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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.12 no.3-4 Fortaleza dez. 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O imperativo de gozo do supereu e sua conexão com a demanda de amor insaciável das mulheres1

 

The imperative of superego enjoyment and its connection with women's insatiable demand for love

 

El imperativo de goce de superyó y su relación con la demanda de amor insaciable de las mujeres

 

Le impératif du jouissance de le surmoi et as connexion avec la demande de l'amour insatiable de les femmes

 

 

Daniela de Oliveira Martins Mendes DaibertI; Heloisa CaldasII

IMestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); psicóloga clínica atuante na cidade de Juiz de Fora/MG, com experiência em instituição de atendimento à infância e adolescência. Endereço: Rua Dr. José Barbosa, 60, apto. 202. - São Mateus - Juiz de Fora/MG. CEP 36025-270. Tel.: (32) 3236-5085 / (32) 9116-7087. E.mail: dani80psi@gmail.com
IIDoutora em Psicologia - UFRJ; professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); psicanalista; membro da EBP/AMP. Endereço: Rua Joaquim Campos Porto, 267 - Jardim Botânico - Rio de Janeiro/RJ. CEP: 22460-190. Tel.: (21) 2259-6630. E-mail: helocaldas@terra.com.br

 

 


RESUMO

A teorização do conceito de supereu por Freud tem muita importância para o exercício clínico da psicanálise. Freud trabalhou com a tríade parricídio, culpa e punição desde os primórdios da teoria psicanalítica até a formalização do conceito, em 1923. Com o percurso de ensino de Lacan, o supereu simbólico como lei incompreendida foi se aproximando ao campo do gozo e, dessa forma, ao registro do real. Não há apreensão total da lei incompreendida, o que já aponta para o que escapa ao simbólico, ou seja, para o real. Para o aprofundamento teórico a respeito do supereu feminino, é fundamental lançar mão da evolução do pensamento de Lacan a respeito do gozo feminino, o Outro gozo. Este não apresenta balizas, é inominável, não se escreve, é diferente do gozo fálico norteado pelo Nome-do-Pai. Essa lei coloca ordem no caprichoso desejo da mãe, coordenando o gozo puro à função fálica. O supereu feminino é uma máscara que, por si só, é uma saída fálica na tentativa de lidar com o gozo sem balizas. Por outro lado, o supereu é um imperativo de gozo. Frente a isso, cabe uma interrogação: associando o supereu à gulodice da pulsão, pode-se pensar sua presença na demanda infinita de amor feita pelas mulheres? A enigmática questão "o que quer uma mulher?" marca que é impossível satisfazer as mulheres. Nesse caso, essa demanda se articularia ao Outro gozo, aquele que escapa e difere do gozo fálico. Tal demanda não exige o mesmo, porém, mais e mais de outra coisa. Este artigo visa pensar essas questões em relação aos males do amor causados pelas exigências de amor das mulheres.

Palavras-chave: Supereu, Imperativo de gozo, Amor, Feminino, Nome-do-Pai.


ABSTRACT

The theorization of the concept of superego by Freud is of great importance for the clinical practice of psychoanalysis. Freud worked with the triad: parricide, guilt and punishment since the beginning of his psychoanalytic theory until the formalization of the concept, in 1923. In the course of Lacan's readings, the symbolic superego as a misunderstood law is approaching the field of enjoyment, and thus, the registration of the Real. There is no total understanding of the misunderstood law, which already points to what escapes the symbolic, i.e., to the Real. To further the theoretical approaches regarding the female superego, it is essential to make use of the development of Lacan's ideas about the feminine jouissance, the Other jouissance. This latter has no beacons, is unamenable, is impossible to write, and is different from the phallic jouissance which is driven by name-the-Father. This law puts order in the capricious desire of the mother, coordinating the pure enjoyment to the phallic function. The female superego is a mask, which, in itself, is a phallic output in an attempt to deal with the enjoyment without beacons. On the other hand, the superego is an imperative of enjoyment. Given this, a question arises: linking the superego to the pulsion's gluttony, is it possible to find it in the women's infinite demand for love? The puzzling question "what does a woman want?" mark that it is impossible to meet women's demands. In this case, this demand is articulated to the Other jouissance, the one who escapes and differs from phallic pleasure. This demand does not require the same, but more and more of something else. This article aims to consider these issues in relation to the evils of love caused by women's demands for love.

Keywords: Superego imperative of joy, Love, fFminine, Name-the-Father.


RESUMEN

La teorización del concepto de superyó por Freud tiene mucha importancia para la práctica clínica del psicoanálisis. Freud trabajó con el parricidio tríada, la culpa y el castigo desde el comienzo de la teoría psicoanalítica para formalizar el concepto en 1923. Con el curso de la enseñanza de Lacan, el superyó simbólico como ley mal entendida se acercaba al campo de disfrute y de esa manera el registro real. No hay una comprensión completa de la ley mal entendida, que ya apunta a lo que escapa a lo simbólico, es decir, el real. Para un acercamiento teórico sobre el superyó femenino es esencial hacer uso de la evolución del pensamiento de Lacan sobre el goce femenino, es decir, el Otro goce. Esto no presenta balizas, no tiene nombre, no escribiendo, es distinto del goce fálico guiado por el nombre del padre. Esta ley pone orden en la voluntad caprichosa de la madre, la coordinación de la audición pura de la función fálica. El superyó femenino es una máscara que, por sí mismo, es una salida fálica en un intento para manejar las burlas sin balizas. Por otro lado, el superyó es un imperativo de goce. Debido a eso se trata de una pregunta: asociando el superyó a la glotonería de instinto, ¿se puede pensar en su presencia en la demanda sin fin de el amor hecha por las mujeres? La pregunta desconcertante "¿qué quiere una mujer?" Marca que no es posible conocer a las mujeres. En este caso, esta demanda es articular el goce del Otro, que se escapa y se diferencia del goce fálico. Esta demanda no lo requiere, pero cada vez más en otra cosa. Este artículo tiene como objetivo pensar estas cuestiones en relación a los males causados por las exigencias del amor de las mujeres.

Palabras-clave: Imperativo de goce, Superyó, Femenino, Nombre-del-Padre.


RÉSUMÉ

La théorisation de le concept de surmoi par Freud est três important pour l'exercice clinique de la psychanalyse. Freud a travaillé avec le triade parricide, faute et punition depuis les débuts de la théorie psychanalythique jusque la formalisation du concept dans 1923. Avec le cours de l'enseignement de Lacan, le surmoi symbolique que le droit incompris approchait le domaine de la jouissance et donc à l'enregistrement réel. Il n'y a aucune compréhension complète du droit méconnu, qui pointe déjà à ce qui échappe à la symbolique, c'est à dire , pour de vrai. Pour les approches théoriques concernant le surmoi féminin est essentiel de faire usage de l'évolution de la pensée de Lacan sur la jouissance féminine, l'autre la jouissance. Ce ne présente pas de balises, est sans nom, n'écrit pas, est différent jouissance phallique guidée par le Nom du Père. Cette loi met de l'ordre dans le désir capricieux de la mère, la coordination de la pure jouissance de la fonction phallique. Le surmoi féminin est un masque qui, en soi, est une sortie phallique pour tenter de gérer les taquineries sans balises. D'autre part, le surmoi est un impératif de jouissance. A cause de cela, il est une question: associer le surmoi à la délicatesse d'instinct, on pourrait penser sa présence dans la demande sans fin pour l'amour des femmes? La question déroutante "ce veut une femme"? Marque qu'il est impossible de rencontrer des femmes. Dans ce cas, cette demande est d'articuler l'Autre jouissance, qui s'échappe et diffère la jouissance phallique. Cette demande ne nécessite pas, mais de plus en plus de quelque chose d'autre. Cet article vise à réfléchir à ces questions en relation avec les maux causés par les exigences de l'amour de l'amour des femmes.

Mots-clés: Surmoi, Impératif de jouissance, D'amour, Girly, Nom-du-Père.


 

 

Introdução

A definição do conceito de supereu foi alvo de desavenças entre os psicanalistas da época, uma vez que seu nascimento está intimamente atrelado à segunda tópica pulsional. Alguns psicanalistas não concordaram com a ideia da pulsão de morte e, consequentemente, com o conceito de supereu. Cabe ressaltar que o supereu foi um dos pontos de controvérsia entre a líder da psicologia do ego, Anna Freud, e Melanie Klein. Esta criticou Freud por ele ter se intimidado frente ao supereu, por não ter extraído dessa descoberta as consequências teóricas e clínicas possíveis, "como se Freud tivesse retrocedido ao horror diante da evidência da presença insidiosa da pulsão de morte dentro do próprio sujeito" (Rodriguez, 1996, p. 88). Ao contrário da psicologia do ego, a psicanálise kleiniana pode ser considerada uma psicanálise do supereu. Segundo Rodriguez (ibidem), "Klein resgatou para a psicanálise a tese freudiana sobre a autodestrutividade do sujeito, tanto no plano teórico como no clínico". Por outro lado, a análise kleiniana tendia a situar o analista na posição de semblante do supereu.

A psicologia do ego, ao desconsiderar essas descobertas freudianas, fez um caminho inverso ao de Melanie Klein. Miller (1981-1984/2009, p. 128-29) apresenta a distorção feita pela psicologia do ego no que diz respeito ao conceito de supereu:

A psicologia do eu transfere ao eu as funções do supereu, o esvaziamento de suas funções. (...) Se apressam, em particular, em transferir ao eu a função de "percepção interna dos processos mentais", a função de auto-observação.

O supereu só pôde ser nomeado como uma instância após a elaboração dos conceitos de pulsão de morte e compulsão à repetição, em 1920. O caráter feroz dessa instância só poderia ser trabalhado após o avanço da psicanálise na desvinculação entre satisfação pulsional e prazer. Ou seja, poderia haver satisfação no sofrimento. As impressões de Freud com a Primeira Guerra Mundial fizeram-no vivenciar a violência e o sofrimento humanos e dar lugar teórico à pulsão destrutiva e sua repetição. A partir do estudo dos sonhos traumáticos e da observação do movimento repetitivo de seu neto com o carretel, Freud começou a se questionar a respeito da compulsão à repetição e percebeu que algo vai além do princípio do prazer.

Antes da formalização do conceito, Freud se ocupava do ternário parricídio-culpa-punição na elaboração de sua teoria das neuroses. Isso aparece nas correspondências entre Freud e Fliess (1887-1902). Em sua carta 64, datada de 1897, Freud fala do seu pressentimento de que, em breve, descobriria a origem da moralidade. Anexo a essa carta, no Rascunho N, ele se refere à hostilidade dirigida aos pais, colocando que "os impulsos hostis contra os pais (desejo de que eles morram) também são um elemento integrante das neuroses" (1996[1950], p. 304).

Relacionada com o parricídio, a punição aparece nesse Rascunho associada à formação de sintomas, os quais, "como os sonhos, são a realização de um desejo" (1996[1950], p. 306). Freud coloca que também no inconsciente a defesa contra a libido conquista seu espaço. "A realização de desejos deve preencher os requisitos dessa defesa inconsciente. Isso acontece quando o sintoma consegue funcionar como uma punição (por um impulso maléfico ou pela falta de confiança na própria capacidade de impedir o desejo sexual)" (ibidem, p. 306-307). Freud chama a atenção para o caráter punitivo do sintoma como uma saída para a realização de desejos, porém, de forma disfarçada e refreada.

Ainda no Rascunho N (1897), para começar a tratar da renúncia dos impulsos na constituição da civilização, Freud aborda a definição de "santidade", que diz respeito ao fato de os seres humanos, em benefício da comunidade maior, sacrificarem uma parte de sua liberdade sexual e de sua liberdade de se entregarem às perversões. Ele continua o texto abordando a questão do incesto.

Ambertín (2003, p. 29) salienta a clínica dos primeiros casos de Freud, que vão de 1886 a 1897, em que ele enfatiza:

[...] a estranha punição com a qual condescende todo sujeito, seja como represália sacrificial na histeria, como autopunição culposa na obsessão, ou como delírio de perseguição e de "ser notado" na paranóia. No esboço freudiano, tais padecimentos se entrelaçam pouco a pouco à Consciência Moral e esta ao parricídio, reconhecido nas origens da Psicanálise como "hostilidade para com os pais", embora o eixo-mestre da indagação freudiana gire em tono da questão do pai.

Um pouco mais tarde, com o estudo dos sonhos, Freud descobre que eles simbolizam a realização de um desejo e se vê às voltas com a censura que distorce o conteúdo onírico. Assim, fica claro que algo de proibido não poderia chegar à consciência.

Em Totem e Tabu (1912), Freud trabalha com a morte do pai, a culpa dos filhos e o estabelecimento de uma lei simbólica através do totem. Com essa lei, ficam instituídos tabus que não necessitam do pai encarnado para se fazer cumprir. Segundo Freud (1996[1912], p. 146), "após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso".

A partir desse momento, criou-se a urgência de uma lei encarnada em um totem, como uma forma de fixar uma referência e instituir as proibições. Anteriormente, a lei estava encarnada no pai, mas como uma lei de gozo. Com o assassinato do pai, instaurou-se o caos. Todos os irmãos poderiam ser mortos caso tentassem assumir o lugar do pai gozador. Para afastar essa ameaça e viver coletivamente, esses homens elegeram um totem.

Embora os irmãos se tivessem reunido em grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns dos outros em relação às mulheres. Cada um quereria, como o pai, ter todas as mulheres para si. A nova organização terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles tinha força tão predominante a ponto de ser capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos (...), do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai. (Freud, 1996[1912], p. 147)

Em 1914, com o trabalho sobre o narcisismo e a formação do eu, Freud introduz os conceitos de ideal do eu e eu ideal. Este é trabalhado no nível imaginário, no sentido da formação de uma unidade corporal; aquele possui uma característica de auto-observação e crítica.

As exigências do eu de criticar e vigiar fazem parte do ideal do eu. Freud fala de um agente psíquico especial cuja tarefa é assegurar que a satisfação narcísica proveniente do ideal do eu aconteça. Para que isso se realize, esse mesmo agente observa constantemente o eu real, medindo-o pelo eu ideal (1996[1914]). A formação do ideal do eu, no qual a consciência atua como vigia, vem da influência crítica dos pais e, mais tarde, de outras pessoas que tem a função de educar e ensinar. Segundo Freud (1996[1914], p. 102), "a instituição da consciência foi, no fundo, uma personificação, primeiro da crítica dos pais, e, subsequentemente, da sociedade (...)". A combinação entre esse agente psíquico especial - censor - e o ideal do eu possibilitou a construção do conceito de supereu.

Freud formulou sua segunda tópica em 1923, com as instâncias psíquicas eu, isso e supereu. O caráter cruel e destrutivo do supereu indica sua intimidade com a pulsão de morte. Em 1929, com O mal-estar na civilização, Freud trabalha com a renúncia pulsional necessária para se viver na cultura. Porém, o preço pago pela renúncia às pulsões é que esse movimento alimenta e engorda o supereu, o qual volta sua força destrutiva para o eu. O supereu torna-se cada vez mais íntimo da pulsão de morte.

Da mesma forma que a definição do conceito foi alvo de controvérsias, a ideia do supereu feminino mostra-se delicada desde Freud. Como ocorre o surgimento do supereu na menina, já que, em seu caso, teoricamente, não haveria nada a perder?

Os mistérios do feminino ocuparam Freud por muitos anos e o fizeram trabalhar na tentativa de elaborar os impasses relativos ao complexo de Édipo nas meninas e à formação do supereu. No decorrer das análises, Freud pôde se dar conta da demanda incessante de amor que as mulheres apresentavam e, frente a isso, pôs-se a questionar: "o que quer uma mulher?".

Em 1914, essa questão aparece textualmente no seguinte trecho: "grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto" (1996[1914], p. 96). Nesse texto, ele aborda as diferenças de escolhas objetais entre homens e mulheres. Segundo Freud, o homem consegue fazer a transferência de seu narcisismo original para o objeto sexual. Especificamente nesse momento, Freud não nomeia o complexo de Édipo, mas é possível ler em suas linhas que, no caso dos homens, existe uma barra que faz com que saia de seu narcisismo original.

Como não há a ameaça de castração nas meninas, seu complexo de Édipo fica em aberto, ou seja, não há o que barre esse narcisismo original, que fica exacerbado na forma de amar feminina. Freud coloca que elas "amam apenas a si mesmas, com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas" (1996[1914], p. 95).

Pode-se dizer que no complexo de Édipo masculino, a criança precisa renunciar à mãe como objeto libidinal frente à ameaça de castração. Freud nos explica como se dá a escolha da criança frente à ameaça de castração, uma vez que a satisfação objetal do complexo de Édipo pode lhe custar o pênis: "está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessas forças: o eu da criança volta as costas ao complexo de Édipo" (1924/1996, p.196).

Com relação à menina, Freud (1925/1996) expõe que, enquanto nos meninos ocorre a dissolução do complexo de Édipo a partir do complexo de castração, nas meninas, ele se faz possível e é introduzido através deste. Quanto ao complexo de castração, Lacan pontua que ele tem uma função de nó, que irá possibilitar ao sujeito se posicionar frente ao sexo.

(O complexo de castração) numa regulação do desenvolvimento que dá a esse primeiro papel sua ratio, ou seja, a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem graves incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher com justeza as da criança daí procriada. (LACAN, 1958/1998, p. 692)

No pré-Édipo de ambos os sexos, a mãe é o primeiro objeto libidinal. Nos meninos, ela se mantém como objeto de amor no Édipo. As meninas, para o desenvolvimento de sua feminilidade, precisam trocar de objeto da mãe para o pai. Frente à vivência de comparação de seu órgão com o dos meninos, "caem vítimas da inveja do pênis" (Freud, 1925/1996, p. 280). Uma das consequências da inveja do pênis que Freud coloca é o afrouxamento da relação de afeto entre a menina e a mãe. Segundo ele, isso não é muito claro, mas, para a menina, a mãe é a responsável por sua falta de pênis, uma vez que a colocou no mundo com um aparelhamento insuficiente. Dessa forma, a menina se dirige ao pai, possuidor do pênis, e ocupa outra posição "ao longo da linha da equação 'pênis-criança'. Ela abandona seu desejo de um pênis pelo desejo de um filho. Com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor" (ibidem, p. 284).

Assim, nas mulheres, o complexo de castração já está posto quando entram no complexo de Édipo, ou seja, não há uma ameaça de perda; já está perdido. As mulheres entram em seu complexo de Édipo sem nada a perder e este fica em aberto. Sentem-se desaparelhadas, desprovidas e estão sempre em busca do que está faltando.

Lacan aponta que a relação do sujeito com o falo desconhece a diferença anatômica entre os sexos e isso se torna, para a mulher, uma questão espinhosa, pois "a própria menina se considera, nem que seja por um momento, castrada, na acepção de privada de falo, e castrada pela operação de alguém, que primeiro é sua mãe, ponto importante, e em seguida seu pai" (1958/1998, p. 693). Assim, castrada pela mãe e pelo pai, a menina se coloca frente ao Outro como um sujeito marcado pela falta no corpo.

Segundo Durand (2008), o amor, para as mulheres, constitui uma verdadeira paixão e é tecido em seu gozo de amar intensamente, cegamente e sem limites. Com a demanda incessante de serem amadas, as mulheres alimentam seu narcisismo e procuram um homem que se encaixe perfeitamente no lugar daquilo que lhes falta. De acordo com essa autora, "mais além do pedido do objeto da necessidade, há uma demanda invisível que interpreta o dom como um signo de amor" (ibidem, p. 82). Diferentemente dos homens, que vivem a ameaça da castração, as mulheres vivem o medo de perder o amor, e isso impulsiona essa demanda insaciável de signos.

Em 1921, Freud trabalha o "estar amando" e novamente enfatiza o caráter narcísico do amor quando coloca que o parceiro está no lugar do ideal do eu. Segundo ele, "em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido ideal do eu de nós mesmos" (1921/1996, p. 122).

Miller (2009) coloca que o conceito de ideal do eu está sempre presente na teoria freudiana quando trata do amor, porém, além do caráter narcísico, há a dependência primária em relação a outras pessoas. O autor articula as obras Psicologia das massas e análise do eu e Mal-estar na cultura e pontua que, nessa trajetória, Freud vai do amor à pulsão de morte. Dito de outra forma, esses livros vão do ideal do eu ao supereu.

No primeiro, Freud trabalha o amor como o investimento libidinal de um objeto no lugar de ideal do eu. No segundo, quando fala de supereu, trabalha com a pulsão de morte e agressividade, indicando que sua formação se dá a partir do amor. Miller (2010) trabalha com a distinção dos três termos empregados por Freud: desamparo (Hilflosigkeit), dependência (Abhängigkeit) e angústia da perda de amor (Angst von der Liebesverlust).

Frente ao desamparo, o sujeito se encontra em dependência primária do Outro para satisfazer suas necessidades. Segundo Miller (2010, p. 3), "há uma dependência no nível do Outro que tem o necessário para satisfazer a necessidade, e há Outro de cujo amor depende o sujeito". A "angústia da perda de amor" vem a partir dessa dependência do Outro. O estatuto do Outro que tem é diferente do Outro do amor, pois o amor nunca se tem. Logo, a dependência se dá diante da falta no Outro, do .

O supereu se forma a partir da renúncia às pulsões em nome do amor. Segundo Miller (2009, p. 10), "no início não temos supereu, mas uma dependência externa do sujeito em relação ao Outro: para não perder seu amor, aceita renunciar a satisfazer as pulsões. Este é o ponto de partida de Freud: a ansiedade de perder o amor do Outro inibe a agressividade". Com a renúncia às pulsões, o complexo de Édipo é dessexualizado, restando dele o supereu como lei. Devido ao fato de a pulsão de morte não estar vinculada a misturas de libido, o supereu adquire seu caráter cruel e destrutivo.

Em 1923, Freud pontua que, ao retirar a libido dos investimentos do isso, acontece a transformação da libido erótica em libido do eu, envolvendo um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização. Dessa forma, "erigindo-se em objeto amoroso único, e dessexualizando ou sublimando a libido do isso, o eu está trabalhando em oposição aos objetivos de Eros e colocando-se a serviço de impulsos pulsionais opostos" (1923/1996, p. 58). Assim, pode-se perceber que Freud estava trabalhando a ligação do supereu com a pulsão de morte.

Dessa forma, a vinculação da libido ao eu alimenta o narcisismo e deixa a pulsão de morte sem o amparo da pulsão sexual, o que faz a agressividade atuar sobre o eu com força total. Freud pontua que uma parte do eu assume a agressividade e "se coloca contra o resto do eu, como supereu, e que então, sob a forma de 'consciência', está pronta para pôr em ação contra o eu a mesma agressividade rude que o eu teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos" (1930(1929)/1996, p. 127). O efeito da renúncia pulsional é que cada satisfação à qual o sujeito renunciou é assumida pelo supereu e aumenta a agressividade deste contra o eu.

A descoberta de Freud é que o supereu engorda com a satisfação pulsional à qual se renunciou: por isso, quanto mais se renuncia, o gozo pulsional, longe de se desvanecer, nutre o supereu, e se goza nesse lugar. Em vez de gozar de comer a boa geléia, goza-se de renunciar à geléia. Assim, se produz um ciclo de reforço, quanto mais o sujeito renuncia às pulsões, mais cresce o supereu e mais culpado será o sujeito. (Miller, 2010, p. 13)

Essa citação de Miller contribui para compreender melhor o que Lacan nos transmite com a frase "a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo" (1960/1991, p. 363). Esse trecho é muito importante no estudo do supereu. Ao mesmo tempo em que interdita o desejo incestuoso, o supereu não dá conta de conter o gozo veiculado a ele.

Barros pontua que, desde Freud, questões são colocadas com relação à existência do supereu feminino, principalmente no que diz respeito ao vigor dessa instância: "como a mulher temeria a perda de algo cuja ausência, justamente, provoca a sua admissão, ao contrário dos homens, na dialética edipiana? E, não tendo ela a temer, a partir do que se estruturaria o supereu?" (1995, p. 55). Surgiram daí duas posições: ou as mulheres teriam um supereu menos rígido e feroz do que o dos homens e seria fundado não pela ameaça de castração, mas sim na ameaça de perda de amor; ou por outro lado, o supereu das mulheres seria tão feroz quanto é nos homens, mas seu ponto de apoio seria diferente.

Em A dissolução do complexo de Édipo, Freud se pergunta se esse processo, descrito como ameaça de castração e complexo de Édipo, refere-se somente às crianças de sexo masculino e lança a questão: como acontece o desenvolvimento correspondente nas meninas? Ele afirma que "também o sexo feminino desenvolve um complexo de Édipo, um supereu e um período de latência" (1924/1996, p. 197). Responde também afirmativamente com relação à organização fálica e ao complexo de castração nas meninas, porém, coloca a ressalva de que não acontece da mesma forma que nos meninos.

Freud aborda que o supereu na menina estaria muito mais ligado ao "resultado da criação e de intimidação oriunda do exterior, as quais a ameaçam com a perda de amor". (1924/[1996], p.198). Freud continua pontuando as diferenças sexuais também no supereu. Ele coloca que existe diferença entre a ética masculina e a feminina, e insiste que o supereu feminino "nunca é tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens emocionais como exigimos que o seja nos homens" (1925/1996, p. 286).

O supereu feminino mostra-se mais íntimo das relações emocionais que o dos homens. Jucá cita um trecho da fala de Jocasta na ópera Oedipus Rex, de 1927, do compositor russo Igor Stravinsky: "Os oráculos mentem, os oráculos mentem sempre. Édipo, esteja atento aos oráculos que mentem. Retorne rápido ao lar. Não há mais a refletir..." (Stravinsky apud Jucá, 1998, p. 51). Esse trecho representa bem a relação das mulheres com a lei. Jocasta, ao implorar que Édipo recue frente às evidências, coloca em xeque a lei dos deuses, que, em sua cultura, representa uma lei maior.

Quando Édipo, frente a todas as evidências, não consegue mais escapar à verdade, Jocasta sustenta um último véu na tentativa de manter seu filho mergulhado na ignorância onde ele permanecera até então. (...) Freud se depara com uma certa volatilidade da mulher ante a lei, onde se estabelece uma relação tal que a submissão não ocorre exatamente como poderia se esperar, ou pelo menos, como supostamente ocorreria no caso dos homens. (Jucá, 1998, p. 51)

Jucá fala da diferença da posição feminina com relação à incidência fálica. Segundo a autora, há algo nessa posição que "escapa ao campo subjugado aos efeitos da lei e que, de certa forma, poderíamos pensar, aproxima a mulher, para quem a função fálica não funciona por completo, da posição do psicótico" (ibidem, p. 51). Segundo Miller (1989), quando o gozo não se coloca sob a égide fálica, tem-se o delírio de Schreber.

Da mesma forma, em homens e mulheres, a formação do supereu se dá quando a autoridade externa é incorporada. Para Miller (2009, p. 12), tal como apresenta Freud, a gênese do supereu é por identificação: "[...] Trata-se de uma incorporação simbólica do Outro, que constitui o sujeito em relação a um lugar fundamentalmente simbólico [...]". Tal operação se dá no nível do significante. Assim, pode-se dizer que o significante superegoico que ordena a renúncia pulsional não dá conta de limitar o gozo que transborda e alimenta o supereu.

Lacan trabalha, no Seminário 5 (1957-58), a ideia de um supereu mais arcaico do que aquele "correspondente ao declínio do complexo de Édipo e à introjeção do personagem edipiano considerado eminenentemente proibidor, o personagem paterno" (1958/1999, p. 506). Ele coloca esse supereu mais arcaico como sendo o supereu materno e o relaciona ao que Melanie Klein elabora como supereu primordial, o qual "está ligado ao Outro primário como suporte das primeiras demandas [...] do sujeito, no nível das primeiras articulações balbuciantes de sua necessidade, e daquelas primeiras frustrações nas quais tanto se insiste atualmente" (ibidem, p. 512). Lacan extrai das formulações de Melanie Klein um ponto fundamental para abordar o supereu:

Que temos aí, no nível do Outro primário e das primeiras demandas? Temos o fenômeno que se chamou dependência. Tudo o que acontece com o supereu materno articula-se em torno disso. [...] A primeira relação de dependência é ameaçada pela perda de amor, e não simplesmente pela privação dos cuidados maternos, e é por isso que ela já é homóloga, em si mesma, à que depois se organizará na perspectiva das leis da fala. (ibidem, p. 512-513)

Frente ao supereu materno como vociferação dilacerante de um Outro primitivo, uma lei se impõe a esse gozo puro abrindo caminho para o desejo. Essa lei é o Nome-do-Pai, que irá ordenar e metaforizar o Desejo da Mãe. Segundo Miller, "a lei no sentido de Lacan é essa operação pela qual o Nome-do-Pai vem ordenar as coisas, coordena o gozo com o falo, graças a ele, se pode escrever" (1981-1984/2009, p. 137).

Barreto aborda o supereu materno em Lacan e trabalha a diferença entre este e o supereu paterno. Com relação ao primeiro, o autor coloca que "deriva de trauma primitivo sofrido pela criança, quando suas fantasias fazem-na escutar a voz de um adulto como uma imposição cruel e dilacerante" (2001, p. 47). O supereu materno é uma lei insensata.

O supereu como lei insensata diz respeito a um S1 isolado, que por si só não apresenta significação, pois não há um S2 que retroativamente viria significar. Devido a isso, o supereu é um imperativo e se aproxima de um capricho sem lei, como é o Desejo da Mãe. Assim, "o supereu como lei insensata está muito próximo ao Desejo da Mãe antes de que este desejo seja metaforizado e inclusive dominado pelo Nome-do-Pai" (Miller, 1981-1984/2009, p. 138).

Enquanto lei, o supereu mostra sua face simbólica. Ou seja, a lei regula o gozo e permite circunscrever o campo do desejo, pois este está onde há proibição. No Seminário 2, Lacan aborda o discurso interrompido como "coisa totalmente diferente da relação narcísica com o semelhante; é a relação do sujeito com a lei em seu conjunto, visto que nunca pode haver relação com a lei no seu conjunto, já que a lei nunca é assumida completamente" (1955/1985, p. 167). Assim, nunca há apreensão total.

Para Lacan, o que interessa a Freud "(...) é a mensagem como discurso interrompido e que insiste. Eis aí algo que nos mantém pertinho do problema que estamos por ora colocando em causa - o que é além do princípio do prazer? O que é o automatismo de repetição?" (1955/1985, p. 162). Com relação ao supereu, Lacan faz referência ao discurso interrompido e, no caso, a uma "lei na medida em que é incompreendida. Por definição ninguém pode ser tido por ignorante da lei, mas ela é sempre incompreendida, pois ninguém a apreende em seu todo" (ibidem, p. 164). O supereu é isso que é interrompido, incompreendido e que insiste. Lacan apresenta a severidade do supereu em um caso clínico:

(...) eu conheci um sujeito cuja cãibra dos escritores estava vinculada ao seguinte, que sua análise revelou - na lei islâmica na qual fora criado, o ladrão tinha de ter a mão decepada. E isto, ele nunca pôde engolir. Por quê? Porque se acusara seu pai de ser ladrão. Ele passou a infância numa espécie de profunda incerteza com respeito à lei alcorânica. Sua relação inteira com seu meio original, o pilar, os alicerces, a ordem, as coordenadas fundamentais do mundo, estava barrada porque havia algo que ele se recusava a compreender - por que é que alguém que era um ladrão tinha de ter a mão decepada. Por causa disto, aliás, e justamente por não compreendê-lo, ele é quem tinha a mão decepada. (Lacan, 1955/1985, p. 167)

No decorrer de seu ensino, Lacan aproxima o supereu ao gozo, e dessa forma, ao registro do real. Alguma referência a isso já aparece quando ele fala de algo que insiste e repete. Ele nos diz que o supereu é isso que "terroriza efetivamente o sujeito, que constrói nele sintomas eficientes, elaborados, vivenciados, que prosseguem e que se encarregam de representar este ponto onde a lei não é compreendida pelo sujeito, mas é desempenhada por ele" (ibidem, p. 167). Poder-se-ia dizer que isso já é um indício da face de gozo que insiste do supereu? Quando Lacan coloca que não há apreensão total da lei incompreendida, ele já está fazendo referência a algo que escapa do simbólico e, como tal, o significante não dá conta de apreender, ou seja, está apontando para o Real.

Em seu percurso, Lacan aproximou cada vez mais o supereu como imperativo de gozo ao registro do real. Em 1963, ele nos apresenta o supereu como uma das facetas do objeto a. Este é definido como um resto da operação simbólica, "o que resiste a qualquer assimilação à função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que, na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, como o que se perde para a 'significantização'" (1963/2005, p. 193). Ele nos ensina que o supereu tem uma ligação evidente com a forma de objeto a que é a voz, e nos indica que "não pode haver concepção analítica do supereu que se esqueça de, por sua fase mais profunda, essa é uma das formas do objeto a" (2005[1962/63], p. 321).

No primeiro ensino de Lacan, o Outro é uma organização simbólica anterior à entrada do sujeito na linguagem. Depois, Lacan se depara com aquilo que o significante não dá conta de circunscrever - o gozo. Este começa a ocupar um lugar privilegiado nesse ensino e contribui para a construção de que o Outro não existe a priori. O que existe é um "Outro desorganizado, caótico, portador de uma fala disjunta da estrutura da linguagem, que vale pelas ressonâncias e efeitos de gozo que provoca no corpo" (2007, p. 54). É desse Outro que é extraído o objeto da fala que marca o campo de gozo próprio, o gozo autista. Nessa operação, o objeto voz torna-se letra de gozo no corpo.

Seu corpo é marcado pela cultura e seu ouvido, invadido pela ressonância da língua materna. Portanto, ao mesmo tempo que algo se escreve em seu corpo pelo furo nas bordas, tal como Freud o declinou, marcam-se em seu ouvido os traços pertinentes à fonologia da linguagem. (ibidem, p. 52)

Em 1905, nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud já nos apresenta a erogeneização do corpo do bebê pelos cuidados feitos pela mãe. Dessa forma, o corpo é marcado em suas bordas erógenas, produzindo um mapeamento que será o suporte para a escrita de gozo. Ocorre uma invasão da escrita e da oralidade no corpo.

A letra sulca o corpo e produz uma escrita. Esta, porém, só pode ser lida a partir do que é ouvido do significante. Segundo Elia (2007, p. 132), "o significante se ouve, mas não se lê. No que se ouve do significante, uma escrita poderá ser lida, e esta é uma operação que, embora acoplada à primeira, a da escuta, não é da mesma ordem, não lhe é redutível". Ou seja, o acesso à letra escrita se dá pela via da leitura do que se escuta do significante.

A principal característica da letra não diz respeito ao que está escrito ou ao conteúdo, mas ao furo que faz. Azevedo (2007, p. 42) pontua: "(...) o conceito de letra como traço, como marca que faz furo e que se apaga". A letra fixa o gozo autista a partir da extração do objeto voz da fala do Outro. Além disso, algo de outra ordem cai desse Outro desorganizado: o significante do gozo autista - lalíngua.

O que passa a estar em jogo, portanto, não é mais o Outro como ponto de partida, e sim o Um. Esse Um indica a singularidade do significante do gozo autista, que não passa pelo Outro como sistema, lei ou laço social. Ele é separado do Outro. Assim, chegamos à lalíngua, que funda o campo do gozo próprio. (Caldas, 2007, p. 53)

O Outro como sistema, lei ou laço social será organizado como um quebra-cabeça de significantes a partir do significante Um assemântico. De acordo com Caldas (2007, p. 54-55), há "uma polarização e uma tensão dialética entre o isso provocado por esse significante Um e o empuxo a falar d'isso: de um lado, o autismo do gozo; do outro, o laço social". Ou seja, veicular o gozo autista à fala dirigida ao Outro. O gozo do supereu não é autista, e sim um gozo endereçado ao Outro pela fala. A constituição dessas séries discursivas se dá a partir da letra de gozo que é a voz.

Retomando Freud em O mal-estar na civilização, para se viver em sociedade com o outro, fazer laço social, o sujeito renuncia a suas pulsões. Isso é ordenado pelo supereu e essa renúncia está referida ao Outro sob a égide da castração. Porém, quanto mais o supereu ordena essa renúncia, mais ele engorda com o gozo renunciado.

No último ensino, Lacan trabalha com aquilo que ultrapassa o significante, ou seja, o gozo. Textualmente, pontua que "nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo - Goza" (1972/2008, p. 11).

Até então, a ênfase está sendo dada ao supereu materno, no entanto, há o supereu paterno, herdeiro do complexo de Édipo, que está condenado à função fálica graças à lei do Nome-do-Pai. Barreto (2001, p. 45) coloca que, neste caso, essa lei visa interditar "a satisfação impensável do desejo incestuoso da criança, ou seja, o gozo absoluto. [...] A lei, portanto, ao barrar o gozo puro, abre caminho para o desejo".

Jucá (1998, p. 52) fala do gozo feminino que, "por não se inscrever por completo sob a égide do falo, não pode ser capturado pela linguagem e remete, portanto, a um silêncio, à experiência do indescritível". Gonçalves (1996, p. 20) também fala desse gozo a mais na posição feminina:

A posição de gozo feminino dá acesso a esse outro modo de gozar, o que Lacan chamou Outro sexo, possível também para um homem de aí se colocar. Isso permite que a posição feminina tenha acesso ao gozo do Outro, que arrebata o corpo feminino, gozo suplementar, um a mais, aquele que foi dividido pelo gozo fálico e que vai além, infinito. Enquanto o gozo fálico, masculino, pode ser dito, o Outro gozo é o inominável.

Pode-se descrever como manifestações do gozo feminino, de acordo com Slongo (2010, p. 136), "a mais leve desorientação até a angústia profunda, passando por todos os graus de aflição e extravio. (...) Como uma sensação de infinitude do ser, de expansão incomensurável que ultrapassa os limites do próprio corpo". Ela acrescenta que a falta de consistência se vincula a um sentimento de fragmentação corporal, a ponto de fazer questionar se não se trata de uma psicose.

Segundo Miller (1981-1984/2009), o problema do supereu feminino nada mais é que uma máscara do gozo feminino. O supereu entra no circuito deste, que tende ao sem limite e ordena que o sujeito goze. Dessa forma, a demanda de amor feminino que tende ao infinito se mistura ao imperativo de gozo superegóico.

Segundo Zalcberg (2007, p. 65) "a mascarada é, a um só tempo, máscara e véu do que não se tem. Embora represente uma solução para a questão feminina, ela também constitui um problema". Trata-se de uma solução porque implica um "saber fazer" com a falta estrutural feminina e o gozo infinito. É uma saída para lidar com o gozo a mais. Por outro lado, torna-se um problema, pois coloca a mulher no campo da significação fálica - esconder a falta aponta para a pretensão de "ter" - e implica no afastamento à feminilidade. Com relação a esse afastamento, cito um trecho de Lacan (1958/1998, p. 701), no qual ele pontua: "por mais paradoxal que possa parecer essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada".

O supereu feminino como máscara está vinculado ao campo fálico. Dessa forma, torna-se um recurso para a mulher lidar, através da ordenação fálica, com o gozo a mais que a invade. Miller (1981-1984/2009, p. 137) pontua: "a lei no sentido de Lacan é essa operação pela qual o Nome-do-Pai vem ordenar as coisas, coordena o gozo com o falo, graças a este pode escrever". A diferença essencial é que o Nome-do-Pai é uma função que abre o campo do desejo, enquanto o supereu é uma função coordenada ao gozo, que manda gozar com a renúncia vinculada ao desejo.

 

Referências

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Recebido em 31 de janeiro de 2011
Aceito em 17 de janeiro de 2012
Revisado em 21 de dezembro de 2012

 

 

1 Este artigo é produto de minha pesquisa de Mestrado "O Supereu na clínica psicanalítica: avesso do desejo?" no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ sob orientação da Profª Drª Heloisa Caldas.

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