SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 issue3Family, ties and psychic sufferingSome considerations about the subject and time from Borges short story The Other author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.3 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Mal-estar contemporâneo e conflitos entre vizinhos

 

Contemporary discontent and conflicts between neighbors

 

Malestar contemporáneo y conflictos entre vecinos

 

Malaise contemporain et les conflits entre voisins

 

 

Lidia LevyI; Eva Gertrudes JonathanII; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CarvalhoIII; Humberto DallaIV

IPsicóloga. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Psicanalista (SPID e SPCRJ). End: R. Gomes Carneiro 65/501, Ipanema. CEP: 22071-110 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: llevv@puc-rio.br
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Membro fundador do Grupo Interdisciplinar de Mediação de Conflitos do Núcleo de Práticas Jurídicas da PUC-Rio. End.: R. Sambaiba 478/401, Leblon. CEP: 22450-140 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: evajonat@puc-rio.br
IIIJuiz de Direito no Rio de Janeiro. Doutor em Direito pela UERJ. Mestre em Direito pela PUC-Rio. Pós-doutor pelo Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra. Coordenador Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA. End: Av. Linneo de Paula Machado 896/202, Jardim Botânico. CEP 22.470-040 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: lgc@centroin.com.br / grandinetti@tj.rj.gov.br
IVPromotor de Justiça Titular junto ao IV Juizado Especial Criminal da Capital, Rio de Janeiro. Doutor em Direito pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil, UERJ e UNESA. E-mail: humbertodalla@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como foco os conflitos entre vizinhos, fato que crescentemente vem sendo observado na vida urbana das grandes cidades brasileiras. Partindo de uma discussão teórica sobre o mal-estar contemporâneo, que se apresenta marcado por intolerância e violência como formas de enfrentar dificuldades e impasses interpessoais, o presente estudo tem por objetivo revelar como as situações conflituosas são vivenciadas por moradores vizinhos. O trabalho de campo foi realizado no IV Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro, e a análise de conteúdo dos registros de ocorrência das queixas prestadas na delegacia pelos envolvidos em processos penais mostrou que os conflitos de vizinhança se caracterizavam principalmente por três aspectos: uma reação desproporcional ao fato do desentendimento, a presença de sociabilidade esgarçada nos laços comunitários, e um autocentramento nas relações interpessoais. Constatou-se, também, que o Poder Judiciário era convocado a intervir em questões até então consideradas do âmbito privado e a dirimir conflitos cujas tensões eram, basicamente, ocasionadas pela intolerância. Verificou-se, ainda, a importância de criar espaços de diálogo em que os envolvidos em uma controvérsia possam expor suas diferenças e juntos elaborar alternativas de solução do litígio. Neste sentido, sugere-se que os desentendimentos entre vizinhos possam ser tratados de maneira mais adequada com um trabalho de mediação de conflitos, de natureza transdisciplinar.

Palavras-chave: Conflitos de vizinhança, intolerância, mal-estar, Poder Judiciário, mediação de conflitos.


ABSTRACT

This article centers on conflicts between neighbors, a fact that has increasingly been observed in the urban life of big Brazilian cities. The goal of the present study is to reveal how neighbors experience conflictive situations and it starts out with a discussion over contemporary discontent, which is marked by intolerance and violence as ways of coping with interpersonal problems and impasses. Fieldwork was carried out at the IV Criminal Claims Court, at Rio de Janeiro and content analysis was performed in the complains recorded at the police station by those involved in criminal processes. Such analysis revealed that mainly three aspects characterized neighborhood conflicts: an overreaction to the cause of misunderstanding; the presence of broken sociability of community bonds; and self-centered interpersonal relationships. It was also verified that the Judiciary was asked to intervene in questions that until then were considered to be of a private nature, and to settle conflicts whose tensions were basically caused by intolerance. Further, the importance of creating spaces of dialogue was verified, so that those involved in a controversy might present their differences and together engage in constructing alternatives to the solution of the litigation. Thus, it is suggested that conflict mediation, a work whose nature is transdisciplinary, could more appropriately deal with misunderstandings between neighbors.

Keywords: Neighborhood conflicts, intolerance, discontent, Judiciary, conflict mediation.


RESUMEN

Este artículo enfoca los conflictos entre vecinos, hecho que se ha ido observando de manera creciente en la vida urbana de las grandes ciudades brasileñas. Partiendo de una discusión teórica sobre el malestar contemporáneo, que aparece marcado por la intolerancia y la violencia como formas de enfrentar las dificultades y los callejones sin salida interpersonales, el presente estudio tiene como objetivo revelar como las situaciones conflictivas son vividas por vecinos. El trabajo de campo fue realizado en el IV Juzgado Especial Criminal de Rio de Janeiro, y el análisis del contenido de los registros de ocurrencia de las quejas presentadas en la comisaría por los que están involucrados en procesos penales mostró que los conflictos de vecindad se caracterizan principalmente por tres aspectos: una reacción desproporcionada en relación al desacuerdo, la presencia de una sociabilidad reducida en los vínculos comunitarios, e individuos autocentrados en sus relaciones interpersonales. Se constató también que el Poder Judicial se convocaba para intervenir en asuntos hasta ahora considerados del ámbito privado y resolver conflictos cuyas tensiones eran, básicamente, ocasionadas por la intolerancia. Se verificó también la importancia de crear espacios de dialogo en que los involucrados en una controversia puedan exponer sus diferencias y elaborar juntos alternativas de solución al litigio. En este sentido, se sugiere que los desacuerdos entre vecinos puedan ser tratados de manera más adecuada con un trabajo de mediación de los litigios, de naturaleza transdisciplinaria.

Palabras-clave: Conflictos de vecindad, intolerancia, malestar, Poder Judicial, mediación de conflictos.


RÉSUMÉ

Cet article a pour objet les conflits entre voisins, conflits qui s'observent de manière croissante dans le milieu urbain des grandes villes brésiliennes. Sur la base d'une discussion théorique sur le mal- être contemporain, marqué par l'intolérance et la violence comme manières d'affronter les difficultés et les impasses interpersonnelles, la présente étude veut révéler comment les situations conflictuelles sont vécues par les voisins. Le travail sur le terrain a été réalisé auprès du IV e Tribunal Criminel Spécial de Rio de Janeiro, et l'analyse du contenu des registres concernant les cas de plaintes déposées au commissariat par les personnes mêlées à des procès pénaux a révélé que les conflits de voisinage sont principalement caractérisés par trois aspects : une réaction disproportionnée par rapport au sujet du litige, la présence d'une sociabilité distendue dans les liens communautaires et des individus auto-centrés dans leurs relations interpersonnelles. Il a été constaté également que le Pouvoir Judiciaire était requis pour intervenir sur des questions considérées jusqu'à présent comme appartenant à la sphère du privé et résoudre des conflits dont les tensions étaient surtout causées par l'intolérance. Limportance de créer des espaces de dialogue ou les intervenants des controverses puissent exposer leurs différences et élaborer ensemble des alternatives de solution du litige a été mise en avant. Pour abonder dans ce sens, les mésententes entre voisins pourraient être traitées de manière plus adéquate par un travail de médiation des conflits dont la nature serait transdisciplinaire.

Mots-clés: Conflits de voisinage, intolérance, mal-être, Pouvoir Judiciaire, médiation des conflits.


 

 

 Introdução

Pretende-se examinar, neste trabalho, a forma de resolução judicial de um dos problemas que está caracterizando a vida urbana nas grandes cidades brasileiras, em número cada vez mais crescente: os conflitos entre vizinhos.

Os conflitos de vizinhança podem implicar dois tipos de soluções judiciais diferentes e que revelam graus de seriedade também diferentes: (1) Podem ensejar a realização de obras ou o pagamento de indenizações e, neste caso, implicam a intervenção da jurisdição cível (varas cíveis ou juizados cíveis), menos grave e menos interventiva; e (2) Podem ensejar a aplicação de uma pena criminal (prisão, multa, prestação de serviços), implicando a intervenção da jurisdição penal (juizados criminais ou, em hipóteses remotas mais graves, da vara criminal), cuidando-se de uma reação mais severa do ordenamento jurídico.

O que, desde logo, se deve sublinhar é que a intervenção da jurisdição criminal é sempre extraordinária, em todos os casos de conflitos, mormente os de vizinhança, em razão da natureza excepcional e grave do ramo do direito envolvido: o Direito Penal. Este é reservado para os desajustes mais graves e que mais ofendam o senso de civilidade de dada sociedade.

O que se tem percebido, ao contrário, especialmente na área em que a pesquisa foi realizada, é que os vizinhos lançam mão dos instrumentos mais gravosos, como o Direito Penal, para resolver um problema que, no fundo, é comunitário e que poderia ser resolvido pela própria comunidade de vizinhos, ou, em casos mais difíceis, pela jurisdição cível. Essa opção mais gravosa, por si só, já revela certa patologia social que merece ser estudada de modo interdisciplinar.

O presente estudo foi realizado no IV Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro, responsável pelo processo e julgamento das infrações consideradas de menor potencial ofensivo1 praticadas nos bairros mais nobres da cidade, como São Conrado, Gávea, Leblon, Ipanema, Copacabana, Leme, Jardim Botânico, Lagoa e Humaitá, o que inclui várias favelas densamente habitadas e violentas como Rocinha, Vidigal, Pavão, Pavãozinho, Chapéu Mangueira e Tabajaras.

Desde logo, é preciso bem frisar que não se verificou, no IV Juizado, nenhum caso de vizinhança envolvendo as comunidades de baixa renda acima referidas, o que demandaria outro estudo,também interdisciplinar, que ultrapassa o âmbito do presente artigo.

 

Mal-estar Contemporâneo

O sujeito na contemporaneidade encontra dificuldades cada vez maiores para resolver seus impasses e vem recorrendo à Justiça em busca de soluções para seus conflitos. Constata- se que o Poder Judiciário é convocado a responder questões até então consideradas do âmbito privado e a dirimir conflitos cujas tensões são, basicamente, ocasionadas pela intolerância. Assim é que, se o Direito deveria ser o último recurso utilizado em tais situações, muitas vezes é o primeiro a ser acionado.

Observa-se que, em uma sociedade pós-hierárquica, o aumento da demanda feita à Justiça como principal alternativa de resolução dos conflitos aponta para a dificuldade dos sujeitos de resgatarem sua responsabilidade e assumirem sua participação na situação da qual se queixam, ou seja, nos fatos que originaram o processo. Vale lembrar que a contemporaneidade rompeu a estrutura de verticalização, até então característica de um poder patriarcal estabelecido em nome de certa proteção. Enriquez (2001) comenta que os homens têm necessidade de se sentirem protegidos por uma autoridade tutelar suficientemente poderosa, com a qual possam se identificar. A partir da queda do patriarcado, diante da ausência de uma autoridade inquestionável e da multiplicação dos polos de poder, a incerteza e o sentimento de desamparo tendem a aumentar e os sujeitos, em vez de construir laços sociais horizontais, buscam restaurar o pai ideal. Birman (2006) nos lembra que a modernidade ocidental implicou na perda da figura do legislador absoluto, sendo este substituído pela mul-tiplicidade de cidadãos e pela diversidade de poderes. Tal perda estaria no fundamento do mal-estar da modernidade, produzindo o desamparo e a nostalgia do pai como antídoto ilusório para o desamparo.

Por outro lado, Bauman (1998) argumenta que a história humana é marcada profundamente pela oscilação pendular entre os valores fundamentais da liberdade e da segurança. Desse modo, o mal-estar contemporâneo advém de uma espécie de liberdade na busca de prazer individual que suporta uma segurança muito pequena A partir desse prisma, pode-se analisar a dinâmica das sociedades contemporâneas e observar que o medo, a incerteza e a insegurança caracterizam o cotidiano nas grandes cidades (Bauman, 2009).

Neste contexto, a figura de um Juiz enquanto autoridade imparcial tem sido chamada a decidir sobre questões geradas pela intolerância crescente em nossa sociedade. No presente trabalho, partimos da ideia de que a impossibilidade de reconhecimento e de convívio com a alteridade, a dificuldade em lidar com a diferença leva ao crescimento da intolerância. Inúmeros processos dão entrada diariamente nos Juizados Especiais Criminais (JECRIM) e a grande maioria deles reflete a exacerbação de emoções diante do que os autores avaliam como uma "invasão de território". Injúrias, calúnias, ameaças oferecem-se constantemente para o julgamento do magistrado. Dentre a variedade de temas que estes processos levantam, destacaremos neste artigo aqueles que caracterizamos como "briga de vizinhos".

 

Intolerância e Violência

Loparic (2007) entende ser a tolerância um conceito-chave de nossa cultura, na medida em que implica na capacidade de suportar dificuldades, choques de interesses, diferenças de opinião. A incapacidade de suportar as tensões do cotidiano e a intolerância diante das diferenças existentes entre os seres humanos estão na base de problemas como o preconceito, a violência e o desrespeito. O crescimento da intolerância é constatado no mundo todo, não se restringindo apenas às relações entre grandes grupos sociais, ou seja, mesmo as relações interpessoais cotidianas foram contaminadas.

Visando entender a natureza das relações emocionais existentes entre os homens, Freud (1921/1969a, p.128) cita "o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos". Estes, em um inverno, aproximam-se na tentativa de aproveitar o calor uns dos outros e evitar a morte por congelamento. Porém, separam-se tão logo sentem os espinhos que os caracterizam. Assim sendo, "foram impulsionados para trás e para frente, de um problema para outro até descobrirem uma distância intermediária na qual podiam mais tolerantemente coexistir" (Freud, 1921/1969a, p.128).

Ainda segundo Freud, o convívio humano está caracterizado por um "narcisismo das pequenas diferenças", expressão que se refere às contradições produzidas por uma cultura que exige o recalque das tendências agressivas do sujeito em nome da felicidade coletiva, tendo sido utilizada para explicar as intolerâncias étnicas, raciais e nacionais. O outro se torna alvo de intolerância quando a diferença é pequena e não quando é acentuada, quando os territórios que deveriam estar bem separados se tornam próximos demais. As mínimas diferenças no cotidiano provocam antagonismos e os indivíduos tentam salvaguardar seu narcisismo, reivindicando-as de forma exacerbada (Freud, 1930/1969b).

Também Bezerra Jr. (2007) assinala que a intolerância em relação à diferença pode culminar em atos violentos. O autor observa que a violência invadiu o cotidiano de forma surpreendente e passou a fazer parte daquilo que é esperado no dia-a-dia. Surpreende-se ao constatar que, cada vez mais, assassinatos são cometidos por motivos fortuitos. A violência banalizada sinaliza a existência de um cenário no qual os indivíduos não apenas sentem- -se despidos de relevância, como se tornam indiferentes a qualquer coisa que não esteja relacionada a seus interesses individuais. Desta forma, o coletivo se enfraquece em nome do individualismo.

A ordem social destituída de valores ideais conduz os sujeitos para o pólo narcísico de sua estrutura simbólica, afastando-os do polo alteritário (Birman, 2006), assim sendo, a subjetividade tende a centrar-se sobre si mesma. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Bezerra Jr. (2007), nos lembra que os ideais de uma época delineiam os limites do que é aceitável ou inaceitável e fornecem as razões para agir e para renunciar a certas ações; entretanto, entre as características mais descritas de nosso tempo na origem da banalização da violência estão o esmaecimento ou a corrosão dos ideais assim como a intensificação do sentimento de vulnerabilidade e de desamparo. Os sentimentos de transitoriedade inundam as relações familiares, os laços de amizade, os vínculos de trabalho. O direito de cada um de buscar a felicidade redunda em uma falta de compromisso com os semelhantes. A fraternidade e a solidariedade que deveriam marcar o campo das relações horizontais ficam esmaecidas diante de uma crise de referências simbólicas. Bezerra Jr. acredita que para enfrentar a violência os indivíduos deveriam poder comprometer-se racional e sentimentalmente com os horizontes de solidariedade, liberdade e tolerância. No entanto, como assinala Bauman (2009), nos atuais espaços urbanos, a competição substitui a solidariedade, estando os laços comunitários corro-ídos e dissolvidos.

Para Kohut (1978) não basta a suposição de uma propensão inerente ao homem em direção à agressão; não basta dizer que fenómenos tais como a beligerância e a intolerância se devem à regressão do homem em direção à expressão indisfarçada do impulso que lhe é natural. A expressão fúria narcísica é por ele utilizada para referir-se a um amplo espectro de experiências que se estende desde ocorrências triviais, como um aborrecimento passageiro sentido quando alguém deixa de corresponder a nosso cumprimento, até transtornos assustadores. A fúria narcísica pode tomar a forma de necessidade de vingar-se, de reparar uma afronta, de desfazer uma ofensa a qualquer custo, e a compulsão de perseguir tais objetivos domina a vida do indivíduo. A necessidade de vingança e a compulsão sem fim visando acertar as contas após uma ofensa não são, portanto, atributos de uma agressividade integrada aos propósitos adultos do ego, mas podem ser referidas a uma imaturidade emocional.

Quando o opositor é percebido como distinto do sujeito ele costuma ser alvo de agressões adultas, mas, quando não é reconhecido como um centro de iniciativa independente com quem o sujeito possa estar em contradição e seu objetivo é derrotá-lo enquanto um inimigo que se atreveu a contrariá-lo ou dele discordar, uma fúria arcaica será despertada, indicando intensas necessidades narcísicas. Neste último caso, será dada uma importância profunda a um estímulo aparentemente insignificante, provocando um ataque de fúria narcísica, que contrasta com a gravidade aparentemente desproporcional da reação (Kohut, 1978).

Por sua vez, Birman (2006, p. 180) argumenta que "existimos hoje numa permanente hiperatividade, excitabilidade elevada que se transforma em excesso e transborda em ação". Não conseguir conter o excesso, simbolizando-o e transformando-o em ação específica, gera uma descarga de excitabilidade que se manifesta como explosões emocionais incontroláveis. A violência se impõe sem causa aparente, gratuitamente, banalizando-se de forma inquietante. Alguns sujeitos parecem estar sempre prontos para exibir sua força através da violência.

A análise da literatura sugere que o mal-estar contemporâneo é engendrado pela dificuldade de reconhecer e conviver com a alteridade, resultando em crescente intolerância e agressão ao que é diferente. O objetivo do presente estudo é analisar empiricamente os fatores em torno dos quais se estruturam os conflitos entre vizinhos. Vale lembrar que o termo vizinho implica em limites restritivos e normativos, fundamentais ao convívio social. Limites que ao mesmo tempo restringem e contém. Vizinho enquanto adjetivo remete a próximo e enquanto substantivo a aquele que reside próximo a nós. Mas o que é próximo no espaço pode ser muito diferente em inúmeros aspectos; assim é que o dicionário Aurélio (Ferreira, 1999, p. 2083) nos informa que a palavra "vizinho", no sentido musical, diz respeito ao "tom que tem a mesma armadura de clave de outro, ou difere de outros tons por uma alteração a mais ou a menos na armadura".

 

Considerações Metodológicas

O estudo foi baseado em uma amostra intencional de 36 processos criminais, envolvendo a convivência de vizinhos, que deram entrada em uma das unidades do IV JECRIM, no período de 2008 e 2009. A consulta, autorizada pelo Juiz titular, foi realizada aleatoriamente nos processos que aguardavam providências no cartório. Tendo em vista que o foco da presente investigação é o conflito entre vizinhos de status semelhante, ou seja, entre moradores, a amostra final foi constituída por 30 processos, tendo sido descartados os 6 processos que envolviam conflitos entre porteiros e moradores.

A abordagem metodológica foi estruturada com o objetivo de revelar como as situações conflituosas eram vivenciadas pelos moradores vizinhos. Foram examinados os registros de ocorrência da queixa, contendo a qualificação dos envolvidos e o depoimento da vitima tal como relatado na delegacia, com ou sem a participação de testemunhas. Preservando o anonimato dos sujeitos, foram elaborados protocolos resumidos, que relataram as respectivas dinâmicas dos fatos.

 

Análise e Discussão dos Resultados

O material foi, então, submetido a uma análise de conteúdo (Bardin, 1979) e os dados recorrentes que emergiram dessa análise foram organizados em categorias, apresentadas a seguir.

Sobre os vizinhos e suas moradias

Os resultados indicam que as vítimas - os declarantes das queixas - e os autores dos fatos são todos adultos, com idades variando de 30 a 73 anos. Entre as vítimas, 10 são homens e 20 são mulheres; já entre os autores dos fatos, 17 são homens e 13 são mulheres. O espaço de convivência entre os vizinhos, residentes em apartamentos, ocorre em prédios isolados ou em condomínios com mais de uma edificação, situados em bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, uma região relativamente homogênea formada por bairros com unidades residenciais e comerciais.

Acerca dos conflitos de vizinhança

A análise do conteúdo dos depoimentos das vítimas revela a presença de três categorias de significados: (1) reação desproporcional ao fato; (2) sociabilidade esgarçada; (3) autocentramento.

Reação desproporcional ao fato

Observa-se que as narrativas muito frequentemente apontam para fatos cuja ocorrência eventual pode, em princípio, ser prevista, ou seja, os moradores de um prédio sabem que pode acontecer. Entretanto, os dados indicam que tais ocorrências suscitam um comportamento reativo incoerente e desproporcional ao teor dos fatos.

Assim é que, face a uma cobrança verbal de um pagamento condominial em atraso, a vítima (síndica) é ameaçada e o autor precisa ser fisicamente contido por outra moradora. Por sua vez, fatos como um defeito no elevador e a negação para abrir a porta da residência suscitam reações extremadas de ameaça de morte. É o que ilustram, respectivamente, as falas abaixo extraídas dos depoimentos, e, por vezes, atribuídas pelas vítimas aos autores dos crimes:

"Nós estamos nos encontrando muito sindicuzinho e esta porra de elevador já era para estar funcionando". A vítima alega ainda ter ouvido o autor afirmar que "tiros seriam desferidos contra a sua pessoa. (vítima: síndico)

(...) vou te dar uma porrada quando você estiver sozinha e vou calar tua boca para o resto da vida. (vítima: moradora que se recusou a abrir a porta ao síndico)

Fatos tipicamente corriqueiros constituem um segundo conjunto de ocorrências que suscitam reações desproporcionais entre vizinhos. É o caso de barulho, como ilustrado pelo depoimento da vítima, que estava em casa confraternizando com amigos e, ao atender à campainha, se deparou com sua vizinha que "proferiu palavras de baixo calão e atirou-lhe um ovo". Por outro lado, barulho recorrente causado por animais suscita invasão de moradia "para silenciar o chilreio dos pássaros" e a posterior agressão pelas costas do invasor.

O que se depreende da análise realizada é que há um descompasso entre o teor dos fatos e as reações violentas que suscitam. Os fatos em si sugerem que o diálogo seria uma forma mais adequada de lidar com eles. No entanto, ao invés de dialogar, as partes se agridem verbal ou fisicamente, chegando ao extremo de proferir ameaças de morte. Esta situação introduz a questão da frágil sociabilidade, categoria descrita a seguir.

Sociabilidade esgarçada

Os dados indicam que os laços comunitários estão frágeis, dificultando o viver em sociedade. Em um contexto eivado de desentendimentos, uma manifestação de solidariedade pode desencadear um comportamento agressivo. Em resposta a uma tentativa de prestar ajuda em uma discussão de terceiros, mesmo na presença de menores, agride-se e ameaça-se de forma contundente, como abaixo ilustrado:

A vítima conta que descia do prédio para levar seu filho de 4 anos à escola quando viu a vizinha agredindo verbalmente o porteiro. Ao se aproximar para tentar ajudar, foi agredida e ameaçada: "Mando te matar, conheço todo mundo do morro".

Os corroídos vínculos sociais tecidos em um espaço compartilhado de moradia se manifestam também do lado de fora deste espaço. É o que se evidencia no caso de um morador que encontra a síndica de seu prédio no banco e reclama de motocicletas estacionadas em frente ao prédio, causando-lhe transtornos, por ser deficiente físico. Em seu depoimento, diz ter sido chamado de "brasileiro burro e deficiente mental". A autora, por sua vez, diz que a vítima "lhe faltou o respeito".

Autocentramento

Pode-se observar que, por vezes, é significativa a tendência a uma fixação na própria imagem, resultando na tentativa de ajustar o outro aos seus próprios referenciais, o que leva à colisão de interesses, ao conflito. É o que ilustra o depoimento de moradores, testemunhas de um conflito entre vizinhos, que percebem a vítima como um problema, alguém que reclama de qualquer coisa, que recorre à polícia para tentar impor aos demais o que considera correto, e que teria dito que «quando fosse síndico construiria uma carceragem nos fundos do prédio para prender moradores que não sigam as regras». No caso, não se trata das regras da convenção do condomínio, mas as do próprio morador.

O olhar sobre o outro é de não inclusão; o outro só emerge enquanto alvo de críticas e de condenações de seu comportamento, como exemplificado pelo morador que afirma que o vizinho «há muito faz barulhos propositais para incomodá-lo».

Por outro lado, estar voltado para si mesmo, ignorar o outro e o coletivo ao qual se pertence pode resultar em não cumprir normas de convivência, sejam elas relativas ao pagamento da cota condominial ou à alienação do lixo. É o que ilustra a situação em que o autor da agressão tem dívidas com o condomínio que o acionou. A síndica o viu jogando lixo fora da lixeira e o advertiu. Neste momento, ele a chamou de «síndica de merda, piranha» e ameaçou «trazer pessoas para acabar com sua raça».

O termo fúria narcísica, utilizado por Kohut (1978) pode ser claramente ilustrado neste fragmento de discurso. A violência é desencadeada como expressão da desorganização daquele que se encontra diante de uma situação frente a qual se sente impotente. Em situações diversas verifica-se que o sentimento de impotência que assola a sociedade contemporânea provoca reações agressivas, consequentemente, o respeito ao espaço e à pessoa do outro se esgarça.

Por vezes responde-se com um ataque a um ataque imaginário, a partir de uma interpretação errónea da atitude do outro. Um gesto que surpreende ou uma palavra que atinge um ponto cego do sujeito pode ser interpretado como um ataque. O problema gerador do conflito é totalmente atribuído ao outro. «O outro me incomodou».

Advertências pelo descumprimento de regras do coletivo, ao invés de estimular a reflexão sobre o próprio erro, suscitam a expressão de hostilidade, frequentemente extremada, dirigida a quem aponta a falha.

O que se observa é que as três temáticas descritas se articulam nas falas das vitimas. A intransigência e a intolerância remetem ao autocentramento, à incapacidade de respeitar o território do outro, reconhecê-lo em sua singularidade.

Tomados em sua totalidade, os dados sugerem a comprovação de uma comparação muitas vezes feita entre a vida em condomínio e um casamento forçado, na medida em que vizinhos não são escolhidos, mas com eles é necessário conviver no dia a dia. Assim como em um casamento, a capacidade de tolerância, a noção de direitos e deveres, o limite dos espaços a serem ocupados, são condições para o êxito da vida em comum.

 

Considerações Finais

O Direito Penal visa a tutelar os interesses mais importantes da sociedade. O grau de violação de tais interesses é que legitima a intervenção estatal para acionar a sanção criminal. A sanção criminal, por ser mais limitadora de direitos, mais séria, mais grave do que as outras modalidades de sanção, só deve ser usada em casos extremos, para salvaguardar os interesses mais relevantes da sociedade.

A propósito da necessidade da intervenção penal, escreveu Luisi (1998):

De um lado, necessária se fez uma valoração da relevância do bem, ou seja, sua significação e importância. De outro lado, há de ter presentes as variadas formas com que podem ocorrer as lesões a tais bens, selecionando as mais graves. E, dentre essas, as em que necessária se faz a intervenção penal por insuficientes as outras sanções que a ordem jurídica dispõe para uma adequada tutela. O critério básico, portanto, desse processo de escolha, há de guiar-se pelo critério da ultima ratio que, partindo da relevância do bem e da gravidade da lesão ao mesmo, faz com que se torne necessária a intervenção penal.... E sendo a reação penal a ultima ratio, ela não pode ultrapassar na qualidade e na quantidade da sanção ao dano ou perigo causado pelo crime. Há de ser proporcional, ou seja, estrita e evidentemente necessária. Ou, em outros termos: o Direito Penal é fragmentário e proporcional porque somente se justifica a sua tutela quando se verifica a sua estrita necessidade.

Na maior parte dos casos trazidos ao IV Juizado, verifica-se a inexistência de qualquer periculosidade social e que os envolvidos estão optando em submeter os conflitos à jurisdição penal por mera incapacidade de convivência no âmbito estrito do condomínio onde residem.

Num contexto de vizinhança, uma espiral de violência pode ser vista em alguns casos, da seguinte forma: tudo começa com gestos de falta de educação e falta de cortesia; evolui para xinga- mentos, crimes contra a honra, ameaças, vias de fato e, finalmente, lesão corporal. Isso quando não são agregadas outras condutas típicas como violação de correspondência, violação de domicílio, exercício arbitrário das próprias razões, entre outras. Sendo assim, o que por vezes se observa é que o processo judicial tem sido desvirtuado para se constituir em um instrumento inadequado de desafogo de sentimentos negativos, como a intolerância, a raiva, o ódio, a frustração, que acabam por perpetuar a animosidade entre os vizinhos.

Busca-se a intervenção do Estado, através da jurisdição penal, na expectativa de assim obter, no contexto de uma lógica binária de certo/errado, de ganha/perde, a reinstaurarão da ordem. Trata-se de uma demanda que, nos casos estudados, revela que a intervenção de uma autoridade pública e externa ao conflito de ordem privada se faz necessária pela incapacidade de diálogo entre as partes.

A situação requer a geração de espaços de diálogo em que os envolvidos em uma controvérsia possam expor suas diferenças e juntos elaborar, de forma pacífica, alternativas de solução do litígio (Sampaio & Braga Neto, 2007). Por tais razões, o IV Juizado tem optado por investir num programa de mediação, que está sendo realizado pela equipe de sua Central de Penas e Medidas Alternativas.

Sugere-se, assim, que os desentendimentos entre vizinhos possam ser tratados de maneira mais adequada com um trabalho de mediação de conflitos, de natureza transdisciplinar, que conta com a significativa contribuição dos conhecimentos construídos na Psicologia, no Direito, bem como em outras áreas do saber. Esta é uma proposta atualmente adotada mundialmente e que, no Brasil, vem sendo também amplamente discutida e apresentada, como nos mostram Fiorelli, Malhadas Jr e Moraes (2004), Pinho (2008) e Fiorelli, Fiorelli e Malhadas Jr (2009), entre outros autores.

Nesta teórica e tecnicamente fundamentada abordagem do conflito, privilegia-se a postura cooperativa que permite o resgate de um diálogo entre as partes, de modo a possibilitar que elas mesmas, auxiliadas por um terceiro imparcial e independente, o mediador, construam soluções criativas de benefício mútuo, que atendam aos interesses e necessidades de todos e de cada um dos envolvidos. Em foco, portanto, a promoção de um diálogo inclusivo, o restauro da sociabilidade, e a autocomposição como forma de sustar a violência e a escalada dos conflitos entre vizinhos.

 

Referências

Bardin, L. (1979). Análise do conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70.         [ Links ]

Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bauman, Z. (2009). Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bezerra, B., Jr. (1999). Solidariedade contra violência. In N. Schor, M. S. F. T. Mota & V. Castelo Branco (Orgs.), Cadernos juventude, saúde e desenvolvimento (pp. 136-146). Brasília, DF: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Enriquez, E. (2001). Instituições, poder e "desconhecimento". In J. N. G. Araújo & T. C. Carreteiro (Orgs.), Cenários sociais e a abordagem clínica (pp. 49-74). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Ferreira, A. B. H. (1999). Novo Aurélio século XXI: O dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Fiorelli, J. O., Fiorelli, M. R., & Malhadas, M. J. O., Jr. (2009). Mediação e solução de conflitos: Teoria e prática. São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Fiorelli, J. O., Malhadas, M. J. O., Jr., & Moraes, D. L. (2004). Psicologia na mediação: Inovando a gestão de conflitos interpessoais e organizacionais. São Paulo: LTR.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). A psicologia de grupo e a análise do ego (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1921).         [ Links ]

Freud, S. (1969b). O mal-estar da civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1930).         [ Links ]

Kohut, H. (1978). The search for the self (Vol. 2). New York: International Universities Press.         [ Links ]

Loparic, Z. (2007). Objetificação e intolerância. Natureza Humana, 9(1), 51-95.         [ Links ]

Luisi, L. (1998). Bens constitucionais e criminalização. Revista CEJ, 2 (4). Recuperado do http://www.cjf.jus.br/revista/numero4/artigo13.htm        [ Links ]

Pinho, H. D. B. (2008). Teoria geral da mediação à luz do projeto de lei e do direito comparado. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.         [ Links ]

Sampaio, L. R. C., & Braga Neto, A. (2007). O que é mediação de conflitos (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

 

 

Recebido em 09 de Outubro de 2010
Aceito em 07 de abril de 2011
Revisado em 15 de Agosto de 2011

 

 

1 As infrações de menor potencial ofensivo são aquelas cuja pena máxima não ultrapasse dois anos de pena de prisão. Nos conflitos de vizinhança, as mais comuns são: ameaça, lesão corporal, crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), perturbação da tranquilidade etc. Os Juizados Criminais são regidos pela Lei n° 9.099/95.