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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.3 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O sujeito entre a disciplina e o controle: sobre as instituições de confinamento e os fenômenos de massa

 

The subject between discipline and control: on institutions of confinement and mass phenomena

 

El sujeto entre la disciplina y el control: sobre las instituciones de aislamiento y los fenômenos de masa

 

Le sujet entre la discipline et le controle: sur les institutions de confinement et les phénomènes de masse

 

 

Ricardo Salztrager

Psicanalista. Professor Adjunto I da Universidade Federal Fluminense. Mestre e Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. End.: R. Conrado Niemeyer, 26/804, Copacabana. CEP: 22021-050 - Rio de Janeiro - RJ. E-mail: ricosalz@uol.com.br

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é oferecer um confronto entre os modos de subjetivação favorecidos pela sociedade disciplinar e aqueles que o são pela sociedade de controle. Num primeiro momento, nos voltamos sobre o dinamismo da sociedade disciplinar para demonstrar que as instituições de confinamento propiciam a constituição de modos de subjetivação fortemente individualizados, porém sempre remetidos a uma norma. Tal estudo será feito a partir da investigação das consequências que os dispositivos de vigilância, de normalização e de exame promovem na vida subjetiva. Neste contexto, ensaios psicanalíticos como Totem e Tabu e Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa Moderna também servirão para a discussão das principais características dos modos de subjetivação disciplinados. Em seguida, examinamos as particularidades da sociedade de controle para demonstrar o seu favorecimento à produção de subjetividades híbridas e com forte tendência à homogeneidade. Tal exame se empreenderá mediante a constatação do relativo declínio do poder institucional na cena contemporânea e da consequente ascensão das inúmeras formações grupais massificantes. Assim, Psicologia das Massas e Análise do Eu será de grande valia para os nossos propósitos na medida em que traz consigo a análise de modelos de subjetivação marcados fundamentalmente pelo hibridismo identificatório e pelo relativo silenciamento das singularidades individuais.

Palavras-chave: Sujeito, sociedade disciplinar, sociedade de controle, contemporaneidade, psicanálise.


ABSTRACT

The purpose of this work is to offer a confrontation between the modes of subjectivation favored by the disciplinary society and by the control society. At first, we look into the dynamism of the disciplinary society in order to show that the confinement institutions provide the establishment of modes of subjectivation strongly individualized, although always referred to a norm. Such study will be done from an investigation of the consequences promoted in the subjective life by the devices of vigilance, normalization and examination. In this context, psychoanalytical essays such as Totem and Taboo and "Civilized" Sexual Morality and Modern Nervousness will also be used to discuss the main features of the disciplined modes of subjectivation. Next, we examined the particularities of the society of control in order to demonstrate its favoring of the production of hybrid subjectivities, with a strong tendency to uniformity. Such examination will be undertaken by observing the relative decline of institutional power in the contemporary scene and the resulting rise of innumerous massifying group formations. So, Group Psychology and the Analysis of the Self will be of great value for our purposes to the extent that it brings the analyses of modes of subjectivation fundamentally marked by hybrid identifications and by the relative silencing of individuals' singularities.

Keywords: Subject, disciplinary society, controlling society, contemporaneity, psychoanalysis.


RESUMEN

El propósito de este artículo es ofrecer una comparación entre los modos de subjetividad favorecidos por la sociedad disciplinaria y aquellos favorecidos por la sociedad de control. En un primer momento, hemos analizado el dinamismo de la sociedad disciplinaria a demostrar que las instituciones de encierro proporcionar la oferta de formas muy individualizado de la subjetividades, pero siempre se refería a una norma. Este estudio se basa en la investigación de las consecuencias que los dispositivos de vigilancia, de normalización y de examen promover en la vida subjetiva. En este contexto, ensayos psicoanalíticos como Tótem y Tabú y Moral Sexual "Civilizado" y la Enfermedad Nerviosa Moderna también servir para analizar las principales características de los modos de subjetividad disciplinada. A continuación, se examinan las particularidades de la sociedad de control para demostrar su favor a la producción de subjetividades híbridas con una fuerte tendencia a la homogeneidad. Para efectuar este examen, como lo demuestra la disminución relativa del poder institucional en la escena contemporánea y el consecuente aumento de una serie de fenômenos de masa. Por lo tanto, "Psicología de las masas y análisis del yo" será de gran valor para nuestros propósitos, ya que aporta el análisis de los modelos de subjetividad fundamentalmente marcada por la hibridez de los procesos identificatorios y por el relativo silencio de las singularidades individuales.

Palabras-clave: Sujeto, sociedad disciplinaria, sociedad de control, contemporáneo, psicoanálisis.


RÉSUMÉ

Le but de cet article est de fournir une comparaison entre les modes de subjectivation favorisé par la société disciplinaire et ceux qui le sont par la société de controle. Au début, nous nous tournons sur le dynamisme de la société disciplinaire pour démontrer que les institutions de confinement favorisent la constituition de façons très individualisées de subjectivités, mais toujours référés à une norme. Cette étude sera basée sur l'enquête des conséquences que les dispositifs de surveillance, de normatization et de examen promeutten sur la vie subjectif. Dans ce contexte, des essais psychanalytiques comme Totem et Tabou et La Moralité Sexuelle «Civilisée» et les Modernes Maladies Nerveuses serviront également par la discussion sur les principales caractéristiques des modes de subjectivité disciplinées. Ensuite, nous examinons les particularités de la société de controle afin de démontrer sa favorisement pour la production de subjectivités hybrides avec une forte tendance à l'homogénéité. Tel examen est fait avec la témoigne de la relative faillité du pouvoir institutionnel dans la scène contemporaine et la consécutive hausse d'un certain nombre de phénomènes de masse. Ainsi, Psychologie des Foules et Analyse du Moi sera précieuse pour nos besoins en ce qu'elle apporte à l'analyse des modèles de subjectivation fondamentalement marquées par l'hybridisme identificatoire et par le relatif silenciament des singularités individuelles.

Mots-clés: Sujet, société disciplinaire, société de controle; contemporaneité; psychanalyse.


 

 

Ao longo de suas mais variadas elaborações teóricas, Freud jamais deixou de enfatizar a importância que o material sociocultural possui para o funcionamento psíquico dos sujeitos. Em seus textos, estão sempre presentes reflexões sobre como uma determinada configuração social em voga no início do século XX impunha pesados sacrifícios aos sujeitos no tocante às suas satisfações sexuais (Freud, 1908/1995c); sobre como os sujeitos se apoiam em preceitos religiosos para salvaguardar-se do desamparo (Freud, 1927/1995h); ou sobre como os ideais de progresso e o próprio conhecimento científico não conseguem livrar os sujeitos de um mal estar inevitável (Freud, 1930/1995i). Daí a afirmação emblemática de Psicologia das Massas e Análise do Eu de que "a psicologia individual (...) é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (Freud, 1921/1995f, p. 81). Destaca-se, portanto, que as variáveis culturais influenciam, de modo crucial, na vida subjetiva e que cada contexto sociocultural favorece a constituição de determinados modos de subjetivação.

Assim, muito se têm discutido sobre a dinâmica da sociedade contemporânea, visando explicitar em qual medida ela propicia a formação de modos de subjetivação distintos daqueles que tiveram lugar nas décadas e séculos passados. Deste modo, impõe-se a seguinte questão: o relativo declínio do poder institucional tradicional na cena contemporânea pode trazer consigo uma tendência à constituição de formas de subjetivação diversas das produzidas nos chamados áureos séculos da modernidade?

Com base neste questionamento, a proposta deste artigo é trabalhar na contraposição entre os modos de subjetivação favorecidos pelo que Foucault (1996) denomina "sociedade disciplinar" e aqueles que o são pelo que Deleuze (1992) designa de "sociedade de controle". Num primeiro momento, nos voltaremos para a obra destes dois autores visando analisar o dinamismo destas duas configurações sociais. Em seguida, nos debruçaremos sobre alguns escritos do pensamento freudiano com o objetivo de situar Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa Moderna (Freud, 1908/1995c) e Totem e Tabu (Freud, 1913/1995d) como paradigmáticos para pensar a questão da constituição subjetiva no contexto da sociedade disciplinar. Em contrapartida, Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/1995f) será considerado emblemático para o exame das principais características das formas de subjetivação contemporâneas.

No entanto, antes de entrar na discussão, convém marcar que quando afirmamos que uma configuração social favorece a constituição de modos de subjetivação específicos, nos referimos apenas a uma tendência, sem jamais pressupor um determinismo maciço das subjetividades a partir da cultura. Pelo contrário, partimos da ideia de que a valorização de um polo pulsional subjacente à conceitualização psicanalítica de sujeito (Freud, 1920/1995e), a fundamentação do papel da formação desejante singular no funcionamento inconsciente (Freud, 1900/1995a), ou mesmo, a circunscrição do isso como um campo inominável e irrepresentável (Freud, 1923/1995g) apontam para a radical impossibilidade de qualquer projeto ou tentativa de uniformização dos sujeitos. Ou seja, mesmo seguindo a observação freudiana de que as variáveis culturais influenciam no processo de subjetivação, devemos ter em mente que sua teoria também enfatiza a postulação de algo da ordem do indeterminado no domínio subjetivo. Assim, os modos de subjetivação nunca se esgotariam numa determinada tendência, inclinação ou vocação valorizadas por quaisquer configurações sociais.

Feita esta ressalva, passemos ao exame do contraste entre os funcionamentos das sociedades disciplinar e de controle.

 

A Sociedade Disciplinar e a Sociedade de Controle

De acordo com a análise apresentada em Vigiar e Punir (Foucault, 1996), a soci-edade disciplinar começa a se estruturar no século XVIII a partir de uma reforma gra-dual nas políticas de punição. Com efeito, em vários países europeus, desaparecem os suplícios característicos do Antigo Regime e, em seu lugar, surge certa tendência a velar, cada vez mais, o espetáculo dos castigos, punições e sofrimentos impostos aos condenados pela justiça. A punição deixa de ser o principal foco do sistema penal e, com isto, a ênfase recai sobre as políticas de correção e disciplinarização dos crimino-sos.

De fato, é assinalado que o regime disciplinar já existia anteriormente nos grandes mosteiros da Idade Média, nos conventos, e em alguns exércitos e oficinas da Europa (Foucault, 1974/1979a). No entanto, o que há de novo, a partir do século XVIII, é o fato dele deixar de existir em estado isolado e se constituir como técnica privilegiada de gestão dos homens.

Em si, os métodos disciplinares permitiriam o controle minucioso das operações do corpo, sujeitando suas forças e tornando-os dóceis, úteis e eficazes para os objetivos socialmente visados. Ao invés de punir de modo violento as transgressões, o poder disciplinar focalizaria, antes de tudo, sua prevenção: com ele, o indivíduo passa a ser julgado não em função daquilo que realmente fez, mas daquilo que, ocasionalmente, poderá fazer. Trata-se, com isto, de almejar impedir as tentativas de infração no próprio momento em que elas ameaçam se esboçar. Para tal, faz-se necessário educar os desviantes em potencial, esforçando-se nas tentativas de produzir indivíduos discipli-nados e, até certo ponto, previsíveis (Foucault, 1996).

Visando sua eficácia, o poder disciplinar opera, em primeiro lugar, na distribuição dos indivíduos no espaço. Ou seja, ele trabalha, fundamentalmente, de acordo com o princípio da clausura, construindo cercas e muros que visam à circunscrição de um local fechado e heterogéneo a todos os outros. Assim, dentro dos limites dos colégios, dos quartéis, das fábricas, etc, o poder disciplinar encontra-se apto para funcionar da melhor forma possível. No caso dos colégios, o internato começa a aparecer como mo-delo de educação mais frequente. No caso das fábricas, a concentração da massa tra-balhadora dentro dos muros permite maior neutralização de incidentes como roubos e agitações, além de tornar viável um máximo aproveitamento da mão de obra. Portanto, dentro dos limites das designadas instituições de confinamento, as multidões - até então dispersas e confusas - são organizadas e dispostas no espaço conforme algumas conveniências para que se retire delas o maior número de benefícios (Foucault, 1996).

Confinados, os indivíduos podem ser submetidos a uma vigilância constante. A este olhar cabe observar e julgar o comportamento de todos e punir os pequenos desvios a fim de evitar danos futuros. Nesta perspectiva, o modelo ideal das instituições de confinamento foi encontrado na figura do panoptico idealizado por Bentham. Tratava-se, em linhas gerais, de um dispositivo arquitetônico onde, no centro, uma torre de vigilância é cercada por um anel periférico. Este último é dividido em celas com uma janela para a torre e outra para o exterior. Isto permite que a claridade atravesse cada cela e, assim, quem estiver na torre consegue visualizar as silhuetas pelo efeito de contraluz. Em contrapartida, os que se encontram nas celas estão impossibilitados de ver o vigia (Foucault, 1996).

No entanto, destaca-se que o efeito mais importante do modelo do panoptico é a indução, no indivíduo, da plena certeza de que ele é vigiado, por mais que, efetivamente, não o seja. Neste sentido, é a promoção de um estado permanente de visibilidade o que assegura a eficiência do poder disciplinar. Este é automático e anônimo, propiciando o advento de certa sujeição - pode-se dizer, voluntária - por parte dos indivíduos, sem haver a necessidade de se recorrer à força para obrigá-los ao bom comportamento. São, portanto, os próprios indivíduos os agentes do poder disciplinar. E este, quanto mais se aproxima do incorpóreo, mais demonstra sua eficácia (Foucault, 1996).

Por tais fatores, é ressaltado que, na disciplina, o poder funciona como uma máquina, pois "é o aparelho inteiro que produz 'poder' (...), o que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte (...) e absolutamente 'discreto'" (Foucault, 1996, p. 148). Com efeito, a concepção foucaultiana de poder não remete à dominação de um indivíduo ou grupo sobre outros. Ou seja, não há aqueles que detêm o poder e aqueles que, por não o possuírem, a ele são submetidos. Pelo contrário, o poder circula em rede e cada indivíduo pode exercê-lo e, no mesmo instante, a ele se render. É por isto que, no modelo do panoptismo, não há a necessidade de um vigilante concreto na torre central, sendo todos os elementos presentes na cena, ao mesmo tempo, alvos e agentes do poder disciplinar (Foucault, 1976/1979b).

Além de recorrer a esta vigilância constante, invisível - e, até certo ponto, íntima -, o po-der disciplinar também funciona mediante a formulação de um conjunto de sanções normaliza-doras. No contexto das instituições de confinamento, a norma é estabelecida por determinado programa ou regulamento a ser cumprido pelos indivíduos. Os desvios, por sua vez, tendem a ser reduzidos em referência às metas propostas. É neste aspecto que encontra sentido a afir-mação de que tais instituições intervêm como mecanismos penais, ou seja, elas possuem suas próprias leis, seus delitos singulares e sua maneira peculiar de julgar. Deste modo, infrações referentes ao tempo de execução de uma tarefa, à eficácia dos indivíduos, à forma de se falar, aos gestos corporais, etc, tendem a ser penalizadas mediante processos sutis de disciplinarização. E isto se dá através da prática da correção: daí os exercícios multiplicados e repetidos dos quartéis, as táticas de reforço no aprendizado escolar, dentre tantos outros mecanismos próprios às técnicas de aprimoramento disciplinar (Foucault, 1996).

Nesta perspectiva, o exame entra em cena enquanto dispositivo que favorece, ao mesmo tempo, a comparação entre os atos e comportamentos dos sujeitos, suas diferenciações em relação ao conjunto e a posterior correção dos desviantes. O hospital, por exemplo, passa a se constituir no século XVIII enquanto, fundamentalmente, um aparelho de exame. Ou seja, é mais ou menos por esta época que se institui a rotina de visitas constantes dos médicos aos pacientes e a prática de instrumentação terapêutica visando à cura dos internados. Ademais, através de uma sucessão de exames, os médicos experimentam remédios e tratamentos e verificam seus efeitos em cada doente (Foucault, 1974/1979a). Do mesmo modo, a escola se torna um aparelho de exame ininterrupto: é ele que permite ao professor assegurar-se da transmissão do saber e, com isto, adquire-se conhecimento sobre o rendimento de cada aluno mediante as técnicas de comparação e hierarquização. Também nas prisões, os indivíduos são permanentemente submetidos à prática do exame. Estuda-se suas histórias, personalidades e os delitos cometidos a fim de escolher qual medida corretiva será mais eficaz (Foucault, 1996).

Neste contexto, é importante destacar que o dispositivo do exame proporciona a entra-da dos sujeitos num campo documentário. Em outros termos, o resultado destas práticas é, justamente, a fabricação de um arquivo com registros e documentos sobre a história de cada sujeito, transformando-o num caso a ser estudado, descrito, mensurado, comparado e, final-mente, disciplinado ou excluído. Na escola, por exemplo, o histórico de cada aluno é documentado, assim como a evolução de seus progressos cognitivos e suas limitações, para se saber até que ponto as propostas pedagógicas surtirão efeito. No exército, os documentos indicam a quantidade de faltas de cada um, além das capacidades e aptidões para que se avalie em qual setor eles serão mais bem aproveitados (Foucault, 1996).

Assim, através destas sucessivas práticas de exame, reconhece-se que o poder disciplinar favorece a constituição de modos de subjetivação caracterizados, a princípio, por uma individualidade. Esta individualidade diz respeito à história de vida singular de cada sujeito, bem como de suas características particulares e capacidades próprias a serem descritas e analisadas. Trata-se, com isto, de assinalar que, ao mesmo tempo em que o poder disciplinar conduz a uma tendência à semelhança, ele também individualiza os sujeitos, permitindo delimitar suas especificidades. Deste modo, toda a escala de diferenças individuais e singulares é enfocada pela disciplina, porém, dentro de um contexto maior de homogeneidade que ela aponta como sendo a regra (Foucault, 1996).

A sociedade disciplinar é, portanto, aquela que assiste ao alastramento do modelo do panoptismo por todas as instituições que atravessam a vida subjetiva. Com ela, não apenas se dissemina a questão da vigilância contínua, mas também, toda a política de estabelecimento de sanções normalizadoras, das práticas de exame e, principalmente, da produção de modos de subjetivação individualizados, ainda que reportados a uma regra. Trata-se, aqui, de um modelo de sociedade que vigorou durante muitos anos, mas que não deixou de conhecer seu período de crise. Nesta perspectiva, são muitos os autores que reconhecem, na cena contemporânea, algumas mudanças que atingem este modelo de sociedade. Um destes é Deleuze (1992) que, ao abordar a questão da relativa falência das instituições de confinamento na atualidade, propõe que a sociedade disciplinar vem sendo, gradualmente, substituída por um modelo de sociedade de controle.

Com efeito, a crise das instituições de confinamento vem conduzindo à instalação de novas forças - já previstas por Foucault (1996) - que, ao invés de almejarem disci-plinar os sujeitos ambicionam, sobretudo, o seu controle. Neste panorama, são muitas as reformas que se anunciam nos modelos tradicionais de família, prisão, fábrica, escola, etc. Nesta última, por exemplo, observa-se a valorização de formas de controle permanente dos alunos através de sistemas de avaliações contínuas. Nas empresas, o controle se apresenta pela busca, cada vez mais incessante, das práticas de recompensas salariais em conformidade com a quantidade de trabalho produzido mesmo fora dos limites físicos da organização e que ultrapassam a carga horária estabelecida pelo contrato. Já as reformas nas prisões propiciam a utilização de formas substitutivas de punição como os regimes semiabertos, nos quais o condenado é controlado mesmo fora dos limites da cadeia. As políticas hospitalares, por sua vez, vêm se fazendo sentir não apenas sobre os internos, mas inclusive, sobre os doentes em potencial e à população sujeita ao risco (Deleuze, 1992).

Deste modo, destaca-se a afirmação de que, na contemporaneidade, "as formas (...) de controle ao ar livre (...) substituem as antigas disciplinas que operavam na dura-ção de um sistema fechado" (Deleuze, 1992, p. 220). De fato, ao contrário da sociedade disciplinar, a sociedade de controle não se baseia na divisão do espaço em localizações distintas e delimitadas por fronteiras ou muros. Com ela, o poder se dispersa, torna-se desterritorializado e disseminado por entre os limites agora abertos pela queda dos muros das instituições de confinamento. Ou seja, conforme destacamos acima, na sociedade disciplinar, a eficácia do poder é sempre parcial na medida em que ele se exerce dentro de espaços fechados. Já na sociedade de controle, o poder se espalha, não mais se limitando a quaisquer lugares específicos. Assim, o que muda na transição de um modelo para outro é a extensão generalizada do exercício do poder: o espaço estriado da sociedade disciplinar é, cada vez mais, transformado no espaço liso carac-terístico da sociedade de controle (Hardt & Negri, 2001).

Portanto, a sociedade de controle é definida como aquela que assiste à intensifi-cação e à extensão dos dispositivos de poder da sociedade disciplinar. Com isto, torna-se cada vez mais tênue a distinção entre o dentro e o fora de seu campo de ação. Tal reorganização, por sua vez, vai acarretar em algumas mudanças nos modos de subje-tivação contemporâneos, se comparados àqueles favorecidos pela sociedade discipli-nar.

A primeira diferença a ser enfatizada aponta para o relativo silenciamento do po-tencial de resistência dos sujeitos. Trata-se de destacar que na, sociedade disciplinar, o efeito do poder normalizador - por ser parcial - jamais obtinha êxito nas tentativas glo-balizantes de disciplinarização dos comportamentos subjetivos. Ou seja, apesar dele objetivar a transmissão de determinados valores, a submissão aos imperativos nunca se dava de forma plena, pois o espaço localizado fora de seus domínios ficava perma-nentemente reservado ao desvio, à resistência e, até mesmo, à transgressão. Com efeito, "a invasão disciplinar corresponde à resistência do indivíduo" (Hardt & Negri, 2001, p. 43). Em outros termos, no que tange ao sujeito disciplinado, sempre reconhe-cemos certa liberdade para se negociar com as leis perpetradas.

Nesta perspectiva, o solo das disciplinas é propício à constituição de modos de subjetivação eminentemente revoltados. Todavia, com a emergência da sociedade de controle, a questão da possibilidade da revolta é reconsiderada, visto que a intensificação do poder almeja à anulação de quaisquer possibilidades de resistência ou transgressão. Com ela, todos os conflitos ou desavenças tendem, mais do que nunca, ao silêncio.

A consequência mais direta da omissão do potencial de resistência é a entrada em cena de uma inclinação em se limitar o trabalho de singularização. Ou seja, pressupõe-se que este trabalho se instaura, justamente, a partir da liberdade que o sujeito possui para negociar com as leis transmitidas e fornecer diferentes sentidos àquilo que vem do outro, sentidos estes vincula-dos às formações desejantes e construções fantasísticas de cada um. Nesta medida, um esboço de tentativa de resistência ou de revolta encontra-se sempre implícito no trabalho de singula-rização. Assim, se na sociedade de controle é justamente a resistência e a revolta que tendem ao silêncio, toda a gama da riqueza das diferenças individuais tende a cair por terra, promovendo certa uniformização entre os sujeitos.

Ademais, trazendo para a discussão as observações de Deleuze (1992) a respeito da distinção entre os processos de moldagem e de modulação, contemplamos outra importante diferença entre os modos de subjetivação característicos de cada uma destas configurações sociais. Segundo o autor, o processo de moldagem é próprio à sociedade disciplinar. Ou seja, sendo as instituições disciplinares independentes umas das outras, os sujeitos que as atravessam são submetidos aos mais diversos trabalhos de moldagem, pois cada meio de confinamento possui um modelo definido de disciplinarização. Surgem, assim, as identidades do operário, do estudante, do pai, do prisioneiro, etc, todas elas remetidas a esquemas razoavelmente estáveis de moldagem.

Já a sociedade disciplinar, por sua vez, é alimentada por um mecanismo contínuo e interminável de modulação. Com ele, os processos identificatórios tendem a certo hibridismo. O hibridismo em questão se apresenta na medida em que - ao contrário da relativa rigidez da moldagem disciplinar - o mecanismo de modulação é sempre auto-deformante, se alterando continuamente e a todo instante. Assim, contrastando com o sujeito disciplinarizado e moldado conforme algumas regras e modelos fixos, as formas de subjetivação contemporâneas parecem condenadas a jamais finalizar um trabalho específico de identificação. Isto porque um molde a ser privilegiado num determinado instante rapidamente se transforma em outro molde, e assim por diante, impondo sério obstáculo para a consecução do processo de assunção de uma identidade estável e duradoura (Deleuze, 1992).

Trata-se, segundo Hardt e Negri (2001), mais uma vez, de uma consequência direta da queda dos muros das instituições disciplinares. Com ela, a produção de modos de subjetivação passa a se fazer por intermédio da combinação e da dosagem de diversos e, muitas vezes, antagónicos modelos identificatórios. No entanto, por mais que se argumente que, já na sociedade disciplinar, os sujeitos possuíam identidades múltiplas, os autores afirmam que estas advinham a partir de diferentes instituições e encontravam espaço nas diferentes épocas da vida. Ou seja, nada que se compare às identificações híbridas da sociedade de controle, que se modificam a cada momento e que se reportam, ao mesmo tempo, a todos e a nenhum molde específico. Estes fatores convergem, portanto, para a conclusão de que os modos de subjetivação favorecidos pela sociedade de controle são híbri-dos, voláteis e mistos.

Neste ponto, impõe-se a questão de como abordar as diferenças entre estes dois modelos de subjetivação pelo viés da psicanálise. Assim, ainda que disciplina e controle não sejam conceitos propriamente psicanalíticos, a releitura de alguns textos centrais do pensamento freudiano auxilia na circunscrição e no melhor entendimento deste contraponto.

 

A Temática da Disciplina no Pensamento Freudiano

Temos agora como proposta confrontar os diferentes modelos de subjetivação apresentados, de um lado, em textos como Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa Moderna (Freud, 1908/1995c) e Totem e Tabu (Freud, 1913/1995d) e, de outro, em Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/1995f). Este confronto conduzirá a discussão no sentido de aliar o modelo de subjetivação exposto nos dois primeiros escritos àquele privilegiado pela sociedade disciplinar. Já o modelo retratado no terceiro texto em muito vai auxiliar no exame dos modos de subjetivação favorecidos pelas práticas contemporâneas de controle.

Em linhas gerais, o mito de Totem e Tabu (Freud, 1913/1995d) analisa a questão das origens da sociedade a partir da hipótese do assassinato do chefe da horda primitiva pela malta de irmãos. De acordo com a concepção freudiana, no regime da horda, os homens eram totalmente submetidos ao domínio de um pai primevo que os expulsavam da tribo conforme cresciam, visando à exclusividade do acesso às mulheres. Certo dia, revoltados, os irmãos regressam, matam e devoram o pai, pondo fim ao regime da horda primitiva. Mediante tal feito, um clã relativamente fraterno é instaurado e, com ele, se esboça um primeiro modelo de configuração social.

Na continuação do mito, é relatado que a coesão deste esboço de configuração social se deveu ao fato dos irmãos se reconhecerem enquanto semelhantes, justamente, por possuírem um sentimento de revolta em comum. Contudo, se no momento do assassinato, os sentimentos ternos à figura paterna foram subjugados aos impulsos hostis, é destacado que, logo em seguida, o amor ao pai retornou sob a forma de remorsos. Com isto, a instauração do sentimento de culpa fez com que os irmãos renunciassem às mulheres do clã e instituíssem um regime totêmico, no qual um animal - substituto simbólico do pai - aparecia, ao mesmo tempo, como objeto de adoração e de temor. A matança do animal totêmico foi terminantemente proibida e, assim, "o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo. (...) O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos" (Freud, 1913/1995d, p. 146-147).

Deste modelo freudiano, depreendemos, em primeiro lugar, como uma autoridade simbólica - representada na figura do animal totêmico - funciona como uma espécie de amparo para os irmãos e seus descendentes. Em si, ela consistia na garantia imprescindível para o mantimento das relações de igualdade e fraternidade entre os membros do clã. Do mesmo modo, a lei do incesto encarregou- -se de findar com quaisquer tentativas de oposição à ordem. Caso contrário, todo este esboço de configuração social viria a desmoronar. Assim, a ideia de culpabilidade, vinculada a uma autoridade simbólica e à lei contra o incesto asseguraram o fracasso de qualquer esforço de se ocupar o lugar do pai. E isto mesmo antes que ele se deixasse transparecer.

A importância da autoridade simbólica para o clã totêmico também se faz presente na medida em que os valores e prerrogativas por ela encarnados são sempre assimilados pelos membros da tribo. Dentre tais predicados, incluem-se tanto os esquemas simbólicos propriamente ditos, quanto as leis e as regras a ela atribuídas (Florence, 1984). Isto fica facilmente visível quando é analisado o fenômeno da refeição totêmica.

Com efeito, os clãs eram marcados por uma cerimônia periódica na qual os membros celebravam a matança e a posterior ingestão do totem. Geralmente, no início destas ocasiões festivas, todos imitavam as características e comportamentos do animal. Em seguida, ele era morto e profundamente lamentado e pranteado. A refeição terminava num grande festim no qual todos os tipos de excesso eram permitidos. Por estes fatores, Freud (1913/1995d) reconhece, na refeição totêmica, uma repetição da festividade que se seguiu ao assassinato do pai primitivo.

A refeição totêmica servia, principalmente, para reforçar os laços identificatórios de cada membro do clã com a figura idealizada do totem. Ou seja, ao ingerir o animal, cada participante poderia acreditar ter se apropriado do vigor, potência e demais prerrogativas do totem. Por conseguinte, obtinham-se as devidas garantias do estabelecimento de uma identidade semelhante à dele. Ademais, a cada cerimonial, com o reforço constante dos processos identificatórios com o animal totêmico, os participantes também se identificavam entre si. Com efeito, eles reconheciam, uns nos outros, o mesmo ódio, a mesma alegria e o mesmo remorso que despontaram em seus antepassados na ocasião do assassinato do pai primitivo (Freud, 1913/1995d).

Deste modo, Totem e Tabu (Freud, 1913/1995d) apresenta um modelo de configuração social fundamentado na crença em uma autoridade simbólica que serve de polo identificatório para cada membro da tribo. O texto também nos traz outra importante característica desde modelo de sociedade: a de sua fundamentação nas ordens da lei e da renúncia. Ou seja, é assinalado que os sujeitos nela inseridos são condenados a viver num conflito permanente entre a realização de seus desejos mais íntimos ou deles abrir mão em prol do obedecimento à coesão social e da possibilidade de usufruto de seus benefícios.

Trata-se de um aspecto também enfatizado em Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa Moderna (Freud, 1908/1995c), cuja discussão gira em torno da renúncia sexual a qual os sujeitos se submetem, visando o relativo bem estar da civilização. Em linhas gerais, a moral sexual civilizada é definida como "uma obediência moral sexual àquilo que, por outro lado, estimula os homens a uma intensa e produtiva atividade cultural" (Freud, 1908/1995c, p. 169). A principal ideia do texto remete à concepção de que os sacrifícios sexuais exigidos pela civilização terminam por acarretar num aumento considerável da incidência da neurose.

Para o pensamento freudiano, os sintomas neuróticos se originam dos desejos sexuais insatisfeitos e, por isto, são considerados como satisfações substitutivas de uma sexualidade impedida de se manifestar. É exposto que a grande maioria da população obtém êxito em recalcar seus desejos sob a influência da educação. Já aqueles que não o conseguem tornam-se criminosos sexuais perante os olhos da sociedade. No entanto, mesmo a maioria que logra nas tentativas de recalque não está isenta de maiores problemas, pois o trabalho de recalque é sempre falho: mesmo inibido, o desejo continua a se manifestar de um modo relativamente nocivo, impondo sofrimento ao sujeito e originando os sintomas neuróticos (Freud, 1908/1995c). Trata-se, aqui, de um reflexo das concepções anteriores expostas nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (Freud, 1905/1995b), no qual as neuroses são concebidas como o negativo das perversões. Destaca-se, com isto, que o recalque não põe um fim ao desejo perverso, apenas o lança para o inconsciente aonde ele continua a se manifestar, insistindo em se satisfazer. Porém, esta satisfação - sintomática - é, de certa maneira, compatível com os propósitos culturais.

É justamente por tais fatores que os modelos de subjetivação apresentados nestes textos podem ser considerados emblemáticos para a análise daqueles que são favorecidos pela sociedade disciplinar. Totem e Tabu (Freud, 1913/1995d), por exemplo, se presta bem para demonstrar como os sujeitos encontram um referencial sólido e regulador para a consecução de seus processos identificatórios. Neste sentido, a autoridade simbólica tem sua função equiparada à exercida pelos líderes das instituições disciplinares de confinamento. Ou seja, além de introduzir os sujeitos no mundo da lei, da regra e da norma, ambos se apresentam enquanto referenciais estáveis e duradouros de identificação a serem privilegiados na constituição de determinados modos de subjetivação.

Tudo se passa como se a autoridade simbólica, em conjunto com os predicados e prerrogativas que ela encarna, seja colocada no lugar do ideal do eu do sujeito disciplinado. Trata-se, com isto, de assinalar que o pai, o líder religioso, o professor, etc, possuem tanto uma autoridade simbolicamente legitimada - tal qual o animal totêmico -, quanto um conjunto de importantes atributos que conduzem à sua idealização. Assim, os sujeitos se esforçarão no sentido de empreender uma série de processos identificatórios com os traços idealizados da autoridade e, consequentemente, todos se identificarão entre si pelo mesmo amor, devoção ou raiva a esta figura.

No entanto, convém insistir na afirmação de que estes processos identificatórios se dão, na maior parte, com os atributos, predicados e valores da autoridade simbólica - e não com a sua imagem propriamente dita. Portanto, é com os sentidos encarnados pela autoridade que se empreendem as identificações, processo que pressupõe, de antemão, uma capacidade interpretativa da parte dos sujeitos. Com efeito, a identificação com um determinado sentido que a alguém é atribuído favorece a produção de modos de subjetivação singularizados, pois o mecanismo em jogo se fundamenta nas interpretações particulares que cada sujeito fornece ao outro (Herzog & Salztrager, 2003). Em outros termos, trata-se de assinalar que cada sujeito valoriza uma série de atributos específicos da autoridade simbólica, sempre relacionados aos seus desejos singulares. E mesmo aqueles que idealizam predicados semelhantes, fornecem diferentes sentidos a eles em conformidade com suas criações interpretativas, igualmente singulares. Assim, tal como foi demonstrado no tocante ao sujeito disciplinado, temos em Totem e Tabu (Freud, 1913/1995d) a produção de modos de subjetivação sempre remetidos a alguns mesmos referenciais, porém, altamente singularizados e individualizados mediante uma série infindável de construções interpretativas para aquilo que vem do outro.

Já o modelo de subjetivação de Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa Moderna (Freud, 1908/1995c) também, em muito, se assemelha ao do sujeito disciplinado. Isto se dá em virtude do texto focalizar as vicissitudes subjetivas a partir de seus intermináveis confrontos com a lei e com as tendências valorizadas enquanto normas sociais. Temos, no esquema freudiano, um modelo de sociedade alicerçado na renúncia e, portanto, o favorecimento à criação de modos de subjetivação fundamentados numa série de conflitos entre a ordem da lei e o campo do desejo. Trata-se, aqui, de observar a produção de modos de subjetivação conflitantes, resistentes e, por muitas vezes, revoltados.

Nesta perspectiva, os domínios do conflito, da resistência e da revolta se exibem na medida em que é destacado que os sujeitos não se obrigam, necessariamente, a abrir mão dos desejos sexuais em prol da interdição. Pelo contrário, mesmo disciplinados, eles ainda continuam encontrando espaço para a satisfação, porém sob a condição desta satisfação se dar de maneira compatível com os preceitos morais. Ou seja, no confronto do sujeito com as normas sociais, está sempre presente a possibilidade de uma negociação com a ordem reinante. Visando à solução dos conflitos, alguns optam em manter os desejos perversos e outros escolhem a via da neurose.

No caso destes últimos, temos modos de subjetivação que lograram no estabelecimento de uma formação de compromisso entre a interdição e seus desejos mais acalentados. Existe, aqui, um pacto - se assim o podemos chamar - estabelecido com o domínio da disciplina, de modo que o assujeitamento nunca se dá de forma plena. Isto propicia, novamente, o advento de uma singularização, pois a formação de compromisso é empreendida em conformidade com as fantasias de cada um e resultam em produções sintomáticas particulares que se reportam a uma história de vida específica.

 

A Temática do Controle no Pensamento Freudiano

Se resgatarmos a problemática do confronto do sujeito com as práticas de controle contemporâneas, verificamos uma tendência tanto ao esvaziamento deste potencial de singularização quanto ao hibridismo dos processos identificatórios. Com efeito, uma das formas de abordar estes fenômenos é através do exame dos mais variados fenômenos de massa que tanto se adentram no tecido sociocultural da atualidade. Conforme veremos a seguir, eles se prestam como exemplos bastante contundentes de uma das possíveis práticas de controle ao ar livre por Deleuze (1992) destacadas.

Em si, um fenômeno de massa se diferencia das tradicionais instituições de confinamento sob múltiplos aspectos. De fato, as instituições possuem costumes e hábitos eminentemente duradouros que, por sua vez, se apoiam em determinadas tradições. Isto lhes proporciona certa estabilidade, longevidade e, por tais fatores, elas se destacam enquanto objetos de respeito pelos membros do corpo social. Ademais, verifica-se certa continuidade em suas estruturas, de modo que os sujeitos lá persistem por algum tempo e, mesmo que haja desligamentos, suas funções ou posições são facilmente transferidas outros. Também, destaca-se ser imprescindível para cada sujeito participante a tomada de conhecimento da natureza da instituição, bem como de sua composição e propósitos a serem almejados, tudo isto visando seu bom funcionamento. Trata-se, assim, de observar, nas instituições de confinamento, uma estrutura sólida e razoavelmente harmónica que serve de garantia para os que nelas se inserem.

Já os fenômenos de massa não possuem estrutura e dinamismo semelhantes. Em si, eles merecem ser contemplados, basicamente, enquanto modismos de duração fugaz que se esvaziam facilmente à medida que perdem suas utilidades. São mais considerados como espécies de aglomerações passageiras que se formam em virtude de uma aspiração semelhante da parte de alguns sujeitos. Tão logo este interesse seja satisfeito, a massa rapidamente se desfaz. Também inexiste, em seus domínios, o remetimento a qualquer tradição. Pelo contrário, nas massas, valoriza-se apenas o tempo do presente e, mesmo que uma tradição seja evocada, é apenas com o mero intuito de justificar a interação momentânea entre os sujeitos.

Com efeito, observamos que, na contemporaneidade, as tradicionais instituições vêm, aos poucos, cedendo terreno para a emergência destas variadas formações grupais massificantes. Estas podem se apresentar como altamente sedutoras para o sujeito, justamente, por consistirem em alternativas de modelos de coesão grupal, dado o relativo declínio do poder institucional. Assim, constatando a enorme proliferação dos fenômenos de massa na atualidade e pressupondo que eles devem ser considerados como exemplos de dispositivos de prática de controle, nossa discussão será, agora, endereçada para o ensaio Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/1995f), com o objetivo de examinarmos suas estruturas e funcionamentos.

Em linhas gerais, a análise freudiana parte do pressuposto de que, imerso numa massa, o sujeito pensa, sente e se comporta de modo inteiramente diferente do esperado, no caso de ser tomado em estado de isolamento. Neste contexto, com o devido apoio nas teorias de Le Bon (1895) e de McDougall (1920) são destacadas as principais transformações dos sujeitos quando incluídos nestas formações grupais massificantes.

A primeira delas remete, justamente, à tendência à uniformidade. Ou seja, dada suas inclusões numa massa, Freud (1921/1995f) observa que a distintividade subjetiva se desvanece, o que promoveria certa homogeneização entre os membros do grupo. Em si, este silenciamento das singularidades e das diferenças individuais é remetido aos obscuros - assim por Freud considerados - mecanismos da sugestão e do contágio.

Com efeito, as práticas de sugestão funcionam como solo propício para a emergência de um estado de fascinação tal à figura do líder da massa, promovendo uma inclinação dos atos e pensamentos dos sujeitos rumo à direção por ele enfatizada. Este estado de fascinação é, por sua vez, contemplado enquanto algo que se reporta ao fato de, numa massa, todos estarem relativamente submetidos a uma espécie de poder mágico das palavras. De fato, é exposto que o líder - quando realmente personificado - não precisaria apelar para um discurso lógico ou consistente para promover a sugestão ou o estado de fascinação. Pelo contrário, um discurso meramente apaixonado, exagerado e insistentemente repetido é capaz de instaurá-los, de modo que o argumento mais consistente seja incapaz de combatê-los (Freud, 1921/1995f).

Já o contágio, considerado como um efeito direto das práticas de sugestão, também contribui para o apagamento das diferenças individuais. Trata-se, aqui, de um fenómeno que diz respeito à influência recíproca entre os próprios membros da massa. É através do contágio que se explica, por exemplo, que a simples percepção de um estado emocional nos outros seja capaz de despontar a mesma emoção naquele que a percebe. Também é exposto que quanto maior o contágio, mais os sujeitos se deixarão deslizar para um mesmo estado emocional. Sob sua influência, o sujeito massificado torna-se imperioso, impulsivo e entusiasta, de maneira que quase nada em seu comportamento seja premeditado. Para ele, a noção de impossibilidade desaparece, a ideia do improvável não agrada e a dúvida e a incerteza são deixadas de lado (Freud, 1921/1995f).

Todavia, devemos alertar que o texto freudiano traz consigo a importante consideração de que o aparente controle do sujeito pela sugestão e pelo contágio não deve ser reportado ao prestígio de alguns poucos. Ou seja, esta prática de controle não é examinada como algo que parte dos líderes da massa, como se houvesse, a princípio, uma pretensão em dominar ou submeter os sujeitos. Pelo contrário - e em conformidade com a concepção foucaultiana acima analisada - são os próprios sujeitos massificados os agentes de suas submissões, que assim se deixam render pela sugestão e pelo contágio em nome da necessidade de se estar em harmonia com a massa (Freud, 1921/1995f).

Esta submissão voluntária pode remeter à busca pela inclusão num pacto social ou à tentativa de resgate de algum valor ou modelo identificatório que sirva de referência ao sujeito. Ela também parece se reportar à ilusão de que o envolvimento subjetivo nestas formas específicas de socialização deva remediar uma situação de desamparo sempre recorrente. Ademais, também é exposto que, numa massa, o sujeito encontra as condições propícias para adquirir um sentimento de onipotência considerável, o que lhe permitiria certo afrouxamento do processo de recalque e o consequente rendimento aos seus desejos mais íntimos. Talvez, também por esta razão, ele se deixe voluntariamente levar pela sugestão e pelo contágio. A passagem a seguir é bastante elucidativa a este respeito:

Um grupo impressiona um indivíduo como sendo um poder ilimitado e um perigo insuperável. Momentaneamente, ele substitui toda a sociedade humana, que é detentora da autoridade, cujos castigos o indivíduo teme e em cujo benefício se submeteu a tantas inibições. É-lhe claramente perigoso colocar-se em oposição a ele, e será mais seguro seguir o exemplo dos que o cercam, e talvez mesmo "caçar com a matilha". Em obediência à nova autoridade, pode colocar sua antiga "consciência" fora de ação e entregar-se à atração do prazer aumentado, que é certamente obtido com o afastamento das inibições. No todo, portanto, não é tão notável que vejamos um indivíduo num grupo fazendo ou aprovando coisas que teria evitado nas condições normais de vida, e assim podemos mesmo esperar esclarecer um pouco da obscuridade tão frequentemente coberta pela enigmática palavra "sugestão" (Freud, 1921/1995f, p. 95-96).

Assim, analisada a questão da tendência à uniformidade, vejamos, por fim, como os inúmeros fenômenos de massa favorecem o hibridismo identificatório do sujeito contemporâneo. Em primeiro lugar, devemos destacar que as mais variadas formações massificantes trazem consigo alguns modelos de identificação para o sujeito, tal como demonstramos a respeito das tradicionais instituições de confinamento. No entanto, enquanto nestas últimas o modelo em questão é referido ao que denominamos de autoridade simbólica, nos fenômenos de massa, em sua maioria, ele se reporta a algumas imagens visuais, bens materiais, estilos de vida, gostos musicais, acessórios, vestimentas, etc. Claro está que, assim como as autoridades institucionais, estes distintivos também simbolizam valores, predicados e atributos. E, em si, servem não apenas para delimitar a unidade e uniformidade de uma massa, mas também, para diferenciá-la das que valorizam outros distintivos associados a predicados e atributos igualmente diversos.

Assim, os fenômenos de massa tornam possível ao sujeito contemporâneo um esboço de tentativa de singularização, ainda que vinculada a uma tendência à uniformidade. Trata-se, em outros termos, do empreendimento de um trabalho identificatório basicamente reportado à criação de uma imagem de si, imagem esta homogênea a de alguns, porém, insistentemente demarcada enquanto diferente da dos demais.

Visando uma melhor compreensão deste fenômeno, destaquemos outra distinção marcada por Deleuze (1992) entre os modelos de sociedade disciplinar e de controle. Segundo o autor, a primeira possui dois polos: um que delimita os indivíduos e outro que indica suas posições na estrutura e dinamismo de um grupo. Com efeito, conforme destacado acima, o poder disciplinar é, ao mesmo tempo, normalizador e individualizante na medida em que molda a singularidade de cada um em conformidade com o contexto maior do grupo no qual eles se inserem. Já a sociedade de controle também apresenta dois polos, mas que se reportam ao que ele denomina, de um lado, de indivíduos "dividuais, divisíveis" (Deleuze, 1992, p. 222) e, de outro, a uma amostra, um dado ou mercado. Desta maneira, é proposto que a linguagem das práticas de controle seja feita através de cifras que marcam o acesso ou a rejeição do sujeito a uma determinada informação. Temos, portanto, um modelo de configuração social no qual cada sujeito adentra ou não nos diversos espaços e setores em conformidade com sua posição lícita ou ilícita que, assim, lhe abre ou fecha as portas. Claro está que os fenômenos de massa representam bem este dinamismo. Ou seja, uma das maneiras de abordá-los é relacionando-os a amostras, dados ou mercados que aglomeram alguns sujeitos que obtêm permissão de acesso, justamente, por possuírem imagens, distintivos ou bens valorizados pela massa. Caso, contrário, o acesso é terminantemente negado. Trata-se, em suma, de uma prática que reflete a tendência à constituição de processos identificatórios marcados, ao mesmo tempo, pela homogeneidade e pela aversão ao que se apresenta como diferente.

No entanto, o mais importante para a presente discussão é destacar que, embora as massas viabilizem certo esboço de singularização pela homogeneização e pelo ódio ao diferente, este processo sempre se dá de maneira fugaz. Com efeito, tais processos identificatórios são, em grande parte, marcados por uma transitoriedade tal, que nada pode servir de garantia para sua permanência. Em si, eles possuem sempre um caráter provisório, o que funciona como obstáculo para o empreendimento de um trabalho de identificação relativamente estável.

Claro está que esta transitoriedade identificatória se reporta à própria fluidez característica dos fenômenos de massa. Nesta perspectiva, em muito impressiona a rapidez com as quais eles se dissipam no cenário social contemporâneo. Assim, quando uma determinada massa é descartada, logo outra é composta em seu lugar. Porém, como muitas vezes ocorre, a nova formação massificante valorizará estilos de vida ou imagens corporais diferentes e, até mesmo opostas, das estimadas pela que a sucedeu. Neste percurso, o sujeito massificado abraçará os novos valores e predicados e, por conseguinte, abandonará seu velho estilo de vida em prol do novo. Seus distintivos e acessórios se recobrirão constantemente uns aos outros e, assim, um novo esboço de singularização será empreendido, num processo permanente e aparentemente interminável.

É, portanto, através destes sucessivos - e muitas vezes concomitantes - esboços de singularização que verificamos o hibridismo identificatório do sujeito massificado. Trata-se, aqui, de algo semelhante ao mecanismo de modulação proposto por Deleuze (1992) acima analisado em relação à sociedade de controle. Temos, nas massas, o favorecimento à constituição de identificações sempre auto-deformantes e que nunca chegam efetivamente ao termo, justamente, por serem empreendidas a partir de modelos fugazes e constantemente descartáveis.

Assim, através deste exame da tendência à uniformidade e do hibridismo identificatório nos fenômenos de massa, destacamos como os modos de subjetivação privilegiados pelas práticas de controle contemporâneas contrastam com os favorecidos pelos dispositivos disciplinares. No entanto, conforme ressalta Deleuze (1992), cabe alertar para que nunca nos questionemos sobre qual regime - o disciplinar ou o de controle - seja o mais justo ou tolerável. De fato, cada uma destas formas de configuração social traz consigo certas sujeições, liberações e atrativos. Nesta perspectiva, não podemos, de maneira alguma, cair numa posição maniqueísta - ou mesmo, saudosista - de modo a indagar sobre qual delas propicia um maior ou menor grau satisfação, realização ou mal-estar.

 

Referências

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Recebido em 02 de setembro de 2010
Aceito em 07 de julho de 2011
Revisado em 15 de Agosto de 2011