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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza June 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Da inquietante estranheza ao estranhamento enquanto método

 

From the disquieting strangeness to the estrangement as a method

 

De lo extraño a lo extrañamiento como método

 

Du étrange au étrangement comme méthode

 

 

Marta Regina de Leão D'AgordI; Vitor Hugo Couto TriskaII; Renato Pernigotti SudbrackIII; Carlos Adriano SippertIV

IPsicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia (UFRGS). Professora e Pesquisadora Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional Instituto de Psicologia - UFRGS - Porto Alegre (RS); End.: Rua Riveira 600. CEP 90670-160 - Porto Alegre - RS. E-mail: mdagord@terra.com.br
IIPsicólogo, Psicanalista, Doutorando e Mestre em Psicologia (UFRGS), Especialista em Atendimento Clínico / Ênfase em Psicanálise (Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS). End.: Rua Francisco Ferrer, 441/501. Porto Alegre - RS. E-mail: vitortriska@yahoo.com.br
IIIGraduando em Psicologia (UFRGS) - Bolsista de Iniciação Científica - PIBIC/CNPq/UFRGS - Grupo de Pesquisa Psicanálise e Literatura
IVGraduando em Psicologia - (UFRGS) - Iniciação Científica Voluntária - Grupo de Pesquisa Psicanálise e Literatura

 

 


RESUMO

A psicopatologia fundamental pergunta pelo sujeito que padece e não pelas alterações funcionais observáveis, como aquelas que atingem a função senso perceptual. Nesse enfoque, a escuta clínica se dá considerando a forma como o sujeito narra e elabora sua vivência, de modo que um súbito sentimento de estranhamento ou uma desrealização podem levar a um enriquecimento subjetivo. Este trabalho compara duas situações de perplexidade. A primeira série de cenas se refere ao texto freudiano "Um distúrbio de memória na Acrópole", no qual um sujeito transforma a perplexidade em um saber sobre si. A segunda situação se refere a cenas do personagem Stephen Dedalus de "Um retrato do artista quando jovem" de Joyce, que, em um episódio, vive os próprios sentimentos em relação a si e aos outros como estranhos, para, em outro momento, tomar o estranhamento como um método para trabalhar a linguagem. Pode-se estranhar a própria língua, no sentido de se sentir estranho ou de sentir a língua como estranha? Nesse caso, o estranhamento se torna um método de criação poética: poder brincar com a língua por meio da desmontagem e remontagem das palavras para descobrir novos estranhamentos. A análise dessas duas situações conduz à distinção entre a ficção do caso pelo psicanalista e a ficção do personagem pelo autor.

Palavras-chave: Psicanálise, sinthoma, criação, método, linguagem.


ABSTRACT

Fundamental psychopathology places a question about the subject who suffers and not about the observable functional changes, such as those that affect the sensory-perceptual function. In this approach, the psychoanalytic clinic takes place considering the way the subject tells and elaborates his experience, so that a sudden feeling of strangeness or desrealization can lead to a subjective enrichment. This paper compares two situations of perplexity. The first series of scenes refers to Freud's text "A disturbance of memory on the Acropolis", in which an individual transforms a perplexity situation into a knowledge about himself. The second situation refers to scenes of the character Stephen Dedalus in Joyce's text "A portrait of the artist as a young man", who, in one episode, lives his feelings towards himself and others as uncanny and, later, takes the uncanny feelings as a method to work the language. Can one feel himself uncanny in relation to his own language, in the sense of having uncanny feelings towards oneself or towards the own language? In this case, the uncanny feeling becomes a method of poetic creation: one can play with the own language by disassembling and reassembling the words to discover new strangeness. The analysis of these two situations leads to the distinction between the writing fiction of the case by psychoanalysis and the writing fiction of characters in literature, by the author.

Keywords: Psychoanalysis, sinthome, creation, method, language.


RESUMEN

La psicopatologia fundamental hace la pregunta acerca del sujeto que sufre y no acerca de los cambios funcionales observables, como los que afectan a la función de la percepción sensorial. En este enfoque, la escucha clínica se inclinará a la forma como el sujeto cuenta y elabora su experiencia, de manera que una repentina sensación de extrañamiento o desrealización puede dar hogar a un enriquecimiento subjetivo. Este artículo se compara dos situaciones de perplejidad. La primera serie de escenas se refiere a Un trastorno de la memoria en la Acrópolis (Freud, 1936/1990), en lo cual un hombre transforma la perplejidad en un saber acerca de él. La segunda situación se refiere a las escenas del personaje Stephen Dedalus en Retrato del artista adolescente (Joyce, 1917/2006) que, en un episodio, vive sus propios sentimientos acerca de sí mismo y de otros como extraños para, en otro momento, tomar el extrañamiento como un método para trabajar el lenguaje. ¿Podemos extrañar la propia lengua, en el sentido de sentir a nosotros o a la lengua misma como extraña? En este caso, la extrañeza se convierte en un método de creación poética: se puede jugar con el lenguaje a través del desmontaje y montaje de las palabras para descubrir nuevos extrañamientos. El análisis de estas dos situaciones nos lleva a la distinción entre la ficción del caso creada por el psicoanalista y la ficción del personaje creado por el autor.

Palabras-clave: Psicoanálisis, síntoma, creación, método, lenguaje.


RÉSUMÉ

Les progrès de l'insertion du psychologue dans la santé publique La psychopathologie fondamentale pose la question sur le sujet qui souffre et non sur les changements fonctionnels observables, comme ceux qui affectent la fonction de la perception sensorielle. Dans cette approche, l'écoute clinique s'inclinera vers la façon dont le sujet raconte et élabore son expérience, de sorte que un sentiment soudain d'étrangeté ou de déréalisation peut conduire à un enrichissement subjective. Cet article compare deux situations de perplexité. La première série de scènes se réfère à Un trouble de mémoire sur l'Acropole (Freud, 1936/1990), où un sujet transforme la perplexité dans un savoir sur lui-même. La deuxième situation se rapporte à quelques scènes du personnage Stephen Dedalus dans Portrait de l'artiste en jeune homme (Joyce, 1917/2006) qui vit, dans un épisode, ses propres sentiments sur lui-même et d'autres comme étrangers et, dans autre moment, prend l'étrangement comme une méthode pour travailler le language. Est-ce qu'on peut sentir sa propre langue comme étrange, c'est à dire se sentir étranger ou sentir la langue comme étrangère? Dans ce cas, l'étrangeté devient une méthode de création poétique: pouvoir jouer avec la langue par le démontage et le remontage des mots pour découvrir de nouvelles étrangetés. L'analyse de ces deux situations nous amène à la distinction entre la fiction du cas par le psychanalyste et la fiction du personnage par l'auteur.

Mots-clés: Psychanalyse, sinthome, création, méthode, language.


 

 

A Inquietante Estranheza na Desrealização: O Episódio da Acrópole

Quando um sujeito pode considerar que aquilo que ele vê ou escuta (sensopercepção) pode não ser aquilo que ele vê e escuta, está-se no campo de uma abertura, de uma dúvida, isto é, há uma dimensão simbólica eficaz. É o que leva Freud a se interrogar sobre um distúrbio sofrido quando em uma viagem a Atenas, apresentado em uma carta ao escritor Romain Roland e publicado sob o título "Um distúrbio de memória na Acrópole" (Freud, 1936/1990). Trata-se de uma viagem realizada por Freud, acompanhado de seu irmão, a Atenas.

Freud relata que quando chegou à Acrópole, foi tomado por um sentimento de estranheza, o que ele estava vendo ali "não era real". Esse estranho sentimento era efeito de uma relação entre um temor - "Em meus anos de jovem, duvidara se um dia haveria de ver a Acrópole" - e um juízo que produzira uma solução em falso para aquele temor: "Naquele tempo eu desacreditara da realidade da própria Acrópole" (Freud, 1936/1990, p. 218).

Essa cadeia de ideias estava associada à outra, na qual a relação com o pai ocupava papel decisivo. Ao visitar a Acrópole, Freud estaria superando o pai, que lá nunca estivera. Ao invés de alucinar, Freud sentira uma desrealização (Entfremdung): ao invés de uma experiência de já visto (déjà vu), uma experiência de não visto.

As desrealizações (Die Entfremdungen), afirma Freud (1936/1990), são fenômenos notáveis que podem ser observados de duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade ou uma parte do seu próprio eu lhe é estranha. Nesse último caso, Freud afirma se tratar de despersonalização (Despersonalizationen). "As desrealizações e as despersonalizações se copertencem intimamente" (Freud, 1936/1990, p. 218).

Freud destaca, ainda, que há fenômenos que são as contrapartidas positivas das desrealizações, a saber, o fausse reconassaince, o déjà vu e o déjà raconté. "Esses fenômenos são ilusões em que queremos supor algo como pertencente ao eu, do mesmo modo como nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós" (Freud, 1936/1990, p. 218).

A análise do texto de Freud permite revelar duas séries de ideias:

Uma primeira série, mais acessível à consciência, composta por dois momentos: 1.1. um momento atual: "o que estou vendo, a Acrópole, não é real"; 1.2. uma lembrança: "em algum momento duvidei da existência da Acrópole - Será que algum dia poderei conhecer a Acrópole?"

Uma segunda série, parte da qual está submetida ao recalcamento: 2.1. um fato: "meu pai morreu sem conhecer a Acrópole". 2.2. "Eu não posso superar meu pai". 2.3. "A Acrópole não é real". A parte que foi submetida ao recalcamento seria: "Pois, se a Acrópole fosse real, eu triunfaria sobre meu pai, eu desejo isso, mas não posso".

Ambas as séries se emparelham por chegarem à mesma conclusão. Assim, é possível concluir a relação de ideias sem necessidade de suspender o recalque: a Acrópole não é real. O sentimento de estranheza (a desrealização), portanto, tem como explicação uma defesa psíquica: para não me angustiar, não me sentir culpado, o que estou vendo não é real.

Outra leitura desse episódio foi proposta por Pereira (1997) no contexto da diferenciação entre a estrutura neurótica e a psicótica na situação de desamparo. Na neurose, apesar da aparência de abandono encenada pelo sintoma, a problemática conflitual continua inscrita em uma referência à lei edipiana, em cuja relação o sujeito pode perfeitamente reconhecer-se, mesmo que não consiga tranquilamente conformar-se. Já na psicose, é a própria possibilidade de situar-se na estrutura simbólica que se encontra aniquilada. As experiências de fragmentação da imagem de si mesmo e de desintegração do próprio corpo adquirem a dimensão de uma verdadeira experiência de aniquilamento. No entanto, do ponto de vista descritivo, os estados de angústia neurótica podem manifestar condições semelhantes às observadas na psicose, tais como a presença de despersonalização e a desrealização.

Na angústia neurótica, os estados de despersonalização e de desrealização melhor se relacionam com os mecanismos descritos por Freud na sua carta aberta a Romain Rolland intitulada "Um transtorno da memória na Acrópole ", de 1936. Nela, estes fenômenos são apresentados como estratégias defensivas para tornar non-arrivées certas experiências e lembranças dolorosas, mas que, a um certo nível da vida psíquica, ficam totalmente reconhecidas como psíquicas e dolorosas (Pereira, 1997, p. 178).

A desrealização vivida por Freud situa-se no contexto das defesas psíquicas como efeito de um compromisso entre duas vertentes opostas: superar o pai e não poder superar o pai.

 

Do Pai à Lei Simbólica: Do um que faz Série

Freud trabalha a relação com o pai em diversos textos, da "Interpretação dos Sonhos" (Freud, 1900/1987a) a "Moisés e Monoteísmo" (Freud, 1939/1987b). A vivência de desrealização na Acrópole encobre um sentimento de dor em relação ao pai, que não pôde ter essa experiência. Assim, Freud coloca a experiência da Acrópole em uma série: o pai, como primeiro, não viveu essa experiência, então Freud não teria direito de vivê-la. Essa vivência só seria permitida a partir de um antecessor que inaugura uma série. Vivê-la, portanto, significa ocupar o lugar de primeiro, o lugar do pai. Trata-se de uma situação conflitiva com a reivindicação neurótica de um pai anterior que garanta e permita a experiência.

O retrospecto das associações de Freud em relação à Acrópole demonstra que esse conflito, desde a infância até a vida adulta, se expressara na alternância entre um desejo e um impedimento. Se o pai já morreu e não visitou a Acrópole, como ele, Freud, poderia visitá-la? A vivência de desrealização ou alucinação negativa, uma vez relacionada ao pai, produz uma identificação ao mesmo a partir da seguinte lógica: o pai não viu a Acrópole, porque não pôde viajar; eu viajei, mas não vi a Acrópole. A partir daí uma ficção é criada: não a vi porque ela não existe. Finalmente, então, a desrealização retira a existência concreta de um objeto que existe devido a uma manobra neurótica de manutenção do pai. A interpretação dessa fantasia neurótica produz a dissolução do sintoma alucinatório, uma vez que elucida o conflito entre a superação simbólica do pai - o que, em termos freudianos, seria o desejo parricida - e a suposição nostálgica de um lugar paterno ideal que inaugure uma série - e que elude que o pai que transmitiu a castração é ele mesmo castrado e, nesse caso, não viu o monumento.

Freud reconstruiu a experiência da Acrópole em uma série a partir de associações encadeadas de acordo com uma lei. O que seria uma lei, nesse caso? Seria uma organização possível entre dois elementos quaisquer, de forma que entre um e outro haja uma ordem, seja essa maior do que, menor do que, antecessora de, sucessora de. É por isso que se utiliza a estrutura dos conjuntos para indicar o que seria uma organização ou ordenação. Pois em um par ordenado encontra-se uma estrutura em que dois são unidos por um terceiro que ordena os elementos; trata-se da lei ou regra para uni-los. O terceiro, enquanto lei, garante uma organização, um sentido, e tal ordenação inclusive justifica o nome de par "ordenado". Ao ordenar a relação entre os dois diferentes elementos, a lei igualmente determina que há uma diferença ou hierarquia entre eles. Um efeito dessa lei é permitir que essa relação seja universalizável. Por exemplo: "para todo x e y, o valor de x é o dobro que o de y"; ou ainda, "para todo x e y, x deve preceder y na série". A utilização da matemática permite a Lacan pensar para além do que considera o registro do Imaginário, abrindo um novo campo de pesquisa teórica em psicanálise e de crítica aos pós-freudianos.

É a junção entre Imaginário (cuja característica é a produção de consistência) e Simbólico (de caráter relativizador, esburacador das consistências imaginárias) que produz a realidade enquanto montagem. Na representação do enlace borromeano, a intersecção entre esses dois campos também caracteriza o campo de produção do sentido e da ficção. O Real, por sua vez, identifica-se não com a realidade, mas como o registro ex-sistente ao sentido, isto é, o lugar do non-sens da linguagem, e seria elidido pela montagem que é a realidade, que:

(...) não é outra coisa que montagem do simbólico e o imaginário. Que o desejo no centro deste aparato, deste marco que chamamos realidade, é também, falando propriamente, o que cobre, como eu o articulei, o que importa distinguir da realidade humana e que é, falando propriamente, o real que não é mais que entrevisto, entrevisto como a máscara fácil que é a do fantasma, ou seja, (...) o desejo é a essência da realidade (Lacan, 1966-67/2002, p. 7).

A partir do entendimento matemático exposto anteriormente, e da consequente elaboração dos três registros lacanianos, torna-se possível compreender a experiência relatada por Freud para além do mito edípico, isto é, depurando-a das formas imaginárias nas quais o conflito é classicamente apresentado. A neurose pode ser tomada, portanto, como uma estrutura cujos elementos são ordenados a partir de uma lei simbólica. A figura do pai ideal, antecessor, por exemplo, seria uma representação imaginária dessa ordenação, mas não o garante de sua eficácia. Para além de um suporte imaginário, o Pai, para Lacan, trata-se de fato de uma lei simbólica, terceira, ordenadora do desejo: "(...) a verdadeira função do Pai (...) é, essencialmente, unir (e não opor) um desejo à Lei" (1960/1998, p. 839). Não se trata de promover uma desvalorização da narrativa que ganha forma mítica - afinal, é ao que convida o dispositivo clínico -, mas da proposta de reconhecimento da estrutura, isto é, da ordem simbólica e do impossível real, que, ao mesmo tempo, sustentam e superam a face imaginária do mito.

Mesmo que as recordações da repressão familiar não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera no nível da estrutura. O impasse sexual secreta as ficções que racionalizam o impossível de onde ele provém (Lacan, 1973/1993, p. 55).

O tratamento psicanalítico fomenta, portanto, a construção de recordações, de ficções, estabelecendo, para tanto, o sujeito suposto saber no campo da transferência, consistente na suposição de um saber mais além do sabido. É a partir daquilo que desse campo não se sustenta, do saber que não se mostra suficiente, que a verdade se constrói como ficção. No caso de Freud e o episódio da Acrópole, a suposição de uma verdade oculta no fenômeno de perplexidade - a alucinação negativa enquanto encontro com o Real - permitiu o ordenamento de associações, efeito da eficácia da lei simbólica, além de a elaboração de um conflito edípico com a figura de seu pai, ao mesmo tempo revelador de um impasse neurótico estrutural e subjacente.

No Seminário "O avesso da Psicanálise", Lacan (1969-70/1992) insistia em afirmar que o saber é meio do gozo, por cujo intermédio "... se produz o trabalho que tem um sentido obscuro. Esse sentido obscuro é a verdade" (p. 48). Assim também o saber, ao funcionar como verdade, implica que esta tenha estrutura de ficção e que possa ser utilizada como mediação para outra coisa. No discurso analítico, portanto, já se encontrou a intuição do "saber fazer com", que será decisiva para a concepção de Sinthoma. Desse modo, podem-se encontrar aproximações entre o escritor Joyce e o discurso do psicanalista.

 

O Estranhamento de Si: O Episódio da Casca

Na série seguinte, as cenas referem-se ao campo literário. Trata-se de uma série de cenas do personagem Stephen Dedalus, destacadas da obra "Retrato do artista quando jovem" (Joyce, 2006). Em primeiro lugar, uma cena que o próprio Lacan analisa no Seminário "O Sinthoma" (Lacan, 1975-76/2007) e que vem sendo denominada de o episódio da casca. Nessa cena é descrito o afastamento da consciência, por parte de Stephen, de um sentimento de raiva para com o grupo de colegas que o violentaram física e moralmente.

Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe haviam parecido por conseguinte irreais. Mesmo naquela noite enquanto tropeçava pela Jones's Road em direção a sua casa sentia que alguma força o estava despojando de sua casca madura e macia (Joyce, 2006, p. 93).

Destacam-se dois pontos: 1. As descrições de amor e ódio lhe pareciam irreais. 2. Sentia que alguma força o estava despojando de sua casca.

Observa-se que há um processo de juízo e um processo de sensopercepção. 1. O juízo: sobre as descrições de amor e ódio é feito um juízo - são irreais. Não é uma vivência, mas um juízo. 2. A sensopercepção: sentia-se despojado por uma força. Que força seria essa senão o próprio eu, embora não reconhecido e, por isso, clivado?

O relato do sentimento ganha, nas mãos do escritor, uma descrição metafórica: como uma casca que caísse do corpo. Um sentimento que foi rejeitado é comparado com uma casca que cai do corpo. Joyce compara a expulsão de um sentimento como um evento físico, mas não faz outras relações, não faz uma série. É uma casca; caiu, fim.

Essa expulsão dos sentimentos lembra uma clivagem (Spaltung). Dois motivos levam a propor essa leitura. Em primeiro lugar, por não se tratar do afastamento de uma ideia, mas do afastamento de um sentimento. De acordo com Freud, os afetos/sentimentos não são recalcáveis, e sim as representações a eles associadas. Os afetos são passíveis de ser deslocados e vinculados a outras representações. Passe-se ao segundo argumento. Para o personagem, os sentimentos são irreais, isto é, ficção. Se os sentimentos são ficção, é porque foram deslocados, separados da vivência, são discursividade.

Pode-se, então, considerar que ocorre também a perda de uma mediação da imagem de si, que levaria à reciprocidade dos sentimentos (eles me odeiam - eu os odeio). Difere, portanto, de uma situação em que um eu reagiria por se sentir afetado pela agressão sofrida. Mas nessa cena do personagem Stephen, o eu não é aquele que sente. Essa casca que cai seria uma metáfora para a clivagem no eu, a imagem de si afetada pela agressão cai, se separa do eu. Seria uma forma de defesa para não se afetar pelo sentimento.

Essa leitura do episódio da casca como clivagem (Spaltung) pode então ser comparada com a leitura apresentada na décima lição do Seminário O Sinthoma, na qual Lacan (1975-1976/2007) observa que se trata de uma psicologia da relação com o corpo, dos afetos relativos à imagem que o sujeito tem com o corpo e que, na cena acima destacada, se trataria justamente de "uma reação de repulsa ao próprio corpo. É como alguém que coloca entre parênteses, que afasta a lembrança desagradável" (Lacan, (1975-1976/2007, p. 146).

Essa colocação entre parênteses é uma clivagem, uma divisão defensiva do eu. A questão é avaliar se haveria um retorno possível sob a forma simbólica (como uma formação do inconsciente), ou seja, o sujeito se reencontraria com essa imagem de si enquanto afetado pelos sentimentos de amor e ódio que foram banidos do eu. Lacan não aborda a questão por meio desses processos defensivos, mas dos enlaces borromeanos.

A análise lacaniana consiste em demonstrar, mediante a escrita do enlace borromeano, que o Imaginário desliza para fora do enlace com o Real e com o Simbólico.

Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem. No caso de Joyce, o fato de não haver interesse por essa imagem naquela ocasião não é o que assinala que o ego tem nele uma função particularíssima? E como escrever isso em meu nó borromeano? (...) A relação imaginária não acontece (Lacan, (1975-1976/2007, p. 146-147).

Essa função particularíssima remete à interpretação de Joyce "como desabonado do inconsciente" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 160). Essa formulação foi criada por Lacan para diferenciar o inconsciente, enquanto discurso do Outro, do sinthoma, como algo tão singular que não encontra ressonâncias no inconsciente dos leitores de Joyce.

Mas é importante reler outras cenas de "Um retrato do artista quando jovem" para que mais elementos possam compor esse caso. Há uma cena em que Stephen se lembra de uma desrealização vivida na infância, quando caminhava pelas ruas de Cork com seu pai, por ocasião da visita que fizera para vender a propriedade da família.

Ele ouviu o soluço descendo com barulho pela garganta do pai e abriu os olhos com um impulso nervoso. A luz do sol batendo repentinamente em cheio à sua vista transformava o céu e as nuvens num mundo fantástico de massas sombrias (...). Seu próprio cérebro estava doente e impotente. Ele mal podia interpretar as letras dos letreiros das lojas. Por sua maneira monstruosa de viver parecia ter se colocado além das fronteiras da realidade. Nada o sensibilizava ou lhe falava do mundo real a menos que ele ouvisse nele um eco dos gritos enfurecidos que existiam em seu íntimo. Não conseguia responder a nenhum apelo terreno ou humano, mudo e insensível ao chamado do verão e ao contentamento e ao companheirismo, exausto e deprimido pela voz de seu pai. Mal podia reconhecer os próprios pensamentos como seus, e repetia lentamente para si mesmo: - Eu sou Stephen Dedalus. Estou andando ao lado do meu pai cujo nome é Simon Dedalus. Estamos em Cork, na Irlanda. Cork é uma cidade. Nosso quarto fica no Hotel Victória. Victória e Stephen e Simon. Simon e Stephen e Victória. Nomes (Joyce, 2006, p. 102-103).

Essa cena se relaciona, portanto, à fragilidade paterna. Seu pai contava orgulhoso a história do avô, quando Stephen o ouviu desatar a rir um riso que era quase um soluço. Era de uma derrisão, de um desamparo que tem como desencadeante a venda da propriedade em Cork, onde ao menos o avô era alguém reconhecido. O pai deprimido, que chora e ri ao mesmo tempo, produz em Stephen uma desrealização e despersonalização, da qual ele sai por meio da nomeação.

A partir disso pode-se ensaiar uma comparação, retomando-se a cena da Acrópole. A desrealização em Freud evidencia um impasse entre identificar-se ao pai e mantê-lo como um ideal antecessor, denunciando e admitindo um desamparo. A despersonalização em Stephen, por sua vez, cumpre a função de defesa contra o desamparo.

 

A Ressignificação do Nome e o Esquema R

Aponta-se para outra cena do livro, quando o personagem Stephen Dedalus vislumbra uma vocação, a de ser artífice das palavras. Ele se inspira em Dedalus, o artífice da mitologia grega, e pensa que "agora, como nunca antes, seu nome lhe parecia uma profecia" (Joyce, 2006, p. 180).

O nome Dedalus será apropriado como artífice de palavras. Ele se imagina então livre e, se no mito o artífice cria asas para fugir de uma situação de prisioneiro, ele, Stephen, vai, por intermédio da sua vocação de artífice das palavras, sair da ilha Irlanda, que o aprisiona.

Veja-se que há um processo metafórico com uma ressignificação do nome e ambos implicam uma série. Há um pai simbólico, a saber, o mito de Dedalus, que originou essa série na qual Stephen se inclui ao se remeter em filiação simbólica a esse primeiro.

Pode-se comparar essa questão do pai tal como é narrada por Joyce por meio do personagem Stephen Dedalus. Em primeiro lugar tem-se uma série na identificação a um traço do mito de Dedalus: ele será artífice como Dedalus. Em segundo lugar, há uma ressignificação de um nome que lhe era estranho ou até então deslocado, assim como se sentia deslocado nas seguintes situações: (a) em relação aos colegas e aos improváveis futuros colegas, os que seguiriam a vida religiosa para a qual ele também fora convidado; (b) em relação à família, cujos valores religiosos estavam acima dos interesses de cada um; e (c) em relação a um pai que não o orgulhava, pois fracassara em uma sequência de atividades profissionais, falhando no que se espera de um pai provedor.

Como se pode ver na tradição, sempre houve uma diferença entre pater e atta (pai provedor). Eidelsztein (2008, p. 132) mostra que historicamente a humanidade diferenciou o pai simbólico, abstrato (pater), do pai que exerce a função de provedor familiar, o homem do casal parental, chamado de atta.

Portanto, pai provedor e pai simbólico não formam um único ente, são distintos, um é encarnado e outro é apenas simbólico. E o personagem Stephen testemunha essa diferença, que é acentuada pela falha do pai provedor (Simon Dedalus). Na falência do pai provedor, na falência de seu país natal, Stephen se filia simbolicamente ao pater, Dedalus, o artífice.

Trata-se da cena em que ele caminha pela praia e escuta seus colegas chamando:

- Stephanos Dedalus! Bous Stephanoumenos! Bous Stephanousphoros!

Suas caçoadas não eram uma novidade para ele e agora lisonjeavam sua supremacia altiva e branda. Agora, como nunca antes, seu estranho nome lhe parecia uma profecia (...). Agora, ao som do nome do fabuloso artífice, ele parecia ouvir o barulho das ondas escuras e ver uma forma alada voando por sobre as ondas e se elevando lentamente no espaço. O que queria dizer aquilo? Seria aquele um recurso curioso introduzindo uma página de algum livro medieval de profecias e símbolos, um homem como um falcão voando acima do mar em direção ao sol, uma profecia do fim que ele nascera para servir e que viera perseguindo através das névoas da infância e da meninice, um símbolo do artista forjando de novo em sua oficina da matéria informe da terra um novo ser a planar nas alturas impalpável e imperecível? (Joyce, 2006, p. 179-180).

Essa cena revela a Stephen um ideal para si (I), cuja imagem (i) vem a ser esse ser alado criado a partir do mito Dedalus. Como uma profecia, essa imagem, que vem a partir da ressignificação do nome Dedalus, produz uma releitura de seu passado, ou seja, para o que não tinha nem nome (Simbólico) nem imagem (Imaginário), o que antes estava encoberto pelas névoas da infância e meninice revela-se como um fim da sua vida: ser um artífice das palavras. Em I e i, Ideal de eu e sua imagem especular, ele articula a imagem e o lugar do artífice, do homem alado. Encontra-se aqui Imaginário e Simbólico, respectivamente, articulados em uma realidade compartilhável, o ofício: ser poeta, artífice das palavras.

Para a análise da questão da ressignificação do nome Dedalus, o artífice, é importante o que Eidelsztein (2008, p. 173) apresenta sobre MI no esquema R (Figura 1):

 

 

O um que o "I" representa como termo isolado do conjunto é a base [simbólica] da imagem unificante. I(A) é a condição de possibilidade da função unificante de i(a), o que Freud chamou de "novo ato psíquico", com relação à unidade do eu.

Pode-se, então, comparar a uma cena infantil, na qual ao nome era preciso agregar um significado:

Na infância, um colega lhe pergunta seu nome:

- Stephen Dedalus, ele responde.

- Que espécie de nome é esse? E como Stephen não tinha podido responder, Nasty Roche tinha perguntado:

- O que é seu pai?

Stephen tinha respondido:

- Um cavalheiro (Joyce, 2006, p. 17).

Assim como o nome vinculado a um significado está relacionado a um imaginário, nessa obra que remete à juventude de Joyce, a possibilidade de estranhamento com as palavras mediante o engavetamento dos significantes será a marca de sua obra de maturidade Finnegans Wake.

 

O Estranhamento como Método

Sobre o processo criativo de Joyce, não se pode deixar de referir a hipótese de um gozar com a linguagem, um brincar com as palavras. Nas obras posteriores a "Um retrato do artista quando jovem", esse brincar com as palavras é manifesto. Pode-se, inclusive, dizer que o que era projeto se concretizou na obra Ulisses, que pode ser considerada uma sequência.

Sobre esse ato criativo do escritor Lacan observa (1975-76/2007): "Se isso se lê, é porque sentimos presente o gozo daquele que escreveu isso" (p. 161) Nessa frase, sintetizam-se duas questões: (a) o laço social, uma vez que o leitor pode sentir o gozo do autor; e (b) o gozo por meio do saber, isto é, com as palavras, seja com as escansões, seja com as palavras-valise.

Um poeta que desmonta e monta novas palavras é como um bricoleur que trabalha com fragmentos de objetos e se surpreende com os novos arranjos que encontra. Essa surpresa, esse estranhamento, esse maravilhar-se com novos sons é o trabalho poético.

Ferreira Gullar, em entrevista a José Castello (O Globo, 28 de agosto de 2010), relata que na sua juventude, à pergunta "para que serve a literatura?" respondera assim:

A literatura tem que mudar a vida. Ela não pode ser gratuita, não pode ser à toa. Concluí que a poesia não podia ser apenas versos bem feitos. Comecei, então, a pensar que a linguagem era velha. Que eu mesmo, embora só com vinte anos, era velho. Eu era um poeta parnasiano, tive uma formação parnasiana rigorosa. Eu precisava mudar também. Se a linguagem é velha, ela envelhece o poema. Então, resolvi que tinha que chegar a uma linguagem tão nova quanto o poema que ia escrever (...) a linguagem é uma ordem, é um sistema. Fora da linguagem, só há desordem. Como expressar então o que está fora do sistema? Como captar essa desordem? A linguagem só diz o que a linguagem diz. O que está fora não entra. Então fica o dito pelo não dito. Fica um pensamento daquele mundo que não tem nada a ver com a realidade. Um pensamento que se passa à margem da realidade. Mas é a minha vida, é ali que sou Ferreira Gullar. É ali que indago o fundamental (p. 2).

Em Joyce e Gullar encontra-se esse fazer com as palavras, esse indagar o fundamento, um modo de ser que provém da singularidade. Entretanto, na mediação das palavras, vai encontrar realidade, isto é, compartilhamento, e se tornar, então, o modo particular, o estilo.

Campos, Pignatari e Campos (2006) destacam a autonomia das palavras como a característica principal do movimento de poesia concreta. Assim, ganha destaque a criação como processo cuja significação acontece na abertura de sentido. Como se sabe, a obra de Joyce, pelas associações sonoras, inspirou esse movimento.

Joyce afirmou que seus romances continham enigmas para os scholars, os universitários. Tem-se, então, um laço social, um endereçamento. Ele não faz a escrita sem se remeter a um leitor.

"Seria Joyce um louco?" Essa pergunta de Lacan deve ser considerada no contexto de uma fala equívoca, já que em Ulisses, o personagem Stephen Dedalus apresenta, em uma reunião na biblioteca, sua hipótese de que Hamlet é o alter ego de Shakespeare e que este escreveu a peça nos meses que se seguiram à morte do pai. No registro de leitores assíduos da biblioteca, alguém escreve a seguinte pergunta: "Era Hamlet um louco?" (Joyce, 1983, p. 251). É Joyce que pergunta sobre Hamlet. E Lacan, utilizando uma paráfrase, faz a pergunta em relação a Joyce.

Rinaldi (2006) observa que Lacan se vale do texto de Joyce para mostrar que, com sua maneira própria de lidar com as letras, "o escritor dá o modelo do inconsciente, pensado como conjunto de letras, no qual estamos engajados através do Sinthoma. Isso pressupõe um laço estreito entre o Sinthoma e o real do inconsciente" (Rinaldi, 2006, p.79). Assim, um Sinthoma não é para ser lido como uma "loucura", uma "excentricidade", mas antes como um estilo.

Sobre o estilo, é importante reportar-se a outra cena de "Um retrato do artista quando jovem", a cena universitária do diálogo com o decano, na qual Stephen se pergunta pelo idioma:

Pensou: o idioma no qual estamos falando é dele antes de ser meu. Como são diferentes as palavras lar, cristo, cerveja, mestre, nos lábios dele e nos meus! Não posso falar ou escrever essas palavras sem inquietação de espírito. Seu idioma, tão familiar e estranho, será sempre para mim uma linguagem adquirida (Joyce, 2006, p. 200-201).

Harari (2002) observa que é notável como Joyce define o idioma do decano: "tão familiar e tão estranho", já que coincide com o Unheimlich, literalmente, o estranho no familiar. Considerando que a expressão "seu idioma" se refere ao idioma como um todo, Harari (2002) identifica, nessa cena, o programa vital de Joyce: A sua obra como criação, como artifício, gestada para libertar-se desse idioma. Ora, pode-se analisar essa cena como o projeto do artista de desmontar as palavras de um idioma, não apenas porque é este idioma, mas desmontar para sentir o estranhamento.

A leitura dessa desmontagem e montagem de palavras é o que faz a escuta psicanalítica. O estranhamento está presente na escuta das hesitações e do não-dito enquanto "escuta dirigida pelo olhar e leitura dirigida pela escuta" (Caon, 1996). E é a partir desse estranhamento que Lacan faz aproximações entre a leitura de Joyce do Finnegans Wake e a escuta psicanalítica, no sentido de engavetamento de significantes que podem ser lidos de uma infinidade de maneiras diferentes

 

Considerações Finais: Método e Ficção

Se há criação, há um corte entre a obra e o autor. Não é possível abordar a obra e o autor como se entre ambos não houvesse um corte. Como contraponto, considerem-se as "Memórias de um doente dos nervos", de Schreber (1903/2006). Trata-se de um testemunho, no qual não há criação ficcional, mas descrição do que se passou com o autor. A linguagem em Schreber não é utilizada senão como instrumento para o testemunho. Já a linguagem, em Joyce, não é tratada como instrumento, pois ela ganha vida própria quando novas palavras podem surgir por meio do escrito. Esse efeito criativo gera, por sua vez, a possibilidade de múltiplas leituras de uma obra. Esse é o critério para diferenciar uma obra literária de um testemunho. E pode-se considerar que um dos efeitos criativos da obra de Joyce é que leitores psicanalistas podem ler, nessa obra, um caso comparável a um caso clínico.

Para explicitar o método utilizado neste trabalho, considera-se primeiramente o enfoque de uma cena e, a partir desta, a elaboração de um caso. Chega-se a dois casos, em um dos quais Freud escreve um ensaio autobiográfico em primeira pessoa, enquanto, no outro, Joyce escreve um romance na terceira pessoa. O personagem Stephen Dedalus tem a função de representante ou alter ego do autor, mas é um personagem de ficção.

Outro aspecto metodológico diz respeito à escrita de Freud sobre a sua experiência de desrealização. Qual seria a estrutura topológica que corresponderia à escrita de Freud sobre essa experiência? Há uma ideia de continuidade que corresponde topologicamente a uma banda de Moebius. O conteúdo manifesto e o recalcado (as duas cenas) não estão separados por uma barreira de repressão que separa dentro e fora. O inconsciente, portanto, não seria um lugar fechado que oculta dentro de si lembranças. Lacan (1964/1998) critica fortemente essa noção:

Nisso percebemos que é o fechamento do inconsciente que fornece a chave de seu espaço e, nomeadamente, a compreensão da impropriedade que há em fazer dele um interior (Lacan, 1964/1998, p. 852).

E reforçando a ideia da continuidade entre as duas cenas, tem-se outra afirmação bastante clara de Lacan (1964/1985):

Recalcado e sintoma são homogêneos, e redutíveis a funções de significantes. Sua estrutura, embora ela se edifique por sucessão como todo edifício, é contudo, no fim, inscritível em termos sincrônicos (Lacan, 1964/1985, p. 167).

Isso estaria de acordo com o trabalho freudiano aqui abordado: uma leitura no só-depois do que ele fez com seu desejo inconsciente de superar o pai e com a dificuldade em se reconhecer nesse lugar de desejante. Seu trabalho foi de colocar, ou melhor, de desvendar a ordem lógica dos elementos que estavam à sua disposição, mas em princípio apenas supostamente ordenados.

Freud, com sua analise da desrealização, ensina sobre o recalque, o retorno do recalcado e a neurose e permite interpretações teóricas para além das que ele mesmo elaborou. Joyce ensina que a sublimação não é nem neurose, nem psicose e nem perversão. Ou que apenas se pode saber da obra, da sublimação, e que, da estrutura do sujeito que escreve, somente se saberá pela relação transferencial. A partir disso a elaboração borromeana de Lacan toma sua importância na teoria e também no campo da clínica. É apenas no só-depois que tanto a lei simbólica, que garante sustentabilidade intrínseca ao enlace borromeano, quanto o sinthoma, que é uma produção singular que se junta ao enlace, podem ser reconhecidos.

 

Referências

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Recebido em 20 de setembro de 2010
Aceito em 15 de agosto de 2011
Revisado em 02 de janeiro de 2012

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