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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.3 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Os limbos felizes da não-identidade: tensões e implicações

 

The happy limbo of non-identity: tensions and implications

 

El limbo feliz de la no-identidad: tensiones y consecuencias

 

Les limbes heureux de non-identité: tensions et implications

 

 

Michele de Freitas Faria de VasconcelosI; Luiz Felipe ZagoII; Dagoberto de Oliveira MachadoIII; Charles Roberto RossIV

IPsicóloga. Mestre em Saúde Coletiva/ISC-UFBA. Doutoranda em Educação/UFRGS. Membro do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (GEERGE). End.: Cond. Belvedere Green, Cj.9/c.8, Jardim Botânico. CEP: 71680-380 - Brasília - DF. E-mail: michelevasconcelos@hotmail.com
IIGraduado em Comunicação Social. Mestre em Educação. Doutorando em Educação/UFRGS. End.: R. Fernandes Vieira, 533/302, Bom Fim. CEP: 90035-091 - Porto Alegre - RS. E-mail: luizfelipezago@gmail.com
IIIGraduado em Educação Física. Mestre em Educação. End.: Cond. Belvedere Green, Cj.9/c.8, Jardim Botânico. CEP: 71680-380 - Brasília - DF. E-mail: dagoesef@gmail.com
IVGraduado em História. Mestre em Educação

 

 


RESUMO

Esse artigo compõe-se de reflexões a respeito de conceitos, teorias, epistemologias e políticas identitárias. O objetivo é o de tencionar em tais políticas o uso da concepção de identidade, partindo de nossas inserções/implicações acadêmicas, políticas e afetivas. Para tanto, servimo-nos de narrativas e cenas analisadoras que experienciamos em alguns pontos de nossos per-cursos acadêmicos, profissionais e militantes dentro do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) bem como na luta antimanicomial. Nesses espaços, a concepção de identidade costuma ser usada como possuindo o que se pode denominar de "produtividade polí-tica". Para nós, é importante por em análise o primado da identidade enquanto ferramenta de pensamento, de produção de conhecimento e de luta política. Quando essa palavra é utilizada, quais enunciados a fazem possível? Quando se opera com o conceito de identidade, ou mesmo o de identificação, quais limites se impõem, quais engessamentos, quais capturas se produzem? Perguntamo-nos se as identidades culturais/sexuais/raciais fazem mesmo frente à globalização e homogeneização dos territórios existenciais e culturais ou se as ondas de reivindicação identitária das chamadas "minorias" seriam uma resposta mal colocada, apostando que é a própria referência identitária que deveria ser discutida/problematizada. Tentamos esboçar caminhos para uma nova política: assinalamos com que política queremos compor e apontamos a política de que queremos diferir. O desafio aqui proposto seria, então, o de pensar os limites da utilização e centralidade da concepção de identidade tanto para os movimentos sociais quanto como norte para a construção de políticas públicas.

Palavras-chave: Identidade, políticas identitárias, políticas de subjetivação, movimentos soci-ais, políticas públicas.


ABSTRACT

This article consists of reflections about concepts, theories, epistemologies and identity politics. The goal is to discuss how the concept of identity is being used in such polices, from our inser-tions/implications academic, political and affective. For that, we used narratives and scenes ana-lyzers that we have experienced in some areas of our academic, professional and militant action within the lesbian, gay, bisexual and transgender movement (LGBT), as well as in the antima-nicomial movement. In these spaces, the concept of identity is often used as having what can be called a "political productivity". For us, it is important to analyze the primacy of identity as an in-strument for thinking, production of knowledge and political struggle. When this word is used, which enunciations make it possible? When one operates with the concept of identity, or even of identification, which limits are imposed, which rigidities and which capture of senses occur? We wonder if the cultural/sexual/racial identities do really face the globalization and the homogeniza-tion of the cultural and existential territories, or if the waves of identity claims of the so called "minorities" would be poorly placed as a response, indicating that is exactly the identity reference that should be discussed. We try to draw paths for a new policy: we underline with which policy we want to articulate and from which policy we try to be different. The challenge here is to think about the limits for the use and centrality of the concept of identity for both social movements and the construction of public policies.

Keywords: Identity, identity policies, policies of subjectivation, social movements, public policy.


RESUMEN

Este trabajo consiste en reflexiones sobre conceptos, teorías, la epistemología y la política de la identidad. El objetivo es poner en duda el concepto de la identidad de estas políticas, partir de nuestras inserciones y las implicaciones académicas, políticas y afectivas. Para ello, utilizamos las narraciones y escenas de los analizadores que se han experimentado en algunas partes de nuestros cursos académicos, profesionales y activistas dentro del movimiento de lesbianas, gays, bisexuales y transgénero (LGBT), así como en la lucha anti-asilos. En estos espacios, el concepto de identidad se utiliza a menudo como poseedor de lo que podríamos llamar "política de la productividad". Para nosotros, es importante para el análisis en la primacía de la identidad como una herramienta de producción de conocimiento pensamiento, y la lucha política. i Cuando se usa esta palabra, que se creó para que esto sea posible? iCuando se opera con el concepto de identidad o de identificación, incluso, que se imponen límites, que capturas se producen? Nos preguntamos si las identidades culturales o sexuales / raciales que aun frente a la globalización y la homogeneización de los territorios culturales y existenciales o las olas de las reivindicaciones de identidad de las llamadas "minorías" sería una respuesta fuera de lugar, está apostando a que la referencia de identidad debe se discutirá / tela de juicio. Hemos tratado de esbozar caminos para una nueva política: hemos señalado que la escritura política y destacó la política que queremos aplazar. El reto aquí se propone, entonces, pensar en los límites de uso y la centralidad del concepto de identidad tanto para los movimientos sociales y como norte la construcción de políticas públicas.

Palabras-clave: Identidad, políticas de la identidad, políticas de subjetividad, movimientos so-ciales, políticas públicas.


RÉSUMÉ

Ce document se compose de réflexions sur les concepts, théories, l'épistémologie et la politique identitaire. L'objectif est de contester l'utilisation de la conception de l'identité par ces politiques à partir de nos inserts et implications académique, politique et affectif. Pour ce faire, nous servir avec des histoires et des scènes analyseurs ont connu dans certaines parties de nos voyages, des universitaires et des militants professionnels au sein du mouvement pour les lesbiennes, gays, bisexuels et transgenres (LGBT), ainsi que des anti-asiles. Dans ces espaces, la notion d'identité est souvent utilisé comme possédant ce qu'on pourrait appeler «la politique de la productivité». Pour nous, il est important pour l'analyse de la primauté de l'identité comme un outil de production de connaissances pensée, et la lutte politique. Quand ce mot est utilisé, qui visait à rendre cela possible? Lorsque vous travaillezavec la notion d'identité, ou même d'identification, quels sont les limites imposées, quelles plâtreries, quelles les captures sont produites? Nous nous demandons si les identités culturelles ou sexuelles / raciale de même le visage de la mondialisation et l'homogénéisation des territoires culturels et existentiels ou des vagues pour revendiquer une identité des minorités serait une réponse mal placée, fait le pari que la référence identitaire très qui devrait être discutée / problématique. Nous avons essayé d'exposer les moyens d'une nouvelle politique: nous l'avons souligné que l'écriture politique et a souligné la politique que nous différons. Le défi ici serait proposé, puis, à penser les limites de l'utilisation et la centralité de la notion d'identité pour les deux mouvements sociaux et que au nord à la construction des politiques publiques.

Mots-clés: Identité, politiques identitaire, politiques de la subjectivité, mouvements sociauxm, politiques publiques.


 

 

Esse artigo compõe-se de reflexões a respeito de conceitos, teorias, epistemologias e políticas identitárias. Servindo-nos de narrativas e cenas analisadoras que nós, os autores, experienciamos em alguns pontos de nosso percurso acadêmico, profissional e militante, nos propomos a pensar práticas identitárias discursivas e não-discursivas, que são simultaneamente produzidas e alicerçadas em políticas públicas e movimentos sociais. Ao longo de nosso percurso na academia e na militância dentro do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) e na luta antimanicomial, a concepção de identidade costuma ser discutida como possuindo o que poderíamos denominar de "produtividade política". Ou seja, sua utilização tende a se justificar pelos ganhos que acarreta para a luta política, principalmente no que diz respeito à sua potência de agregação: o que reúne as pessoas na praça? Articulado a isso, as políticas públicas e a legislação existentes que dizem respeito aos grupos minoritários se dirigem ao quê? Às identidades.

Inseridos no bojo dos movimentos sociais supracitados e das políticas públicas a ele articulados, surgem os seguintes questionamentos (micro)políticos: as identidades culturais/sexuais/raciais fazem mesmo frente à globalização e homogeneização dos territórios existenciais e culturais? Ou as ondas de reivindicação identitária das minorias seriam uma resposta mal colocada, sendo que é a própria referência identitária que deveria ser discutida/problematizada? Afinal, que política objetivamos fazer? Com que política queremos compor? De que política intentamos diferir? O desafio aqui proposto seria, então, o de pensar os limites da utilização e da centralidade da concepção de identidade tanto para os movimentos sociais quanto como norte para a construção de políticas públicas, tensionando as implicações da apropriação feita de um determinado conceito de identidade por esses dois planos sócio-políticos do nosso presente. Assim, procuramos apontar modos de funciona-mento da captura identitária, enunciando-os, provocando-os, desestabilizando-os.

Com o texto, o objetivo é o de borrar os mapas vigentes, produzir um pensamento inten-sivo e intempestivo, fazendo do estranhamento uma experimentação da diferença em nós (De-leuze, 1992), construindo ao longo da argumentação um exercício reflexivo que parte das práti-cas micropolíticas e microfísicas que experenciamos em direção a uma ultrapassagem que nos conduza além do uso e abuso de uma determinada concepção de identidade. É central aqui entender que as políticas identitárias são tanto (con)formadas pelos discursos das políticas públicas e dos movimentos sociais quanto a eles se referem, deles derivam e neles se alicerçam. É esse movimento de ricocheteio ou, mais claramente, é essa interrelação produtiva que liga os polos das políticas identitárias com o polo da formulação das políticas públicas e práticas militantes em que se debruçam nossas análises. Para tanto, analisamos as chamadas práticas identitárias no sentido de possibilitar a problematização de sua vontade de verdade (Foucault, 2004b), abandonando-a, seguindo metodologicamente linhas que cartografam o movimento de fluxos e fazendo funcionar análises de implicação (Lourau, 1995) que possam dar passagem às perguntas que fazemos. Para nós, segundo nossas inserções acadêmicas, práticas militantes e convicções políticas, é importante por em análise o primado da identidade, enquanto ferramenta de pensamento, de produção de conhecimento e de luta política. Quando utilizamos essa palavra, quais enunciados a fazem possível? Quando trabalhamos com o conceito de identidade, ou mesmo o de identificação, quais limites se impõem, quais engessamentos, quais capturas se produzem? Investimos aqui na análise de um mapa que faça aparecer as condições atuais de uso e de abuso da noção cristalizada de identidade pelos movimentos sociais e políticas públicas, nos percalços que tal noção enfrenta, nas atualizações que são engendradas para manté-la viva e útil. É por isso que escrevemos: para minar sua reconstituição/reificação e para dar potência à criação de realidades outras que prescindam da essencialização da identidade, desnaturalizando e descentralizando tal concepção. A finalidade aqui não é a de nos posicionarmos contra ou favor do conceito de identidade, mas de refletirmos sobre as consequências de um determinado modo de uso e abuso de tal concepção pelos movimentos sociais e políticas públicas, o qual parece estar atrelado a mecanismos de controle e processos de serialização subjetiva.

Nessa direção, precisamos diferenciar dois planos de análise: (1) Um plano de organização, vertical e organicista, que organiza os corpos, transformando-os em organismos, classificando-os, identificando-os, capturando-os, depurando-os, furtando-lhes a hibridação e o devir (Biopoder: poder sobre a vida); (2) Um plano de consistência, atual, plano dos processos de atualização, intensivos e intempestivos, que esboçam aquilo que estamos em vias de nos tornar, nosso devir-outro. Plano virtual, composto por singularidades, partículas descontínuas, que não seguem uma trajetória determinada. Essa virtualidade interpenetra a ordem vigente (plano de organização), não lhe é exterior, ao contrário faz parte dela. Alguns desses fragmentos podem vir a ser encarnados na ordem vigente, dando lugar a algo definido, a uma nova forma. Nesse sentido, "não se entende (...) a dissipação de uma ordem como seu negativo, e sim como uma possibilidade, uma dimensão em que se engendra a processualidade do mundo: o movimento permanente de decomposição das ordens, em múltiplas e imprevisíveis direções" (Rolnik, 1995, p. 146).

Situando nossa análise nesse segundo plano para movimentar o primeiro, abrem-se possibilidades de romper o tempo linear do poder e pensar como se reage a essa ruptura. Sobre a borda do que é, desorganiza-se, atualiza-se, desvencilha-se das armaduras identitárias, hibridiza-se, devém:

Devir é a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que já estamos em vias de nos tornarmos e através das quais nos tornamos alguma coisa. (Deleuze & Guattari, 1997, p. 64)

Devir é dança, é agenciar-se com o caos e "somente quem tem o caos dentro de si [e não teme deixá-lo ganhar corpo] pode dar à luz uma estrela bailarina" (Nietzsche, 2008, p. 41).

 

A Biopolítica: Da Produção de Subjetividades Identificáveis e Identificadas

Antes você ficava mais em casa, é isso?

Era, aí eu... tinha mais liberdade, assim pra...demonstrar a minha opinião, assim, agir naturalmente.

Que contradição, antes você ficava mais preso em casa, mas se sentia mais livre? É is-so?

(...) é, porque... dizem que... já viu uma frase que diz que quatro paredes não fazem uma prisão, né? Eu vivia numa prisão com muros, mas agora eu vivo numa prisão sem muros. Uma prisão feita pela sociedade, né? E a gente não pode demonstrar a nossa opção sexual sem ser taxado, né1?

No panorama da modernidade, vigorando de forma atualizada ainda na contemporaneidade, forja-se uma economia de poder que se desdobra positivamente sobre a vida, empreende sua gestão, sua propagação e exerce sobre ela controles precisos, o que inclui a vigilância dos indivíduos e a administração da população (Foucault, 2005; Vasconcelos, 2008, 2010a).

Esse tipo de relações de poder põe em circulação práticas discursivas e não-discursivas que, de acordo com interesses particulares, fazem a sua circunscrição em quadros de referência específicos. Tais práticas tomam corpo e tomam o próprio corpo em esquemas de comportamento, em conjuntos técnicos, em instituições que, atuando de forma articulada, operacionalizam a transmissão e a difusão de modos específicos de subjetivação. A medicina é uma dessas instituições, como também a psiquiatria, a sexologia, a psicologia, a pedagogia, a demografia, a estatística, os mass media, a religião etc. (Vasconcelos, 2010a, 2010b). Acrescentaríamos que algumas correntes dos próprios movimentos sociais organizados, agora institucionalizados e terceirizados como prestadores de serviço para o Estado, também acabam por investir na padronização de processos de subjetivação de grupos para os quais supostamente aí estão para ser representados e defendidos.

Aqui entendemos por instituição um conjunto de lógicas que visam, exatamente, regulamentar a vida dos homens; formações discursivas através das quais se objetivam e se legitimam valores. Em outros termos, entendemos como instituições

não o estabelecimento ou local geográfico, mas relações e campos de força instituídos e produzidos - percebidos como naturais que se opõem constantemente a outros campos de força instituintes. Daí dizemos que as instituições - diferentemente de como são vistas - não são estáticas, cristalizadas e, portanto, eternas. Estão em constante movimento, em devir permanente, o que significa que podemos nelas interferir. (Coimbra, 2001, p. 21-22)

Todavia, uma vez organizadas entre si, as instituições produzem uma sensação de estabilidade que tende a ser naturalizada e uma operação contínua de moralização. Nesse sentido, a instituição "moral" parece se apresentar como "âncora invisível de todas as outras instituições - derradeira tábua de salvação, arrimo do instituído -, reproduzindo sempre o mesmo como se fosse o único modo de existência" (Paulon, 2006, p. 121). Nessa direção, aproxima-se o dilema institucional do dilema existencial:

(...) toda instituição impõe ao nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dá à nossa inteligência um saber, uma possibilidade de previ-são, assim como de projeto. Nós reencontramos a conclusão seguinte: o homem não tem instintos, tem instituições. O homem é um animal se despojando da espécie. Assim, o instituto traduziria as urgências do animal, e a instituição as exigências do homem". (...) o tipo homem é um projeto de formação de instituições. (Paulon como citado em Deleuze, 2006, p. 127)

As instituições e os modos de subjetivação - tomados aqui como campos enrijecidos dos repertórios de subjetivação - são vetor e suporte, duplamente, de um complexo poder-saber: produzem-se e naturalizam-se as instituições, produz-se e naturaliza-se um certo tipo de subjetividade, um certo tipo de produção desejante, um certo "percurso conformista do desejo ao processo moralizante das instituições" (Paulon, 2006, p. 125). Devemos, pois, desejar, conforme as instituições prescrevem que se deve desejar. "Formações institucionais, fôrmas desejantes": identidades (Paulon, 2006, p. 130). Nessa direção, Guattari e Rolnick (2000) dizem o seguinte:

(...) a identidade está frequentemente vinculada ao reconhecimento. Quando a polícia pede a carteira de identidade de alguém é justamente para identificá-lo, reconhecê-lo socialmente. (...) não se trata apenas de subjetividades identificáveis ou identificadas, mas de processos subjetivos que escapam às identidades. (...) Ora, o que interessa à subjetividade capitalística não é o processo de singularização, mas justamente esse re-sultado do processo, resultado de sua circunscrição a modos de identificação dessa subjetividade dominante (Guattari & Rolnik, 2000, p. 68-69).

Eis aí um importante elemento, tanto teórico quanto político, que surge na discussão sobre identidade: hoje ela parece participar muito mais ativamente de uma complexa maquinaria de produção, busca e confisco das subjetividades, cujo efeito mais útil é o próprio controle, a edificação de modos de controle da subjetivação, do que compõe um repertório de práticas desafiadoras ou subversivas frente às contemporâneas formas de sujeição. Do modo com que são praticadas hoje, as políticas identitárias parecem estar sendo chamadas a servir aos controlatos do nosso presente - constituindo-se em ferramentas de homogeneização da multiplicidade subjetiva - e deixando de possibilitar a ultrapassagem para novas paisagens de subjetivação.

Não discordamos da idéia de que, em relação a outros tempos, outras épocas, outras sociedades, outras culturas, a celebrada multiplicação e provisoriedade das identidades atuais se tornou um "fato". Nosso argumento, por outro lado, é que o próprio estatuto e utilidade da concepção de identidade - por mais múltipla, por mais provisória, por mais instável e por mais "rasurada" que esteja - permaneceram na sua função "moderna" de majorar o controle, sobretudo, sobre aqueles e aquelas que respondem positivamente à sua interpelação. Nem mesmo o estilhaçamento da identidade em múltiplas partes, acrescentando-lhe infinitos "s", deixou de subscrever sua naturalização; a identidade tornou-se essas milhões de paróquias que dobramos de fora para dentro de nós, esse quadro referencial pelo qual fazemo-nos passar repetidas vezes, esse sem-número de pontos de sutura que conformam sujeitos atrelados a uma suposta estrutura identificante. Pulverizada, a identidade multiplicou-se, sim, mas multiplicou também a penetração do poder na fabricação controlada, fabricação em série, de nossas subjetividades.

Com isso não desprezamos a possibilidade de que uma determinada concepção de identidade tenha sido importante para a constituição dos mais variados movimentos sociais e também na formulação de políticas públicas, realidades estas que foram importantes para a emergência de territórios subjetivos importantes para pessoas até então alijadas do exercício da cidadania. Verificamos isso claramente quando revisamos a trajetória do movimento LGBT (por exemplo, Fachinni & Simões, 2009; Green, 2002; Carrara & Simões, 2007; Fachinni, 2009). A construção de um movimento social materializado no controle da execução e formulação de políticas públicas, bem como a existência de organizações não-governamentais, puderam compor, junto com outros elementos sociais, quadros de referência para a consolidação de uma prática de cidadania que passava pela afirmação daquilo (ou daqueles) com quem se identificava: "ser um escritor gay", por exemplo, "é afirmar uma afetividade que, longe de acentuar o isolamento e a alienação do homem contemporâneo, é uma forma de redefinir práticas políticas (...), uma estética de existência" (Lopes, 2002, p. 38). Pois a crítica esboçada aqui não diz respeito a uma valoração do tipo certo-errado no papel desempenhado por tais práticas identitárias. Nossa problematização se centra justamente nas consequências presentes hoje na exacerbação "viral" das políticas identitárias, na capilarização e compartimentalização exageradas que tais políticas promovem, transformando o conceitode identidade com o qual operam muito mais em um sistema de fechamento subjetivo que numa multiplicidade incontável de escapes às formas institucionalizadas de reivindicação política.Na contramão de naturalizações identitárias, intentamos afirmar o sentido de produção histórico-política dos processos de subjetivação, entendendo-os como datados historicamente, forjando-se através de um agenciamento heterogêneo de intensidades (vetores de subjetivacão materiais, económicos, tecnológicos, institucionais, culturais, linguísticos etc.), as quais se localizam num espaço e num tempo específicos. Processos de subjetivação são, então, dobras de um Fora institucionalizado, discursivo e não discursivo; redobras de linhas do Fora, do poder e do saber, que tensionam em alguma superfície e dobram-se; ali onde o Fora se dobra, ele cria o efeito de um Dentro, cria sujeitos possuidores de uma suposta identidade, interioridade e pro-fundidade psicológicas, mesmo em tempos de subjetividades exteriorizadas, em que vestimos nossa alma para o lado de fora. "Ora a dobra do infinito, ora a prega da finitude que dá uma curvatura do lado de fora e constitui o lado de dentro" (Deleuze, 2005, p. 104). Não há nada de natural no fabricar a dobra, no forjar uma interioridade, no arquitetar uma profundidade: pois se o humano deixa de sê-lo para tornar-se sujeito, é porque houve tal fábrica graças à produtividade do poder que nele - através dele - se exerce, graças ao saber sobre sua interioridade, graças às suturas identitárias que inventam algo que possa ser chamado de "eu" (Rose, 2001; Doménech, Tirado & Gómez, 2001).

Não cabe aqui a pergunta quem engendra, quem planeja ou quem autoriza e nega os processos de subjetivação; não cabe descobrir ou desvelar, denunciar ou delatar os autores de tais processos, isso porque todos nós, fragmentos de nós, participamos ativamente de simultâneos processos de subjetivação, ora ope- rando-os em nós próprios - "o 'eu' se forja em peles" (Swain, 2002, p. 325), ora governando os próximos - conduzindo a conduta dos outros (Rose, 1998). A questão é como os processos de subjetivação acontecem, por onde eles passam, quais são seus vetores e suportes. Numa certa cartografia, a dos nossos tempos e contextos, a identidade é conceito e palavra que efetivamente faz acontecer a subjetivação: "E, verdadeiramente, não há poderdas palavras, mas palavras a serviço do poder: a linguagem não é informação ou comunicação, mas prescrição, ordenança e comando" (Deleuze, 2006, p. 360).

Isso significa, então, entender que tal processo diz respeito à produção de modos de viver e de existir no mundo e que, por isso, está estritamente imbricado com relações de poder. Nessa direção, Foucault (2001, p. 146) assinala que a potência da economia de poder da modernidade - bem como a da contemporaneidade - reside no fato dela materializar-se em técnicas de subjetivação, assumindo as formas mais regionais e concretas e, dessa forma, atingindo a realidade mais concreta dos corpos: "o poder penetrou no corpo [individual e social], encontra-se exposto no próprio corpo" e produz efeitos sobre ele. A constituição do sujeito se dá, assim, atravessada pela moral estratificada de uma época (Vasconcelos, 2008).

Em outros termos, tal economia de poder, com a finalidade de administração da vida, antes de tudo, investiu no biológico, no somático, no corporal:

o biológico reflete-se no político, fazendo com que haja uma proliferação de tecnologias políticas que, a partir de então, vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, [de e com quem ter relações afetivo/sexuais], as condições de vida, todo o espaço da existência. (Piovezani Filho, 2004, p. 139).

Perspectivado dessa maneira, "o corpo é uma realidade bio-política" e as diversas instituições são estratégias biopolíticas (Foucault, 2001, p. 80).

Articulando-se com tal análise, Guattari e Rolnik (2000, p.15) assinalam que a potência dos modos de produção capitalísticos não se encontra apenas na tomada de poder sobre os meios de produção, ou seja, "não se reduz ao campo da mais-valia económica: ela está também na tomada de poder da subjetividade", na edificação de modos de controle da subjetivação. Desse modo, com o objetivo de garantir, além da sujeição econômica, também uma sujeição simbólica, engendram-se técnicas de subjetivação por meio das quais se opera uma modelização que diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações afetivas, sexuais: a tudo aquilo que pesa no eu. Essa grande "fábrica de eus" é definida pelo teórico como "modo de produção de subjetividade capitalístico".

Cabe aqui uma advertência:

(...) se hoje esses coágulos institucionais e subjetivos surgem como produtos dados, sem vestígios de seu processo de produção, é bom não esquecermos que em algum momento e por algum motivo as relações entre os homens assim os fixou, a cultura as-sim os valorizou. Deu uma forma tal a ponto de os institucionalizar. Se vingam, é porque em algo nos atendem: o que há de nosso desejo em preservá-las? Qual sua utilidade? (Paulon, 2006, p. 124)

Pois se o movimento de essencialização da identidade ainda persiste, ressucitando-a ali mesmo onde foi recém-aniquilada, como égide de movimentos organizados e de conformação de políticas públicas, como ícone de luta política, como ferramenta de análise ou como peça na produção de conhecimento, isso acontece porque ela ainda dá a impressão de que nos é útil. De onde vem nosso desejo de preservar imaculada a identidade?

 

Da Produção de uma Epistemologia Identitária

(...) uma adolescente de 16 anos. E que a família não aceita. Ela não é homossexual e que (...) tem transtorno de gênero mesmo. (...) Ela não é trans ainda. Ainda, certo? Ela é uma candidata seríssima a ser transsexual. Mas ela ainda tem 16 anos e ela ainda não tá podendo tomar essa decisão sozinha. Mas ela tem o que a gente chama de transtor-no de identidade de gênero. O que é isso? Ela tem uma mente masculina presa num corpo feminino. (...) Pela CID 10 é um transtorno, por quê? Porque ele causa sofrimento. Então ele não tá num transtorno, nem como a personalidade, nem como um transtorno de psicótico ou depressivo. Não. Ele está nos transtorno das coisas, das funções fisiológicas. Como um transtorno de apetite, como o transtorno do sono. Então, o que é que a gente pensa? É o seguinte. Ela não consegue conviver bem com um corpo de mulher, tendo uma mente masculina. Então ela nãoaceita o corpo e toma atitudes que são auto-mutilantes. Isso é um transtorno porque ela se fere. Ela introduz papel, papel higiênico, na vagina de forma a impedir o fluxo menstrual. Porque a menstruação pra ela é uma coisa que... não é feminina. Ou, é uma coisa que é feminina e ela não quer. Ela espreme os seios. Ela tá se machucando, Ela raspa a cabeça.

Deixa só eu te perguntar uma coisa porque aí é (...) se em um determinado momento, a homossexualidade tava na CID porque causa sofrimento, não é?

Sim, sim, sim.

Eu fico pensando nessa coisa de identidade de gênero, se não é uma coisa muito mais social que causa esse sofrimento, de identidades muito constituídas, da pessoa não poder desviar, do masculino, do feminino, do homem e da mulher...

Hamham. Eu acho que tem sim uma influência social importante. Mas no caso da identi-dade de gênero, é mais uma coisa pessoal (...). É a coisa que não aceita o corpo que ela tem. É como um transtorno dismórfico corporal, por exemplo. Em que eu acho que o meu nariz é muito grande e esse nariz muito grande me causa horror2.

Projeto Oficial da Modernidade

(1) Projeto de simplificação (é simples o que pode ser isolado, mensurado), de totalização (exclui o que se encontra fora dele) e de purificação (de separação entre supostas formas puras).

(2) Projeto produtor de binarismos, de dicotomias, que se opera através da lógica da demarcação, da depuração, da localização, do enquadramento.

(3) Projeto de padronização para a automação.

(4) Projeto que impõe uma dupla separação: de um lado, o que pode ser representado, purificado, circunscrito em sua identidade. De outro, os híbridos, seres que se furtam à representação, que resistem à simplificação, à redução a formas puras. Seres de natureza mista, "que ocorrem em redes reais, discursivas e coletivas, e que não são tematizados pelo pensamento moderno", seres que ultrapassam os limites da modernidade por todos os lados, conduzindo ao questionamento de seu projeto oficial (Kastrup, 1999, p. 28; Vasconcelos, Barbosa, & Morschel, 2007; Vasconcelos, 2010b).

Quem sou eu?

Dicionário da Língua Portuguesa Larrouse (Larrouse, 1992, p. 600): "Identidade. s.f. 1. Caráter do que é idêntico; concordância, permanência. 2. Característica, caráter permanente e fundamental que distingue um indivíduo ou grupo dos outros. 3. Relação entre duas ou mais coisas (ou seres) de similitude perfeita".

A economia de poder da modernidade "impõe a si mesma o dever de fazer de cada um de nós alguém (...) com uma identidade bem definida pelos cânones da normalidade (...) que marcam aquilo que deve ser habitual, repetido, reto, em cada um de nós" (Ferre, 2001, p. 196). Corpos normalizados, enrigecidos, subjetividades identificáveis ou identificadas, identidades resistentes.

Quem é você?

Modernidade. Vontade de ordem. Tempo de intolerância ao diferente, à diferença, à alteridade e, sobretudo, a qualquer movimento de diferenciação. Um conjunto de práticas é, então, estabelecido para suprimir a desordem, a ambivalência, a indefinição, o desenquadramento, o imprevisível, instaurando-se uma espécie de racismo que, além da recusa, incapacidade de aceitar o não-semelhante, o não-idêntico, apresenta uma obsessão pela diferença: uma urgência em sublinhar as diferenças a fim de mantê-las distantes, tornando-as conhecidas, nomeáveis, imóveis. Identificados, marcados como identidades dissidentes/desviantes/anormais, o corpo dos "outros", "corpo abjeto", parece marcar as fronteiras e os limites, indicando "o espaço que não pode ser atravessado" (Louro, 2004, p. 18).

A vontade de ordem da modernidade também enseja localizar na pessoa, no interior do indivíduo (no seu biológico e no seu psicológico) a sede da doença, escamoteando as relações de poder em aí jogo. No fragmento de falado início desta seção, naturalizam-se os sexos (homem e mulher) e os gêneros (masculino e feminino), estabelecendo fronteiras e fixando identidades. O desvio de tais instituições é a causa, individualizada, do adoecimento, ou seja, a adolescente "possui" uma doença, um transtorno de gênero, um transtorno dismórfico corporal, ela possui um funcionamento corporal antinatural. Que paisagem esse modo de pensar compõe? Em que contexto ele circula como Verdade?

Sabemos que, na modernidade, a ordem deixa de ser vista como algo natural, "que já estava aí", o que resulta no entendimento de que a própria natureza deve ser ordenada e, para tanto, dominada. Nesse contexto, a produção de conhecimento vai ser marcada por um objetivo utilitário: conhecer para dominar, ordenar, enquadrar o "mundo", os indivíduos, as populações. Conhecer para produzir um possível pré-estruturado (Foucault, 2004a; Veiga-Neto, 2001).

Conforme nos indica Veiga-Neto (2001), uma operação de ordenamento inicia-se com a inclusão:

(...) pois é preciso a aproximação com o outro, para que se dê um primeiro (re)conhecimento, para que se estabeleça algum saber (...)acerca desse outro". Detec-tada alguma diferença, se estabelece um estranhamento, seguido de uma oposição por dicotomia: o mesmo não se identifica com o outro, que agora é um estranho. É claro que aquele que opera a dicotomia, ou seja, quem parte, 'é aquele que fica com a melhor parte'. Nesse caso, a melhor parte é do mesmo ou, talvez seja melhor dizer: é o próprio mesmo. (p. 113)

Dessa forma, o efeito dessa operação de ordenamento não é de simetria. Ou seja, embora haja o ocultamento das relações de poder que estiveram ativas nesse processo através da naturalização das díades produzidas, tal operação "cria, de saída, dois elementos que guardam um diferencial entre si", cria, enfim, identidades assimétricas (Veiga-Neto, 2001, p. 113): branco/negro; rico/pobre; normal/anormal; bonito/feio; magro/gordo; homem/mulher; heterossexual/homossexual.

Torna-se claro que "as oposições binárias supõem que o primeiro termo define a norma e que o segundo existe fora do domínio daquele" (Skliar citado por Veiga-Neto, 2001, p. 113). Além disso:

(...) a norma, ao mesmo tempo que permite tirar, da exterioridade selvagem, os perigo-sos, os desconhecidos, os bizarros - capturando-os, tornando-os inteligíveis, familiares, acessíveis, controláveis -, ela permite enquadrá-los a uma distância segura a ponto que eles não se incorporem ao mesmo. Isso significa dizer que, ao fazer de um desconhecido um conhecido anormal, a norma faz desse anormal, mais um caso seu. Dessa forma, também o anormal está na norma (Veiga-Neto, 2001, p. 115).

Fabricou-se, assim, o "Outro": totalidades de anormalidade, dependente das traduções oficiais que insistem em aprisionar/ integrar/incluir a diferença a discursos e práticas institucionais, identificando-a, petrificando-a, opondo-a "a totalidades de normalidade". (Duschatzky & Skliar, 2001, p. 122). Nesse sentido, "Nós" também fomos fabricados. Nós e os Outros, subjetividade identificáveis e identificadas, passíveis, por isso, de conhecimento e de controle.

Nesse panorama, há que se neutralizar o poder letal das possíveis vizinhanças. Na teia desses mecanismos de poder, situam-se os dispositivos de construção de sujeitos e regimes de verdade, engrendam-se as fronteiras repetidamente fortificadas entre identidade normal e anormal. Aqueles que se furtam a tal esquadri- nhamento são identificados: patológicos, culpados. Faz-se, então, de "um desconhecido, um conhecido anormal" (Veiga-Neto, 2001, p. 115). Aqueles que se furtam à identificação, que vivem "os limbos felizes de uma não-identidade" (Foucault, 2004a, p. 88), que habitam 'entre' as fronteiras rigidamente estabelecidas entre identidade normal e anormal, anunciando a arbitrariedade de tais divisões, são postos entre parênteses, traduzindo-se o hibridismo, a resistência de um corpo que não se enquadra nos modelos identitários propostos, em apagamento.

Quem sou eu? Quem é você? Quem somos nós? Quem são os outros? Identidade

A identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável. (Guattari & Rolnik, 2000, p. 69)

 

Um Eixo Importante da Sociedade de Controle

(...) Mas e o Zé Ninguém que é viado?(...) Ela é a Maria Ninguém, tá entendendo? Tipo assim, o que é que não vai acontecer com ela quando ela pegar e tipo assim, e...ela pode se ferrar. Ela pode se ferrar. Ela pode se ferrar porque...

Maria Zé Ninguém?

É exatamente, sabe? Ela pode, tipo assim, qualquer pessoa pode ir lá e chutar ela.

Então porque, é esse o discurso da tolerância: 'eu tolero você porque você tem uma grana, você tem amigos, né? Mas bicha, pobre, eu já escutei isso, e feia...

E feia.

Não tem lugar.

Tipo assim, as que vão vender acarajé, tá entendendo? Que tem uma discussão, lá ti-nha uma, numa festa, aí ela falou ' ah, porque eu tenho, eu não tenho vergonha, tó há dez anos desempregada', ela se falando no, usando o feminino, né? Também negra e tal. Negra, né? E ela tem vergonha de botar uma barraquinha de acarajé lá, porque aí o classismo, o classismo, Michele, dentro do mundo GLS é foda. É muito foda. As bichas querem ser ricas e pisar. Sim, mas é uma coisa muito forte, sabe? Eu vejo as pessoas muito assim, ó, tipo assim, é bicha fina, tá entendendo? Têm as bichas pobres e as bicha finas? As bicha baixaria, as baixaria, 'essas baixaria aí', como eu já ouvi falar e as bichas fina, sabe? De berço, sabe?3

Segundo Deleuze (2008), estamos vivendo na sociedade de controle. Ela não investe mais nos confinamentos grupais de indivíduos, como sua predecessora, mas no controle insularizado, móvel e reincidente sobre os sujeitos; ela não trata mais de apenas esquadrinhar e docilizar os corpos, cerceando qualquer explosão de energia - corpórea ou subjetiva - , mas trabalha no sentido de intensificar, estimular e modular constantemente a utilidade da vida. A sociedade disciplinar disciplinava indivíduos (como diz a palavra, "aqueles que não podem ser divididos ou divisíveis"); a sociedade de controle controla os "divíduos" (aqueles que são partidos em si mesmos, mas que são sozinhos do resto, como se fossem ilhas). Em suma, é uma sociedade que investe em relações de poder que majoram e capilarizam sua penetração nas vidas, nas subjetividades, nos eus dos (in)divíduos, como forma de governo. O que se vê deslizando de uma sociedade para outra, o que se vê ganhando novas formas e novos conteúdos é exatamente a maneira com que as relações de poder são exercidas: não um poder que mais frequentemente interdita ou proíbe, não um poder que mais comumente diz "não" e impede. Nas sociedades de controle, mais do que em nenhuma outra, as relações de poder "possuem, lá onde atuam, um papel diretamente produtor" (FOUCAULT, 2005, p. 90). Ou seja, as relações de poder são de estímulo, incitação, positividade, produção, energia: majoração do poder é, no nosso caso, majoração do controle.

De acordo com Coimbra (2001, p. 30), a sociedade do controle "desde o final da Segunda Guerra Mundial, vem se mesclando com a sociedade disciplinar (aquela que surgiu com a implantação do capitalismo industrial)". A sociedade de controle se caracteriza por atualizar, de modo cada vez mais intenso:

(...) as formas ultrapassadas de controle ao ar livre, que substituem as antigas discipli-nas que operavam na duração de um sistema fechado (família, escola, fábrica, hospital, prisão). O marketing é agora o instrumento de controle social (...). O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. (Deleuze, 1992, p. 220)

 

O que identidade tem a ver com isso?

Diante da exigência por instantaneidade e versatilidade, se nas sociedades disciplinares havia o enrijecimento patológico do princípio identitário, nas sociedades de controle:

(...) não estamos mais sob regime identitário, a política de subjetivação já não é mais a mesma. (...) Dispomos todos de uma subjetividade flexível, experimental e processual e nossa força de criação em sua liberdade deexperimentação não só é percebida e recebida, mas ela é inclusive insuflada, celebrada e frequentemente glamurizada. (Rolnik, 1998, p. 18-19).

Tal paisagem parece, assim, apontar para a produção de subjetividades pós-identitárias4, pós-fordistas, ou seja, para um processo de subjetivação distinto da política identitária. Este processo "se caracteriza pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, pela abertura para incorporar novos universos, a liberdade de hibridação, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios" (Rolnik, 1998, p. 19). Pode-se dizer, então, que esse "novo" equipamento, essa nova aparelhagem de poder forja novos modos de existência: "produzem-se subjetividades condizentes com as sociedades do espetáculo, enfatizando-se os valores e as virtudes da instantaneidade, da descartabilidade, da diversificação, do planejamento e ganhos a curto prazo, da capacidade de se movimentar com rapidez" (Coimbra, 2001, p. 35).

Todavia, ao mesmo tempo em que se abre um leque de efêmeras e infindáveis possibilidades de ser, tais possibilidades devem ser experienciadas dentro de uma axiomática capitalística especificada e especificável. Ou seja, o objetivo central ainda é o de produzir uma homogeneização dos territórios. A esse respeito, afirma Rolnik (1998):

(...) as matérias de expressão, embora fartas e variadas, têm, todas elas, sua etiqueta de valor diariamente reajustadas segundo as oscilações do mercado cultural. A cada lugar do todo, diariamente reciclado, um lugar de linguagem, diariamente reajustado. Ao invés de deixar passar as intensidades, a intenção que predomina é a de se fazer reconhecer no sistema de hierarquização de sentidos e de valores. Fechamento segregativo sutil e implacável: padronização subjetiva. (p. 91)

Tal padronização, "por absorver em boa medida, um conjunto de representações5 acerca do que seja (...) 'o' corpo, ou a sua forma esteticamente viável", por produzir formas específicas de experiências corporais, por veicular um conjunto de prescrições decomo se relacionar com o seu próprio corpo, o do outro e com o mundo, faz com que "uma considerável parcela dos sujeitos (vejam) nas especificidades de seus corpos a feiúra", vejam nas especificidades de suas práticas eróticas algo esdrúxulo, "inscrevendo-se numa exterioridade, num 'do lado de fora', de modo semelhante ao que acontece com a inacessibilidade e com a exclusão promovida por meio das grades, da altura dos muros, das cercas elétricas e, sobretudo, dos condomínios fechados" (Piovezani Filho, 2004, p. 146-47).

Na contemporaneidade, então, mediante a ausência de princípios claros que hegemonizem as formas de ser e de viver, parecemos estar abertos a todos os tipos de diferenças: temos que marcar nossa individualidade, que ser diferentes, que respeitar as diferenças, desde que elas estejam circunscritas a um calhamaço de formas pré-fabricadas de existir, as quais aderimos ou não por conta da nossa 'capacidade' de consumo. Mais do que nunca, os objetos consumidos não possuem apenas funcionalidade (valor de uso), eles deixam de ser manipulados apenas como instrumentos e passam a atribuir significado: o indivíduo é classificado e diferenciado dos demais a partir de suas possibilidades de consumir os objetos expostos no mercado. Nesse sentido, afirma Coimbra (2001, p. 62-63) "os cidadãos hoje são muito poucos: consumidores". Todos aqueles que não têm poder de consumo são considerados estranhos, abjetos, outros, dispensáveis.

Além da produção de igualdade e hierarquização, ou seja, da reprodução do Mesmo, é importante afirmar que o indivíduo ainda procura por uma identidade imutável. Tal paradoxo deriva- -se do fato de ainda se pregar a idéia de uma suposta completude. Todavia, esta não é para ser atingida, uma vez que o indivíduo consome, exatamente, na "eterna" busca pelo fechamento. Desse modo, pode-se dizer que ainda se afirma e se procura por uma 'identidade' indivisa e soberana, ainda:

(...) somos capturados pelo território ou territórios que adotamos como essência. (...) por medo da marginalização na qual corremos o risco de sermos confinados quando ousamos criar qualquer território singular, isto é, independente de serializações subjetivas; por medo deessa marginalização chegar a comprometer até a própria possibilidade de sobrevivência (o que é plenamente possível), acabamos reivindicando um território do edifício das identidades reconhecidas (Rolnik, 1998, p. 96).

Há, assim, uma "contradição das identidades autoconstituídas que devem ser constantemente sólidas para serem reconhecidas como tais e ao mesmo tempo flexíveis o suficiente para não impedir a liberdade de movimentos futuros em circunstâncias constantemente cambiantes e voláteis" (Bauman, 2001, p. 60-61). Desse modo, pode-se afirmar que a tão proclamada flexibilidade, versatilidade não implica uma cisão com o regime identitário, mas sim sua modulação. Como aponta Figueiredo (2002), cada estilo produzido tende a ser naturalizado, segregando o seu impensado e o seu impensável, havendo uma nova cristalização. Ou seja, há a constante troca de uma rigidez por outra, tão reduzida quanto a primeira e, assim, o indivíduo contemporâneo vai se produzindo por meio de pluricisões e exclusões.

Nas sociedades de controle, há o advento de redes digitais, midiáticas e informacionais e, com eles, aceleradas transformações que trazem consigo a desestabilização de não tão antigas certezas: parâmetros de tempo, espaço, história, relação consigo/com os outros/com o mundo, "realidade" caem por terra. Tais transformações e seus efeitos tendem a ser vivenciados de forma perturbadora, colocando em xeque os modos convencionais de ser/estar/ habitar/conviver, fazendo ruir, inclusive, as formas tradicionais de pensar e de experienciar sexo, gênero e sexualidade. Desde 60, surfamos uma onda crescente de mudanças e experimentações relacionadas às práticas sexuais e de gênero: manifestações feministas, pílula anticoncepcional, novas formas de união e de relações afetivo-sexuais, maior visibilidade de homens e mulheres homossexuais. Já adentrando o século XXI, tal onda rebenta de forma ainda mais acelerada: embriões e sêmens congelados; pessoas que, após uma parafernália de intervenções médicas e psicológicas, reclamam uma nova identidade civil para completar o processo de transexualidade; transexuais que não almejam intervenções cirúrgicas para mudança de sexo; transexuais gays e lésbicas; novos modos de exercer paternidade e maternidade; pessoas que reivindicam a não realização precoce da cirurgia para corrigir a "genitália ambígua", relações sexuais virtuais que desprezam dimensões de espaço, tempo, gênero, sexualidade (Louro, 2004; Bento, 2004; Pereira, 2004).

Na contramão de tal padronização Foucault (2001, p. 21) afirma que "(...) na raiz daquilo que não conhecemos e daquilo que não somos não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. Eis porque, sem dúvida, toda origem da moral, a partir do momento em que ela não é venerável, é crítica". Compondo com Foucault, indo na contramão da captura moralizante-cientificista acima analisada, afirma Deleuze (2006) que:

Não se trata mais de ser homem ou mulher, mas de inventar sexos (...) Longe de se fe-char na identidade de um sexo, essa homossexualidade se abre à uma perda de identi-dade, ao "sistema em ato de ramificações não exclusivas do desejo multívoco". (...) não se trata mais absolutamente para o homossexual de se fazer reconhecer e de se colocar como sujeito provido de direitos (...) Trata-se, para o novo homossexual, de exigir ser assim, para enfim dizer: ninguém o é, isto não existe. Vocês nos chamam de homossexuais, de acordo, mas nós já estamos alhures. Não há mais sujeito homossexual, mas produções homossexuais de desejo e de agenciamentos homossexuais produtores de enunciados que enxameiam por toda parte, SM e travestis, nas relações de amor tanto quanto nas lutas políticas. (...) o desejo homossexual é específico, há enunciados homossexuais, mas a homossexualidade é nada, é tão-somente uma palavra, e, no entanto, levemos a palavra a sério, passemos necessariamente por ela para que restitua tudo o que ela contém de alteridade - e que não é o inconsciente da psicanálise, mas a progressão de um devir sexual por vir. (pp.360-362).

 

Uma Política Includente. Até que Ponto?

Nos contextos moderno e contemporâneo, as políticas de inclusão tendem a se transfigurar em "políticas de identificaçãoe governo das diferenças". Dessa forma, toma-se "o outro como objeto de conhecimento e controle" (Larrosa & Skliar, 2001, p. 12). E mais, fabrica-se o "Outro", apresentando-o como "homogêneo, identitário, uno e, portanto, imutável" (Coimbra, 2001, p. 250), o qual é preciso incluir na norma, incluir numa sociedade pré-fabricada, em modelos pré-fabricados. Adotando-se como parâmetro a identidade inequívoca do cidadão (branco, masculino, heterossexual, estabelecido, rico, bonito, trabalhador, consumidor), como traduzir e operar os chamados e tão amplamente proclamados direitos humanos, a democracia, o respeito, a aceitação às diferenças?

Num movimento politicamente correto, amplia-se, pelo menos nos textos da lei, a categoria "cidadãos", afirmando o direito de cidadania aos loucos, aos homossexuais, a uma série de outros muito bem identificados. Ou seja, estes são apreendidos como Loucos, como Homossexuais, com L e H maiúsculos - incluindo-se, por apagamento, nessa categoria todos os anormais/desviantes/sujeitos abjetos, todos os "outros", loucos ou não, homossexuais ou não: usuários de droga, pobres, negros, moradores de rua, da periferia, cegos, feios, gordos etc. Logo, estas pessoas, para as quais proclamamos o objetivo bem comportado da inclusão, tendem, ainda, a aparecer, de modo "unilateral e simplista", como "rostos" homogêneos, como "aqueles que têm um destino já conhecido e previsível" (Coimbra, 2001, p. 250).

Pode-se dizer, então, que se observa a tendência de reduzir a luta pela aceitação da diferença ao objetivo da inclusão social, isto é, da inclusão dos vários outros no mesmo modelo societário que os fabricou e os excluiu, sobretudo, pela fórmula do incluir para excluir, para afastá-los dos iguais, incluindo-os em espaços insulares, muitas vezes serviços assistenciais (lembremos da velha articulação entre desvio social e doença mental), outras vezes em ONG's ou espaços outros guetificados. Tais locais destinam-se a acolher, tolerar, integrar e aceitar os sujeitos abjetos, uma aceitação que, no máximo, acontece no interior desses espaços "protegidos" e que, ao mesmo tempo, "protegem" os normais da convivência com os mesmos. Ou, o que é ainda pior, se traduz a inclusão social como normalização, ou seja, como modo de abrandar/apaziguar as diferenças: quanto menos estranheza/diferença o usuário apresentar ao longo do "tratamento", mais fácil ele será aproveitado no "mundo real", mundo do capital.

Nessa mesma direção, a luta das "minorias" parece seguir o "modelo" de uma forma particular de "resistir" aos efeitos de serialização e homogeneização, a saber, a circunscrição das reivindicações em torno do "reconhecimento de sua identidade" (Guattari & Rolnik, 2000, p. 85-86). Dessa forma, os grupos identitários tendem a funcionar a partir do que se pode denominar de "política do gueto, do separatismo (...) numa discriminação às avessas" (Trevisan, 2000, p. 36), se distinguindo:

(...) precisamente por diferenças a serem compensadas (deficiência da mulher frente ao homem, do negro frente ao branco, do gay frente ao heterossexual (...) [dos anormais frente aos normais]. A política se dissolve em políticas particulares que aspiram com-pensar as deficiências de um grupo biopolítico determinado, em que uma das conse-quências é o esquecimento de ideais sociais mais abrangentes. (Ortega, 2003, p. 66)

É preciso reconhecer que, no interior mesmo dos grupos chamados minoritários, se constroem divisões, experimentam-se fraturas. A política de identidade empreendida pelos grupos homossexuais, por exemplo, fixa uma identidade gay ou lésbica, ao elaborar uma representação do sujeito homossexual que é mais "legítima" do que outras. Faz-se notar "diferenças" entre os já "diferentes".

Essa "identidade homossexual" acaba por fornecer um programa para viver a homossexualidade, pautando suas experimentações, suas vivências sobre uma ótica explicitamente heterossexista. O reflexo mais imediato e preocupante, justamente por seu caráter restritivo/anticriativo, consiste no estabelecimento de uma homonormatividade, onde ser gay remete a observância de um repertório específico de práticas, discursivas e não-discursivas, identitárias. É necessário aprender a respeitar os códigos, os ritos que se tornam operadores hierárquicos das masculinidades homossexuais, distanciando ao máximo dos denominados comportamentos efeminados. Enfim, o sujeito encontra-se num duplo processo de normalização, que restringe a potência inventiva, capturando-se os processos de singularização. Especificamente em relação ao gueto homossexual, pontua Pollak (citado por Pecheny, 2004):

(...) a conquista das liberdades homossexuais acontece graças ao reforço de uma soci-abilidade específica e, indiretamente, de uma segregação como a que indica o termo "gueto" (...). Com efeito, a liberação sexual, sinónimo - no caso da homossexualidade -, de emancipação de uma diferença, se traduz no estabelecimento de um espaço privado do homossexual que, de alguma maneira, se põe ao abrigo da mirada heterossexual. (p. 26)

A luta pela dita inclusão social do louco parece, muitas vezes, seguir esse mesmo movimento de guetificação. Basta considerarmos a tendência de se reduzir o objetivo da Reforma Psiquiátrica à abertura de serviços assistenciais destinados a acolher, tolerar e aceitar o louco, uma aceitação que, no máximo, acontece no interior desses espaços. Nesse sentido, tais serviços tendem a funcionar ensimesmados, ilhados, sem nenhuma articulação com outras instâncias sócio-político-culturais. Perde-se, assim, a potência do movimento antimanicomial, qual seja, o de desinstitucionalizar, o de abrir todas as portas da cidade para a discussão e a convivência com a loucura e, mais que isso, com a diversidade, com o que nos força a diferir.

Nesse quadro, a obsessão pela diferença, "a defesa do direito à diferença transformam-se em luta contra o outro" (Sawaia, 2004, p. 122): luta do negro contra o branco, luta da mulher contra o homem, luta do homossexual contra o heterossexual. Mais do que isso, separados, ilhados, encapsulados, identificados, generalizados, esses grupos prosseguem, produzindo exclusões e estigmatizações:

(... ) o movimento social negro acabou por produzir um certo masculinismo com a pré-suposição de uma identidade negra que é masculina, que exclui a mulher, que exclui o homossexual. Do mesmo modo também que ascomunidades gays, homossexuais, produziram uma determinada brancura (...) como norma estética (Pinho, 2004, p. 129).

No interior desses guetos, produz-se, ainda, o exacerbamento de uma diferença/desigualdade em detrimento de tantas outras que, "na vida real", se encontram articuladas. Como exemplo se pode citar o processo de luta antimanicomial que, tendo como carro-chefe a loucura, costuma, em seus espaços concretos de ação, não problematizar, ou trazer à tona em momentos apenas pontuais, ou de modo pouco consistente, na maioria das vezes e dos espaços, a discussão acerca de outras diferenças (raciais, religiosas, sexuais, de gênero, de classe etc.). Em outros termos, constata-se a existência de poucos espaços de discussão acerca de outras diferenças: de classe, de raça, de sexo, de gênero, de sexualidade, de credo religioso. Focalizando-se em uma só diferença, identificando-a, exacerbando-a, tornando-a um emblema, enfraquece-se, assim, a potência da luta de todo e qualquer grupo dissidente, a saber, a de engendrar novos modos de subjetivação e de convivência.

Munidos da finalidade de colocar em análise esse cenário, precisa ainda ser problematizada a idéia de cidadãos e direitos homogêneos: "pensar tais direitos implica, portanto, negar os modelos de direitos aplicados a uma essência de homem, de sociedade [e de corpo] e que, ainda hoje, são hegemónicos em nosso mundo" (Coimbra, 2001, p. 252). Nesse sentido, entendemos que o que deve se buscar com os movimento gay, com o movimento da luta antimanicomial, e com outros movimentos sociais, é a produção de outras práticas, discursos e afetos com potência para engendrar posturas originais face à diferença, à alteridade, às instituições.

 

Para Além dos Guetos e por uma Política Pós-identitáriaa

Cena: Um voluntário de uma ONG do movimento LGBT entra em contato com uma ONG do movimento ecológico e com a Associação de Moradores de um bairro de Porto Alegre propondo uma parceria para a redação de um projeto de lei municipal que pre-visse a construção de uma praça pública no terreno onde haverá a construção de uma torre residencial. Segundo a proposta, tal praça seria "ecologicamente correta", serviria como espaço de sociabilidade para jovens gays, lésbicas e transgêneros que se encon-tram semanalmente neste local, além de atender as reivindicações da Associação de Moradores do bairro, que protestavam contra a construção da torre. Nem a ONG do movimento ecológico, nem a Associação de Moradores aceitaram a proposta de parceria, alegando divergência de interesses entre as instituições e seus respectivos públicos6.

Ao contrário do que pressupõe o movimento de guetificação, de formação de grupos identitários centrados numa única diferença, torna-se claro que:

(...) no mundo real os sujeitos se produzem através da interseção de diferenças e desi-gualdades diversas (... ) se (...) a desigualdade, a exclusão, a pobreza e a violência se produzem inter-sec-cionalmente através dessas combinações que existem no cotidiano, no concreto e no vivido, a gente pode pensar também que a resposta a essas desigual-dades também deverão ser respostas interseccionais. (Pinho, 2004, p. 129)

Nesse sentido, em contraposição à postura de marcações identitárias, a mola-mestra da problemática das minorias não deveria se situar na luta pelo reconhecimento de uma identidade grupal/cultural/sexual/racial, ideia por meio da qual se tende a bloquear os devires singulares e a situar todos os membros de um dado gueto em categorias do Mesmo.

No que se refere ao movimento feminista, aponta Butler (2003) que "a insistência sobre a coerência e a unidade da categoria mulheres rejeitou efetivamente a multiplicidade das interseções culturais, sociais e políticas em que é construído o espectro concreto das 'mulheres'". A autora prossegue afirmando que:

Insistir a priori no objetivo de 'unidade' da coalizão supõe que a solidariedade, qualquer que seja seu preço, é umpré-requisito da ação política. Mas que espécie de política exi-ge esse tipo de busca prévia da unidade? Talvez as coalizões devam reconhecer suas contradições (...) a aceitação de divergências, rupturas, dissensões e fragmentações, como parcela do processo frequentemente tortuoso de democratização. (...) É a 'unida-de' necessária para a ação política efetiva? Não seria precisamente a insistência prema-tura no objetivo de unidade a causa da fragmentação cada vez maior e mais acirrada das fileiras? (...) Não implica a 'unidade' uma norma excludente de solidariedade no âm-bito da identidade, excluindo a possibilidade de um conjunto de ações que rompam as próprias fronteiras dos conceitos de identidade, ou que busquem precisamente efetuar essa ruptura como um objetivo político explícito. Sem a pressuposição ou o objetivo da 'unidade' (...), unidades provisórias podem emergir no contexto de ações concretas que tenham outras propostas que não a articulação da identidade (Butler, 2003, p. 34-35).

Em outras palavras, a partir da "crise que afeta diversos movimentos, desde o feminismo até certos nacionalismos, que enfrentam os limites, as contradições, os perigos de se fazer política com a identidade" (Doménech et al., 2001), abre a possibilidade de uma outra política:

(...) uma política que renuncia o esquema opressão/libertação/identidade e que busca criar novas formas de experimentar e de sentir, afirmando a diferença, a variação, a me-tamorfose, como formas de resistência a duas formas atuais de sujeição: uma que con-siste em individuar-nos de acordo com as exigências do poder; a outra que nos vincula, nos ata a uma identidade sabida e conhecida e à qual devemos responder. (p. 133-134)

Resta dizer que sabemos que o modo de funcionamento das políticas públicas, estatais por natureza, solicita o exacerbamento de uma diferença, para que esta seja passível de identificação e controle. O movimento social, por sua vez, opera segundo a mesmalógica estatal de focalização. As categorias de reconhecimento utilizadas atravessam, portanto movimento social e políticas públicas. O movimento social investe numa construção identitária que está de acordo com uma política pública que tem precedência e gerência, mesmo que o Estado mínimo social apareça apenas como regulador, sobre essa construção. Quem faz a pergunta: quem você é? O que você precisa? O Estado, ainda o Estado, identificando a diferença, normalizando-a, traduzindo-a à sua própria linguagem, criando um lugar para ela. Como, nesse terreno, renunciar ao esquema opressão/liberdade/identidade? Como bifurcar? Diante da complexidade da pergunta, um rastro de resposta segue o desenho não de uma (macro) política pública, estatal, mas de uma política menor, uma micropolítica, capaz de furar o cerco da burocratização e encharcar o cotidiano de vida, capaz de furar o cerco dos guetos identitários e criar redes quentes de solidariedade, tais como a Louro (2004, p. 35) aponta no enfrentamento da AIDS: "alianças não necessariamente baseadas na identidade, mas sim num sentimento de afinidade que une tanto os sujeitos atingidos (muitos, certamente, não homossexuais) quanto seus familiares, amigos, trabalhadores e trabalhadoras da área de saúde etc. As redes escapam, portanto, dos contornos"7 de um gueto, de uma identidade.

Situando a análise, como acima assinalado, no plano da composição de afetos que engendram movimentos de diferenciação e contágio, plano onde se pode captar e perturbar as figuras e formas vigentes:

(...). Estamos longe da produção filiativa, da reprodução hereditária, que só retém como diferenças uma simples dualidade dos sexos no seio de uma mesma espécie, e pequenas modificações ao longo das gerações. Para nós, ao contrário, há tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenças quanto elementos intervindo num processo de contágio. Sabemos que entre um homem e uma mulher [entre um homem e um homem, entre uma mulher e uma mulher e...e...e...] passam muitos seres, que vêm de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender em termos de produção, mas apenas de devir (Deleuze & Guattari, 1997, p. 23).

 

Modos de Bifurcação: Caminhos Possíveis?

(...) Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem mais importância dizer ou não dizer EU (Deleuze & Guattari, 2000, p. 11).

Partilhando-se de uma perspectiva político-afetiva e não tecnocrática, compondo com a política da diferença (ou seria: com uma antipolítica ou ainda com uma diferença da política?), cabe perguntar: como prosseguir reificando a naturalização de séries binárias, mesmo que cotidianamente reformuladas, as quais pedem a presença de duas realidades previamente dadas, se não há realidades dadas de antemão? Como deslizar nessa fluidez de possibilidades abertas na contemporaneidade sem correr o risco de sermos capturados pelas categorias sociais modelizantes, dicotómicas por 'natureza', produtoras de regimes identitários por "natureza"? Como, nesse terreno, escapar dos dois extremos, ambos restritivos e segregadores, usualmente utilizados: ou nos enclausurarmos, nos endurecermos ou nos tornamos pura intensidade, inteiramente desprovidos de territórios, nos desmanchando incessantemente? Como, então, habitar esse terreno fluido, de múltiplos percursos, entradas e saídas: compondo com a política identitária ou revertendo/subvertendo os pressupostos político-epistemológicos da modernidade?

Optando-se pela subversão das políticas identitárias:

(...) Não se trata só de incluir no nexo político a reivindicação da diferença, das diferen-ças, pretendendo com isso a substituição do Mesmo pelo Outro. A tarefa tor- na-se mais complexa, porque está em jogo entre outras questões fundamentais, liberar-se do princípio de identidade que estabelece o Mesmo e o Outro, desconstruir alógica identidade-diferença que funciona na auto-identifi- cação e na identificação do outro, cuja diferença se situa em uma ordem não alheia à regulada por tal princípio. Trata-se, pois, do questionamento radical de tal lógica (...). (Téllez, 2001, p. 59).

Todavia, assentados em teorias e conceitos identitários, tendemos a trabalhar, a pesquisar, a analisar preservando delimitações entre pesquisador e mundo pesquisado, entre 'nós' e os 'outros', contentando-se em produzir interpretações que se situam nos limites do instituído, do conhecido, do representado e do representável, no reconhecimento do Outro, de um dado mundo (ou seria, um mundo dado?), sem a intenção de desestabilizar as ordenações em curso, ficando restrito à análise do outro da dimensão visível, ou seja, reduzindo o outro a tudo aquilo que é exterior a uma determinada ordem.

A esse respeito, Kastrup (1999, p. 23) menciona que "nos bastidores das formas visíveis, ocorrem conexões com e entre fragmentos, sem que esse trabalho vise recompor uma unidade original à maneira de um puzzle". Nessa mesma direção, a autora (Kastrup, 1999, p. 71) declara que, no plano invisível, "não existem unidades definidas, mas singularidades, partículas descontínuas". Tais singularidades não seguem uma trajetória determinada, sendo as ligações entre essas partículas que podem vir a dar lugar a algo definido, individuado no espaço e no tempo. Essa virtualidade, esse desconhecido, esse individuado, interpenetra a ordem vigente, ou seja, não lhe é exterior, ao contrário, faz parte dela. Em outras palavras, através da relação com o outro, ou seja, com uma ordem diversa, são produzidas desestabilizações e modificações na ordem vigente.

Dessa forma, pode-se dizer que, nesse jogo, nessa luta, nessas relações de poder, sempre há resistência, linhas que fogem e borram as fronteiras do que é estabelecido para ser essa ou aquela identidade: "o poder é em si próprio ativação e desdobramento de uma relação de força", devendo ser analisado em termos de combate, confronto, "uma espécie de guerra silenciosa nas instituições, nas desigualdades económicas, na linguagem, no corpo social e até mesmo no corpo dos indivíduos" (Foucault, 2001,p. 176). Voltemos ao início do texto: a que veio a concepção de identidade? Torna-se claro que esse é um conceito bastante útil para um modo específico de pensar e fazer política, de pensar e fazer ciência. Todavia, mais do que julgar sua utilidade, se faz necessário fazer uma análise inventiva, que não apresente soluções, mas questões que possibilitem o hibridismo e o contágio, em que novas forças e afetos possam ganhar passagem, perturbando políticas e práticas identitárias, bem como os processos microfacistas de fixação, filiação, representação e reconhecimento a elas associadas O reconhecimento prometido pelas políticas identitárias tem-se apresentado como um "reconhecimento perverso" que, em seus modos de concretização se expressa como elemento de administração e controle da vida. Desse modo, ao invés de ampliar as possibilidades de invenção e afirmação da vida, reco- nhecendo-a como potência de diferir, tende a reduzir a alteridade à "pura exterioridade de nós mesmos; uma diversidade que apenas se nota, apenas se entende, apenas se sente" (Skliar, 2008, p. 39); uma "representação de uma identidade fetichizada, estigmatizada" (Lima, 2009, p. 183). Ao problematizarmos o modo como as políticas identitárias figuram práticas cotidianas nos movimentos sociais e políticas públicas, pretendemos apontar para outras formas de viver, em que modos menos rotulados de expressar a vida e de se relacionar com o outro sejam possíveis:

Não temos, nunca, compreendido o outro. O temos, sim, massacrado, assimilado, ignorado, excluído e incluído, e, por isso, para negar o nossa invenção do outro, preferimos hoje afirmar que estamos frente a frente com um novo sujeito. Mas, é preciso dizer: com um novo sujeito da mesmice. Porque se multiplicam suas identidades a partir de unidades já conhecidas; se repetem exageradamente os nomes já pronunciados; são autorizados, respeitados, aceitos e tolerados apenas uns poucos fragmentos da sua alma (Skliar, 2008, p. 39).

Nessa mesma direção, Foucault (2001), inspirando-se em Nietzsche, nos convoca à pesquisa-genealogia: "Agitar o que se percebia imóvel, fragmentar o que se pensava unido", "reintroduzir no devir do tempo tudo o que se tinha acreditado imortal nohomem" (p. 27), "fazer pulular mil acontecimentos agora perdidos sob a marca da identidade" (p. 20), clarificar os sistemas heterogêneos que nos proíbem toda identidade. A análise é, então, entendida aqui como um modo, uma possibilidade de abrir para a variação. Ela não é causa de um efeito antecipado, não é uma teleologia, não é decomposição nem fracionamento. Não é reconhecimento, não significa reconhecer, "'reencontrar' e sobretudo não significa 'reencontrar-nos'" (Foucault, 2001, p. 27). Ela é efetiva na medida em que introduza o descontínuo, o inesperado. "É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar (p. 28), para "marcar a singularidade dos acontecimentos; espreitá-los lá onde menos se os esperava" (p. 15).

Respaldando-se numa ética da diferença, do desvio de rotas, da produção desejante, da inventividade, há ainda que se procurar pelos movimentos de ruptura, pelas subjetividades dissidentes, pelas singularidades, pelas singularizações. Há, sobretudo, que se preocupar em se constituir, em pensar e experienciar o próprio ato de pesquisar, de escrever, de analisar como uma força disruptiva, não-identitária. Pesquisar, na tentativa de fortalecer linhas de fuga nesses tempos em que a perturbação, essa potência de afetação que toda alteridade traz em seu seio se abranda ao ser inadvertidamente incluída, identificada, apaziguada. Perturbar o caráter de evidência dos saberes, fazeres e das sensibilidades que produzem corpos normalizados, identificados: corpos psiquiatrizados, corpos generizados, sexuados e sexualizados (isso para não falar de uma série de outras demarcações, de marcadores identitários), eis nosso desejo.

Ainda no que se refere às possibilidades de resistência, ressaltemos a afirmação de Fridman (2000, p. 75): "que não se duvide da colonização do inconsciente no capitalismo tardio, mas que também não se minimizem o campo de iniciativas e as possibilidades de ação de homens e mulheres contemporâneos na politização do cotidiano", na politização dos "nossos" corpos. Politizar os "nossos" corpos passa necessariamente pela abdicação da tirania do Eu, da postura etnocêntrica e racista de rotulação, identificação e exclusão do diferente a partir de um esquema de valores e práticas apriorístico. Passa ainda pela ousadia de se deixar afetar pela alteridade ao invés de resistir à diferenciação:

Realizar essa travessia não é tão simples assim: libertar a subjetividade da tutela do ter-ror em relação ao outro (... ) passa, necessariamente, pela conquista da possibilidade de experimentá-lo. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma, algo em nós e ao nosso redor funciona como força a favor (Rolnik, 2002, p. 13-14).

Ressaltemos, ainda, que a politização do corpo e do desejo "não encontra uma só expressão. Existem histórias solitárias e noturnas que estão encharcadas de força política, que podem dobrar as referências midiáticas e acadêmicas acerca do desejo" e do corpo (Coimbra, 2001, p. 48), incluindo-se os "nossos", desejos e corpos. Abrindo-se espaço para modos de produção de subjetividades situados aquém e além da axiomática capitalística, acenando-se a possibilidade de desconstrução da lógica identidade-diferença, "talvez hoje (...) tenha chegado a hora de se tentar superar teórica e, por que não, politicamente a oposição 'moderna' entre hetero e homossexualidade", entre normalidade e anormalidade (Pereira, 2004, p. 62). Talvez tenha chegado a hora de baixar a guarda das fronteiras rigidamente edificadas entre "nós" e os "outros".

Nessa direção, pensamos com Coimbra, Lobo e Nascimento (2009) que se o humano, o direito, a cidadania, a identidade "são construções das práticas sociais em determinados momentos, que produzem continuamente esses objetos, subjetividades e saberes sobre eles" (p. 36) é a partir "das experiências de cada um de nós na coletividade, na imanência das nossas práticas e das lutas de nosso tempo histórico" (p. 39), que podemos problematizar esses conceitos e as práticas a eles articuladas.

O objetivo é compor coletivos de resistência, pensando e apostando numa política que não se confunde com polícia bem como na radicalização da democracia, separando-a das práticas e legitimações do sistema consensual e representativo (Rancière, 1996). Nesse percurso, podemos rachar as palavras direitos humanos, cidadania, identidade. Cabe aqui convocar Deleuze (1992):

Os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as "alegrias" do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há Estado democrático que não esteja total-mente comprometido nesta fabricação da miséria humana. A vergonha é não termos nenhum meio seguro para preservar, e principalmente para alçar os devires, inclusive em nós mesmos. Como um grupo se transformará, como recairá na história, eis o que nos impõe um perpétuo "cuidado". (pp. 213-214)

Nesse sentido, ao invés de uma "cidadania de sujeição", estatizante, que exerce dominação dos corpos colando-os a um rosto homogêneo e transcendental de Homem, de Humanidade e inserindo-os numa ordem também homogênea de demandas e de direitos, podemos experimentar uma cidadania que brota não mais de identidades soberanas, mas imanente a processos singulares e, desse modo, produzir outros "rostos" de direitos humanos, num movimento associado às nossas práticas cotidianas (Carvalho, 2009; Coimbra, 2001). É que "nós sonhamos com outras coisas mais clandestinas e mais alegres" (Deleuze, 1992, p. 18). Para nós, o que interessa saber é se:

(...) há encontros possíveis, acasos, casos fortuitos, e não alinhamentos, aglutinações, toda essa merda em que se supõe que cada um deva ser a má consciência e o inspetor do outro. (...) O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais, em que os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualidade, droga, etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios. Contra os que pensam "eu sou isto, eu sou aquilo", (...), é preciso pensar em termos incertos improváveis, eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, (...) - nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza "eu sou bicha". O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo (Deleuze, 1992, p. 21).

Como escapar das promessas de políticas identitárias, de um dado reconhecimento que nunca chega, mas que ao contrário, apenas serve para rotular, monitorar e controlar? Nossa aposta está no que os encontros ainda podem produzir para além da homogeneizante massa identitária sob a so(m)bra de muitas bandeiras. A aposta é a de abrir espaço para um pensamento intempestivo, que reflita sobre as singularidades e os encontros que acontecem no espaço virtual onde a vida se desdobra em potência, onde se constituem matilhas afetivas, mecanismos de ajuda mútua, redes solidárias; onde os corpos se deixam flechar pelo afeto, onde se "gestam novas modalidades de insubmissão, de rede, de contágio", onde inscrevem as afetações, a produção de laços e a inventividade (Pelbart, 2003, p. 84). A ousadia é a de inventar caminhos, inclusive para o pensamento, para compor políticas de contágio e aliança e acompanhar não formas institucionais dadas nem fórmas subjetivas, mas processos, mapas-subjetividade, derivas, linhas, margens, afirmando a força que toda relação entre singularidades traz em seu seio, fazendo do estranhamento uma experimentação da diferença em nós, dessa potência de diferir que todo corpo flechado pela afetação é palco. Ao problematizarmos políticas identitárias nesse texto, o desafio proposto é de cunho epistemológico, mas, sobretudo, ético e político: "como proceder de modo a não reproduzir as relações de dominação a que os grupos sociais que estudamos se acham submetidos?" (Goldman, 2006, p. 169). Entendendo nossas práticas de pesquisa como praças para encontros, como não compor com processos de rotulação/identificação dos corpos como modo de administração e controle? A pergunta permanece.

 

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Recebido em 05 de agosto de 2010
Aceito em 07 de março de 2011
Revisado em 27 de Julho de 2011

 

 

1 Fragmentos de fala que compõem a dissertação de mestrado de Vasconcelos (2008).
2 Fragmentos de fala que compõem a dissertação de mestrado de Vasconcelos (2008).
3 Fragmentos de fala que compõem a dissertação de mestrado de Vasconcelos (2008).
4 Se, anteriormente, apontou-se que, na contemporaneidade das sociedades capitalísticas ocidentais, há a convivência de dois regimes de poder: disciplinares e de controle, pode-seaqui pontuar a convivência de dois regimes de produção de subjetividades capitalísticas, de duas políticas de subjetivação. Talvez se possa afirmar que eles se destinam à padronização de segmentos sociais diferentes.
5 Ressalte-se que não se trata apenas da veiculação de um esquema cognitivo, verbalmente transmitido e mais ou menos acessível à "consciência". Mais que representacional ou conceitual, esse padrão é processual e incorporado (embodiment), ou seja, é produzido por meio de experiências corporais.
6 Cena descrita vivida por um dos autores deste texto, militante do movimento LGBT.
7 Lembrando que há sempre, a espreita, a possibilidade de recaptura. No caso do enfrentamento da AIDS nos anos 80 e dela ter sido entendida como "câncer gay", as redes de solidariedade fizeram frente às políticas de identidade e, com isso, os discursos passaram a se concentrar "menos nas identidades e mais nas práticas sexuais (ao enfatizar, por exemplo, a prática do sexo seguro" (Louro, 2004, p. 35), aproximando as discussões de sexualidade das ideias de risco e ameaça, a qual, mais uma vez, precisa ser controlada.