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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj vol.12 no.1-2 Fortaleza June 2012

 

RESENHAS

 

Clube da luta. O clube da (Nossa) luta de cada dia: Perseverar é preciso?

 

Fight club. The fight (Our) club every day: Endure it takes?

 

 

Carlos Eduardo Firmino

Psicólogo pela PUC/MG. Bolsista de Apoio Técnico FAPEMIG/UFMG. End.: Rua 12 de Outubro, 283, Esplanada. Santa Luzia, MG. CEP: 33015-120. E-mail: firminosq@gmail.com

 

 

 

Título Original: Fight Club

Gênero: Drama

Direção: David Fincher

País de Origem: Alemanha

Ano de Lançamento: (1999) Estados Unidos

Distribuidora: 20th Century Fox

Temp ode duração: 139 minutos.

 

Introdução

Na teoria do conatus - teoria que buscava a compreensão da totalidade do real - Baruch Spinoza (1632-1677) propunha que "toda coisa, enquanto está em si, se esforça por perseverar no seu ser" (Gleizer, 2005). No caso do homem, ser complexo, dotado de capacidade reflexiva e de desejo, o ato de perseverar diz respeito não somente à manutenção de status quo enquanto organismo biológico - autoconservação. Refere-se a uma possibilidade de autoexpansão, crescimento, movimento, transcendência. Assim, toda atividade humana giraria em torno desse esforço - conatus, em latim - de se perseverar.

Não é proposta do presente texto - sem saídas, por sinal - se aventurar na seara das elucubrações de Spinoza. No entanto, entende-se que a ideia da gestão da vida e de si na atual sociedade de consumo e, principalmente, as alternativas produzidas pelas personagens do filme Clube da Luta (David Fincher) conduzem ao questionamento sobre em que medida, e de que forma, se pode realmente ultrapassar e crescer. Afinal, se há na sociedade atual um discurso, no sentido corriqueiro do termo, que insiste na preservação da vida e de um modo de viver homogêneo, a criação do Clube da Luta parece propor o contrário. O que emerge nas cenas "violentas" do filme é uma tentativa de superação (ou não) dos próprios limites. Ocorre, no mínimo, a inversão do que é proposto pela sociedade de consumo acerca da manutenção dos corpos dos indivíduos. É como se os participantes do Clube questionassem: "Vamos ver o que acontece? Até onde aguentamos a dor? Vamos sentir nossa condição desgraçadamente humana...". Tal posicionamento emerge, na opinião deste autor, como uma oposição ao ideal de manutenção da beleza e dos padrões de bem-estar que, cotidianamente, são bombardeados no tecido social, por meio de uma série de dispositivos. Como exemplo, pode-se pensar no atual boom, ocorrido na TV aberta, de programas nos quais profissionais da área da saúde - geralmente, profissionais médicos - se dedicam a ensinar, nas manhãs e nas tardes, maneiras corretas de se alimentar, de se exercitar, de dormir - sim, de dormir -, em suma, de produzir uma vida saudável. Biopoder...

Pál Pelbart, citado por Maia (2003), discute a noção de biopoder como algo que incide sobre a natureza humana. Nas estratégias da biopolítica o que está em jogo, para além de um poder sobre a vida, seria também "o poder de criação da vida, ou seja, produção das subjetividades coletivas, de sociabilidade, de formas de vida emergentes". (Pelbart, citado por Maia, 2003, p. 98). Assim, na contemporaneidade não está em voga o poder de ter o direito sobre a vida ou a morte, nem a inserção da disciplina sobre o corpo, e sim, a questão da tutela e da gestão da vida. Para gerir o modo com que a vida se produz, a sociedade de controle utiliza-se de um mecanismo bastante curioso. Ora, atualmente, como propôs Deleuze (1992), já não são vendidos produtos, e sim, serviços. Diga-se mais: o capitalismo se propõe a vender estado de espírito. Em última instância, oferece a todos, de bandeja, a famigerada e tão sonhada felicidade.

Não é necessário recorrer às discussões marxistas sobre o fetichismo da mercadoria. Busque-se o próprio filme. O que se vê, a princípio, na trama é um sujeito tomado pelas promessas de felicidade do capitalismo. O narrador (personagem de Edward Norton) é um jovem - do alto de seus trinta e poucos anos - que trabalha em uma companhia de automóveis. Solitário, ele adquire uma série de "vivências e sentidos" via catálogo. Mesas, objetos de decoração, produtos de marcas conhecidas que surgem como pontos de apoio. Como o próprio trailer do filme já anunciava, em certa tomada de consciência do que lhe ocorre, a personagem questiona: "que tipo de jogo de jantar me define como pessoa?". À pergunta sem sentido não cabe resposta definitiva, e sim a sensação de que o tempo está lhe ultrapassando sem que ele perceba. Enfurnado em relatórios, tinha a sensação de que se encontrava estagnado. Mas, como sintoma de uma vida dominada pela necessidade de estar atento a tudo que lhe é disponível no mercado, o narrador cai insone. Sendo assim, era necessário se desligar um pouco.

Após buscar ajuda médica, é orientado a visitar um grupo de apoio. Isso porque, segundo o médico - que lhe negou a medicação para dormir -, a insônia não iria lhe matar. No entanto, havia sofrimento mais grave. E era importante para o narrador perceber que não estava na pior situação do mundo. Curiosamente, ao visitar um grupo no qual os participantes sofriam de uma doença que atingia os testículos, a personagem sente-se melhor, obtendo certo alívio do estado alerta em que se encontrava. A partir daí, seu catálogo de compras passa a incorporar também outros grupos de ajuda mútua. Era esperado que ele se viciasse. Há grupos para todos os gostos e desgraças. Há grupos para controlar "o maior dos pesos", a saber, a própria condição humana.

Em meio aos grupos ofertados, após as idas e vindas entre novos e velhos objetos, o narrador decide se livrar, de uma vez por todas, de seu templo do consumo, ou seja, de seu próprio apartamento. Para tanto, foi necessário contar com a ajuda de si mesmo (o que o expectador só percebe com o avançar do filme), de seu duplo encarnado na pele do ousado Tylen Durden (personagem de Brad Pitt). É Tylen, alterego do narrador, que explode o apartamento. Tal ação seria, em última instância, a forma de se livrar de vez da dominação do consumo. Afinal, o narrador não necessitava mais de se entregar às promessas do capitalismo. Mas, ainda faltava um passo para que o autoconhecimento se tornasse completo. Era necessário se colocar em batalha. Era necessário lutar. Tylen Durden questionava o quanto poderia ter de autoconhecimento se nunca havia se colocado à prova, em combate. É sob os golpes dados e recebidos que a personagem se liberta e, consequentemente, liberta outros. Até certo ponto!

 

Perseverar é Preciso?

Uma pergunta surge: ao formarem o grupo, os participantes do Clube estão dando vazão a um modo singular de ação? Estão, como propôs Deleuze (Maia, 2003), buscando novas armas? Talvez sim, talvez não.

É fato que os participantes se propõem a questionar suas condições de existência, seus empregos, suas naturezas humanas. Mas, parafraseando Freud (1996/1930), a voz da crítica pessimista se faz ouvir: por mais que se perguntem sobre suas vidas, eles se agrupam feito ovelhas em torno de um líder e talvez incorporem valores tão nocivos quanto os propagados pelo consumismo capitalístico. O Projeto Caos é um projeto de uma espécie de messias que veio levá-los até a terra prometida. É a orientação dada pela entrega a um delírio de massa, fruído e compartilhado. A sensação inicial de superação dos valores dominantes produzidos pelo capitalismo dá lugar, ao longo do filme, a certo desapontamento.

O filme Clube da Luta é do ano de 1999. Porém, tem-se a impressão de que ele continuará atual ainda por um bom tempo. A grande dificuldade na contemporaneidade, afirme-se, é a busca de saídas que se apresentem ao mesmo tempo como coletivas, mas também, singulares. O advento de paixões alegres, no sentido atribuído por Spinoza (Gleizer, 2005), que aumentem a potência dos indivíduos de existir e os façam perseverar em seu próprio ser parece cada vez mais distante, ao se pensar na coletividade. Na tutela da vida cotidiana exercida pela sociedade de controle e pelo biopoder é curioso o fato de que modos milenares de existência - práticas orientais (meditação, dietas...), por exemplo - sejam capturados e disseminados como produtos de consumo, como promotores dos tais estados de espírito citados anteriormente. É necessário compreender que a compra de estado de espírito, pela via do consumo desenfreado, na qual o "neoconsumidor" adquire ideias e produtos que prometem apaziguá-lo, é uma fonte real de satisfação (Lipovetsky, 2007). A argumentação de Lipovetsky aponta que existe nos excessos do consumo, grosso modo, um bálsamo que, arrisque-se a dizer, evita o contato direto e doloroso com algo que é da angústia e do desamparo. O que poderia ser motor de um trabalho para buscar o crescimento é apaziguado por um eletrodoméstico de última geração. Não há espaço para a dor e a angústia.

À pergunta "perseverar é preciso?" talvez caiba a resposta " viver é preciso!". O motivo? O motivo é quase tautológico: viver é preciso porque todo ser humano, enquanto coisa, tenderá a perseverar em seu próprio ser. Talvez, bater e apanhar até sangrar seja algo que aumente a potência de existir. O mundo em que se vive tenta eliminar a dor e produz uma série de personagens dominados pela ansiedade e pela insegurança. Personagens sim. De riso fácil, de alegrias frágeis. Seres de atuação e de pouca reflexão. Reflexão é palavra fora de moda. Na banalidade do seu cotidiano os indivíduos vão entrando nesse ritmo, neste circo. Ou se tornam eternos palhaços, anestesiados, ou serão eternos taciturnos dominados pelo sofrimento e pelas indústrias do bem-estar.

Nessa linha de raciocínio, o filme Clube da Luta traz, ainda, outra ideia de consumo: o consumo de si mesmo. Afinal, lutar até sangrar é também consumir-se. Se a vida parece carecer de sentido, e há um controle exagerado que a estagna, como parece ocorrer com o narrador e os outros participantes do clube, nada melhor do que consumí-la. Fruir a vida é também consumir, aos poucos. Não se trata apenas de destruir o corpo para seguir na contramão dos ideais da beleza e da ordem, como se aponta no início do presente texto. Trata-se de destruir para produzir algo novo. Eros e Tanatos guiando o mesmo barco.

Ao se seguir os apontamentos freudianos no que concerne à existência de impulsos agressivos que constituem os indivíduos, pode-se pensar que a formação do Clube da Luta, em certo sentido, rechaça a felicidade entregue de bandeja. Afinal, se a existência da civilização exige restrições à agressividade para a manutenção da segurança, produzindo um tipo de felicidade menor (Freud, 1996/1930), ao saírem por aí se socando, provocando brigas com desconhecidos pelo simples prazer de fazer valer a lei do mais forte, os participantes do clube deram, literalmente, um tapa na cara de todos. A cena da explosão dos edifícios, ao final, quase autoexplicativa, parece ser o ato final: o narrador, após executar seu duplo Tylen Durden, observa, de longe, a queda do sistema. É a agressividade individual se materializando numa escala mais ampla. Fato curioso porque, se se continuar na perspectiva freudiana, pode-se dizer que a própria construção do edifício ora destruído e, em suma, do sistema, é resultado dessa mesma agressividade. Como apontara Freud na mesma obra citada acima (Freud, 1996/1930), o progresso da civilização - e naturalmente, a emergência do próprio sistema capitalista, desde a máquina a vapor até o espectro virtual contemporâneo - deve muito aos impulsos agressivos dos indivíduos. Isso porque, quando a pulsão de morte é direcionada para o mundo externo, como pulsão agressiva, deixa-se de lado certo empuxo à autodestruição e se transforma o mundo material. Assim, ao longo dos anos, controlou-se a natureza e fizeram-se grandes construções. Construiu-se também um sistema cuja destruição é almejada por muitos narradores que existem por aí.

Há muitas ambiguidades - como em tudo o que é humano - e há desapontamento no que diz respeito à posição dos clubes que vão se espalhando ao longo do filme. Mas, por outro lado, também, conduz a muitos questionamentos interessantes. Mesmo existindo certo comportamento gregário, como citado anteriormente, será que não há nas ações dos participantes do clube indícios de uma política da grande saúde, à maneira proposta por Nietzsche? Por mais céticos que se seja, há de se reconhecer na postura dos participantes do Projeto Caos um espírito que "brinca com tudo o que até aqui se chamou santo, bom, intocável, divino" (Nietzsche, 2001, p.286). Há uma tentativa, arrojada e arriscada, de, no devir, se promover a fortificação da vida, descobrindo-se que, como apontado na leitura de Nietzsche feita por Souza (2009), é necessário "viver intensamente, tornar-se o que é". Tornar-se saudável é descobrir-se na própria luta, compreendendo que esta existe "porque viver é lutar sempre" (Souza, 2009, p. 83). No caso das personagens do filme, elas levaram a ideia ao ato. E também em espírito.

Como foi dito, este é um texto sem saída. E talvez o próprio filme também o seja. Em um impulso violento e psicótico, o Clube da Luta traz à tona lugares ambivalentes. Singularidades e repetições, alternativas e mais do mesmo, possibilidades e retrocessos. Tudo no mesmo saco de areia! Não se tira lições de um filme como esse. Mas as experiências servem por si sós. Até mesmo como expectador. Sabe-se que mensagens/imagens aparecem, de forma subliminar. Há, por exemplo, um pênis que surge em meio às cenas. É um filme agressivo, que ao longo do tempo se tornou cultuado. Vai ver a razão de tal espectro cult está ligada a algum tipo de projeção. Afinal, indo ou não até o limite da dor, lutar parece ser necessário para todos os indivíduos. E cada um vai descobrindo o quanto poderá dar de si. Por quanto tempo poderá suportar as pancadas da vida.

Da parte deste autor, tirou-se uma espécie de sugestão do filme: se não se pode escapar à égide do sistema capitalista e dos excessos de uma sociedade inteiramente dominada pela técnica, que se tente, no mínimo, buscar outras possibilidades de existência, por mais controversas que sejam. Há muitos interesses que impedem os avanços, as manifestações de si, de desejos de mudanças, principalmente no plano político. No entanto, mineiramente falando, "os ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança" (Andrade, 1978).

Cabe às pessoas, reféns da tão citada falta de tempo deste início de século XXI, respeitar uma das regras do Clube: é "uma luta de cada vez". Que se lute!

 

Referências

Andrade, C. D. de. (2010). Os ombros suportam o mundo. In C. D. Andrade, Nova reunião: 23 livros de poesia (Vol. 1, p. 99). Rio de Janeiro: Best Bolso.         [ Links ]

Deleuze, G. (1992). Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In G. Deleuze, Conversações: 1992-1990 (pp. 219-226). Rio de Janeiro: Editora 34.         [ Links ]

Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro. (Originalmente publicado em 1930).         [ Links ]

Gleizer, M. A. (2005). Espinosa e a afetividade humana. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lipovetsky, G. (2007). A felicidade paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Maia, A. C. (2003). Biopoder, biopolítica e o tempo presente. In A. Novaes, O homem-máquina: A ciência manipula o corpo (pp. 77-108). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2001). A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Souza, M. A. de. (2009). Nietzsche: Viver intensamente, tornar-se o que é (Coleção Filosofia em Questão). São Paulo: Paulus.         [ Links ]

 

 

Recebido em 30 de junho de 2011
Aceito em 20 de outubro de 2011
Revisado em 18 de janeiro de 2012

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