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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.1-2 Fortaleza jun. 2013

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Maternidade e poder1

 

Maternity and power

 

Maternidad y poder

 

Maternité et puissance

 

 

Danielle Ferreira Gomes Moura

Mestre em psicanálise pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: danielle_moura@hotmail.com

 

 


RESUMO

Neste trabalho, abordamos a função materna, ressaltando a sua dimensão de poderio a partir do referencial teórico-clínico da psicanálise, a fim de discutir seus efeitos sobre o sujeito em constituição. Para isto, nos utilizamos, fundamentalmente, das construções teóricas de Freud e de Lacan, bem como de contribuições significativas de outros autores psicanalistas nesta temática. Introduzimos, inicialmente, a concepção de sujeito e sua constituição a partir da teoria freudiana do Complexo de Édipo e das operações simbólicas, denominadas por Lacan, de alienação e separação. Preconizamos, no campo do feminino, a relação da mulher com a castração e a ausência da inscrição do significante de seu sexo no inconsciente, com o intuito de analisar as suas implicações no que diz respeito à maternidade. A partir dessa discussão, discorremos sobre o lugar subjetivo que é auferido à criança e suas implicações subjetivas. Abordamos a interdição da figura paterna destacando sua função no que concerne à emergência do desejo do lado do Outro materno e do sujeito em constituição, ressaltando assim seu papel estruturante. Articulamos ainda a função da maternidade e o conceito de amor, ressaltando o seu caráter ambivalente. Destacamos o desejo como balizador da experiência da maternidade e enfocamos a relação entre o materno e o gozo, a fim de pontuar os possíveis efeitos nocivos sobre o pequeno ser em constituição.

Palavras-chave: maternidade; poder; castração; amor; desejo; gozo.


ABSTRACT

In this work, we addressed the function of the mother, emphasizing her dimension of power from the theoretical-clinical psychoanalytical perspective, in order to discuss its effects on the subject in constitution. For this, we used, basically, the theoretical constructs of Freud and Lacan, as well as significant contributions of other psychoanalysts on this subject. We introduced, initially, the concept of subject and its constitution from the Freudian theory of the Edipus complex and symbolic operations, called by Lacan, of alienation and separation. We acknowledge, in the feminine, the woman's relation to castration and the absence of the inscription of the significant of her sex in the unconscious, in order to consider their implications with regard to motherhood. From this discussion, we discuss the subjective place given to the child and its subjective implications. We covered the father figure interdiction, highlighting its role concerning the emergence of the desire on the side of the maternal Other and the subject in constitution, thus underscoring its pivotal role. We point out the role of motherhood and the concept of love, with emphasis on its ambivalent nature. We highlighted the desire as balancing the experience of motherhood and we focus on the relationship between maternal and enjoyment in order to point out the possible harmful effects on the small being in constitution.

Keywords: maternity; power; castration; love; desire; joy.


RESUMEN

En este artículo, discutimos el rol maternal, haciendo hincapié en su dimensión de fuerza desde el psicoanálisis teórico-clínicos, con el fin de discutir sus efectos sobre el tema en la Constitución. Para esto, nosotros utilizamos fundamentalmente, de las construcciones teóricas de Freud y Lacan, así como las contribuciones significativas de los psicoanalistas de otros autores sobre este tema. Introducido, inicialmente, la concepción del sujeto y su constitución desde la teoría freudiana del complejo de Edipo y operaciones simbólicas, llamadas por Lacan, de alienación y separación. Nosotros, en el campo de femenino, relación de la mujer con la castración y la ausencia de inscripción del significante de su sexo en el inconsciente con el fin de analizar sus implicaciones con respecto a la maternidad. De esta discusión, hablamos de subjetivo que se recibieron el niño y sus implicaciones subjetivas. Nos dirigimos a la prohibición de la figura del padre destacando su función con respecto a la aparición del deseo en el otro tema lateral y maternal en constitución, subrayando que su papel de estructuración. Articular la función de la maternidad y el concepto del amor, observando el carácter ambivalente. Destacamos el deseo como guiados por la experiencia de la maternidad y nos hemos centrado en la relación entre la madre y el disfrute para puntuar los posibles efectos nocivos sobre el pequeño ser en la Constitución.

Palabras-clave: la maternidad; potencia; castración; amor; deseo; disfrute.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous discutons le rôle maternel, en insistant sur leur dimension de la force de la psychanalyse théorique et clinique, afin de discuter de ses effets sur le sujet dans la Constitution. Pour cela, nous utilisons nous, fondamentalement, des constructions théoriques de Freud et de Lacan, ainsi que des contributions significatives d'autres psychanalystes d'auteurs sur ce thème. A présenté, au début, la conception du sujet et sa Constitution de la théorie freudienne du complexe de Œdipe et opérations symboliques, appelées par Lacan, d'aliénation et de la séparation. Nous, dans le domaine du féminin, de la relation de la femme avec la castration et l'absence d'enregistrement du signifiant de votre sexe sur l'inconscient afin d'analyser ses implications en ce qui concerne la maternité. Depuis cette discussion, nous parlons de subjectif qui est reçue, l'enfant et leurs incidences subjectives. Nous abordons l'interdiction de la figure paternelle, mettant en évidence sa fonction en ce qui concerne l'émergence du désir de l'autre côté et maternelle sujet dans la Constitution, soulignant que son rôle structurant. Articuler la fonction de la maternité et le concept de l'amour, notant le caractère ambivalent. Nous mettons en évidence le désir comme guidé par l'expérience de la maternité et nous nous sommes concentrés sur la relation entre la mère et de la jouissance pour ponctuer les possibles effets nocifs sur le petit être dans la constitution.

Mots-clés: maternité; puissance; castration; amour; désir; jouissance.


 

 

Introdução

A possibilidade de dar a vida a um ser e ao mesmo tempo inscrevê-lo na ordem da mortalidade confere à maternidade, desde o princípio, uma estreita relação com o poder e com a culpa. A mãe todo-poderosa é capaz de gerar um corpo dentro de seu próprio corpo e, mais do que isso, é responsável por possibilitar-lhe uma vida psíquica, subjetiva, que, por sua vez, é tecida através do que Freud conceitua como desejo. É o desejo do Outro - agente da função de maternagem - que irá inscrever o bebê, em sua "indizível e estúpida existência" (Lacan, 1999, p. 555), na linguagem, tecendo para o mesmo um lugar simbólico, um marcador de lugar, que atestará a possibilidade do pequeno infans, aquele que ainda não tem acesso à fala, vir-a-ser um sujeito desejante.

Ao fundar o inconsciente e, com isso, a noção de sujeito psíquico, Freud (1915/1996e) nos mostra que o fenômeno biológico não garante a inserção da criança no campo do simbólico, nem a sua sobrevivência subjetiva, subvertendo com isso a noção do que se constitui como verdadeiramente fundamental para a sobrevivência de um recém-nascido. O cuidado com o corpo no nível das necessidades vitais é fundamental, porém isso não pode passar pelo silêncio dos hábitos regularizados, ainda que suas marcas não deixem de ter influência. É preciso haver a linguagem em que a demanda se articula para que esse corpo seja "corporalizado de maneira significante" (Soler, 2005, p. 92).

Nesse sentido, é imprescindível que os filhos, biológicos ou não, sejam adotados subjetivamente e desejosamente por seus pais. De um modo contrário, a negação da representação de um filho (biológico ou não) - que pode se manifestar através de situações de abandono, desamparo, privações afetivas, enfim atos de violência simbólica - pode acarretar sérios danos subjetivos para a existência da criança.

Partindo da função da maternagem sobre o sujeito em constituição, a partir das formulações de Freud e de Lacan, bem como da contribuição de outros psicanalistas nesta temática, nos propomos, com este trabalho, articular poder e maternidade na intenção de pensar acerca dos efeitos de tal relação sobre a subjetividade. Com este intuito, introduzimos, inicialmente, a concepção de sujeito a partir da psicanálise, demarcando o campo do simbólico e da linguagem como agenciador do processo de humanização mediado pelos representantes do Outro, a saber, os Outros materno e paterno. Tratamos da constituição do sujeito a partir das formulações de Freud acerca do Complexo de Édipo e castração e do ensino de Lacan no que concerne às operações simbólicas denominadas alienação e separação. Contribuições significativas de outros autores psicanalistas nesta temática também foram utilizadas.

Enfatizamos também as especificidades do campo do feminino considerando, sobretudo, a relação da mulher com a castração e a ausência da inscrição do significante de seu sexo no inconsciente, com o intuito de analisar as suas implicações no que diz respeito à maternidade. Abordamos a função paterna e sua interdição sobre a díade mãe-criança, destacando seu papel estruturante. A partir da posição do Outro - agente da maternagem - em relação à castração, discorremos sobre o lugar subjetivo que é auferido à criança e suas implicações subjetivas. Nesta discussão, articulamos a função da maternidade ao conceito de amor, ressaltando o seu caráter ambivalente. Destacamos o desejo como balizador da experiência da maternidade, salientando a importância do desejo de mulher na mãe para a ascensão do sujeito. Enfocamos ainda a relação entre o materno e o gozo, a fim de pontuar os possíveis efeitos nocivos sobre o pequeno ser em constituição.

Quais os efeitos subjetivos do excesso de poderio materno? Esta questão constitui o ponto de partida de nossas investigações e discussões.

 

Função Materna e Constituição do Sujeito

Há muito tempo atrás, duas mulheres disputavam a posse de uma mesma criança quando o rei Salomão, em sua grande sabedoria, decretou: "Pois bem: que ele seja partido em dois e cada uma receberá a metade". Uma delas aquiesceu, mas a outra exclamou: "Não, deixe-o viver, nem que eu tenha que ser privada dele!" De acordo com Dolto (1996), esse é o primeiro e autêntico grito de amor materno humano que aparece citado na história de nossa civilização. Na verdade, para a psicanálise, tanto faz se o sujeito é geneticamente filho de seus pais: o que conta é sua inscrição num desejo que não seja anônimo.

Se o real biológico da maternidade confere-lhe o poder da gestação de um organismo, o simbólico atesta-lhe o poder da constituição psíquica de um ser que se encontra, sobretudo no início de sua vida, numa condição dramática (Freud, 1950[1895]/1996a) ao depender inteiramente de um Outro que venha a suprir as suas necessidades mais básicas como as de fome e sede. O drama reside justamente na importância e no poder que este Outro primordial, do qual se depende inteiramente, assume para cada um, o que o torna assim absoluto para a criança (Zalcberg, 2007).

Na alienação - operação simbólica constituinte do sujeito, a qual é desenvolvida por Lacan (1998d) - estabelece-se uma relação de poder "desigual" na qual se situa de um lado aquele que faz a maternagem, que decreta, legifera e sentencia sobre tudo o que se refere à existência da criança (Lacan, 1998b, p. 822) e de outro esta, que no começo não é sujeito, mas objeto. "Objeto real nas mãos da mãe, que, muito além do que é exigido pelos cuidados, pode servir-se dele como de uma propriedade, uma boneca erótica com que gozar e a que fazer gozar" (Soler, 2005, p. 93).

Diante desta relação de poder desigual, porém fundamental, algumas mães, ao ouvirem o seu filho chorar, hesitam um instante antes de interpretar a demanda que ele apresenta: será que está com fome, sono, frio ou apenas quer colo? Estas mães colocam a sua castração a serviço da interpretação da demanda de seu bebê e, por isso, questionam-se. Existem, no entanto, aquelas que "sabem" porque chora seu bebê e o respondem imediatamente sem deixar nenhum espaço entre a demanda e a satisfação de suas necessidades e, desse modo, esperam que o mesmo, estando suprido, possa, em troca, desejar apenas suprir as suas esperanças. Existem ainda aquelas mães que se angustiam excessivamente com a demanda da criança ou mesmo aquelas que respondem ao choro de seu bebê com uma rejeição, às vezes violenta. Nesse ínterim, a criança submersa num processo de sobrevivência pode, por meio do sintoma, pedir socorro na tentativa de salvar o seu desejo.

Freud (1905/1996b) aponta a ambiguidade dos cuidados maternos ao afirmar que quando a mãe afaga, acaricia o seu filho, ela o seduz colocando-o numa posição de substituto do objeto sexual completo. Inteiramente entregue aos caprichos maternos - vontade fora de qualquer Lei - encontra-se a criança no início de sua vida à mercê do enigmático desejo e do misterioso gozo materno. Neste sentido, Lacan (1992) faz uma analogia entre a mãe e um crocodilo com sua bocarra aberta prestes a abocanhar o seu filho, sendo, por conseguinte, necessária a intervenção paterna - Nome-do-pai (Lacan, 1986) - para impedir que a criança seja devorada.

Como indica Soler (2005), os poderes do verbo vão longe, chegando até a regular o gozo, e desses poderes, a mãe é a primeira representante. Detentora dos poderes da palavra, a mãe fala pela criança no início de sua vida, interpreta o seu choro, sua demanda, atribui sentido ao não sentido. É ela que escreve o primeiro capítulo da existência da criança, o que faz com que o mesmo seja posteriormente ignorado por ela através do mecanismo que Freud denominou de recalque (Freud, 1915/1996f). No que concerne ao registro do imaginário, necessita a criança deste Outro que a precede para que possa constituir a imagem do corpo próprio, nos ensina Lacan (1998a) com a sua teoria do Estádio do Espelho. O início da história da criança se situa, assim, no Outro, razão pela qual Lacan (1999) define o inconsciente como sendo o discurso do Outro.

As experiências primordiais deixam marcas no inconsciente do sujeito e são revividas, de certa forma, ao longo de sua vida. Como bem destacam Zalcberg (2007) e Soler (2005), em nossas recordações e lembranças, é possível reencontrarmos o eco do som devastador e persecutório das palavras, dos imperativos e dos comentários inesquecíveis desse Outro materno primordial que se apresenta investido de uma "obscura autoridade": "autoridade porque é o outro que rege a existência da criança e obscura porque o faz de acordo com os seus próprios desejos e fantasias cujas significações a criança desconhece" (Zalcberg, 2007, p. 33). Che voi? interroga-se o jovem sujeito que busca "significar, além de seus ditos, através de suas contradições, seus silêncios, seus hiatos ou seus equívocos, tudo o que ela não diz, mas dá a entender aos seus ouvidos atentos..." (Soler, 2005, p. 95) a fim de decifrar o enigma de um desejo indizível, sobretudo, no que este concerne à resposta à questão do que é ele para o Outro.

 

O Fantasma Materno e as Vicissitudes do Feminino

O "fantasma da mãe" fala, revela e desvela-se no sujeito por intermédio das relações estabelecidas com os seus amantes, seus filhos e seus analistas. Na associação livre, tal como pontua Soler (2005) é mais como acusada que a mãe se instala: "Imperiosa, possessiva, obscena ou, ao contrário, indiferente, fria e mortífera..." (p. 91). As falhas da mãe têm sempre lugar no inconsciente e, quando se trata da filha, afirma Lacan (1985), pode chegar à devastação. Com a maternidade, a imagem da criança do narcisismo parental que está inscrita no corpo e na história do sujeito mãe tendem a se atualizar (Freud, 1914/1996c), correndo-se o risco de que esta venha a estabelecer com o seu filho uma relação baseada numa reedição do vínculo que mantinha com a sua própria mãe.

Se a mãe reúne muitas expectativas e ideais narcísicos, mobilizados pela filha que foi ou que gostaria de ter sido, corre-se o risco de reduzir a criança a um retorno do semelhante, permanecendo a mãe prisioneira da criança de seu próprio narcisismo, sendo, desta forma, incapaz de reconhecê-la em sua alteridade e totalidade (Benhaim, 2007). De outro modo, se é a mãe mobilizada por queixas e ressentimentos dirigidos a suas referências edípicas, pode a criança ser vítima do abandono e silêncio maternos, constituindo assim foco de suas frustrações e violência.

Uma vez então que a maternidade tem como referência o modelo edípico no qual está enodada à primeira relação da mãe com a sua própria mãe (Freud, 1914/1996c), e, tendo em vista que é ela situada na lógica fálica por Freud (1931/1996h e 1933/1996i), se faz imprescindível evocarmos aqui o Édipo feminino e suas especificidades, o que faremos, porém, de forma breve. Diferente do menino que sai do Édipo pela castração, o que marca a entronização da lei situando-o na lógica fálica, a menina entra por descobrir-se castrada rivalizando com a mãe e reivindicando do pai o falo que não lhe fora concedido (Freud, 1924/1996g).

Freud e, especialmente, Lacan nos ensinam que homens e mulheres são marcados por uma falta-a-ser como sujeitos, o que os faz desejantes e inscritos na lógica fálica. Contudo, além desta falta, é a mulher marcada por uma outra falta: a falta de um significante do seu sexo, falta-a-ser na sua particularidade feminina, o que gera efeitos na sua subjetividade (Lacan, 1998c). Assim, se por um lado a mulher situa-se na lógica fálica como sujeito, por outro escapa à mesma por sair da lógica edípica, sendo marcada por um "menos". É neste sentido que a mulher é não-toda (Lacan, 1960/1998b). "Dizer que a mulher é não toda inscrita na lógica fálica não significa que ela não seja de todo: em parte o é, em parte não o é. Se não fosse de todo inscrita na lógica do falo, seria louca..." (Zalcberg, 2007).

Mas quais são os efeitos desta falta duplicada da mulher sobre a maternagem?

Quando aborda o complexo de Édipo, Freud (1931/1996h, 1933/1996i) aponta a maternidade como saída para o Édipo feminino, como uma espécie de suplência fálica, uma vez que a menina entra no circuito edípico por descobrir-se castrada. Enquanto o menino tem relação com uma representação do falo, o pênis, a mulher tem relação com a produção de um objeto real - a criança. Neste contexto, a criança, situada em equivalência ao falo, estaria destinada a preencher a falta-a-ser da mãe. Diante disso, a fim de conquistar a presença e o amor maternos, a criança acaba por oferecer-se à mãe nos engodos da sedução, realizando o que os seus ditos e condutas deixam entrever do objeto de desejo. É aí que o filho pode ter a experiência da autoridade ou do capricho do Outro materno (Soler, 2005).

Ao destacar a maternidade em referência à lógica fálica, Soler (2005) indica haver na mulher uma 'oposição': de um lado, a mãe que recupera de certo modo, por intermédio do filho, o objeto faltante, e, de outro, a mulher que, ao dirigir sua libido a um homem, mostra-se despojada daquilo que procura. Neste contexto, basta que falte na mãe a dimensão de um desejo outro fora da relação com o seu filho para que o mesmo fique condenado à alienação máxima de realizar a fantasia de sua mãe, permanecendo assim cativo do gozo da mesma.

Lacan, por sua vez, aponta-nos outra face da maternidade, a que a aproxima do real. Se a gravidez pode ser experienciada como expressão máxima de completude, de fusão e unicidade, a ruptura no parto, por sua vez, quando o 'corpo sai do corpo', provoca uma dupla perda - deste estado de encantamento (gerado pelo imaginário sobrepujado ao real) e do objeto - o que é considerado por algumas mães uma experiência traumática (Benhaim, 2007). Um defeito de reconhecimento, de elaboração dessas rupturas pode funcionar para a mãe como um impeditivo ao estabelecimento de laços entre a filha que ela foi ou ainda é, a filha que testemunha o desejo de seus pais, o filho que ela carregou durante a gestação e aquele que apareceu com o nascimento. Dando-se a vida faz-se necessário um processo de luto: não somente do filho trazido no útero, mas daquele que acaba de nascer.

Neste sentido, a maternidade escapa à lógica fálica, uma vez que desvela alguma coisa de incomensurável, de real, de impossível de simbolizar. Na gestação e no parto, trata-se sempre de um real incomensurável (Soler, 2005). A criança presentifica o desconhecido, o enigma, a face inacessível do Outro, ainda que ela seja 'minha imagem e semelhança', pois, a prematuridade do pequeno ser, a ausência da linguagem, a inexistência de um aparelho instintual e a consequente montagem pulsional que se coloca em marcha desenham a face inassimilável do Outro, fora do significado, estranho e estrangeiro a mim mesmo (Marcos, 2007). Nesta vertente, a maternidade, ao invés de recobrir, confronta a mulher com a castração, com o impossível, com o real.

 

A Ambivalência Materna

Para pensar essas duas posições convocadas pela maternidade - suplência fálica e encontro com a castração -, evocamos o que Freud (1915/1996d) desenvolve como ambivalência, conceito que é situado por ele como um dos destinos das pulsões. Segundo o autor, o amor se origina nas fases auto eróticas, que o caracteriza como narcísico, enquanto o ódio surge no processo de diferenciação, como resultado da perda, da castração, sendo o mesmo, por conseguinte, na relação com os objetos, anterior ao amor. Podemos entrever aqui o amor mais primitivo e narcísico como sendo um amor "total", sem ambivalências, enquanto que o amor que se funda com a separação inaugura-se com a presença do ódio, sendo, assim, "ambivalente". A ambivalência encontra-se, desta forma, na base das relações objetais, garantindo a preservação das integridades do eu e do objeto. De modo contrário, o amor total, narcísico configura-se com a supressão das distâncias, o que suscita, a nosso ver, o seu caráter mortífero.

Mas, no que concerne à maternidade, de que modo se articulam amor e o ódio em referência a essas duas polaridades que a mesma convoca?

Se o ódio advém da diferenciação, da separação, do que emerge de fora como um estranho, um estrangeiro a mim, podemos situá-lo no processo de maternagem no que o nascimento do bebê desvela de real: a sua prematuridade, um corpo que chora, mas não fala, convocando assim a mãe ao encontro com a própria castração. "Há mães que se apavoram com esse objeto, que imaginam já não saber fazer sequer o que todos os mamíferos sabem por instinto: carregar, alimentar, aquecer" (Soler, 2005, p. 102). O ódio originário, no que concerne ao materno, pode ter, segundo Benhaim (2007), duas vicissitudes: simbólica - que constitui-se como "vital" para a criança, na medida em que irrompe a 'continuidade' entre Outro materno e infans, fazendo com que o desejo materno recomece a encontrar outros meios de satisfação - e imaginária - se, no fantasma materno, a criança ocupar um lugar de objeto de posse, objeto exclusivo de seu próprio desejo, enfim, objeto de gozo do Outro materno.

O amor visa, ao contrário, a fusão, a completude, a satisfação plena, que preenche. No caso do Outro materno, se situa em referência ao que no bebê traduz-se como falo, o qual é vislumbrado como obliterador de sua falta-a-ser. O amor totalitário alimenta o fantasma da unicidade e, com isso, pode fadar a criança à alienação permanente na posição de objeto real no fantasma materno, inviabilizando o nascimento do sujeito do inconsciente, perpetuando assim uma relação amorosa fundada no gozo, que visa dominar aquilo ao qual a mãe é submetida: a castração. É neste ponto que o ódio simbólico se introduz como "ódio salvador", acusando o impossível da fusão, estruturando assim o amor materno, tendo em vista que o amor vivível funda-se numa separação (Benhaim, 2007).

No interior desta relação de poder, que é a relação mãe-filho, a ambivalência pode constituir-se como fundamental para a constituição subjetiva da criança ou, de outro modo, pode acarretar-lhe graves prejuízos. Segundo a autora, "a ambivalência é 'positiva' no que oferece à função paterna o tempo e o espaço de permitir o corte do que nos faz viver, mas que nos faria morrer se dele não nos separássemos" (Benhaim, 2007, p. 13). Porém, "toma aspectos 'negativos' se a criança sofre muitas decepções, quando sua demanda angustia excessivamente a mãe e quando essa angústia invade os dois: o corpo adota então a imagem de corpo morto" (p. 12).

Como desenvolve a autora, a ambivalência adquire uma função fundamental de um ponto de vista estrutural, uma vez que, do lado da mãe, viabiliza a interdição paterna. Afinal, é preciso que um limite se interponha para evitar que a alienação ao desejo do Outro materno condene a criança a um destino mortífero, sem poder constituir o seu desejo próprio (Zalcberg, 2007). O papel da metáfora paterna, substituição do Nome-do-Pai ao desejo da mãe, nos ensina Lacan (1995), é o de permitir um elo social no campo dos discursos, por meio de uma perda de gozo. É a função paterna, naquilo que ela comporta de privação, de interdito e de frustração, bem como no que ela opera de deslocamento do objeto dito fálico, que leva, de um lado, a criança a não ocupar o lugar de objeto único e exclusivo que viria a preencher o desejo da mãe, e de outro, a mãe a não mais identificar a criança com esse objeto.

Desta feita, a mediação paterna é imprescindível tanto para a criança quanto para a mãe. Para a criança porque, saindo da posição de objeto de gozo materno, pode ascender como sujeito desejante. Para a mãe porque possibilita-lhe o resgate de sua condição feminina e a retomada de seus laços sociais. Além disso, "evita que, em sua condição de mulher, a ausência da mediação simbólica reguladora do homem provoque nela uma angústia cuja causa seria o sem-limite mortífero centrado na criança-objeto" (Zalcberg, 2007, p. 42).

'Ninguém completou ninguém' - é o que anuncia o pai - e diante disso, mãe e criança podem sobreviver uma sem a outra. Ambas devem renunciar ao investimento narcísico fundador da inseparável unidade mãe-filho. Por trás da mãe há uma mulher que não perdeu completamente seu narcisismo e do lado da criança, somente esta renúncia lhe dará acesso ao desejo e às relações objetais. É, por fim, o pai que introduz a questão do amor, apaziguando a voracidade da "mãe-crocodilo" e mostrando que para ser dois é preciso haver três.

 

Considerações Finais

Como pudemos constatar, o poderio materno se manifesta precocemente na vida do sujeito em constituição, acarretando-lhe efeitos decisivos em sua estruturação psíquica que vai desde a ascensão do sujeito à estagnação como objeto de gozo materno. Tamanha é a sua importância, que tais efeitos sobre o sujeito não se restringem ao desenrolar de sua constituição, eternizando-se como marcas profundas no seu inconsciente, as quais carrega inelutavelmente em seus fantasmas.

Se por um lado é a mãe polo das primeiras efervescências sensuais, figura que cativa a nostalgia do ser falante, símbolo do amor, por outro, é para o sujeito uma imagem de suas primeiras angústias, lugar de um enigma insondável e de uma ameaça obscura. Invariavelmente, ressurgem os 'ecos de mãe' nos discursos dos sujeitos, nas suas relações transferenciais e em meio a seus atos, manifestações as quais temos que estar atentos em nossa prática analítica.

A nocividade materna manifesta-se, conforme verificamos, a partir de dois polos - a possessividade e o abandono - ambos possuindo em comum a posição de objeto de gozo e não de objeto de desejo em que é situada a criança. A excessiva ocupação com o filho faz dele o seu refém fálico. Neste caso, o que falha é uma suspensão de mãe, caracterizada pela falta da falta, impedindo assim o nascimento do desejo e da alteridade. De um modo contrário, a ausência de ocupação deixa a criança sem recursos diante de seu poder de silêncio, não de fala, mas um silêncio de investimento subjetivo. Esta insuficiência não se refere propriamente ao abandono da criança no nível da realidade corporal, pois como vimos, pode coadunar-se na presença física da mãe, mas recai sobre a posse do corpo como real.

Para que a criança saia da condição de objeto real no fantasma materno constituindo-se como objeto de desejo, é necessário que insurja o desejo da mãe, ou melhor, o desejo da mulher na mãe, o qual é capaz de limitar a paixão materna na medida em que a torna não-toda mãe, ou seja, não-toda para o filho. Ao vislumbrar outros investimentos libidinais, pode a mãe, aos poucos, desinvestir a criança, o que não deve ser confundido com abandono ou ausência de olhar, mas com um deslocamento de olhar para ela e para o que representa.

Para concluir, faço menção a uma canção de autoria de Chico Buarque de Holanda, denominada "Uma canção desnaturada", que retrata de maneira poética a figura do Outro da maternagem e sua relação, prenhe de paixão e ambivalência, com o rebento, por fim, constituído sujeito:

Por que creceste, curuminha assim depressa, e estabanada. Saíste maquiada dentro do meu vestido. Se fosse permitido, eu revertia o tempo para viver a tempo de poder te ver as pernas bambas, curuminha, batendo com a moleira, te emporcalhando inteira e eu te negar meu colo. Recuperar as noites, curuminha, que atravessei em claro. Ignorar teu choro e só cuidar de mim. Deixar-te arder em febre, curuminha, cinquenta graus, tossir, bater o queixo. Vestir-te com desleixo. Tratar uma ama-seca. Quebrar tua boneca, curuminha. Raspar os teus cabelos e ir te exibindo pelos botequins. Tornar azeite o leite do peito que mirraste. No chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro. Pelo cordão perdido, te recolher pra sempre. À escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído. (Holanda, 1979)

 

Referências

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Recebido em 04 de novembro de 2011
Aceito em 21 de fevereiro de 2012
Revisado em 15 de março 2012

 

 

1 Trabalho apresentado no II Congresso Sul-Americano de Psicanálise sobre Violência Culpa e Ato: causas e efeitos subjetivos. Fortaleza/Ceará - Brasil - 13 e 14 de novembro de 2009.

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