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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza jun. 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O adolescente em reclusão e a instituição privativa de liberdade: A reciprocidade da violência na contemporaneidade

 

The confined teenager and the custodial institution: The reciprocity of violence in contemporaneity

 

El adolescente recluso y la institución privativa de libertad: La reciprocidad de violencia en la contemporaneidad

 

Le adolescent arrêté et la prison: La réciprocité de la violence dans la contemporanéité

 

 

Juliana Maria Batistuta Teixeira ValeI; Anamaria Silva NevesII

IDoutoranda em Serviço Social no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e mestre em Psicologia Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia - UFU. É assistente social, tendo atuado na área da infância e adolescência, especialmente no atendimento aos adolescentes autores de ato infracional em cumprimento judicial de medida socioeducativa. E-mail: jmbtvale@yahoo.com.br
IIDoutora do Programa de Mestrado de Psicologia Aplicada - da Universidade Federal de Uberlândia-MG. E-mail: anamaria@umuarama.ufu.br

 

 


RESUMO

A contemporaneidade é um tempo pleno de desafios, sendo que o desenvolvimento desenfreado do capitalismo não conseguiu dar respostas ao mal-estar gerado pela desigualdade social que essa ordem social é capaz de provocar, fato que repercute diretamente na sociabilidade e formas de subjetivação humana, sobretudo em um contexto de crise e agravamento do desemprego estrutural provocado pelas transformações ocorridas no mundo do trabalho que afetam a todos. Essa reflexão propõe a urgência quanto ao aprofundamento referente ao desrespeito aos direitos infanto-juvenis na sociedade brasileira em face da cultura hedonista e consumista associada ao impacto provocado pelo "fetiche da mercadoria" sobre os adolescentes, em especial aqueles que recorrem ao ato infracional como estratégia de sobrevivência e forma de se inserir em um mundo injusto e perverso. Para isso, resgata-se o significado social atribuído à adolescência na modernidade, como forma de se defender investimentos nessa fase peculiar de desenvolvimento humano, sendo necessário recorrer a diferentes áreas do saber para uma análise do fenômeno que vá além da aparência e do imediatismo. O ato de transgredir leis instituídas é facilmente associado ao termo delinquência, cristalizado na história das políticas sociais brasileiras dedicadas às crianças e adolescentes, de forma a estigmatizá-las, encaminhando-as para instituições privativas de liberdade. A interdisciplinaridade e as práticas interparadigmáticas aparecem como um caminho necessário para a propositura de políticas públicas mais eficientes e menos vingativas, rumo à efetivação do sistema de garantia de direitos da infância e juventude, desconstruindo a ênfase que historicamente vem sendo dada à reclusão como resposta a essas demandas postas.

Palavras-chave: Contemporaneidade, fetiche da mercadoria, adolescência, delinquência, políticas públicas.


ABSTRACT

Contemporaneity is a time full of challenges, and the huge development of capitalism has failed to answer satisfactorily the discontents generated by the social inequality that this social order is capable of provoking. That fact directly reflects on sociability and human subjectivation forms, mainly on a crises and aggravation of the structural unemployment, context caused by the changes that occurred in the working world that affects everybody. This reflection suggests the urgency in deepening the discussions about disrespect to juvenile rights in Brazilian society, in view of the hedonistic and consumerist culture associated to the impact provoked by the "merchandise fetish" on teenagers, especially those who practice illegal acts as a strategy to survive and a way of inserting themselves in an unfair and mean world. In order to do that, the social meaning assigned to adolescence nowadays is taken as a way of defending the investments in this peculiar phase of human development. Different knowledge areas are necessary for an analysis of the phenomenon that goes beyond its appearance and immediacy. The act of transgressing official laws is easily associated to delinquency, embodied in the history of Brazilian social policies dedicated to children and adolescents. This association is a way to stigmatize and sending them to custodial institutions. Interdisciplinary and inter-paradigmatic practices appears to be a necessary way towards proposing more efficient and less vindictive public politics, leading to a more effective system that can guarantee juvenile rights, deconstructing the emphasis that has been historically given in the confinement as the answer to these demands.

Keywords: Contemporaneity, merchandise fetish, adolescence, delinquency, public politics.


RESUMEN

La contemporaneidad es un tiempo pleno de desafíos, y el desarrollo desenfrenado causado por el capitalismo no ha podido responder a la incomodidad generada por la desigualdad social que esta orden es capaz de causar. Este cuadro se refleja directamente en la sociabilidad, así como en las distintas maneras de la subjetividad humana, especialmente en contexto de crisis y empeoramiento del desempleo estructural, causado por los cambios que ocurren en el ámbito del trabajo y que nos afectan a todos. Esta reflexión sugiere, que la urgencia por profundizar la cuestión relacionada con la falta de respeto por los derechos de los niños y adolescentes en la sociedad brasileña, frente a la cultura hedonista y consumista, asociada al impacto causado por el fetichismo de la mercancía en los adolescentes, especialmente aquellos que recurren al delito como una estrategia para la supervivencia y una manera de inserción en un mundo injusto y perverso. Para tanto, recurrimos al significado social asignado a la adolescencia en la modernidad como una manera de proteger las inversiones en esta fase particular de desarrollo humano, acudiendo a diferentes áreas del conocimiento para un análisis del fenómeno que va más allá de la apariencia y la inmediatez. El acto de transgredir las leyes instituidas se asocia fácilmente con la delincuencia, cristalizado en la historia de las políticas sociales brasileñas dedicadas a los niños y adolescentes de modo a estigmatizarlos, conduciéndolos a las instituciones de custodia que les privan de la libertad. La interdisciplinaridad y las practicasinterparadigmáticas surgen como un camino necesario para proponer políticas públicas más eficientes y menos vengativas hacia un sistema de garantía de los derechos de los niños y adolescentes descomponiendo el énfasis que históricamente se ha dado en la reclusión en respuesta a estas demandas.

Palabras-clave: Contemporaneidad, fetichismo de la mercancía, adolescencia, delincuencia, políticas pública.


RÉSUMÉ

La contemporanéité est pleine des défis et le développement effréné déchainé par le capitalisme n'a pas pu donner des réponses aux malaises gérés par l'inégalité social que cet ordre social est capable de provoquer. Ça répercute directement dans la sociabilité et les formes de subjectivation humaine, surtout dans un contexte de crise et de l'augmentation du chômage structurel causés par les transformations dans le monde du travail qui touchent à tous. Cette réflexion démontre l'urgence par rapport à l'approfondissement du mépris aux droits des enfants et adolescentes dans la société brésilienne devant la culture hédoniste et consommiste associées à l'impact du "fétiche de la marchandise" sur les adolescents, spécialement ceux qui recourent à l'acte d'infraction comme stratégie de survie et forme d'insertion dans un monde injuste e pervers. Pour ça, cherchons le significat social de l'adolescence dans la modernité, comme forme de défendre des investissements dans cette période peculiar du développement humain, en recherchent dans différents sujets scientifiques pour arriver à une analyse de ce phénomène qui va plus loin que les apparences et l'immédiatisme. L'acte de transgression des lois est facilement lié au terme délinquance, cristallisé dans l'histoire des politiques sociales brésiliennes dédient aux enfants et adolescents pour les stigmatiser et les pousser aux institutions de privations des libertés. L'interdisciplinarité et les pratiques inter-paradigmatiques apparaissent comme un chemin nécessaire aux propositions des politiques publiques plus efficientes et moins vindicatives, vers l'affirmation du système de garanties du droit de l'enfance et de la jeunesse, en déconstruisant l'importance qui historiquement a été donné à la réclusion comme réponse à ces demandes.

Mots-clés: Contemporanéité, fétiche de la marchandise, adolescence, délinquance, politiques publiques.


 

 

Introdução

A situação de risco pessoal e social em que se encontram milhares de crianças e adolescentes em todo o Brasil impõe a urgência de se enfrentar a realidade vivida por esse segmento social da população que foi tratado pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988 como prioridade absoluta, de responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. Seus direitos e diretrizes para as políticas de proteção social estão assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990).

Diante de um vasto universo posto por violências sociais, institucionais e familiares, que confrontam as dimensões pública e privada do fenômeno social observado, este artigo dedica-se a pensar especificamente sobre os adolescentes autores de ato infracional na contemporaneidade, a instituição destinada a privar sua liberdade e sua interface com o fenômeno da violência. Tal objeto de análise foi eleito em decorrência da atuação e inquietação profissional daqueles que, no campo das políticas sociais, e engajados na prática de uma clínica ampliada de cunho psicossocial e interprofissional, deparam com a repercussão da questão social na construção da subjetividade de adolescentes em uma ordem societária injusta e perversa, que não raro potencializa sofrimento psíquico e desamparo social.

Tem-se assistido a uma constante associação da violência à juventude, muitas vezes transferindo ao jovem um potencial originariamente destruidor. Entretanto, para se trabalhar com essas questões é necessário retirar o vértice moral que está presente no senso comum e na mídia sensacionalista que propõe respostas apenas moralizantes, sem que se busque compreender os atos de uma pessoa tomada pelo mal-estar, seja ele um conflito pessoal, social ou ambos associados. A agressividade, muitas vezes, é um recurso importante para a sobrevivência, seja no sentido objetivo ou subjetivo, que precisa ser interpretado de forma contextualizada.

A história das políticas públicas brasileiras destinadas à infância e adolescência em situação de risco é marcada pelo desrespeito e negligência aos direitos desses sujeitos, aspectos que vêm sendo trabalhado por autores como Priore (2000) e Rizzini (2007/2011). Em especial, os adolescentes autores de ato infracional são ameaçados por práticas autoritárias e repressivas, que recorrem às instituições e equipamentos sociais decadentes, como é o caso das instituições totais, no sentido empregado por Goffman (1977), destinadas à privação de liberdade e que não conseguem oferecer alternativas de vida digna para esses sujeitos em fase peculiar do desenvolvimento humano, como atestam os trabalhos de Marcílio (2002) e Santos (2004).

As transgressões e os atos infracionais, algumas vezes entendidos como perversão ou falha de caráter, provocam a urgência de uma reação institucional e profissional realmente transformadora e não uma resposta meramente "vingativa", já que muitas vezes as ações se restringem a administrar a punição que deverá ser enfrentada pelo adolescente transgressor. Desse modo, este estudo procurou aprofundar a discussão, para além da aparência e da resposta imediata, acerca do delito praticado pelo adolescente, buscando para isso articular contribuições de diferentes áreas do saber. É preciso investir em um novo itinerário de análise, que prime pela interdisciplinaridade e pelo que foi chamado por Vasconcelos (2002/2011) de práticas interparadigmáticas, que vão além das disciplinas, movimentando também teorias, paradigmas, campos epistemológicos, profissões e os campos do saber/fazer. Assim, tem-se a possibilidade de orientar ações capazes de construir uma ponte que minimize a dicotomia entre os aspectos da objetividade e subjetividade presentes na realidade social vivida por esses sujeitos, almejando não se desvincular de uma proposta crítica e comprometida, ética e politicamente, em sua análise.

A proposta interdisciplinar exige combater simplificações, reducionismos e ecletismos teóricos vulgares, sendo que o pluralismo teórico distinto deve ser visto como uma postura legítima, um exercício fundamental para se alcançar o objeto em sua totalidade, visto que é preciso se considerar a ideia de "paradigma da complexidade" dos fenômenos localizados no campo das teorias humanas e sociais (Morin, 1990/1991).

Por ecletismo entendemos a conciliação e o uso simultâneo, linear e indiscriminado de teorias e pontos de vista teóricos e éticos diversos sem considerar as diferenças e incompatibilidades na origem histórica, na base conceitual e epistemológica, e nas implicações éticas, ideológicas e políticas de cada um desses pontos de vista, o que sem dúvidas é problemático. Entretanto, isso é diferente de reconhecer a complexidade e multidimensionalidade dos fenômenos físicos, biológicos, humanos, sociais e ambientais, que exigem um conjunto pluralista de perspectivas diferentes de abordagem (Vasconcelos, 2002/2011, p. 108).

Diante da impossibilidade de se produzir uma ciência totalizante, deve-se reconhecer a possibilidade de se construir saltos qualitativos enfrentando-se as diferenças naquilo que foi chamado por Morin (2000) de estudo "inter-poli-transdisciplinar". Segundo o autor, os saberes tradicionais reforçaram a fragmentação, especialização e disciplinarização e foram submetidos a processos reducionistas, que impedem de ver tanto o global quanto o essencial. Diante da complexidade, palavra cuja origem etimológica, latina, significa "aquilo que é tecido em conjunto", é preciso unir as áreas do conhecimento, pois nenhuma ciência é absoluta e autossuficiente em sua capacidade de suprir as exigências do mundo atual em suas problematizações. Dessa forma, evita-se a prática de "colocar todo o mundo físico, natural e todas as esferas da vida humana e de todos os grupos sociais sob o comando de uma espécie de instituição total cognitiva e epistemológica" (Vasconcelos, 2002/2011, p. 38).

Sendo assim, a articulação de temas relevantes para o objeto em foco passará por uma aproximação com a teoria social crítica para se pensar o contexto de vida dos adolescentes, tendo como pano de fundo especialmente a aproximação com a crítica da economia política divulgada pela tradição marxista, visto que é inegável ponderar que a extrema desigualdade social posta pela sociedade capitalista provoca situações de desamparo social, com destaque para o ainda atual conceito marxiano que fala sobre o "fetiche da mercadoria" na ordem burguesa, que acabou por disseminar a busca desenfreada e desigual pelo consumo. Este, apesar de afetar a todos, afeta especialmente os adolescentes, que se encontram em uma fase peculiar de desenvolvimento e, quando em situação de vulnerabilidade social, praticam atos infracionais como forma de se incluir na lógica desse mundo.

É claro que se reconhece que os adolescentes que pertencem à camada popular não são os únicos a praticar atos infracionais na sociedade brasileira. A análise não pode ser simplista e generalizante tal qual essa premissa, visto que, em meio ao vendaval que acontece no mundo do trabalho e à crise ética no campo político, a juventude tem sido atingida como um todo como vem demonstrando o autor psicanalista Birman (2007): "No que concerne a isso (as transformações familiares), a violência não se restringe mais às classes populares, como ocorria anteriormente, mas se evidencia também nas classes médias, que passam também a ser igualmente caracterizadas pela violência na contemporaneidade" (p. 7). Os adolescentes e jovens da classe média, quando envolvidos na criminalidade, também denunciam as dificuldades e limites de se viver em uma sociedade capitalista.

Portanto, é preciso inserir a leitura desses acontecimentos inquietantes num registro bem mais abrangente, para que se possa interpretar devidamente o que se passa com a juventude na atualidade, no que tange à violência, nos campos da criminalidade e da delinquência. Para isso, no entanto, é preciso articular com pertinência o que ocorre no registro simbólico, em íntima relação com o que se passa nos registros econômico, social e político. Com efeito, a não inserção da juventude hoje no campo do mercado de trabalho é um signo ostensivo da sua inscrição precária no espaço social, sem dúvida, mas tal signo precisa ser também considerado na sua devida articulação com as transformações cruciais ocorridas nas ordens familiar e simbólica, nas últimas décadas (Birman, 2007, p. 7).

A sociedade capitalista em que se vive tem sido umas das principais responsáveis pela proliferação do sofrimento, extrapolando inclusive os limites da pobreza para outras classes sociais. Embora prevaleça ainda a prioridade de investimentos para aqueles mais sofridos em face do sistema, não se pode correr o risco de se acomodar a ponto de se banalizar as injustiças sociais.

A conexão entre as desigualdades postas pelo sistema socioeconômico e político vigente e a adolescência como uma condição de vida, e até como um "estilo adolescente de existência" que tem sido muito valorizado na contemporaneidade, como afirma Birman (2007, p.17), será feita com a ajuda dos conhecimentos "psi". Assim sendo, visando revistar conceitos que permitam compreender o significado social da adolescência na sociedade brasileira, enfocar-se-á a perspectiva da psicanálise, pois a interpretação psicanalítica auxilia a compreender os sentidos humanos daqueles que, "incluídos pela imagem e excluídos pelo consumo" (Kehl, 2007), acabam por traçar caminhos associados à criminalidade. Também se fará uso da filosofia como forma de balizar as ponderações sobre o mundo em que se vive e a ordem social historicamente construída, que passa pelos aparatos do poder disciplinar e do controle, no intuito de enfrentar o ceticismo no que diz respeito à imobilidade social de forma crítica, independentemente do confronto existente entre a teoria moderna e a pós-moderna. Resta advertir, que esses conteúdos aparecerão em certa medida sistematizados nos subitens que serão apresentados, ainda que de forma um tanto quanto desordenada, já que a articulação esperada desses referenciais acaba por torná-los amalgamados e supera esquemas.

 

O Mundo em que se Vive e a Contemporaneidade: O Fetiche da Mercadoria, o Consumo e a Transgressão

Pensar questões postas na contemporaneidade é uma tarefa instigante, complexa e que apresenta caminhos sinuosos. Instigante por se tratar de pensar o tempo atual e o mundo que se apresenta aos olhos, sem, no entanto, se desconsiderar a historicidade desse mundo, já que sua realidade exige ser considerada para além do aparente e do imediato. Complexa, pois não se trata de uma realidade simples e elementar. Há toda uma diversidade de manifestações desenvolvidas no processo de modernização da sociedade, que contempla desde as relações sociais estabelecidas nessa ordem social às formas de subjetivação dela derivadas, que provocam uma fusão no chamado real - o mundo em que se vive, caótico e complexificado. Assim, é preciso cautela diante dos caminhos de compreensão da contemporaneidade, que inevitavelmente confrontarão referenciais cunhados pela teoria moderna e também pelo que foi nomeado de pós-modernismo, apresentando demandas colocadas pela classe social, raça, gênero, geração, culturas distintas etc.

O objeto eleito para essa reflexão exige uma abordagem que tensione ambos os referenciais, visto que contempla discussões tanto de viés socioeconômico, quanto cultural, sem que se tenha que entendê-las como questões separadas. Parte-se do pressuposto de que para se alcançar o objetivo aqui proposto é necessário pensar também sobre o mundo em que se vive e seus sentidos. Trata-se de uma sociedade que materialmente é extremamente desigual, orientada por uma civilidade burguesa, na qual as agudas contradições sociais potencializam a produção de formas de mal-estar generalizadas na luta pela sobrevivência, que repercutem diretamente nas formas de subjetivação de todos. Este trabalho, no entanto, focaliza especificamente as condições de vida e subjetivação do ser adolescente, abrindo espaço não só para questões concretas, mas também, para as simbólicas.

Birman (2007) esclarece que apenas na passagem do século XVIII para o XIX a infância, e, posteriormente, a adolescência, passaram a ser reconhecidas em suas especificidades, portanto, só foram constituídas como idades da existência humana atreladas à modernidade com a instauração da família nuclear burguesa. Outro fator importante por ele destacado está presente na atuação da polícia médica e da higiene social no processo de normalização do social durante a consolidação da sociedade capitalista, sendo que "a infância e a adolescência passaram a condensar o capital simbólico e econômico da futura riqueza das nações" (p. 15). Rizzini (2007/2011), ao estudar a dimensão social da infância presente na literatura nacional e internacional, que conta sua história na era industrial capitalista, associa criança ao futuro da nação.

É imprescindível abordar o agravamento das relações sociais na contemporaneidade em um mundo altamente mercantilizado e fetichizado, no qual mesmo os relacionamentos humanos estão sendo tratados como mercadorias descartáveis. O sujeito social, muitas vezes, está reduzido à condição de coisa e em constante expropriação dos seus sentidos (Guareschi, 2001). Esse tempo de crises e desafios não conseguiu resolver questões implantadas pelo modelo socioeconômico e político vigente, uma vez que o capitalismo é capaz de reorganizar o caos constantemente em torno da chamada lógica de mercado. Este se organiza a partir do avanço da ofensiva neoliberal que, por sua vez, impacta as funções do Estado e as políticas públicas de proteção social, tornando-as cada vez mais precárias e perpetuando as condições de vida que remetem os indivíduos à barbárie. Nesse referido esquema econômico, o mercado assume a posição central de regulador das relações sociais e da vida das pessoas, o que reflete na sociabilidade e na subjetivação humana, contribuindo de maneira a promover o enfraquecimento dos laços sociais, principalmente em face das instituições enfraquecidas, que perderam a sua credibilidade por não cumprirem com a função para a qual foram criadas. Esse é o caso, por exemplo, do cárcere juvenil.

Como já dito, na sociedade capitalista, a mercadoria assume posição de grande destaque e poder, a ponto de Marx formular um conceito que vem mantendo sua atualidade insuperável, chamado de o "fetiche da mercadoria" (Marx, 1988). Permanentemente são criadas novas mercadorias e pseudonecessidades para a população, que passa a ocupar a condição prioritária de consumidora para estar no mundo, pois como afirma Guattari (1990), o objeto do capitalismo mundial é integrado em um só bloco "produtivo-econômico-subjetivo". A dimensão subjetiva é sequestrada por um mundo que prioriza o ter e o poder aquisitivo, na criação de necessidades e pseudonecessidades para se viver. Garnault (1966) destaca que a mercadoria, práxis do poder desse sistema, é um modo de representação do mundo e uma forma de ação sobre ele. Ele complementa que, em face da concretude do real, a diferenciação que pode ser introduzida é a subjetiva. Nesse sentido, o sujeito histórico em sua forma mercantilizada assume posição central diante de um mundo marcado por contradições e antagonismos sociais.

Essas questões apresentadas atingem as diferentes formas de saber. Conforme Birman (2003), a psicanálise - campo que precisou lutar por seu reconhecimento científico, divulgado por meio da clínica aburguesada, especialmente localizada no âmbito privado com seu "setting padrão" de alto custo - foi colocada à prova do social. O silêncio acrítico diante do real tem a capacidade de suprimir do discurso teórico a dimensão ética e política da psicanálise, restringindo-a a uma mera perspectiva terapêutica, com a finalidade de harmonizar o sujeito no social, lembrando que pode não ser bom sinal se estar bem adaptado a um universo social caótico.

Birman (2003) segue destacando que o mal-estar e o desamparo são fundamentos intrínsecos da modernidade, no conflito incessante entre pulsão e civilização. Nessa perspectiva, a psicanálise passa a oferecer uma problematização e uma contribuição para as teorias sociais críticas, à medida que revela as relações conflituosas próprias da civilização e suas organizações societárias, que trazem desafios à superação, devido à pulsão humana como condição estrutural do sujeito. Assim aponta o texto "Mal-estar na Civilização", de Freud (1929/1997), que rompe com as teorias desenvolvimentistas da humanidade ao afirmar que o ser humano está submetido à psicogênese cultural e ao desamparo da vida civilizada. Tal fato, por conseguinte, conduz para a necessidade de realização de profundas investigações quanto à relação da subjetividade humana e a sociabilidade construída no mundo do trabalho.

Ainda assim, a presente reflexão não atingiria o cerne da questão sobre a qual se debruça se considerasse o indivíduo de maneira isolada da vida social, visto que o processo sócio-histórico também determina as condições sociais para a constituição dos sujeitos, mantendo, dessa forma, um movimento dialético. Portanto, acredita-se que não se pode desconsiderar que a objetivação do real é ponto de partida extremamente relevante para posteriormente se produzir a subjetivação do real.

Na contemporaneidade, muito se fala sobre as novas psicopatologias do sujeito, como a depressão, síndrome do pânico, anorexia, bulimia, obesidade mórbida, toxicomania, a cultura do excesso e narcisista, dentre outras. Herrmann (2004) alerta para o fato de que "Nossa psicopatologia vem de um tempo em que se concebia a doença individual como oposição à sociedade; hoje, é forçoso pensá-la como expressão pontual dessa mesma sociedade, como sintoma de campos culturais inconscientes." (p. 4)

Restringir a interpretação às manifestações psíquicas diante do mundo em que se vive, concretamente permeadas por problemas sociais, pode resultar em certa miopia no tocante aos sintomas localizados na sociedade, provocadores de mal-estar não apenas no indivíduo, e sim, na coletividade, como no caso da adolescência em conflito com a lei. As questões sociais precisam ser identificadas como sintomas da organização societária. Levando em consideração a sociedade democrática e o Estado de Direito, Rodriguez (1988) afirma que se "caminha na recuperação de um estado de direito que constitui um campo no qual é possível ler sintomas sociais" (p. 176). Há que se produzir entendimento a partir da estrutura social, do Estado e suas instituições, caso contrário, se estará responsabilizando os sujeitos individualmente por problemas que precisam ser encarados pela humanidade, sob pena de se definhar até se esgotar a possibilidade de vida no planeta. Como afirmou Guareschi (2001), no modelo capitalista e neoliberal, as pessoas são individualmente responsabilizadas por situações econômico-históricas adversas e cruéis. Uma ética centrada no sujeito em sua dimensão individual, no sentido liberal da palavra, desconsidera as relações sociais e a sociabilidade humana e coloca os indivíduos em ações restritas ao limite do imediatismo e do particularismo.

No campo da filosofia também se identificam problemas oriundos da influência do pensamento liberal, que se tornam ainda mais graves em um capitalismo neoliberal. Lipovetsky (2004) refere-se à contemporaneidade mediante a expressão "tempos hipermodernos". Segundo o autor, a sociedade atual está vivenciando a experiência do superlativo frente ao binômio produção-consumo e considera que a chamada pós-modernidade provocou o abalo da racionalidade moderna e o fracasso de grandes utopias da história, marcando o aqui-agora. Esse processo desenvolvimentista encontra pouca resistência organizacional e ideológica, seguindo uma lógica desinstitucionalizadora e sem regulação, com grandes mudanças nas estruturas institucionais.

O autor é certeiro em algumas descrições que faz da realidade atual. Por outro lado, a descrição de um mundo hipermoderno e o destaque conferido ao ceticismo quanto à possibilidade de mudança social, política e econômica fazem com que o destino da humanidade esteja entregue às ciências e às tecnociências, alimentando a posição da indiferença, visto que tanto as ciências quanto as tecnociências também podem ser extremamente marcadas pelo interesse do grande capital em detrimento de interesses humanistas. Deve-se reconhecer que a filosofia, enquanto recurso da compreensão do real, não pode ser considerada como um "caminho para a felicidade" em nenhum tempo histórico, como ironizou Lipovetsky, provavelmente referindo-se ao idealismo que foi amplamente divulgado pela filosofia alemã clássica. Porém, restringir a filosofia à mera inteligibilidade descritiva desse real poderá entregá-la definitivamente ao liberalismo econômico e, por sua vez, a uma filosofia liberal, de princípios bem destoantes dos pilares que colaboraram para a construção da razão moderna, a exemplo do humanismo, do historicismo e da razão dialética, como ressalta Coutinho (1972/2010). A realização de uma análise a respeito do mundo contemporâneo em face das crises mundiais e dos sinais de esgotamento do sistema que tem como limite a depredação do meio ambiente e como consequência o mundo em que se vive, requer o exercício da crítica política acerca da passividade frente às grandes desigualdades e injustiças sociais.

Essas ponderações não têm a pretensão de contemplar todas as questões que envolvem a crise social na qual se está inserido, porém, espera-se contribuir para mobilizar recursos que permitam fazer uso de um olhar e de uma prática menos reducionista e mais engajada politicamente.

 

Entendendo a Adolescência: Considerações Teóricas e Revisões Conceituais

A existência humana é marcada pelo desenvolvimento do indivíduo em todas as instâncias (física, mental, psicológica, entre outras), que apenas se interrompe com a morte. Há inúmeras razões para se considerar a infância e a adolescência como etapas peculiares desse desenvolvimento, uma vez que delas depende a construção de um adulto minimamente consciente, responsável e apto a lidar de forma ativa com as vicissitudes da vida.

Paradoxalmente, para se iniciar a falar sobre a adolescência, recorre-se a uma breve reflexão sobre o processo de envelhecimento na contemporaneidade. Recentemente, um artigo intitulado "Um tempo sem nome", de Oliveira (2012), abordou uma nova condição de existência das pessoas com meia-idade e na velhice. A autora faz uma bela reflexão sobre o assunto, que não deixa de ter como tema transversal, dentre outras coisas, a cultura hedonista tão presente na contemporaneidade, que reivindica prazeres em qualquer tempo da vida do homem. Ressalta que interditos que costumavam demarcar o que é ou não adequado para uma faixa etária, tais como os ritos de passagem representados pela interrupção do trabalho formal e a supressão da libido, são colocados em cheque na atualidade e perdem sua "autoridade", desconstruindo o senso comum e localizando a "nova" velhice como "um tempo sem nome". Nesse tempo, que ainda não se conseguiu nomear, reconhece-se que estariam presentes a criança e o adolescente que permanecem vivos em uma pessoa adulta, mesmo que em idade mais avançada. Poeticamente ela apresenta passagens como "(...) e é assim que, a vulcânica adolescência pode brotar em um homem ou mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira", já que, conforme Proust, envelhecer é o mais abstrato dos sentimentos humanos. Contudo, obviamente, a velhice não é a única passagem da vida que constrói diferentes sentidos de existência. Em uma sociedade em constante movimento, a própria adolescência não fica alheia às mudanças dos tempos atuais.

Não se trata de contestar a possibilidade de bem-viver em qualquer fase da vida, tampouco de tentar resgatar algum moralismo diante da velhice atual, que tem o direito de gozar de todas as dimensões do humano. O fato é que todas essas transformações postas pela contemporaneidade exigem uma pausa para reflexão antes de uma automática assimilação, visto que podem revelar mais sobre o mundo em que se vive e as condições de vida que se enfrenta, e nesse sentido, a adolescência vem assumindo destaque na idealização das pessoas, o que outrora não acontecia.

Difícil precisar o que é juventude. Quem não se considera jovem hoje em dia? O conceito de juventude é bem elástico: dos dezoito aos quarenta, todos os adultos são jovens. A juventude é um estado de espírito, é um jeito de corpo, é um sinal de saúde e disposição, é um perfil do consumidor, uma fatia do mercado onde todos querem se incluir [grifo nosso]. Parece humilhante deixar de ser jovem e ingressar naquele período da vida em que os mais complacentes nos olham com piedade e simpatia e, para não utilizar a palavra ofensiva - velhice - preferem o eufemismo "terceira idade". Passamos de uma longa, longuíssima juventude, direto para a velhice, deixando vazio o lugar que deveria ser ocupado pelo adulto (Kehl, 2007, p. 44).

Ao que parece, segundo Kehl (2007), em meio a essas transformações a vaga de adulto na cultura atual está desocupada e até mesmo desvalorizada. Assim, todos se tornaram "jovens perenes", gerações congeladas num estado de juventude perpétua. O fato é que a sociedade capitalista, em seu permanente processo de fetichização das mercadorias, ao fetichizar a juventude como um tempo permanente de vida percebeu, na cultura adolescente hedonista, uma lucrativa fatia de mercado a ser explorada pela indústria cultural, que vem atingindo concretamente os adolescentes que deixam a infância, mas também os adultos que buscam a longevidade associada à fonte da juventude. Desse modo, a indústria cultural, associada aos interesses de mercado, oferece possibilidades de identificações por meio das imagens industrializadas, de forma que as pessoas passam a se identificar com o ideal publicitário, que as convoca, em todas as idades, para esse campo imaginário. A autora enfatiza que a adolescência passa a ser um ideal de adultos, velhos e crianças.

A associação entre juventude e consumo favoreceu o florescimento de uma cultura adolescente altamente hedonista. Os adolescentes das últimas décadas do século XX deixaram de ser a criança grande desajeitada e inibida, de pele ruim e hábitos anti-sociais, para se transformar no modelo de beleza, liberdade e sensualidade para todas as outras faixas etárias (Kehl, 2007, p. 46).

Portanto, se a velhice hoje é um tempo sem nome e se a vaga do adulto está desocupada na sociedade atual, pode-se pensar em uma adolescência sem fim? No texto "Adolescência sem fim? Peripécias do sujeito num mundo pós-edipiano", Birman (2007) aborda a temática partindo de condições concretas postas pelo mundo do trabalho, uma vez que para o autor não é possível falar da adolescência tal qual se a conhece hoje, sem se considerar o projeto de modernidade, a industrialização e a normalização do social.

O autor, ao olhar para a juventude e também para a adolescência, aponta os indícios de alterações com relação às demarcações etárias, visto que a adolescência rompe, na atualidade, de forma radical, com a cronologia outrora estabelecida. No caso do Brasil, o artigo 2º, do ECA, define como adolescentes aquela pessoa entre 12 e 18 anos de idade incompletos (Brasil, 1990). Porém, a contemporaneidade vem mostrando que não bastam definições legais para se encaixar a adolescência - enquanto fenômeno e significado construído pela modernidade - dentro de um período da vida. A psicanálise ajuda a compreender que há uma dimensão abstrata nesse conceito, visto que a infância e a adolescência podem coabitar o corpo dos sujeitos adultos. Todavia, Birman (2007), ao politizar criticamente a discussão, alerta que a adolescência não pode ser vista apenas como mera abstração de sentimentos que pode ser vivida e revivida em diferentes momentos da vida. É preciso considerar as condições objetivas do universo do trabalho que atingem diretamente a juventude e suas formas de subjetivação, questões que vêm retardando sua entrada no mercado do trabalho e a conquista da independência que era considerada própria do universo adulto. Em um tempo de globalização da economia, em pleno neoliberalismo e desemprego estrutural, com o agravamento da questão social, a delinquência juvenil e a criminalidade não podem ser incorporadas ao debate como meras condutas antissociais, sem que se questione sobre o contexto econômico-social e cultural que vem alimentando essas práticas que atingem a juventude, e por reflexo, a adolescência.

Antes de se recorrer a abstrações, fazendo-se uso da adolescência como metáfora para se pensar a contemporaneidade e a cultura hedonista disseminada em larga escala, é preciso dedicar atenção ao adolescente por direito, atenção para o sujeito para o qual foi construído um conceito de existência que encontrou o seu lugar dentro do projeto da modernidade. É para essa faixa etária específica da vida que tenta transitar da infância para a vida adulta que essa reflexão é dedicada, pois como diria a personagem do "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry (1984, p.10), "As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando".

 

Revisitando os Conceitos: Quem é o Adolescente?

A legislação brasileira destaca a peculiaridade do desenvolvimento oportunizado pela fase da infância e da adolescência, o que precisa ser considerado um salto qualitativo importante para a construção de ações e políticas públicas de proteção social voltadas para esse segmento social. Mas, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 seja um avanço para o reconhecimento dos direitos infanto-juvenis, a legislação não tem a função de esclarecer sobre o desenvolvimento e a importância da infância e da adolescência para a construção de um sujeito adulto emergente, o que provoca inúmeras discussões e divergências. Dessa forma, é preciso recorrer ao campo científico, especialmente os localizados nas ciências humanas para uma reflexão mais aprofundada, sendo que os conhecimentos na área "psi" e, de maneira enfática, a psicanálise, contribuem intensamente para se pensar essa questão tão cara, especialmente para as famílias e profissionais que lidam com adolescentes.

Trata-se de um tema complexo. A diversidade socioeconômica e cultural presente no universo adolescente traz em seu bojo não apenas aspectos universais e padronizados, mas também particularidades que garantem o espaço para a singularidade e a subjetividade com diferentes formas de inserções sociais, salientando os desafios da compreensão desse momento da vida.

O tema permaneceu silenciado durante longo período. Contudo, pode-se notar o crescimento de produções teóricas que passaram a tratar dessa fase da vida, revelando uma polêmica decorrente de diferentes concepções em torno da produção desse saber que visa conceituar essa condição da existência humana. Discussão também carregada de tensões anteriormente apresentadas no confronto entre o positivismo e a ciência crítica.

Autores com maior visibilidade possibilitada pela mídia, tal como Tiba (1996), abordam a adolescência como fase difícil que pode trazer problemas e que, por isso, precisa ser superada. É possível perceber uma apropriação massificada do tema que usa costumeiramente o trocadilho que denomina esse processo como "aborrecência", referindo-se às chateações que os adolescentes causam nas "pessoas grandes" a sua volta.

Estudos historiográficos já apontaram que na Idade Moderna a puberdade apareceu como um importante marco que passa a representar uma fase de transição entre a infância e a vida adulta, iniciando o processo de reconhecimento da adolescência (Ariès, 1978). Entretanto, Outeiral (1994) ressalta a importância de se distinguir a palavra adolescência do termo puberdade, embora sejam questões relacionadas. Ele destaca que a puberdade é uma palavra derivada do latim que se caracteriza pelo surgimento de uma atividade hormonal. Significa sinal de pelos, barba, penugem; é, portanto, um processo biológico que resulta no desenvolvimento dos chamados "caracteres sexuais secundários" (p. 5). Já a adolescência é compreendida como um fenômeno psicológico e social e não está restrita à puberdade, tanto que seu conceito tem sido assimilado inclusive pelo universo adulto, como dito anteriormente: "Esta maneira de compreendê-la nos traz importantes elementos de reflexão, pois, sendo um processo psicossocial, a adolescência terá diferentes peculiaridades conforme o ambiente social, econômico e cultural em que o adolescente se desenvolve "(Outeiral, 1994, p. 5).

Para o mesmo autor, a adolescência também deriva de adolescer, origem da palavra adoecer:

Temos assim, nesta dupla origem etimológica, um elemento para pensar esta etapa da vida: aptidão para crescer (não apenas no sentido físico, mas também psíquico) e para adoecer (em termos de sofrimento emocional, com as transformações biológicas e mentais que operam nesta faixa da vida) (Outeiral, 1994, p. 6).

Como se acredita não ser possível realizar uma abordagem crítica da dimensão psíquica desvinculada do contexto social, recorre-se à perspectiva sócio-histórica, visto que esta entende a adolescência como uma construção social, contrapondo-se às concepções naturalizantes, ou seja, a adolescência será entendida como uma produção social construída nas relações sociais a partir de sua natureza histórica. Bock (2007) fez um importante trabalho, resultante de sua pesquisa que visou analisar a literatura destinada a levar um saber mais especializado aos pais e educadores de adolescentes. A autora realizou uma retrospectiva teórica (a qual se recorre aqui), em torno de autores que se dedicaram ao tema adolescência.

Erickson (1976, citado por Bock, 2007) institucionalizou a adolescência como fase especial no processo de desenvolvimento em que há confusão de papéis e dificuldades em torno da identidade, tema importante para quem adolesce. Na América Latina merecem destaque as produções de Aberastury e Knobel (1989, citados por Bock, 2007). Os referidos autores tratam do normal e do patológico durante essa fase da vida e descrevem as características da adolescência normal por meio de uma série de manifestações de conduta, nomeando-as de "síndrome da adolescência normal".

Nessa perspectiva, a adolescência é entendida como uma etapa natural e inevitável, de caráter universal no desenvolvimento humano. A concepção semipatológica teve como consequência uma visão naturalizante dos conflitos, sem que os aspectos socioeconômicos e culturais fossem tomados em consideração na interferência direta desse processo:

Nessas construções teóricas, encontramos a visão de que o homem é dotado de uma natureza, dada a ele pela espécie e, conforme cresce, se desenvolve e se relaciona com o meio, atualizando características que já estão lá, pois são de sua natureza. A adolescência pertence a esse conjunto de aspectos. Suas características são decorrentes do "amadurecer"; são hormônios jogados na circulação sanguínea e o desabrochar da sexualidade genital os fatores responsáveis pelo aparecimento da sintomatologia da adolescência normal (Bock, 2007, p. 64).

Tiba (1985, citado por Bock, 2007) não delimita a fase de duração da adolescência, mas reforça seu disparo pela puberdade e afirma se tratar de uma maturação programada do aparelho reprodutor. Dessa forma, mais uma vez os aspectos sociais e culturais não são entendidos como elementos constitutivos que interferem na adolescência e em diferentes adolescências.

Esse padrão de compreensão vem sendo paulatinamente questionado com a construção de posturas mais críticas. Levinsky (1995, citado por Bock, 2007) conceitua a adolescência como um desenvolvimento evolutivo, em que são consideradas as condições ambientais e a história pessoal de cada sujeito, apontando para a natureza psicossocial desse processo. Todavia, mantém atrelado o surgimento da fase à puberdade e ao desenvolvimento cognitivo, aspectos importantes, mas ainda reducionistas do fenômeno. De qualquer forma, o autor avança ao afirmar que a adolescência é caracterizada pelo modo como a sociedade a representa, pois "A sociedade e a cultura agravam a crise dos adolescentes com sua hipocrisia e paradoxos, introjetando no adolescente seus defeitos de forma projetiva" (Levinsky, 1995, citado por Bock, 2007, p. 65).

Ainda nessa direção, Outeiral (1994) problematiza a questão em torno da identidade, uma vez que a adolescência inicia com um sentimento de impotência frente ao mundo e à realidade, decorrente das inevitáveis transformações corporais. O período é intensamente marcado pelo choque de gerações entre pais e filhos, pois requer o estabelecimento de novos vínculos com a família e a sociedade. A busca pela emancipação e por diferentes espaços de socialização, processo denominado como necessidade de se "independizar", acarretará uma desvalorização dos pais, para que assim os filhos sintam que se afastam sem perder muito. Por outro lado, a adolescência é extremamente mobilizadora na família, pois quando um membro familiar adolesce os demais têm seus "elementos adolescentes" ativados, assim, pode-se, inclusive, considerar a possibilidade de se viver dimensões da adolescência em diferentes etapas da vida, como já mencionado. Para os pais, trata-se de um processo doloroso, que pode mesmo provocar o sentimento de inveja percebido na diferente conjugação de tempos verbais: o adolescente vai ser, vai fazer, enquanto o adulto foi e fez e passa a sentir o impacto dos anos vividos. "A confusão do adolescente é altamente contagiosa e seria ingênuo supor que só o adolescente se identifica com o adulto: este também se identifica com o adolescente" (Outeiral, 1994, p. 73).

Pode-se minimamente perceber um caráter processual e bidirecional quanto ao fenômeno adolescência, que se constrói na relação com o adulto. O término desse período é mais dificilmente demarcado do que o início, porém, há uma forte inclinação em ser adquirido outro status por meio da identidade profissional e o almejado reconhecimento social derivado da independência financeira, o que tem se tornado cada vez mais difícil em face das transformações e precarizações advindas do mundo do trabalho. Há, portanto, uma sinalização para as pressões mercadológicas vividas pelos sujeitos nessa etapa da vida, o que também confirma a adolescência como um produto da modernidade e da sociedade do capital.

Bajot e Franssen (1997, citados por Bock, 2007) apontam para a força da sociedade organizada em torno do mundo do trabalho e a repercussão deste na vida do adolescente. A adolescência está relacionada à necessidade de inserção no mercado de trabalho, assumindo um momento decisivo na definição da identidade do jovem, ainda que isso seja percebido de forma diferente pelo viés de classe.

A referência ao trabalho tradicional se tornou impraticável por sua dificuldade de inserção, sendo esta degradação vivida como crise. Eles (Bajot e Franssen) realizaram um estudo interessante, mostrando como em cada grupo social esta crise é vivida diferentemente. Em jovens do meio popular a representação do trabalho está mais ligada a normas tradicionais e o desemprego é vivido como exclusão; já, entre os jovens da classe média desvalorizam o trabalho assalariado preferindo um projeto de auto-realização e o desemprego é vivido como tempo para redefinição de projetos existenciais (Bock, 2007, p. 65).

Calligaris (2000) desconsidera o critério da maturação física para pensar sobre a adolescência. O autor compreende que a adolescência é uma fase instituída na cultura atual em decorrência do olhar do adulto, que não reconheceu ainda os sinais de transição para a vida adulta. O autor analisa as dificuldades que os jovens encontram nesse processo justamente por não se ter bem definida a especificidade do que é ser adulto, o que faz com que atuem em conseqüência do desejo do adulto.

Numa sociedade em que os adultos fossem definidos por alguma competência específica, não haveria adolescentes, só candidatos e uma iniciação pela qual seria fácil decidir: sabe ou não sabe, é ou não é adulto. Como ninguém sabe direito o que é um homem ou uma mulher, ninguém sabe também o que é preciso para que um adolescente se torne adulto. O critério simples da maturação física é descartado. Falta uma lista estabelecida de provas rituais. Só sobram então a espera, a procrastinação e o enigma, que confrontam o adolescente - este condenado a uma moratória forçada de sua vida - com uma insegurança radical (Calligaris, 2000, p.21).

Se o adolescente precisa do olhar do adulto para transitar para a vida adulta e Kehl (2004) problematiza afirmando que a vaga do adulto está desocupada na contemporaneidade haverá sérios problemas para que o conflito entre gerações cumpra sua função para a formação do eu na contemporaneidade. Mas, de acordo com Bock (2007), embora a contribuição de Calligaris (2000) seja muito valiosa, ele retoma uma concepção abstrata da adolescência, quando explica que a fonte da adolescência está nos desejos dos adultos e não nas formas de vida da sociedade, já que mesmo no campo da psicologia, a perspectiva crítica prima pela importância da produção de conhecimentos vinculados à totalidade social, na qual o fenômeno é produzido tendo como ponto de partida as bases na materialidade objetiva da realidade.

Criticar a perspectiva naturalizante se torna uma necessidade, pois a Psicologia, ao desenvolver perspectivas naturalizantes, deixa de contribuir para leituras críticas da sociedade e para a construção de políticas adequadas para a juventude, responsabilizando, com sua leitura, o próprio adolescente e seus pais pelas questões sociais que envolvem jovens, como a violência e a drogadição (Bock, 2007, p. 66).

Clímaco (1991, citado por Bock, 2007), além de fatores sociais e culturais, introduz o fator econômico em suas produções sobre o tema. A autora avalia que as revoluções industriais vividas pela sociedade moderna trouxeram significativas modificações nas formas de vida, inclusive para os mais jovens. Ela se refere à moratória desse período da vida como uma fase de latência entendida como necessidade da sociedade capitalista, que precisou adiar a entrada do jovem no mundo do trabalho. A tecnologia implicou maior sofisticação do trabalho, enquanto a ciência prolongou o tempo de vida dos trabalhadores. As atividades laborativas passaram a demandar mais preparo técnico dos indivíduos para a sua inserção no mercado e os pais puderam permanecer por maior período em atividade produtiva. O desemprego entra em cena, sendo preciso retardar a entrada dos jovens como mão de obra disponível e parte do exército industrial de reserva. Como os filhos passam a permanecer mais tempo sob a tutela dos pais, a extensão da formação escolar foi a saída encontrada para as necessidades dessa nova realidade. As instituições de educação viabilizaram a convivência desses pares, oportunizando a emergência de um novo grupo social com "padrão coletivo de comportamento". Bock (2007) acrescenta que essa permanência na espera aumentou o vínculo de dependência em relação aos adultos, apesar de o adolescente já ter condições de estar na sociedade de outro modo.

Paralelamente, essa conjuntura manteve situações permeadas pela exploração do trabalho infanto-juvenil. Alguns grupos sociais ficam excluídos da escola, e ingressam cedo no mundo do trabalho e se "adultizam", não tendo acesso à adolescência como uma condição de vida e direito social (Santos, 1996, citado por Bock, 2007). Ao se adultizar, fazem o que não era para ser feito, trabalham excessivamente quando deveriam estar em formação na escola e chegam, inclusive, a se envolver com a criminalidade como estratégia de sobrevivência.

Por esses motivos, a denominação "síndrome da adolescência normal", de Knobel (1989), amplamente difundida, provoca tanto incômodo, pois não se pode entender a adolescência como uma doença, tampouco como uma condição normal. Quando se passa a compreendê-la como fenômeno social historicamente construído abandona-se a ideia de patologia e de natural e vai-se em busca dos sentidos humanos e suas diferentes formas de expressão, em face da ordem social estabelecida.

O investimento de Bock (2007) ajuda a perceber a adolescência como criação constituída na relação com os adultos, a partir das exigências da sociedade capitalista. À medida que a adolescência se configurou, foi registrada socialmente, passando a abarcar significado, conceito, descrição de suas características, tais como a crise de identidade, confusão de papéis, choque entre gerações, atitude social reivindicatória, dentre outros. Deve-se estar atentos, pois "não há uma adolescência enquanto possibilidade de ser; há uma adolescência enquanto significado social, mas suas possibilidades de expressão são muitas" (Bock, 2007, p. 70).

A perspectiva sócio-histórica pensa a adolescência constituída historicamente como período do desenvolvimento humano, e entendida como construção social com implicações para a subjetividade do homem moderno, pois "construídas as significações sociais, os jovens têm então a referência para a construção de sua identidade e os elementos para a conversão do social em individual" (Bock, 2007, p. 68). Em síntese, esse período de vida assume significado a partir das mudanças corporais, mas não se restringe às mesmas. Portanto, não é um fato natural, e sim, um fenômeno social.

A busca pela compreensão da adolescência interessa especificamente para que esse saber reflita diretamente nas ações profissionais desenvolvidas no campo das políticas públicas, uma vez que a maior clareza sobre esse fenômeno colabora para que seja oferecido um atendimento mais adequado para os seus protagonistas, os adolescentes, e também para seus familiares. Vale ressaltar que além de compreendê-los é preciso saber contextualizar suas condições de vida.

 

Adolescência e Delinquência: A Interpretação Psicanalítica como um Campo Profícuo à Produção de Sentidos

Para se pensar o sentimento de infância e adolescência em situação de risco no Brasil é necessário refletir a respeito do lugar ocupado pelas crianças e adolescentes ao longo dos anos nessa sociedade. Santos (2004) aponta a necessidade de se levar em consideração que, durante a constituição do capitalismo, as estratégias de sobrevivência adotadas por meninos batedores de carteira causavam incômodo à população brasileira, passando a evidenciar as mazelas provocadas pelo sistema emergente, contexto em que a privação de direitos fundamentais passou a ser nomeada e estigmatizada como delinquência juvenil, no século XIX.

As crianças que escapavam do controle familiar e ameaçavam a ordem pública passaram a ser segregadas em instituições. Essa prática desencadeou a discriminação, o aprisionamento, o controle do tempo e da liberdade, o comportamento submisso ao autoritarismo, o propósito de incutir nessas crianças o amor ao trabalho e a conveniente educação moral sob a perspectiva higienizadora.

A criança ou adolescente que se encontrasse nas ruas na chamada "situação irregular" era recolhida às instituições na condição de delinquente ou menor abandonado. Esses modelos, contencional e disciplinador, foram experimentados durante a história da legislação brasileira, o que mais tarde resultou nos Códigos de Menores de 1927 e de 1979. Portanto, essa prática institucional focada na conduta desviante dos "menores" era aplicada desconectada dos aspectos sociais que, na maioria das vezes, são um ingrediente determinante para a fabricação do comportamento que ficou conhecido como delinquência juvenil.

Assim, a realidade brasileira apresentou uma legislação que perdurou, durante décadas, preconizando a punição às crianças e aos adolescentes submetidos a um sistema desigual. Por essa razão, vive-se, na atualidade, um choque entre a concepção correcional dos antigos Códigos e os direitos assegurados pela legislação em vigor, o ECA.

Ao se abordar a adolescência e o conflito com a lei ainda é muito comum se encontrar o emprego de termos como transgressores, antissociais e delinquentes para adjetivar esses sujeitos em fase peculiar do desenvolvimento. Tal fato resulta em uma cobrança para que sejam tomadas medidas de contenção e repressão a suas condutas, acabando por combater esses sujeitos, que passam a viver o peso do estigma que carregam. Velho (1985) destaca que a condição de desviante não é intrínseca a um indivíduo, mas é produto de uma relação social, portanto, a análise dissociada dos aspectos que potencializam tais manifestações faz com que se atue apenas sobre o sintoma de um grande mal-estar sem se debruçar sobre as causas de determinado fenômeno. Partilha-se com Rodriguez (1988) a ideia de que a sociedade brasileira apresenta "sintomas sociais" expressos na população, mas que dizem respeito a uma sociedade caótica em seu conjunto. O mal-estar vivido pela adolescência em situação de vulnerabilidade social e conflito com a lei não passa de um desses sintomas, que exigem serem decodificados para além do ato do sujeito.

Tem-se insistido na necessidade de se desconstruir uma suposta teoria da delinquência utilizada de forma a estigmatizar adolescentes inseridos em uma lógica do consumo, apesar de viverem em uma sociedade extremamente barbarizada, desigual e perversa. Assim, poder-se-á revelar as injustiças sociais e os preconceitos que são naturalizados nas relações sociais do mundo em que se vive. Nesse intuito é indispensável a desconstrução do uso do conceito delinquência na sociedade capitalista em face dos aparatos do poder disciplinar e do controle.

O desafio apresentado conduz a um confronto no que diz respeito às concepções de mundo. Embora o ponto de partida deste estudo seja a análise estrutural imposta pela sociedade capitalista, na qual o sistema socioeconômico reflete diretamente na vida de grande parte da população, gerando carências materiais e potencializando conflitos psíquicos daqueles que vivem na pobreza, também se admite ser valiosa a análise de autores pós-estruturalistas, que concentram suas pesquisas nas relações e não apenas na totalidade social, e que contribuem para uma maior compreensão e problematização das questões postas, caso de Foucault, Deleuze e Derrida. Foucault (1979) desconcertou a teoria crítica moderna com a elaboração do que pode ser considerada uma genealogia do homem moderno ao captar a descontinuidade presente no real para explicar determinada singularidade. Ao desconstruir o percurso do poder entre centro e periferia, afirma que o poder nunca é a coisa em si (ou pelo menos não só isso - na percepção deste autor), e sim a relação com a coisa, enfatizando o "entre" das relações, ou seja, aquilo que, segundo o autor, foi identificado como a "microfísica do poder". No "entre" que existe na relação do Estado por meio das políticas públicas destinadas aos adolescentes autores de ato infracional, identifica-se uma significativa descontinuidade no que tange aos direitos infanto-juvenis estabelecidos e à forma de se olhar esses sujeitos, especialmente quando se trata de adolescentes oriundos das "pobres famílias pobres" brasileiras.

Entre os séculos XVIII a XX o autor aponta para a evidência da sociedade do poder disciplinar, em que as punições atingiam diretamente os corpos dos supliciados. Principal forma de repressão penal, a descoberta do corpo como um objeto de poder primou pelo adestramento do corpo manipulável, enquadrando-o na condição dos "corpos dóceis". Entretanto, a punição evoluiu de forma a tornar-se uma prática velada no processo e passou a ter como sentença privar o indivíduo de sua liberdade. O corpo assumiu uma nova posição no ato de castigar, visando privar o indivíduo de sua liberdade. As infrações são introduzidas no campo de objetos dos conhecimentos científicos, assegurando que a punição não recaia sobre os indivíduos. Essa mudança justificou a necessidade de se incorporar técnicos no ato de julgar e na constituição de provas, pois o juiz se esquiva de ser aquele que castiga, e, para isso, compartilha a responsabilidade do julgamento com a equipe técnica que pode indicar a repressão ou o tratamento. Para que isso ocorresse foi necessário reformar os complexos institucionais responsáveis pelo julgamento e punição, o que proporcionou novos espaços sócio-ocupacionais, com a implementação de diferentes profissionais que passaram a colaborar para a prolação da sentença pelo juiz. As instituições e as disciplinas instituídas tornaram-se fórmulas gerais de dominação na sociedade de então.

No século XX, em meio às transformações no mundo do trabalho que resultaram no aumento do desemprego, tornando-o estrutural, frequentemente a criminalidade passou a ser utilizada como estratégia de sobrevivência, e, dessa forma, começou-se a vivenciar um deslocamento do poder disciplinar para a sutileza do controle. Deleuze (1992) afirma que as práticas disciplinadoras tiveram sua crise principalmente no período pós-Segunda Guerra Mundial. A crise dos meios de confinamento, como a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família, caminhou em direção à sociedade de controle, nome que se dá à substituição de antigas disciplinas que operavam em sistemas fechados. O autor considera a sociedade de controle não uma evolução tecnológica sem propósito, mas uma mutação do capitalismo, dirigida para o produto e não para as pessoas, no qual o marketing torna-se um eficaz instrumento de controle na contemporaneidade.

O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos de humanidade, pobres demais para a dívida, números demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão de guetos e favelas (Deleuze, 1992, p. 224).

Porém, parte da população, por ser pobre demais para o consumo via endividamento pela ampliação do crédito, continua vivendo excluída do acesso à sociedade do controle. Ocorre que, em decorrência de suas estratégias de sobrevivência ilícitas, está submetida às antigas formas do exercício do poder disciplinar, como no caso dos adolescentes em privação de liberdade em instituições decadentes e precárias.

Ao se falar na sociedade disciplinadora e na sociedade do controle em plena crise da sociedade capitalista, abre-se uma discussão sobre a possibilidade de transição, em um movimento de mudança em direção a outro formato, mas que mantém aspectos remanescentes. A dificuldade de se viver do trabalho, a permanência estrutural da pobreza e a existência de práticas disciplinadoras tão efetivas em países como o Brasil ampliam o debate e os questionamentos sobre os rumos das condutas diante dessas práticas disciplinadoras, em face dos adolescentes autores de ato infracional. Quando se fala em prática de ato infracional quer-se referir à transgressão de leis instituídas e não de seu potencial instituinte e denunciador da realidade em que se vive. Ao se analisar o ato infracional praticado pelo adolescente, recorrentemente tem sido deixada de lado a realidade na qual os jovens brasileiros se inserem e o que seus atos infracionais são capazes de denunciar.

A Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2006), organizada pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em conjunto com a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e realizada em 2006, é exemplo de uma realidade que tem sido negligenciada pelos poderes públicos e ignorada pela população. Essa iniciativa verificou os níveis de efetivação dos direitos deferidos aos adolescentes nessa condição, com o objetivo de suscitar o debate e propor ações destinadas a garantir essa efetivação, e apontou a urgência em se desconstruir o modelo "correcional-repressivo" cristalizado na história das políticas públicas destinadas a esses adolescentes, que permite o seu confinamento em um cárcere juvenil desumano mesmo após a outorga do ECA, cujo texto legal tentou transformar essa realidade.

Neves (1999), em seu texto "O Psicólogo e o Paciente-Instituição", alerta para o efeito da contratransferência em relação às instituições. Resta demonstrado que na instituição estão presentes implicações sociais, culturais, políticas e psicológicas. A partir dos textos de Freud citados pela autora, tais como "Mal-Estar na Civilização" (1929/1997) e "Totem e Tabu" (1913/1997), é possível resgatar a vivência em grupo como inerente à existência humana, razão pela qual o homem partilha de inúmeras mentes grupais.

Nessa perspectiva, a instituição adota uma posição reveladora da forma como são reguladas as relações humanas e aponta a importância dos movimentos de transferência e, especialmente, os de contratransferência, assumindo outras possibilidades analíticas para além do "setting padrão". A possibilidade de associar a psicanálise com a psicologia institucional viabilizou a interpretação da instituição como paciente.

Diante do desvelamento possibilitado pela referida abordagem entre o analista-pesquisador e o paciente-objeto-instituição, vislumbra-se a possibilidade de se deslocar esse caminho interpretativo para o campo das políticas públicas e avaliar a sua repercussão na vida do demandatário delas. O analista fica em posição de interpretar o fenômeno presente na relação entre o cidadão e o Estado instituído, que se efetiva mediante seus aparatos institucionais e burocráticos, que não necessariamente cumpre com a função de proteção de sua população, para a qual foi estabelecido. A relação entre o Estado e a população tem provocado crises de desamparo em cidadãos que não se sentem representados pelo poder instituído, como indicado no que se refere aos adolescentes em situação de risco e conflito com a lei.

A reclusão de adolescentes é vivenciada no que Goffman (1977) chamou de instituição total, onde todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local, sob uma única autoridade, com permanente vigilância dos internos, efetuando uma barreira à relação social com o mundo externo.

Moreira (1997), no estudo sobre os sujeitos que vivenciaram o cárcere e que registraram suas experiências em obras literárias, revelou aspectos importantes desse universo. Trata-se das obras memorialistas do brasileiro Graciliano Ramos em "Memórias do Cárcere" e do italiano Antonio Gramsci em "Cartas do Cárcere". Moreira (1997) conseguiu estabelecer um paralelo entre a vida e as obras dos autores que tiveram os corpos adoçados pelo amaro da intolerância. O autor considerou que a definição de instituição total feita por Goffman adquire maior solidez quando apoiada à compreensão política dos corpos dóceis de Foucault (1977), em que o poder e a disciplina oferecem técnicas utilizadas para que traços de identidade social sejam perdidos para outros convenientes à instituição. Goffman (1977) chamou esse processo de mutilação do eu, compreendendo-o como "as estufas para mudar as pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu" (p. 22), reforçado por meio de inúmeros instrumentos simbólicos, deixando marcas psíquicas consideráveis. Acredita-se que esse processo torna-se mais grave quando se trata de pessoas ainda em fase peculiar de desenvolvimento.

É fato que há uma grande distância entre Graciliano Ramos e Antonio Gramsci - presos políticos - quando comparados aos adolescentes pobres do Brasil autores de ato infracional, uma vez que se trata de pensadores ilustres com capacidade plena de análise crítica do cárcere. Entretanto, Brandão (2007) pode auxiliar na tentativa de uma aproximação, pois ao abordar o filósofo Nietzsche e os tipos psicológicos - entre a moral e a psicologia - considera que há distância entre os tipos fortes e fracos de homens, em que os fortes são aqueles que não se submetem. Para a psicologia nietzschiana:

... o que a civilização sempre fez foi condenar tipos fortes em prol dos fracos. Por exemplo: "O tipo criminoso é o tipo do ser humano forte em condições desfavoráveis, um homem forte que tornaram doente... Suas virtudes foram proscritas pela sociedade... (Brandão, 2007, p.58).

Ao se pensar no homem que vai contra a Lei como sujeito forte, também se pode pensar no adolescente que não se submete a determinadas regras sociais e manifesta sua rebeldia ao extremo. Ou ainda, que sua rebeldia é expressiva das condições adversas às quais se encontra submetido.

O cárcere deixa suas marcas, seja em presos políticos ou em transgressores comuns. Tais marcas foram consideradas pela autora Kiffer (2006). Ela afirma que Graciliano, ao falar sobre suas memórias, discute a lei, revelando "não as grandes e heróicas marcas, mas o detalhe e a sutileza das forças que marcaram e construíram eternos prisioneiros" (p. 279), dificultando a construção de um novo projeto de vida capaz de romper com os estigmas atribuídos pela sociedade.

A linguagem corriqueira encontrada em expressões como "delinquente", "trombadinha", "marginal" não pode transmitir um significado absoluto e a interpretação nunca pode ser definitiva. Para reforçar a importância dessas questões recorre-se novamente a Foucault (1977), que adota esse procedimento com relação ao discurso e às relações de poder, e a Derrida (2000), que na mesma direção dirige sua análise às escrituras, ou seja, para a linguagem e a relação entre o significante e o significado. A análise de Derrida exige atenção para o uso da significante delinquência, pois o óbvio é que ela está associada aos jovens com um comportamento antissocial, transgressor ou considerado desajustado socialmente. Entretanto, não se pode esquivar de uma análise mais aprofundada, que vá além da imediaticidade e que se concentre menos na aparência e mais na essência, para avaliar os aspectos que contribuíram para a construção desse significado.

Volpi (2001) opta pelas expressões adolescentes em conflito com a lei ou adolescente autor de ato infracional já citadas neste artigo, pela sua capacidade de representarem uma circunstância de vida e não uma categoria valorativa, pois "A expressão adolescente infrator é comumente reduzida a infrator, tornando o adjetivo mais importante que o substantivo, imprimindo um estigma irremovível" (Volpi, 2001, p. 21).

O termo "menor infrator", que remete aos antigos Códigos de Menores no Brasil, também guarda grande proximidade com o significado atribuído historicamente ao delinquente e ao desajustado socialmente, aliviando a análise crítica em torno do ambiente, contexto em que se tecem relações sociais de dominação ao se transferir a responsabilidade exclusivamente para o sujeito sobre suas condições de vida. Portanto, mesmo após anos de implementação do ECA, em que adolescentes são reconhecidos como sujeitos de direitos, é muito comum se encontrar os termos "transgressores" e "delinquentes" associados à ideia de contenção dessas manifestações em detrimento das medidas de proteção e socioeducativas que a legislação prevê.

Considerações sobre a existência de adolescentes autores de ato infracional frente à teoria da delinquência, mas que também devem ser entendidos como sujeitos de direitos, fizeram com que se buscasse uma expressão mais adequada e despida de estigma e preconceito. A defesa dos direitos da criança e do adolescente passou a empregar a expressão "conflito com a lei". Há nessa mudança de terminologia um salto conceitual qualitativo inegável, que não se restringe ao emprego de um termo politicamente correto, desde que a seguinte pergunta seja feita: O adolescente autor de ato infracional estará em conflito com qual lei? A lei como um instrumento jurídico que determina a verdade entre saber e poder, a lei que instaura a ordem em um limiar entre o instituído e o instituinte ou a lei capaz de despertar o sentimento de culpa? A resposta precisa ser urgente se se quiser apontar caminhos de valorização da adolescência que seja protegida quanto aos seus direitos, tornando-a responsável e humanizada. Insiste-se em investigar as evidências que apontam para o conflito com a "lei da indiferença" instaurada pelo Estado e sociedade para lidar com as trágicas situações de vida enfrentadas por esse segmento social.

O psicanalista Bloss (1979) realizou seus estudos sobre a delinquência a partir do acompanhamento de meninos ditos delinquentes julgados pela Justiça, devido à prática de atos infracionais. O autor aborda a existência de múltiplas delinquências, que são atravessadas por duas características comuns: o envolvimento do sistema de ação na resolução de problemas e o uso do ambiente como regulador da tensão. Assim, o acting out, ou seja, o ato em si, é a principal marca da delinquência, pois a ação assume a posição de principal veículo de comunicação, tornando-se uma linguagem simbólica frente à distorção entre a ação e o pensamento verbalizado. Isto posto, a transgressão ou ato infracional passa a revelar a possibilidade de condensação de determinantes perceptuais, cognitivos e afetivos. Em outras palavras, a história de vida e o conflito adolescente convergem para uma forma de conduta denominada por Bloss (1979) como "concretização".

Com base nestes padrões característicos desta subespécie particular de conduta acting-out, denominei-a concretização. Esse termo tem seu lugar estabelecido na teoria da psicose. Entretanto, aqui proponho utilizá-lo como uma referência de desenvolvimento. Neste contexto, o pensamento concreto e abstrato descrevem fases na ontogênese da compreensão e interação com o mundo externo. A concretude da ação e da representação das coisas, sua transição para a linguagem simbólica e formação de conceitos representam um ponto de desenvolvimento fundamental, do qual depende não só o modo individual de comunicação, mas sua progressiva utilidade para o controle adaptativo do mundo interno e do externo (Bloss, 1979, p. 188).

O autor conclui que a concretização de uma infração não é um deslocamento, mas sim uma interação comunicativa com o ambiente; seus estudos indicam o diálogo entre o self e o ambiente. Esse ambiente pode se tratar de um universo mais próximo, como é o caso da família, mas também das relações sociais em suas características contemporâneas.

O texto "Totem e Tabu" (Freud, 1913/1997) demonstra como o ato se constitui como sendo um substituto do pensamento. Nesse clássico, Freud faz um estudo a partir dos povos primitivos que vivem em um sistema totêmico, demonstrando a semelhança entre os antigos tabus e as proibições morais.

Para essa abordagem, pode-se entender por sistema totêmico o resultado das condições em jogo no Complexo de Édipo, em que o filho se posiciona de maneira ambivalente em relação ao pai, que representa a autoridade, como nas sociedades patriarcais. Dessa maneira, esse filho ora admira o pai por sua força, ora quer ocupar o seu lugar e romper com a lei imposta por ele. O texto avança em direção à análise do caso dos irmãos que juntos conseguiram derrubar o poder paterno em decorrência do parricídio, mas que, ao realizar esse grande desejo, ficaram imersos no remorso, o que deu origem ao sentimento de culpa ainda atual na sociedade contemporânea, ao filho culpado.

A produção traz, como uma das suas principais contribuições, o reconhecimento da ambivalência emocional frente ao desejo, visto que se adotam mecanismos repressores de alguns instintos primevos.

Para a questão posta por esta reflexão interessa o seguinte trecho:

A fim de sofrear a tentação o transgressor invejado tem de ser despojado dos frutos de seu empreendimento e o castigo, não raramente, proporcionará àqueles que o executam uma oportunidade de cometer o mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso, como na comunidade que se vinga. Nisto, a psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos; todos nós não passamos de miseráveis pecadores [grifo nosso] (Freud, 1913/1997, p. 94).

Foucault (1979), ao retratar a sociedade do poder disciplinar da mesma forma demonstra o quanto a Justiça pode ser vingativa, quando equipara a selvageria da condenação de suplícios aos próprios atos dos condenados e também quando deixa de focar o corpo e o ato infracional para se dedicar a julgar a alma dos criminosos.

É sabido que Freud continua a instigar os autores contemporâneos. O filósofo Bhabha (1998), na reflexão sobre os interstícios conflituosos entre representação psíquica e realidade social, destaca que:

...como princípio de identificação, o Outro outorga uma medida de objetividade, mas sua representação - seja ela o processo social da Lei ou o processo psíquico do Édipo - é sempre ambivalente, desvelando uma falta (p. 86).

Pensando na instauração da Lei, remete-se aos processos primários de construção de limites. Osório (1996) destaca Lacan, que considera a importância do pai devido à necessidade de representar o distanciamento entre mãe e filho, a fim de que este possa dar prosseguimento ao seu processo de individuação. Em outras palavras, o pai representa a autoridade que realiza o interdito.

Na Psicologia Jurídica, Goldenberg (1991) também se utiliza de uma leitura lacaniana e enfatiza que, quando a figura paterna está morta na vida intrapsíquica da criança, a falta da entrada da lei paterna no lar é um fator crucial que impulsiona a transgressão, comum em adolescentes que cometem o ato infracional, pois é a forma encontrada de buscar a lei, ou seja, o limite por meio do pai simbólico.

O conflito que vive um adolescente que pratica um ato infracional é reflexo de um drama maior do que o conflito com a lei e a jurisdição, consequência de um ato condenável socialmente. É legítima a atitude de não responder a esses adolescentes de maneira transgressora. Não cabe à sociedade, perplexa diante de tantas atrocidades, reagir de maneira assustada, sem considerações às questões singulares e universais que sustentam a chamada infração.

A concretização proposta por Bloss (1979) pode ser entendida como um ato de evasão ou alívio instantâneo e tende a buscar cada vez mais o primitivo. A violência primitiva é ausência de pensamento, pois pensar é mobilizar o instrumental para lidar com a frustração. A violência é uma exacerbação da agressividade como saída à falta de capacidade de pensar. É lidar com a angústia de forma violenta. A violência sempre surge na falência da continência, capacidade de não realizar determinados atos ou de não seguir impulsos.

 

Considerações Finais e Reticências para uma Questão em Aberto: Políticas Públicas, Práticas Institucionais e a Clínica Ampliada...

Após considerar as adversidades postas pelo mundo em que se vive, que repercutem diretamente na vida das pessoas, tanto no que diz respeito às condições socioeconômicas quanto aos fatores culturais e simbólicos que atingem a adolescência, é pertinente apontar para uma síntese sobre os mecanismos de continência presentes na sociedade atual. Dentre estes, estão as políticas públicas destinadas aos adolescentes em situação de risco pessoal e social e a situação de conflito com a lei na qual se encontram, que confronte a lógica da reciprocidade da violência que vem sendo estabelecida nesse campo.

É importante esclarecer que as ponderações aqui realizadas não significam a propositura da redenção de adolescentes em conflito com a lei e a autorização da prática de seu ato infracional indiscriminadamente apenas pelo fato de estarem em uma fase peculiar de desenvolvimento humano, uma vez que se parte do reconhecimento de que o interdito - conceito caro à psicanálise - tem função essencial na organização da vida psíquica, imprescindível para a vida social em face das pulsões. Portanto, ele deve acontecer conforme previsto na legislação no capítulo do Estatuto da Criança e do Adolescente que dispõe sobre as medidas socioeducativas. Contudo, as práticas institucionais, e, por sua vez, as práticas profissionais implementadas para romper com o ciclo da violência e com a lógica da reciprocidade da mesma tecida na civilização, precisam ir além da atuação imediatista e burocrática sobre os sintomas sociais. Dessa forma, as medidas socioeducativas não podem ser aplicadas desvinculadas das medidas de proteção social também estabelecidas pelo ECA, pois os adolescentes que se tornam autores da violência, na maioria dos casos com práticas com potencial ofensivo contra a propriedade e não diretamente contra as pessoas, também são vítimas da violência em suas várias expressões sociais, institucionais e familiares.

Assim, não se trata de propor a total extinção do cárcere juvenil, já que isso parece um ideal ainda distante para o tipo de sociedade em que se vive e que exige repressão. Alerta-se, porém, para o fato de que as práticas realmente preventivas, e que apostam em uma adolescência responsável e humanizada, precisam ser anteriores à privação da liberdade em instituições decadentes, como apontam os estudos amplamente realizados na área. Para que realmente se possa proteger socialmente esses adolescentes, além de amplas transformações sociais que vêm sendo adiadas no mundo do trabalho, há que se estar atentos aos indicadores sociais, com ênfase nas alternativas de geração de emprego e renda destinadas à família brasileira, que estimulem o rompimento com a lógica assistencial de dependência dos benefícios sociais, amplamente difundida pelo Brasil em sua tentativa de gerir a pobreza. Também é necessário potencializar os aparatos educacional e profissionalizante existentes, como forma de se preparar os jovens para o caótico mundo do trabalho, tornando o consumo uma necessidade para a vida e não um imperativo violento da mesma.

Por fim, um novo itinerário para as políticas públicas e para a clínica ampliada e interprofissional que está localizada nesse espaço, pensa o adolescente e a prática do ato infracional de maneira ampla e aprofundada, questiona a obviedade do aprisionamento semântico em terminologias reducionistas e identifica esse adolescente não como condenado, mas sim como sujeito de direitos e não um mero objeto de controle social.

 

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Recebido em 31 de agosto de 2009
Aceito em 26 de outubro de 2010
Revisado em 12 de maio de 2011

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