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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.12 no.3-4 Fortaleza dez. 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Vivência de dor e pulsão de morte na teoria freudiana do aparelho psíquico e das neuroses

 

Experiences of pain and death instinct in freud´s theory of psychic apparatus and neuroses

 

Vivencia de dolor y pulsión de muerte en la teoría freudiana del aparato psíquico y de las neurosis

 

L´expérience de douleur et la pulsion de mort dans la théorie freudienne de l´appareil psychique et des névroses

 

 

Fátima CaropresoI; Luiz Roberto MonzaniII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre e doutora em Filosofia pela mesma instituição. Realizou estágio de pós-doutoramento na Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Rua Leonildo Gonçalves Regado, 214, casa 8, Parque Alto, Juiz de Fora, MG, CEP: 36038-420. E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br
IIGraduado em Filosofia pela USP. Doutor em Filosofia pela mesma instituição. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Rua Totó Leite, 1120, Vila Santo Antônio, São Carlos, SP, CEP: 13569-240

 

 


RESUMO

No início da teoria freudiana sobre o aparelho psíquico e as neuroses, duas vivências são pensadas como estruturantes do funcionamento psíquico normal e patológico: a vivência de satisfação e a vivência de dor, respectivamente. Em um segundo momento, o papel da vivência de dor é minimizado e a vivência de satisfação passa a constituir o fundamento principal a partir do qual o desenvolvimento do psiquismo transcorreria. Contudo, a partir de "Além do princípio do prazer" (1920), não apenas a vivência de dor é retomada em outro contexto e outro plano de significação, como passa a ser considerada a experiência primordial no psiquismo. Essa retomada da vivência de dor - que a partir de 1920 passa a ser chamada de "trauma" - está associada à formulação dos conceitos de compulsão à repetição e pulsão de morte. Em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926), Freud volta a situar o trauma na origem das neuroses e, em "Análise terminável e interminável" (1937), reflete sobre o papel desempenhado pela pulsão de morte, tanto na etiologia das neuroses como nos obstáculos enfrentados pela terapia psicanalítica. O objetivo deste artigo é discutir algumas das modificações nas hipóteses freudianas sobre a constituição do aparelho psíquico e a etiologia das neuroses, que parecem decorrer dessa retomada da vivência de dor e da introdução do conceito de pulsão de morte.

Palavras-chave: Psicanálise freudiana, Metapsicologia, Vivência de dor, Pulsão de morte, Aparelho psíquico.


ABSTRACT

In Freud's early work, both in his theory of the psychic apparatus and in his theory of neuroses, two experiences are thought of as organizing the normal and the pathological mental functioning: the "experience of satisfaction" and "experience of pain", respectively. In a second phase of this theory, the role of the experience of pain is minimized and the experience of satisfaction becomes the primary foundation from which the development of the psyche emerges. However, from "Beyond the Pleasure Principle" (1920) onwards, the concept of experience of pain returns, in another context and at another level of significance. In fact, it is also brought to the foreground and regarded as the primary experience in the constitution of mind. This resumption of the experience of pain - which is then referred to as "trauma" - is closely related to the formulation of the concepts of repetition compulsion and death instinct. In "Inhibitions, Symptoms and Anxiety" (1926) Freud once again places the trauma at the origins of neuroses and, in "Analysis Terminable and Interminable" (1937), he reflects on the role played by the death instinct both in the etiology of neuroses and in the obstacles faced by psychoanalytic therapy. This paper aims at discussing some of the changes in Freud's hypotheses on the constitution of the psychic apparatus and the etiology of the neuroses, which seem to originate from such resumption of the experience of pain and from the introduction of the concept of death instinct.

Keywords: Freudian psychoanalysis, Metapsychology, Experience of pain, Death instinct, Psychic apparatus.


RESUMEN

En el inicio de la teoría freudiana sobre el aparato psíquico y las neurosis, dos vivencias son pensadas como estructurantes del funcionamiento psíquico normal y patológico: la vivencia de satisfacción y la vivencia de dolor, respectivamente. En un segundo momento, el papel de la vivencia de dolor es minimizado y la vivencia de satisfacción pasa a constituir el fundamento principal desde cual el desarrollo del psiquismo transcurriría. No obstante, desde "Más allá del principio de placer" (1920), no solo la vivencia de dolor es recuperada, en otro contexto y en otro plano de significación, pero también pasa a ser considerada la experiencia primordial en el psiquismo. Esta recuperación de la vivencia de dolor - que desde 1920 pasa a ser llamada de "trauma" - está asociada a la formulación de los conceptos de compulsión a la repetición y de pulsión de muerte. En "Inhibición, síntoma y angustia" (1926), Freud vuelve a situar el trauma en el origen de la neurosis y, en "Análisis terminable y interminable" (1937), reflexiona sobre el papel de la pulsión de muerte, tanto en la etiología de las neurosis como en los obstáculos los cuales enfrenta la terapia psicoanalítica. El objetivo de este artículo es debatir algunas de las modificaciones en las hipótesis freudianas sobre la constitución del aparato psíquico y la etiología de las neurosis, que parecen ser consecuencia de esa recuperación de la vivencia de dolor y de la introducción del concepto de pulsión de muerte.

Palabras-clave: Psicoanálisis freudiano, Metapsicología, Vivencia de dolor, Pulsión de muerte, Aparato psíquico.


RÉSUMÉ

Dans les premières théories freudiennes de l'appareil psychique et des névroses, deux expériences sont regardées comme structurantes du fonctionnement psychique normal et pathologique: l'expérience de satisfaction et l'expérience de douleur, respectivement. Dans un second moment de l'évolution de cette théorie, le rôle de l'expérience de douleur est minimisé et l'expérience de satisfaction constitue désormais le principal fondement du développement du psychique. Cependant, à partir de "Au-delà du principe de plaisir" (1920), non seulement l'expérience de douleur est reprise, dans un nouveau contexte et dans un autre niveau de signification, comme elle est alors considérée comme l'expérience primordiale du psychisme. Cette reprise de l'expérience de douleur - qui, à partir de 1920, est référée comme "trauma" - est associée à la formulation des concepts de compulsion à la répétition et de pulsion de mort. Dans "Inhibition, symptôme et angoisse" (1926), Freud revient à placer le trauma à l'origine des névroses et, dans le texte "Analyse finie et infinie" (1937), il réfléchit sur le rôle de la pulsion de mort dans l'étiologie des névroses et dans les obstacles rencontrés par la thérapie psychanalytique. Le but de cet article est de discuter certains changements dans les hypothèses freudiennes sur la constitution de l'appareil psychique et l'étiologie des névroses qui semblent dériver de cette reprise de l'expérience de douleur et de l'introduction du concept de pulsion de mort.

Mots-clés: Psychanalyse freudienne, Métapsychologie, Expérience de douleur, Pulsion de mort, Appareil psychique.


 

 

Introdução

No início da teoria freudiana, duas vivências são pensadas como estruturantes do funcionamento psíquico normal e patológico: a vivência de satisfação e a vivência de dor, respectivamente. Em um segundo momento, o papel da vivência de dor é minimizado e a vivência de satisfação passa a constituir o fundamento central a partir do qual o desenvolvimento do psiquismo se daria. Contudo, a partir de 1920, não apenas a vivência de dor é retomada, como passa a ser considerada a experiência primordial no psiquismo. Portanto, se no início da teoria freudiana, a dor e o desejo estão na base dos processos psíquicos, na sua etapa intermediária, apenas o desejo permanece para, no fim, ceder espaço novamente à vivência de dor e, inclusive, conceder-lhe um papel mais originário.

O objetivo deste artigo é analisar e discutir o papel desempenhado por essas duas vivências na teoria freudiana do aparelho psíquico e das neuroses. Buscaremos argumentar que a retomada do conceito de vivência de dor, na etapa final da obra, tem como consequência algumas modificações nas concepções freudianas, as quais parecem não ter sido exaustivamente exploradas pelos estudiosos. Tentaremos também vincular essa retomada da vivência de dor à hipótese da pulsão de morte e às limitações da terapia psicanalítica que Freud enfatiza no fim de sua obra, principalmente em "Análise terminável e interminável" (1937).

 

As Vivências de Dor e a de Satisfação estão na Base dos Processos Psíquicos

A vivência de dor - cuja formulação inicial se encontra no Projeto de uma psicologia (1950[1895]/1974) - consistiria na recepção de grandes somas de excitação pelo sistema de memória (psi), como consequência da falha dos dispositivos que protegeriam o aparelho neuronal de quantidades exógenas muito intensas (as terminações nervosas). Uma vez ocorrida essa vivência, quando a representação do objeto ao qual ela foi primariamente associada (objeto hostil) fosse novamente ocupada, a partir da percepção ou por associação, ocorreria uma liberação de quantidade no aparelho - que Freud chamou de "afeto" - e uma inclinação à desocupação da representação do objeto hostil, ou seja, uma defesa automática. As primeiras recordações desse objeto seriam alucinatórias e produziriam afeto intenso e defesa automática excessiva. Para que esse processo fosse inibido, seria necessário um trabalho repetido de ligação da excitação por parte do ego, conforme explica Freud na terceira parte do Projeto...: "Sendo traços de vivência de dor, elas (conforme nossa suposição sobre a dor) foram ocupadas a partir de Q phi muito grandes e adquiriram uma facilitação muito intensa para liberação de desprazer e afeto. Uma ligação particularmente grande e repetida a partir do ego é exigida, até que essa facilitação para o desprazer seja contrabalançada." (1950[1895]/1974, p. 381). Tendo sido realizado esse trabalho de ligação, a liberação do afeto, resultante da evocação da representação do objeto hostil, poderia ser inibida e funcionar apenas como um sinal de que aquele caminho conduz ao desprazer e deve ser evitado.

A vivência de satisfação, por sua vez, consistiria na satisfação de uma necessidade, como a obtenção do alimento no caso da fome, a qual teria como resultado o surgimento do "desejo", ou seja, diante do reaparecimento do estado de carência, surgiria uma inclinação a reocupar a representação do objeto capaz de propiciar a satisfação. As primeiras recordações do objeto desejado seriam alucinatórias e não permitiriam a descarga da excitação endógena, intensificando, portanto, a sensação de desprazer. Esse desprazer, resultante da ocupação alucinatória da representação desejada, acabaria condicionando o aparelho a não ocupar mais tão intensamente a representação de desejo e inibiria a vã descarga reflexa. Dessa forma, a substituição do processo primário pelo secundário, no caso da vivência de satisfação, seria decorrente da primeira regra biológica (defesa primária). No caso da vivência de dor, ela surgiria como consequência de um trabalho repetitivo de ligação da excitação por parte do ego.

A vivência de satisfação estaria na base do desenvolvimento do funcionamento psíquico normal, pois a partir de suas consequências, surgiriam o pensamento e os demais processos psíquicos "normais". A vivência de dor, por outro lado, seria o protótipo do funcionamento psíquico patológico. Na segunda parte do Projeto..., Freud explica a produção dos sintomas da histeria de angústia a partir da falha do mecanismo de defesa do ego. No caso da defesa normal, uma representação associada a uma vivência de dor seria, em geral, evitada no curso do processo do pensar, embora ela pudesse voltar a se tornar consciente se evocada por estímulos externos. Já na repressão que estaria na origem da histeria, a recordação patogênica seria totalmente excluída da consciência. No seu lugar, apareceria outra representação a ela associada, acompanhada pela produção de afeto. Nesse caso, o afeto seria incitado por uma representação substitutiva, que seria um símbolo de outra reprimida, motivo pelo qual a sua inibição não seria possível. Tratar-se-ia de um "processo primário póstumo".

Freud argumenta que esse processo resultaria de uma falha no mecanismo normal de defesa, a qual se deveria ao fato de que as representações patogênicas inconscientes não teriam sido traumáticas em sua origem, ou seja, não teriam originariamente feito parte de uma vivência de dor, mas adquirido o caráter traumático apenas posteriormente, após a emergência da sexualidade. Como se sabe, no momento da redação do Projeto..., Freud trabalhava com a hipótese de que haveria experiências de sedução efetivamente vivenciadas na gênese da histeria; e também trabalhava com a hipótese de que a sexualidade, no desenvolvimento normal, emergiria na puberdade. Assim, apenas com o surgimento da sexualidade as experiências sexuais infantis poderiam ser compreendidas enquanto tais, e só então adquiririam o caráter de um trauma. Quando a recordação da experiência de sedução fosse incitada, ela produziria uma excitação sexual que seria convertida em angústia. O mecanismo de defesa entraria em ação para defender o aparelho desse surgimento de angústia, no entanto, seu êxito seria parcial, pois, embora a recordação efetivamente traumática fosse reprimida, permanecendo inconsciente, o afeto continuaria sendo evocado em associação com outra representação, aparentemente inócua, que estaria associada à primeira. Portanto, essa defesa imperfeita levaria à produção do sintoma.

 

Apenas o Desejo Permanece na Origem do Psiquismo

A despeito da discussão sobre se Freud, de fato, abandonou o papel da sedução ou o manteve, embora subordinado ao da fantasia, levada a cabo, entre outros autores, por Laplanche (1988b), pode-se dizer que, a partir da constatação de que as cenas de sedução eram fantasias, a vinculação das neuroses a vivências dolorosas reais é deixada de lado. Como aponta Monzani (1989), se, na teoria da sedução, uma importância primordial era concedida aos fatores externos, com o seu abandono, essa ênfase é deslocada aos fatores internos: a fantasia e a constituição sexual vêm para primeiro plano.

No capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900), Freud retoma as ideias da vivência de satisfação e da vivência de dor, mas não volta a mencionar a hipótese de que o domínio sobre as representações hostis associadas à vivência de dor - ou seja, a possibilidade de inibir a ocupação de tais representações - seria adquirido a partir de um processo gradual de ligação delas. Nesse capítulo, Freud argumenta que, no funcionamento primário regido pelo "princípio do desprazer", as representações relacionadas à vivência de dor seriam completa e espontaneamente excluídas dos processos associativos:

Suponhamos que atue sobre o aparelho primitivo um estímulo perceptivo que é a fonte de uma excitação dolorosa. Então, ocorreriam prolongadas e desordenadas exteriorizações motoras até que por uma delas o aparelho se subtrairia da percepção e, ao mesmo tempo, da dor. Se a percepção reaparecesse, esse movimento seria repetido imediatamente (algo como um movimento de fuga), até que a percepção voltasse a desaparecer. Mas, neste caso, não restaria inclinação alguma para reinvestir pela via alucinatória ou de outra maneira a percepção da fonte de dor. Subsistiria no aparelho primário a inclinação a abandonar novamente a imagem mnêmica penosa assim que ela fosse evocada de algum modo e isso porque o transcorrer de sua excitação até a percepção provocaria desprazer (mais precisamente: iniciaria a provocá-lo). (Freud, 1900/1974, p. 600, grifos nossos)

Dessa forma, nesse momento da teoria freudiana, desaparece a ideia de que, como consequência da vivência de dor, surgiria um funcionamento primário no aparelho que produziria desprazer intenso, o qual seria inibido, pouco a pouco, a partir de repetidas tentativas de ligar a excitação das representações que seriam fontes de desprazer. Parece estar presente a hipótese de que mesmo os processos psíquicos primários possuiriam, desde o início, a capacidade de evitar a ocupação e, portanto, a rememoração das representações que conduzem a um desprazer intenso. Assim, aquilo que, no Projeto..., seria uma aquisição secundária, torna-se, no sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos, algo que faz parte do aparelho desde sua origem. A conclusão seguinte de Freud deixa esse pressuposto mais evidente: "Como conseqüência do princípio de desprazer, então, o primeiro sistema Ψ é incapaz de incluir algo desagradável no contexto de seus pensamentos. Ele não pode fazer outra coisa que desejar" (1900/1974, p. 600). Pouco antes, ele havia dito que somente um desejo seria capaz de impulsionar o aparelho psíquico a trabalhar.

Com essa hipótese de que apenas o desejo move o processo primário - ou o sistema inconsciente -, de forma que as representações desprazerosas, desde o início, seriam excluídas1 dos processos mnêmicos, a vivência de satisfação e o desejo dela resultante vêm para primeiro plano e se tornam os propulsores do funcionamento psíquico normal e patológico. No sétimo capítulo de seu livro sobre os sonhos, Freud formula a hipótese de que haveria "impulsos de desejo" com estabelecimento tardio do processo secundário, os quais constituiriam o núcleo do sistema inconsciente e estariam na base da repressão e das neuroses, pois seria por se associarem a eles que certas representações do sistema pré-consciente poderiam ser reprimidas e acabar produzindo os sintomas neuróticos. Em Formulações sobre os dois princípios do acontecimento psíquico (1911), Freud diz que "com a introdução do princípio de realidade, uma classe da atividade de pensamento se cindiu; ela se manteve livre do teste de realidade e permaneceu subordinada somente ao princípio do prazer. Esta atividade é o 'fantasiar' que inicia com o jogo das crianças e mais tarde prossegue como 'sonhos diurnos'(...)" (1911/1974, p. 222). Segundo essas considerações, na gênese das neuroses, haveria fantasias, predominantemente sexuais, que permaneceriam excluídas do processo secundário.

A oposição entre impulsos/fantasias sexuais e exigências morais estaria na base do conflito que acabaria levando à repressão e à neurose, como diz Freud em "A moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" (1908): "Se prescindimos das maneiras vagas de 'estar enfermo dos nervos' e consideramos as formas genuínas de enfermidade nervosa, o influxo nocivo da cultura se reduz, no essencial, a sufocação prejudicial da vida sexual dos povos (ou estratos) de cultura pela obra da moral sexual 'cultural' que neles impera" (1908/1999a, p. 166). Adiante, nesse mesmo texto, Freud observa que, para a maioria das pessoas, há um limite além do qual a sua constituição não pode cumprir as demandas da civilização. Em vários textos da época, ele enfatiza que os fatores inatos, mais especificamente a constituição sexual inata do indivíduo, desempenham um papel determinante na etiologia das neuroses. Por exemplo, em Sobre as teorias sexuais infantis (1908), ele diz: "(...) os que depois serão neuróticos trazem muitas vezes em sua constituição uma pulsão sexual particularmente intensa e uma inclinação a sua maturidade precoce, a sua prematura exteriorização (...)" (Freud, 1908/1999b, p. 188).

Voltando às hipóteses metapsicológicas, no artigo "A repressão" (1915), Freud passa a chamar de "repressão primordial" o processo pelo qual algumas representações não seriam integradas ao processo secundário. Assim, algumas representações não seriam associadas a representações-palavra, permanecendo integradas ao processo primário. Nesse artigo, Freud diz que os "representantes de pulsão" seriam os alvos da repressão primordial. No capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, como comentamos, ele fala sobre "impulsos de desejo" que nunca seriam integrados ao processo secundário, o que pode nos levar a pensar que esses impulsos e as fantasias deles resultantes seriam os alvos da repressão primordial. Esta, como explica Freud, seria pré-condição para a "repressão propriamente dita", que consistiria na exclusão de certas representações do processo secundário, devido à sua associação ao reprimido primordial. O retorno do reprimido, sob a forma de sintoma, consistiria na terceira etapa da repressão.

Dessa forma, no período que vai de A interpretação dos sonhos (1900) aos artigos metapsicológicos de 1915, parece ficar claro que é o desejo, a fantasia e a sexualidade que estariam na base dos processos psíquicos normais e patológicos. Em "Além do princípio do prazer" (1920), no entanto, Freud começa a reconhecer que a teoria até então elaborada, a qual pensava o funcionamento psíquico a partir unicamente do modelo da vivência de satisfação e do desejo, não permite explicar uma série de fatos nos quais o desprazer parece ser originário. A necessidade de admitir a existência de processos psíquicos que repetem experiências originariamente desprazerosas o leva a introduzir os conceitos de "compulsão à repetição" e "pulsão de morte", e a retomar a hipótese da "vivência de dor" - que passa, em 1920, a ser chamada de "trauma" -, em um sentido muito próximo daquele atribuído a tal vivência no Projeto de uma psicologia.

 

A Recolocação da Vivência de Dor na Gênese do Psiquismo

É o arranjo dos fenômenos que Freud discute em "Além do princípio do prazer" (1920) - os sonhos traumáticos, os jogos infantis, certas repetições transferenciais e as compulsões de destino -, e não algum deles isoladamente, o que permite a introdução da ideia de que haveria uma compulsão à repetição que antecederia e seria condição para o princípio do prazer (Monzani, 1989). Esse funcionamento repetitivo originário passa a ser considerado condição para a emergência de um processo capaz de evitar caminhos que conduzam ao desprazer, ou seja, para a emergência do princípio do prazer, tal como havia sido pensado a partir de A interpretação dos sonhos.

Para esclarecer qual seria a função da compulsão à repetição, em que condições ela afloraria e qual seria sua relação com o princípio do prazer, Freud volta-se para a questão da reação do funcionamento psíquico ao que agora ele chama de "trauma", isto é, a reação à recepção de excitações muito intensas, como resultado da ruptura da proteção antiestímulo do aparelho psíquico. Diante de excitações traumáticas, conclui ele, o aparelho teria diante de si a tarefa de dominar a excitação, ou seja, de ligá-la e, assim, preparar o terreno para o princípio do prazer. Ao admitir a existência de um processo primário, repetitivo, que teria a função de ligação e que não poderia evitar a repetição do desprazeroso até que o domínio sobre os estímulos não tivesse se consolidado, Freud está reintroduzindo em sua teoria a hipótese da vivência de dor e de suas consequências, tal como haviam sido pensadas no Projeto... Nesse sentido, o passo "além" de Freud em "Além do princípio do prazer", de certa forma, parece representar um retorno às origens da sua metapsicologia (Caropreso; Simanke, 2008).

A adoção da hipótese da compulsão à repetição, por sua vez, tem como consequência a introdução do conceito de "pulsão de morte". Freud conclui que a compulsão à repetição é uma característica universal das pulsões. Uma pulsão, diz ele, "é um impulso, inerente à vida orgânica, para restaurar um estado de coisas anterior, que a entidade viva foi obrigada a abandonar, sob a pressão de forças externas perturbadoras; seria um tipo de elasticidade orgânica ou, em outras palavras, a exteriorização da inércia na vida orgânica" (Freud, 1920/1974, p. 36). O estado anterior ao qual a pulsão aspiraria regressar seria aquele de ausência de estímulos, ou seja, o inanimado, o que evidencia o caráter mortífero da pulsão.

Uma vez que a compulsão à repetição antecederia o princípio do prazer e que ela seria um processo resultante da recepção de excitações traumáticas, o trauma passa a ser originário no psiquismo. Dessa maneira, nesse momento de sua teorização, Freud estaria não apenas retomando a hipótese da vivência de dor, mas colocando-a na origem dos processos psíquicos, como sendo mais primordial do que a vivência de satisfação. Kimmerle (2000) comenta que, em 1920, o desprazer passa a ser originário, embora, como observa Gabbi Jr. (2000), ele não relacione isso com as hipóteses do Projeto... Parece, entretanto, ser mais exato dizer que, em "Além do princípio do prazer", um tipo de desprazer específico passa a ser originário: aquele gerado pela inundação do aparelho psíquico por excitações exógenas, ou seja, uma experiência traumática. Em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926), Freud não apenas explicita e desenvolve essa hipótese, como a vincula à sua teoria das neuroses. A reflexão sobre o trauma é retomada e este passa a ser vinculado à angústia e à repressão. Dessa forma, a vivência de dor volta a ser situada também na gênese das neuroses.

 

A Rearticulação das Neuroses à Vivência de Dor

Como comentamos anteriormente, já no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, estava presente a hipótese de que uma parte do inconsciente nunca chegaria a integrar o pré-consciente e esse núcleo do inconsciente estaria na base da repressão. No artigo "A repressão" (1915), Freud passa a usar o termo "reprimido primordial" para designar essa parte do psiquismo que permaneceria inconsciente desde sua origem. Nesse artigo, ele diz que os "representantes de pulsão" seriam alvos da repressão primordial. Em A interpretação dos sonhos, Freud falara em "moções de desejo" inconscientes desde sua origem e em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, ele havia se referido a "fantasias". Tudo isso parece indicar que o inconsciente originário, nessa etapa da teoria, era pensado como sendo composto por fantasias derivadas das pulsões. Uma modificação significativa dessas hipóteses está presente em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926), pois, nesse texto, Freud vincula o reprimido primordial a experiências traumáticas reais.

Na segunda parte desse texto de 1926, Freud volta a ressaltar a necessidade da suposição de uma "repressão primordial" - a qual exerceria uma atração sobre outras representações que viriam a ser secundariamente reprimidas - e diz: "É altamente provável que fatores quantitativos, como a intensidade hipertrófica da excitação e a ruptura da proteção anti-estímulo constituam as ocasiões imediatas das repressões primordiais" (1926/1974, p. 94). Nessa passagem, Freud sugere que haveria, na origem da repressão primordial e, por conseqüência, na origem do psiquismo e das neuroses, um trauma, uma vivência dolorosa real, na qual o aparelho psíquico seria inundado por grandes somas de excitação de origem exógena. Na continuidade do texto, Freud conclui que a angústia levaria à repressão e que a característica em comum de todos os afetos de angústia seria representar uma reação a um perigo. O protótipo das experiências de angústia, diz ele, é o nascimento.

Nós assumimos, em outras palavras, que o estado de angústia é a reprodução de alguma experiência que reuniu as condições para um aumento do estímulo como o assinalado e para a descarga por determinadas vias, em virtude do qual também o desprazer da angústia recebeu o seu caráter específico. No caso dos seres humanos, o nascimento oferece uma experiência prototípica desse tipo e, por isso, nos inclinamos a ver no estado de angústia uma reprodução do trauma do nascimento. (Freud, 1926/1974, p. 133)

Freud argumenta que, no nascimento, o "perigo" em questão careceria de todo conteúdo psíquico e o recém-nascido seria capaz de perceber apenas uma enorme perturbação econômica. A partir de então, o afeto de angústia voltaria a emergir em situações que lhe recordassem essa experiência traumática primária. A ameaça de ser novamente inundado por grandes somas de excitação traumática, em uma situação na qual o indivíduo se encontrasse impotente para dominá-las, é o que seria sinalizado como "perigo" em ocasiões posteriores, por analogia com a experiência do nascimento. Ele aponta que as ocasiões que geram angústia nas crianças são aquelas nas quais elas se percebem diante da ameaça de vivenciar um estado de "desamparo" frente às tensões da necessidade. A angústia seria, assim, o produto do desamparo psíquico do lactente, o qual seria o correspondente óbvio de seu desamparo biológico. Freud estabelece, então, uma série de experiências de angústia que se sucederiam ao longo do desenvolvimento infantil, as quais remeteriam umas às outras entre si (as posteriores àquelas que as precederiam) e todas elas ao trauma do nascimento2.

Após a experiência primordial de angústia (o nascimento), surgiria a angústia diante da perda do objeto (mãe ou substituto), que assinalaria o perigo de reviver uma situação de aumento de tensão, devido à impossibilidade de satisfação das necessidades vitais. A próxima angústia experienciada seria a angústia de castração, na qual o perigo temido seria a separação dos genitais e a possibilidade de ficar em um estado de desamparo diante da libido genital. A seguinte seria a angústia frente ao superego, ou angústia da consciência moral, que assinalaria o perigo de ser castigado pelo superego, de perder o seu amor. Por fim, Freud formula a hipótese de que a última modificação da angústia seria a angústia da morte, ou seja, a angústia frente à projeção do ego nos poderes do destino.

Como observa Laplanche (1987), ao dizer que o nascimento é o protótipo do estado de angústia, Freud recorda a sua teoria geral dos afetos, que faz destes a reprodução de reações antigas que em seu tempo tiveram a sua significação e foram, então, fixadas. Assim como nos histéricos encontramos reações afetivas cuja origem repousa em acontecimentos antigos, os afetos típicos dos seres humanos, diz Laplanche, seriam uma espécie de acesso histérico genérico, fixados e, a partir de então, congênitos.

Após estabelecer essa série de experiências de angústia que se sucederiam no desenvolvimento infantil, Freud vincula cada uma delas a um tipo de neurose específico. Na histeria de conversão, a angústia central - que levaria à repressão e à neurose - seria a angústia diante do perigo de perder o amor do objeto. Nas fobias, seria a angústia de castração, e na neurose obsessiva, a angústia frente ao superego.

Agora vemos que não corremos perigo de declarar a angústia de castração como o único motor dos processos defensivos que levam à neurose. Em outro lugar, comentei como o desenvolvimento da menina pequena é guiado através do complexo de castração até o investimento terno de objeto. E, precisamente, no caso da mulher parece que a situação de perigo da perda de objeto continua sendo a mais eficaz. A respeito da condição de angústia válida para ela, temos direito de introduzir essa pequena modificação: mais que da ausência ou da perda real do objeto, se trata da perda de amor da parte do objeto. Dado que sabemos com certeza que a histeria tem maior afinidade com a feminilidade, assim como a neurose obsessiva com a masculinidade, isso nos sugere a conjectura de que a perda de amor como condição de angústia desempenha na histeria um papel semelhante à ameaça de castração nas fobias, e a angústia frente ao superego na neurose obsessiva. (Freud, 1926/1974, p. 143)

Como observa Laplanche, essas hipóteses elaboradas por Freud nesse momento têm como consequência a relativização do papel da castração na determinação das neuroses: "quando Freud é levado a traçar, em suas linhas gerais, uma espécie de correspondência entre esses perigos e as formas psicopatológicas, percebe-se que a castração deixa de ser o ponto central de tudo, uma vez que seria essencial numa única neurose, a fobia" (1988a, p. 142). Laplanche, contudo, parece considerar que essas modificações introduzidas por Freud consistem em uma espécie de retrocesso em relação àquilo que havia sido anteriormente alcançado. Segundo ele, nesse momento, Freud "esquece certo número de conceitos, de instrumentos que ele tinha, por outro lado, à sua disposição e que haviam sido elaborados por ele mesmo" (Laplanche, 1988, p. 146). A despeito de representar um retrocesso ou não, essa vinculação das neuroses a experiências traumáticas originárias e a esses diversos tipos de angústia têm como consequência algumas modificações na concepção freudiana das neuroses, as quais parecem não ter sido exaustivamente exploradas pelos estudiosos do pensamento freudiano.

Segundo o que propõe Freud, o nascimento seria uma vivência traumática originária que conferiria um caráter traumático a certas experiências posteriores. Ele sugere, de início, que experiências traumáticas poderiam ser as ocasiões imediatas do reprimido primordial. Essas hipóteses parecem conduzir a uma vinculação entre o reprimido primordial e as vivências traumáticas originárias ou vivências que, por se associarem a traumas primários, tornam-se ameaças à economia psíquica. Dessa forma, se, na etapa anterior da teoria, o reprimido primordial era pensado como consistindo em fantasias derivadas de pulsões, agora, em sua base ao menos, são colocadas experiências traumáticas efetivamente vivenciadas. Uma vez que a repressão primordial seria um processo constitutivo do psiquismo (da diferenciação entre processo primário e secundário), podemos dizer que Freud reafirma, em 1926, a hipótese de que o trauma, pensado no sentido da vivência de dor do Projeto..., estaria na base do desenvolvimento psíquico.

Na conclusão de "Inibições, sintomas e ansiedade", Freud observa que três fatores atuariam na determinação das neuroses:

1. Fator biológico: o prolongado desamparo e a dependência da criatura humana; seu estado de prematuração ao nascer que, segundo ele:

(...) reforça o influxo do mundo exterior real, promove prematuramente a diferenciação do ego a respeito do id, eleva a significação dos perigos do mundo exterior e aumenta enormemente o valor do único objeto que pode proteger destes perigos e substituir a vida intra-uterina perdida. Assim, esse fator biológico produz as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, de que o homem não se livrará mais. (Freud, 1926/1974, p. 154-155)

2. Fator filogenético: o desenvolvimento descontínuo da vida sexual do ser humano, ou seja, a interrupção que ocorre no período de latência. Freud observa que:

A significação patógena deste fator se deve ao fato de que a maioria das exigências pulsionais dessa sexualidade infantil são tratadas como perigos pelo ego, que se defende delas como se fossem tais, de modo que as posteriores moções sexuais da puberdade, que deveriam estar de acordo com o ego, correm o risco de sucumbir à atração exercida pelos arquétipos infantis e segui-lo à repressão. Topamos aqui com a etiologia mais direta das neuroses. É notável que o prematuro contato com as exigências da sexualidade exerça sobre o ego um efeito parecido ao prematuro contato com o mundo exterior. (ibidem, p. 155)

3. Fator psicológico: a imperfeição de nosso aparelho psíquico, estreitamente relacionada com sua diferenciação em um ego e um id, a qual, em última análise, diz Freud, também remonta ao influxo do mundo exterior, pois:

A consideração pelos perigos da realidade força o ego a colocar-se na defensiva perante certas moções pulsionais do id, a tratá-las como perigo. No entanto, o id não pode se proteger de perigos pulsionais internos de maneira tão eficaz como de uma porção da realidade que lhe é alheia. Conectado intimamente com o id, só pode se defender do perigo pulsional limitando sua própria organização e havendo-se com a formação do sintoma como substituto do dano que infligiu à pulsão. (ibidem, p. 155-156)

Essas considerações finais de Freud em "Inibições, sintomas e ansiedade" deixam claro o papel que as experiências traumáticas originárias desempenhariam no desenvolvimento dos processos psíquicos e na etiologia das neuroses. Haveria um fator biológico - a prematuração e o desamparo inicial do ser humano - que acentuaria o valor traumático de certas experiências, e esses traumas iniciais seriam o fundamento da repressão e interfeririam diretamente, como ele argumenta, nos outros fatores que predisporiam o ser humano à neurose. Assim, o trauma do nascimento e a contínua ameaça de revivê-lo, devido ao desamparo inicial da criança e a sua dependência absoluta do outro, seria o fundamento sobre o qual o psiquismo se desenvolveria. Freud parece dar ênfase à sua antiga ideia, também presente no Projeto de uma psicologia, de que "o desamparo inicial do ser humano é a 'fonte originária' de todos os 'motivos morais'" (1950[1895]/1974, p. 318) Esse estado de desamparo imporia à criança a necessidade de ser amada para sobreviver, o que, por sua vez, levaria a uma série de inibições, repressões e à internalização das exigências morais.

Assistimos, portanto, nessa etapa da obra, não só a uma retomada e colocação em primeiro plano da vivência de dor, mas também a uma acentuação do papel do fator biológico da prematuração, comum a todos os seres humanos, na determinação das neuroses. Com isso, o papel do conflito entre os impulsos e a moralidade na gênese dessas últimas, assim como a determinação sexual das mesmas, passa a ser apoiado, em última instância, sobre experiências traumáticas reais e sobre o fator biológico da prematuração do ser humano.

Sintetizando as ideias expostas até aqui, podemos dizer que, em "Além do princípio do prazer", as evidências acerca da presença de um desprazer originário levam Freud a retomar para a vivência de dor ("trauma") e a introduzir os conceitos de compulsão à repetição e pulsão de morte. Em "Inibições, sintomas e ansiedade", essa reflexão sobre o trauma, iniciada em 1920, é retomada. No entanto, nesse texto, o conceito de pulsão de morte não é mencionado. Laplanche, em seu livro Vida e Morte em psicanálise (1985), chama atenção para o fato de que, ao reexaminar sua teoria das neuroses, em "Inibições, sintomas e ansiedade", Freud não integra a pulsão de morte a suas reformulações. Encontramos considerações semelhantes em outros autores. Rudge (2006), por exemplo, observa que a pulsão de morte não apresentou aplicação imediata na teoria das neuroses e dos conflitos a elas subjacentes.

Embora em "Inibições, sintomas e ansiedade", de fato, Freud não tenha integrado a pulsão de morte em sua reformulação da teoria das neuroses, não parece correto dizer que esse conceito não apresentou aplicação imediata em tal teoria. Primeiro, pelo fato de a introdução do conceito de pulsão de morte ter sido derivada, em grande medida, de evidências clínicas sobre as neuroses, como fica claro em "Além do princípio do prazer", mas principalmente porque, em seus últimos textos, Freud o insere de forma clara em suas reflexões clínicas. Sobretudo em "Análise terminável e interminável" (1937), Freud retoma o conceito de pulsão de morte e, de certa forma, o integra às suas hipóteses sobre a etiologia das neuroses.

 

A Pulsão de Morte e a Teoria das Neuroses

Em "Análise terminável e interminável", Freud volta a comentar que, na etiologia de todas as perturbações neuróticas, estão envolvidas, por um lado, pulsões muito intensas, ou seja, refratárias à sua dominação pelo ego; por outro, o efeito de traumas primários, que não podem ser dominados por um ego prematuro. Em regra geral, diz ele, ambos os fatores atuam de forma conjugada, pois, quanto mais intensas forem essas pulsões refratárias ao domínio do ego, tanto mais um trauma levará à fixação e deixará como seqüela uma perturbação no desenvolvimento, sendo o oposto também verdadeiro.

A argumentação que Freud desenvolve ao longo do texto parece indicar que essas pulsões muito intensas - as quais reforçariam o influxo traumático e a fixação resultante, acentuando a predisposição à neurose e dificultando, muitas vezes, o êxito da análise - são, sobretudo, as pulsões de morte. Assim, uma modificação importante parece ser introduzida na teoria nesse momento. A hipótese antiga das séries complementares que atuariam na gênese das neuroses já concedia um valor à constituição pulsional. Nos textos freudianos mencionados, o papel desempenhado pela constituição sexual na etiologia das neuroses já havia sido ressaltado.

Na 22ª Conferência (1916-17), por exemplo, Freud explica que, na equação etiológica das neuroses, a fixação libidinal representaria o fator constitucional - o qual atuaria de forma complementar com o vivenciar acidental traumático do adulto (frustração) - e que, nessa predisposição por fixação libidinal, seria possível diferenciar outra série complementar, na qual estaria envolvida a constituição sexual herdada (vivenciar pré-histórico) e o vivenciar infantil acidental. Então, a disposição pulsional constitucional que atuaria na gênese das neuroses envolveria pulsões sexuais. Essa hipótese está em harmonia com as demais defendidas sobre o funcionamento psíquico e a etiologia das neuroses. Por outro lado, uma característica dos textos desse período é certo otimismo em relação à terapia psicanalítica. Na 28ª Conferência, intitulada "A terapia psicanalítica" (1916-17), ele comenta:

Um tratamento analítico impõe ao médico e ao paciente um difícil trabalho que é preciso realizar para cancelar certas resistências internas. Mediante a superação destas, a vida psíquica do enfermo se modifica permanentemente, se eleva a um estágio mais alto do desenvolvimento e permanece protegida frente a novas possibilidades de adoecer. (Freud, 1916-17/1974, p. 451)

Entretanto, em consonância com as hipóteses que começam a ser introduzidas em 1920, ou seja, com o retorno da vivência de dor e a introdução dos conceitos de compulsão à repetição e de pulsão de morte, esse fator constitucional que atuaria na gênese das neuroses muda de figura ao ser relacionado sobretudo com essa última pulsão. Tais mudanças, por sua vez, parecem vir acompanhadas do reconhecimento de certas limitações da terapia, o que parece coerente com as novas hipóteses introduzidas na etapa final da obra freudiana. Passemos à análise de algumas delas em "Análise terminável e interminável" (1937).

Freud aponta, no início desse texto de 1937, que três fatores presentes na gênese das neuroses seriam decisivos para as possibilidades de êxito da terapia analítica: o influxo traumático, a intensidade constitucional das pulsões e a alteração prejudicial do ego. Os casos de etiologia predominantemente traumática, na qual o ego não estaria alterado de forma significativa, seriam os que ofereceriam à análise as possibilidades mais favoráveis de êxito, argumenta o autor. As maiores dificuldades seriam colocadas pelos casos nos quais os dois outros fatores predominassem: "A intensidade constitucional das pulsões e a alteração prejudicial do ego, adquirida na luta defensiva, no sentido de um resquício e uma limitação, são os fatores desfavoráveis para o efeito da análise e capazes de prolongarem sua duração até o inconcluível." (Freud, 1937/1974, p. 221).

Freud discorre, inicialmente, sobre o primeiro desses fatores e, em seguida, sobre o segundo, até que, enfim, chega ao segundo dualismo pulsional e esclarece a importância da pulsão de morte na gênese e manutenção dos sintomas neuróticos. Vejamos, em linhas gerais, sua argumentação.

É possível tramitar de forma duradoura uma exigência pulsional, ou seja, ligá-la, torná-la acessível aos demais influxos do ego e, assim, prevenir o retorno do mesmo conflito? Segundo Freud, contrariando a teoria, a experiência revela que nem sempre isso é possível e o fator decisivo aí envolvido é a intensidade pulsional. A qualquer momento - são ou neurótico -, um esgotamento do ego pode fazer com que as pulsões se intensifiquem e acabem produzindo sintomas. O fator quantitativo em jogo na etiologia da enfermidade - o essencial para o seu desenlace -, até então, não teria recebido a importância devida, como indica a seguinte consideração: "em nossas representações teóricas, na maior parte das vezes, omitimos levar em conta o ponto de vista econômico, na mesma medida que o dinâmico e o tópico" (ibidem, p. 226).

Freud observa que, de acordo com a teoria, o ego fortalecido empreenderia uma revisão das antigas repressões, de forma que algumas seriam liquidadas e outras, edificadas sobre um material mais sólido, o qual não cederia tão facilmente ao acréscimo pulsional. No entanto, a experiência indica que isso nem sempre ocorre e, na verdade, "não temos o direito de nos surpreendermos se, no fim, resultar que a distinção entre o ego não analisado e a conduta posterior do analisado não seja tão radical como ambicionamos, esperamos e afirmamos" (ibidem, p. 228). Frequentemente, continua o autor, a modificação alcançada pela terapia é parcial e setores do mecanismo antigo permanecem intocados. Dessa forma, o título reivindicado pela análise de que ela cura a neurose, assegurando o governo sobre o pulsional, é sempre justo na teoria, mas nem sempre o é na prática. Nem sempre a terapia consegue assegurar as bases para o governo do pulsional, e a razão desse fracasso é o fator quantitativo da intensidade pulsional, que coloca limites ao êxito do trabalho analítico.

Dada uma intensidade pulsional hipertrófica, o ego maduro e sustentado pela análise fracassa na tarefa de forma semelhante ao que ocorreu com o ego debilitado; o governo sobre o pulsional melhora, mas continua incompleto porque a modificação do mecanismo de defesa tem sido imperfeita. Nada há nisso de assombroso, pois a análise não trabalha com recursos ilimitados, mas restritos, e o resultado final depende sempre da proporção relativa entre as forças das instâncias em luta recíproca. (ibidem, p. 230)

A análise nem sempre seria capaz de prevenir o retorno do mesmo conflito. Freud argumenta que também não há a possibilidade de prevenir, a partir do trabalho analítico, a emergência de conflitos futuros. Mas de que maneira a intensidade pulsional imporia limites ao êxito terapêutico? Após refletir sobre a deformação do ego presente nas neuroses, o psicanalista esclarece essa questão e a vincula ao conceito de pulsão de morte.

Desde o início do desenvolvimento, argumenta Freud, o ego tem que mediar o id e o mundo externo. Se, no curso do desenvolvimento, ele aprende a adotar uma atitude defensiva também frente ao id e a tratar suas exigências pulsionais como perigos externos - o que ocorre em parte, porque a satisfação pulsional leva a um conflito com o mundo externo -, ele se acostuma, sob o influxo da educação, a transpor o cenário da luta externa ao seu interior. O perigo interno passa a ser dominado antes que ele se torne externo. Contudo, esses mecanismos de defesa podem se fixar, de modo que o ego fortalecido do adulto continue se defendendo de perigos que não existem na realidade objetiva. O ego pode, ainda, ver-se forçado a buscar situações da realidade objetiva que possam servir como substitutos aproximados do perigo originário, com o objetivo de justificar o seu apego aos modos habituais de reação. Como sabemos, diz ele, esses mecanismos de defesa, mediante um alheamento a respeito do mundo externo e uma debilitação permanente do ego, favorecem a irrupção de uma neurose.

Mas de que maneira a alteração egoica influi sobre nosso empenho terapêutico? O fator decisivo, responde o autor, é que os mecanismos de defesa frente a antigos perigos retornam como "resistências" ao restabelecimento e, então, a cura é tratada pelo ego como um novo perigo. Os mecanismos de defesa se tornam resistências também contra a análise em geral e, portanto, contra a cura. Dessa forma:

(...) o desenlace de uma cura analítica (...) depende, no essencial, da intensidade e da profundidade do enraizamento dessas resistências da alteração do ego. De novo sai à luz aqui a significação do fator quantitativo, de novo somos advertidos de que a análise pode custear só uns volumes determinados e limitados de energia, que tem que ser medidos com as forças hostis. E é como se efetivamente o triunfo fosse, na maior parte das vezes, dos batalhões mais fortes. (ibidem, p. 239)

Freud acrescenta que a alteração do ego pode ser tanto de condicionamento herdado como adquirida. Podemos, talvez, inferir que a disposição constitucional poderia intensificar o grau de alteração do ego, de forma que estaria em jogo, também, o conceito de série complementar. Na verdade, o que parece decisivo nessa fixação dos mecanismos de defesa, que caracterizaria a alteração egoica, parece ser a intensidade da pulsão de morte, pois ela se manifestaria como inércia psíquica, como compulsão à repetição e, de acordo com Freud, seria a responsável pela inclinação ao conflito.

Além dessas resistências decorrentes da deformação do ego, o analisando pode apresentar uma resistência de outra índole, a "viscosidade da libido", a qual parece depender de constelações fundamentais do psiquismo. Nesse caso, o processo iniciado pela análise transcorre muito mais lentamente, porque não é possível retirar investimentos libidinais de um objeto e transferi-lo para outro. Outros casos indicam a existência de um "esgotamento da plasticidade", da capacidade para variar e continuar se desenvolvendo. Essas diferenças egoicas, apontadas como fatores de resistência à cura, parecem provir de uma base diversa e mais profunda. Aqui, o que está em jogo é a conduta das duas pulsões primordiais, sua distribuição, mescla e separação. A pulsão de morte é o essencial por trás dos fenômenos descritos.

Durante o trabalho analítico, não há impressão mais forte das resistências que a de uma força que se defende de todos os meios contra a cura e que a todo custo quer se prender ao padecimento. Individualizamos uma parte dessa força como consciência de culpa e necessidade de castigo e a localizamos na relação do ego com o superego. Mas trata-se só daquela parte que tem sido, por assim dizer, psiquicamente ligada pelo superego, em virtude do qual se tem notícia dela. Mas, dessa mesma força, podem estar em ação outros montantes, não se sabe onde, na forma ligada ou livre. Se representamos, em sua totalidade, o quadro que compõe os fenômenos do masoquismo imanente de tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e a consciência de culpa dos neuróticos, já não podemos sustentar a crença de que o acontecimento psíquico é governado exclusivamente pela busca de prazer. Esses fenômenos apóiam de maneira inequívoca a presença na vida psíquica de um poder que, por suas metas, chamamos "pulsão de agressão ou destruição" e derivamos da pulsão de morte originária, própria da matéria animada. (ibidem, p. 242-243)

Fica claro, então, que, em todos esses fenômenos descritos como obstáculos à terapia, é o predomínio da pulsão de morte - e a inércia psíquica a ela vinculada - o fator essencial envolvido. Para Freud, esclarecer as formas de atuação das duas variedades pulsionais seria a tarefa mais lucrativa da investigação psicanalítica e "no momento, devemos nos inclinar frente à superioridade das forças contra as quais vemos nossos esforços naufragarem" (ibidem, p. 243). Na 32ª das Novas Conferências de Introdução à Psicanálise, ele diz ter a impressão de que a necessidade inconsciente de castigo intervém em toda contração das neuroses e, seguindo as hipóteses desenvolvidas em O Ego e o Id (1923), esta corresponde a uma porção de agressão interiorizada e assumida pelo Superego.

Em "Análise terminável e interminável", Freud articula o segundo dualismo pulsional - em especial a pulsão de morte, que estava ausente na teoria anterior - à sua teoria sobre as neuroses. A ênfase dada, nesse momento, ao fator quantitativo - principalmente à intensidade constitucional das pulsões - e o papel fundamental atribuído à pulsão de morte na determinação das neuroses permitem essa articulação. Por outro lado, o reconhecimento do papel desempenhado pela pulsão de morte nos obstáculos, assim como o reconhecimento da incapacidade provisória de influir sobre tal pulsão, parece ajudar a compreender o pessimismo de Freud em relação à terapia psicanalítica na etapa final de sua obra.

James Strachey, em sua nota introdutória ao texto "Análise terminável e interminável", comenta que não há nada de imprevisto na frieza que Freud mostra nesse artigo em relação às ambições terapêuticas da psicanálise e aos obstáculos que enfrenta. O que provoca maior surpresa, diz ele, são certas características atreladas à natureza e causas subjacentes a tais obstáculos.

É digno de nota, em primeiro lugar, que os fatores para os quais ele amplamente chama a atenção são aqueles de natureza fisiológica e biológica. Eles são, portanto, no fundamental, insuscetíveis de influências psicológicas; tais como, por exemplo, a relativa intensidade "constitucional" das pulsões e a debilidade relativa do ego por processos fisiológicos como a puberdade, a menopausa e a enfermidade física. Mas o fator ameaçador mais poderoso de todos e totalmente além de qualquer possibilidade de controle é a pulsão de morte. Freud aqui sugere que ela não só é, como havia apontado em seus primeiros escritos, responsável por grande parte da resistência encontrada na análise, mas, na verdade, é a causa última do conflito psíquico. (Strachey, 1937/1974, p. 212).

 

Considerações Finais

A conclusão de que existe um desprazer originário, o qual não poderia ser evitado até que fosse consumado um trabalho de dominação dos estímulos, leva Freud, em "Além do princípio do prazer", a introduzir os conceitos de compulsão à repetição e pulsão de morte, e a retomar a hipótese da vivência de dor. Com a formulação da ideia de que a compulsão à repetição estaria na base do funcionamento psíquico, já estava presente a indicação de que a experiência traumática seria originária, uma vez que ela imporia a necessidade do funcionamento repetitivo primário. Em "Inibições, sintomas e ansiedade", é enfatizada essa hipótese de que o trauma - pensado como experiência real de inundação do aparelho psíquico por grandes quantidades de excitação exógena - estaria na base dos processos psíquicos.

Podemos dizer que, com isso, a vivência de dor (chamada de trauma) volta a ser situada na origem do desenvolvimento psíquico normal e patológico, ainda que em um sentido diferente daquele da teoria da sedução. Se, nesta, a neurose teria em sua gênese "traumas acidentais" envolvendo a sexualidade, a partir de 1926, ela passe a se assentar, em última instância, sobre traumas inevitáveis: o trauma de nascimento e outras situações que, por se associarem a ele, viriam a adquirir valor traumático. Tratam-se, agora, de acontecimentos relacionados ao estado de prematuração e desamparo do ser humano ao nascer, e não necessariamente sexuais. Assim, embora esse fator biológico não tenha sido introduzido na teoria nesse momento, ele parece ter a sua relevância acentuada.

Com o reconhecimento de que as cenas de sedução eram fantasias, as neuroses passaram a ser pensadas como tendo em sua base a repressão de fantasias sexuais e, durante parte da obra freudiana, a vivência de satisfação e o desejo constituem os fundamentos de todo o funcionamento psíquico. No entanto, com as novas hipóteses, introduzidas na década de 1920, esses fatores passam a repousar, em última instância, sobre a vivência de dor, o que parece implicar uma ênfase no papel dos fatores constitucionais na determinação dos processos psíquicos normais e patológicos. Ao inserir o segundo dualismo pulsional em sua teoria sobre as neuroses, mais especificamente ao incluir o papel da pulsão de morte, Freud parece enfatizar o papel desses últimos fatores, mas em um sentido diferente.

Em "Análise terminável e interminável", fica claro que a constituição pulsional é fator determinante na etiologia das neuroses e que esta envolve não apenas as pulsões sexuais - como na etapa anterior da teoria -, mas também a pulsão de morte. De início, Freud argumenta que traumas primários e pulsões muito intensas estariam envolvidos nas perturbações neuróticas e ambos os fatores atuariam de forma conjugada, do que podemos inferir que a constituição pulsional predisporia ao trauma, o intensificaria, ou tornaria mais radical a ação dos mecanismos de defesa usados pelo ego para defender-se, levando a uma deformação deste, apontado como fator de grande importância envolvido na gênese das neuroses.

Duas coisas chamam atenção: primeiro, a importância atribuída por Freud à constituição pulsional e a diferença constitucional entre os indivíduos; segundo, a ênfase no papel da pulsão de morte, não apenas na predisposição à neurose, mas também em relação aos obstáculos enfrentados pela terapia. Pulsões de morte muito intensas aumentariam a inclinação ao conflito que estaria na base da repressão, aumentariam a inércia psíquica e os processos repetitivos dela resultantes e intensificariam o sentimento inconsciente de culpa, à medida que tais pulsões fossem ligadas pelo Superego. O efeito devastador da pulsão de morte seria intensificado quando suas manifestações não encontrassem possibilidade de exteriorização e fossem interiorizadas voltando-se contra o próprio ego. Nesse ponto, estaria em jogo o desamparo e dependência do outro, que imporia a inibição das pulsões agressivas por ele despertadas, dado que os objetos amados, desde o início, são também alvos de sentimentos hostis. Dessa forma, se em "Inibições, sintomas e ansiedade" um fator constitutivo comum a todos os seres humanos (a prematuração do ser humano) havia tido sua importância enfatizada, em 1937, outro fator constitutivo - agora variável entre as diversas pessoas - ganha destaque: a intensidade constitucional das duas classes de pulsões.

Ao comentar as ideias de Otto Rank em "Inibições, sintomas e ansiedade", Freud recusa a hipótese deste autor de que a intensidade do trauma do nascimento e a reação de angústia por ele despertada seriam variáveis e dependeriam de múltiplos influxos contingentes (como as condições do parto). Freud (1926, p. 151) alega que essa hipótese "não deixa espaço algum aos justificados títulos etiológicos da constituição hereditária". No entanto, ele diz considerar viável a suposição de que a disposição constitucional do indivíduo determinaria a amplitude com que ele reage frente à intensidade variável do trauma do nascimento. Assim, articular-se-iam entre si o traumatismo real originário e a constituição pulsional na etiologia das neuroses. Podemos formular a hipótese segundo a qual o fator constitucional determinante da amplitude da reação ao trauma seria a intensidade constitucional da pulsão de morte, pois, como indica a argumentação elaborada por Freud em O problema econômico do masoquismo (1924), o funcionamento regido pela pulsão de morte seria primário no psiquismo.

Dessa forma, nessa etapa final da obra freudiana, a vivência de satisfação, a constituição sexual e a fantasia passam a dividir espaço com a vivência de dor, a constituição pulsional geral (envolvendo a pulsão de morte) e as experiências traumáticas. O papel da sexualidade e do conflito entre as exigências pulsionais e as culturais na etiologia das neuroses passa a ser subordinado ao trauma, ao estado de prematuração do indivíduo ao nascer e à pulsão de morte. A ênfase dada aos fatores constitucionais, somada à hipótese de que eles, ao menos provisoriamente, não poderiam ser modificados pela terapia, parece justificar a mudança da posição de Freud em relação aos limites da terapia psicanalítica.

 

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Recebido em 01 de fevereiro de 2011
Aceito em 12 de março de 2012
Revisado em 18 de junho de 2012

 

 

1 No capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900), Freud argumenta que representações que conduzem ao desprazer poderiam ser incluídas no processo secundário (pré-consciente), desde que o desprezar por elas despertado pudesse ser inibido.
2 A oposição de Freud a Otto Rank diz respeito ao fato de que, para este, as angústias posteriores seriam "ab-reações" ao trauma do nascimento. Já Freud considera que a angústia é produzida diante de situações que teriam adquirido o seu caráter traumático por se associarem a traumas anteriores, na base dos quais estaria a experiência do nascimento.

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