela espalhou pra família toda. (G. V., 21 anos)

A não correspondência do sexo do bebê com as preferências de uma das gestantes mostrou-se ser uma fonte de grande frustração pra ela.

Eu fiquei muito triste por que eu queria muito uma menina, e no exame a médica disse que era um menino, eu passei estes dias pensando nisso. (D. C., 19 anos)

Uma gestante comentou ter ficado triste, porém mostrou-se resignada quanto ao sexo do bebê após o exame ultrassonográfico. É possível que essa gestante tenha usado a resig-nação como forma de defesa contra a decepção.

Ah! Fiquei triste, não vou mentir. Eu fiquei, eu fui aceitar no outro dia. No outro dia eu fiquei pensando: "Que isso, eu não posso fazer isso, é minha filha, eu vou rejeitar mi-nha filha, eu rejeitar minha filha?!" eu rejeitar... logo a mãe, né?! Agora eu to... eu quero tudo rosa. (A. L., 30 anos)

Conforme Debray (1988), a descoberta do sexo do bebê no período da gravidez pode constituir-se em uma fonte de grande decepção para a mãe e trazer consequências para a futura relação mãe/bebê. Segundo Hornstein (1994, conforme citado por Piccinini, Ferrari, Levandowski, Lopes & Nardi 2003) o sexo é um dos limites impostos pelo corpo do bebê ao processo imaginativo materno e a influência do exame ultrassonográfico é observada com grande ênfase, uma vez que a grande maioria das grávidas espera o exame com o intuito de conhecer o sexo do bebê uma vez que este confirmará ou não seu desejo. O sexo também é apontado de forma privilegiada na montagem do bebê imaginário.

 

Preocupações em relação ao seu bebê antes e após o exame ultrassonográfico

As entrevistadas relataram diversas preocupações em ligadas às condições conside-radas saudáveis ou não para seu bebê.

Eu tinha uma prima que morava comigo, que estava grávida e eu já estava também ai ela apareceu um dia sangrando (...). Só que ela nem ligava, (...) nem ligou pro sangra-mento e eu ficava com medo de o neném estar morto dentro dela. (...). Depois eu fiquei com medo, um dia eu estava andando na rua e eu senti a minha calcinha molhada. Eu pensei logo que fosse sangue e fui bem rápido pra casa. Quando eu cheguei e olhei era um líquido. Na minha consulta com a médica eu contei pra ela e ela disse que isso é normal, é da gravidez mesmo. (D. C., 19 anos)

Uma entrevistada relatou o temor de sofrer um aborto espontâneo. E todas citaram o medo de a criança nascer com algum tipo de deficiência, seja por ter casos na família ou por seus bebês não corresponderem ao desejo de perfeição atribuído ao filho por elas mesmas ou aceitação, muitas vezes impostos pela sociedade. Para Maldonado (1997) é universal o temor de grávidas em ter um filho com alguma deficiência física, uma vez que o mesmo é carregado de investimentos narcísicos.

Eu só tenho medo de ele nascer com alguma deficiência, por que eu tenho uma tia e uma prima que tem filho deficiente. Eu tenho muito medo, mas o que vier eu vou acei-tar. (D. C., 19 anos)

Às vezes [...]. É porque na minha família ainda não teve ninguém que nasceu assim com algum problema ou alguma deficiência né?! Mas a gente sempre fica preocupada quando vem um caso. (G. V., 21 anos)

Ah! Eu morro de medo! Penso em muitas coisas, de vir deficiente. Eu acho que não pode ver essas coisas no exame né?! Não dá pra ver dentro (aponta para a própria ca-beça), só fisicamente e se estiver tudo certinho né?! (A. L., 30 anos)

Ocorreu também o comentário de preocupações referentes à situação financeira do casal. Estas inquietações podem estar indiretamente ligadas à saúde e ao bem estar do bebê, pois falta de dinheiro pode significar falta de recursos para garantir boa alimentação, saúde para a criança.

Acho que todo mundo tem, as respeito das finanças, porque bebê é sempre um gasto a mais. (G. V., 21 anos)

Eu fico com muito medo, mais pela criança, de faltarem as coisas pra a criança. Mas ai quando eu conversei com ele, graças a Deus que ele... ele falou que não. Ele falou, pô, nós somos adultos, temos que assumir. Temos que dar um jeito, morrer de fome é que não vai. (A. L., 30 anos)

Esta preocupação pode estar ligada ao que é apontado por Stern (1997), de que a mãe é a responsável pelas tarefas de manter o bebe vivo e promover seu desenvolvimento psíquico-afetivo, e a função do pai é a de proteger a mãe fisicamente, prover suas necessida-des vitais. No medo que a matriz de apoio possa falhar podem estar também projetados seus medos de falhar como mãe.

Uma entrevistada relatou também estar muito preocupada com o momento do parto:

Eu tenho é medo do parto, de ter muita dor, de morrer. (A. L., 30 anos)

Todas as entrevistadas citaram que ocorreram mudanças em relação a tais preocupa-ções, referindo-se estarem mais tranquilizadas após o exame.

Mudou, depois do exame, parece que o único fato que me deixou meio chateada foi que não era menina, mas ele está bem de saúde e parece que não tem nenhuma defi-ciência. [...]. Nisso eu fiquei mais tranquila, o exame me tranquilizou, eu estou espe-rando agora o outro exame. (D. C., 19 anos)

Sabe que eu nem to pensando mais nisso! Acho que o exame me deixou mais tranqui-la. (G. V., 21 anos)

Ah! Eu fiquei mais tranquila né... parece que tá tudo normal. Parece que tá né?! (A. L., 30 anos)

Porém, a despreocupação desta ultima grávida refere-se somente a problemas físicos. Em outro momento da entrevista ela comenta:

To sim, preocupada com a saúde, com o nascimento, se tá tudo bem né? To morrendo de medo... meu Deus do Céu, não vou nem te falar. De ter uma doença mental séria, alguma coisa. O exame me tranquilizou em relação a coisas físicas, mas de problemas mentais não. Eu tenho muito medo. (A. L., 30 anos)

Para as mães entrevistadas a gravidez configura-se como uma vivência nunca antes experimentada e que provoca uma reorganização de seus investimentos narcísicos, pulsionais e defensivos. Assim, como aponta Grigoletti (2005) se, por um lado, os pais aproximam-se da concretização de suas mais caras fantasias, por outro, também se deparam com sua vulnerabilidade frente ao novo ser. Mesmo tendo algumas de suas preocupações apaziguadas diante do que é visto na tela, outras "não reveladas" podem surgir como fonte de angústia.

 

Sonhos com o bebê

Os sonhos surgiram no relato das entrevistadas, após a realização do exame e mos-traram-se um elemento importante para retratar a intensidade de sentimentos suscitada pelo exame. Surgiu, através deles, o temor de duas das participantes de não serem suficientemente capazes de cuidar de seus filhos. Nos sonhos os seus bebês aparecem doentes, chorando ou ainda uma das mães buscando ajuda em um parente próximo.

Eu tive um sonho com ela. Eu sonhei que eu estava na rua ai eu escutava o choro dela e eu entrava em casa e ela estava sorrindo. Ai eu dava o peito pra ela, mas eu pegava nela e ela estava ardendo em febre e eu sai correndo pra chama a minha tia. (D. C., 19 anos)

Eu sonhei com ele antes de ontem, ele estava chorando muito e eu fiquei preocupada, ela estava chorando porque estava doente, mas era menina. No ultimo sonho era me-nina. Ai e disse: mãe, mãe, eu sonhei que o neném estava chorando muito, mas era menina. (A. L., 30 anos)

Eu sonhei só esse com ela ontem, que ela chegava com o pai dela, ai eu olhava na carinha dela tão bonitinha, com os olhos claros, cabelo liso e preto, bem moreninha. Ela devia ter uns dois meses, já tava bem fofinha, mas foi só esse até agora. Acho que eu sonhei depois de imaginar como ela seria. (G. V., 21 anos)

Esta ultima fala apresenta o único sonho da entrevistada com sua filha, que a mostra-va nos braços do pai e relata que o mesmo ocorreu só após tentar imaginar seu bebê. Para Caron, Fonseca & Kompinsky (2000) pode ocorrer uma sobrecarga emocional incitada no psi-quismo materno diante das imagens do exame ultrassonográfico que apresentam o bebê à mãe de forma rápida e clara. Este momento levam as gestantes a ficarem com certa dificulda-de de explicar de forma organizada o que acabaram de experienciar, sendo esta reação de caráter temporário e natural. Assim estas manifestações podem estar apresentando-se através dos sonhos das participantes, como uma necessidade de organização a intensidade dos sen-timentos vivenciados no exame.

 

Considerações Finais

O trabalho imaginativo aproxima a gestante do futuro bebê, tornando conhecido esse novo ser e favorecendo sua vinculação ao mesmo (Brazelton & Cramer, 1992). Assim as mesmas constroem, durante a gravidez, uma imagem do futuro bebê, definindo-o em um cor-po, o que auxilia a criar um espaço para a criança que irá nascer (Aulaginer, 1990). Este fe-nômeno encontra-se muito presente na narrativa das grávidas, uma vez que todas as entrevis-tadas relataram já terem escolhido um nome e imaginavam características, principalmente físicas, para seus filhos. Aparece também a necessidade da gestante de inserir o futuro bebê em uma ascendência, no momento em que o designam como semelhante a alguém da família ou ao casal (Szejer & Stewart, 1997; Battikha, 2001). Elemento muito incorporado à fala das entrevistadas. Duas delas desejavam que seus bebês possuíssem características que consi-deravam belas no respectivo companheiro, e todas se referiram a características de si pró-prias.

Os achados deste trabalho mostram que a ultrassonografia introduz uma nova tempo-ralidade à gravidez, pois o exame inscreve o bebê no tempo: desde já ele é um sujeito sexual, mortal, distinto de sua mãe. Após o resultado do exame, a mulher organiza-se para a chegada de um novo ser com sexo e, algumas vezes, com o nome já definido. Não se referem mais ao bebê como um ser indefinido, mas aludem a "ela" ou a "ele".

O exame ainda se configura como um ponto de alívio em relação ao bem estar do be-bê. Todas as entrevistadas relaram mais segurança em relação à saúde de seu filho após a realização do mesmo.

Todas as grávidas entrevistadas estão tentando, ao seu modo, adaptar-se a realidade colocada pelo exame ultrassonográfico principalmente em relação ao sexo do bebê. No caso de duas grávidas entrevistadas o sexo do bebê real não coincidiu com o do bebê imaginário, forçando-as a se acomodarem a realidade fornecida pela imagem do exame.

Os sonhos foram um ponto em comum no relato das participantes. Todas falaram es-pontaneamente acerca dos mesmos, revelando-se um fator importante para a construção da imagem da criança. Revelaram também o medo de duas das grávidas entrevistadas de não conseguirem dispensar os cuidados necessários para o bem-estar do bebê, ou ainda de não possuírem filhos perfeitos, de possuírem filhos doentes.

As mudanças relatadas também podem estar relacionadas com o que afirma Winnicott (1978) de que a mãe precisa adaptar-se às necessidades iniciais do bebê e para tanto ocorre um aumento em seu estado geral de sensibilidade. O exame ultrassonográfico pode se mostra como um referencial para o aumento desta sensibilidade, onde as mães relatam se sentirem "mais grávidas" e reforçando assim, todas as condutas de cuidados ligadas a criança.

Pode-se destacar a importância do exame ultrassonográfico como um "mediador" do primeiro contato visual da mãe com a imagem de seu filho, mais próximo do real. Consideran-do os aspectos observados no discurso das entrevistadas, pode-se dizer que a ultrassonografia possibilita um espaço para a gestante lidar com sua ambivalência, aproxima-ção/distanciamento e confrontação entre o filho imaginário e o filho real.

Portanto, este estudo aponta o exame ultrassonográfico como sendo um momento muito importante para a gestante e para a relação materno-fetal. Assim sendo, diante da popularização da ultrassonografia como um potente recurso do pré-natal, é necessário atentar também para os aspectos psicológicos desse exame e para seu potencial de afetar a relação que está se formando entre a grávida e o bebê.

Com isto, um dos intuitos desta pesquisa é instigar a produção de novos conhecimentos sobre as expectativas de gestantes em relação ao bebê, bem como chamar a atenção para a importância do exame ultrassonográfico como suporte para o imaginário criado pelas grávidas em relação ao bebê que gestam, sendo importante a promoção atividades de prevenção e intervenção visando a melhoria da qualidade da relação mãe-bebê.

Outro aspecto a ser apontado é a importância do acompanhamento psicológico durante a gravidez e/ou a possibilidade de implantação de uma equipe interdisciplinar para acompanhamento da gestante para discussão das condições emocionais da mesma, o que nem sempre é levado em consideração durante o pré-natal. Uma sugestão relevante apontada por Grigoletti (2005), e que pode ser facilitada pela condição de mais profissionais discutindo sobre este processo, seria a observação da comunicação não verbal diante da tela de vídeo e a interação com o profissional por parte das grávidas. Este aspecto permitiria ao profissional prosseguir ou retroceder quanto à descrição das características do bebê, levando a facilitação do o espaço dialético da mãe na relação do filho imaginário com o filho real.

 

Referências

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Recebido em 18 de março de 2010
Aceito em 23 de abril de 2011
Revisado em 21 de outubro de 2011

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