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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza dez. 2013

 

ARTIGOS

 

Sobre ter e ser a partir das coisas: reflexões sobre consumo, subjetividade e satisfação no tempo livre

 

Having and being out of things: reflections on consumption, subjectivity and satisfaction in free time

 

Sobre el tener y ser desde las cosas: reflexiones sobre el consumo, la subjetividad y la satisfacción en el tiempo libre

 

D'avoir et d'être hors des choses: réflexions sur la consommation, de la subjectivité et de la satisfaction dans le temps libre

 

 

José Clerton de Oliveira MartinsI; Mônica Mota TassignyII; Daniel Franco de CarvalhoIII; Adjanilson Moreira dos SantosIV

IDoutor em Psicologia pela Universidade Barcelona. Pós-doutor em Estudos de Ócio pela Universidade de Deusto. Professor titular da Universidade de Fortaleza. E-mail: jclertonmartins@gmail.com
IIDoutora em Educação pela UFC e École de Hautes Études em Sciences Sociales (E.H.E.S.S/Paris). Professora titular da Universidade de Fortaleza. E-mail: monica.tass@gmail.com
IIIMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: dfrancoc@gmail.com
IVGraduado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza. Professor da Universidade Vale do Acaraú. E-mail: prnilsonsantos@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende lançar luzes sobre as questões do consumo na atualidade, numa sociedade denominada de hipermoderna, na qual a aquisição de bens não só possibilita ao sujeito um lugar na classe social como também infere um lugar simbólico. Baseados em pesquisa bibliográfica e documental, autores como Cuenca, Oliveira, Salis, Lipovetsky, Freud, Kehl, Debord etc. fundamentaram a compreensão de que, nesta sociedade, as experiências do tempo do consumo estão permeadas pelo sentido de "hiper": desejos sempre intensos e grandiosos, numa obsessão pelo excesso. No entanto, esses sentidos não correspondem a uma experiência criadora e autônoma, pois a forma como é vivenciada não permite ao sujeito uma reflexão mais significativa. Nessa direção, problematizamos a compreensão do tempo ocidental, como essa noção afeta a subjetividade, e articulamos pontos de encontro entre psicanálise e ócio, no intuito de compreender de que forma as relações de consumo são manipuladas no jogo de forças das satisfações produzidas pela propaganda. Por fim, buscamos responder se o sujeito subjetivado pela linguagem do consumo (mercadoria) poderá escapar do automatismo consumista e vivenciar uma experiência criadora e autônoma a partir do ócio. Poderemos encontrar uma causa do consumismo? Reconhecer as questões dessa trama e do existir poderá munir o sujeito de uma capacidade para lidar com a angústia.

Palavras-chave: consumo; ócio; psicanálise; sujeito; experiência.


ABSTRACT

This paper aims to clarify the issues of consumption today, a society called hypermodern, in which goods purchased not only allocates a social status, but also infers a symbolic identity. Based on literature and documents from the authors: Cuenca, Oliveira, Salis, Lipovetsky, Freud, Kehl, Debord etc., who based the understanding that, within society experiences of consumption are often permeated by a sense of "hyper" desires, which are often intense and grandiose. Society, obsessed with physical desires, does not experience a more creative and autonomous lifestyle with meaningful reflection. Through this, we comprehend the Western understanding of time and how this notion affects subjectivity; we observe crossovers between Psychoanalysis and Leisure, in order to understand how consumer relations are handled in the power game of the satisfactions produced by propaganda. Finally, we intend to answer if the subject influenced by over consumption can escape consumerism and become enlightened to an autonomous lifestyle of creativity from leisure.

Keywords: consumption; leisure; psychoanalysis; subject; experience.


RESUMEN

Este estudio pretende enfocar el problema del consumo en la actualidad de la sociedad llamada hipermoderna. La compra de mercancías no sólo permite al sujeto un lugar en su clase social, como también infiere un lugar simbólico. Asi, con base en una investigación bibliográfica, desde la obra de autores contemporáneos tales como: Cuenca, Oliveira, Salis, Lipovetsky, Freud, Kehl, Debord entre otros, damos soporte para la comprension del consumo en la sociedad contemporánea, que se presenta con la característica "hiper", una obsesión por el exceso, pero que sin embargo, los sentidos resultantes de este consumo, no implican en una experiencia creativa y autónoma, una vez que son estimuladas por elementos exteriores al sujeto. En esta dirección, cuestionamos sobre la comprensión occidental del tiempo libre volcado para el consumo y cómo tal hecho afecta la subjetividad, desde una articulación del psicoanálisis y los estudios del ocio, con el fin de entender cómo se da la relación entre subjetividad y las satisfacciones anunciadas por la propaganda. Por fin, buscamos contestar si el sujeto influenciado por el consumo (pose de mercancías) podrá escapar del automatismo consumista y de esta manera, acceder a una experiencia autónoma creadora desde el ocio.

Palabras-clave: consumo; ocio; psicoanálisis; subjetividad; experiencia.


RÉSUMÉ

Ce document vise à faire la lumière sur les questions de consommation d'aujourd'hui,dans une société dénominnée comme hypermoderne, dans laquelle l'acquisition de biens ne permet pas seulement au sujet D´aquerir une place dans une classe sociale, mais aussi induit un lieu symbolique. Base sur des travaux de recherche bibliographique et documentaire, des auteurs tels que: Cuenca, Oliveira, Salis, Lipovetsky, Freud, Kehl, Debord etc. ont fondamentalisés la compréention que dans cette société, les expériences du temps de la consommation sont imprégnés d'un sentiment d '"hyper" et toujours avec des désirs intenses, grandiose, une obsession à l'excès, cependant, ces sens ne correspondent pas á une experience creative autonome car la façon dont elle est vécue pas sujet ne permet pas une relexion plus significative. En ce sens, nous questionons de façon critique la compréention du temps occidentale et comment cette notion influe sur la subjectivité; nous articulons des points de rencontre entre la psychanalyse et l´oisiveté, afin de comprendre comment les relations de consommation sont traitées dans le jeu de puissance des satisfactions produites parpropagande. Enfin, nous cherchons á repondre si la langue de la subjectivité du sujetconsommation (produits) peuvent échapper à l'automatisme de consommation et donc de l'expérienceexpérience autonome, créatif, de l'oisiveté.

Most-clés: consommation; loisirs; psychanalyse; objet; expérience.


 

 

Introdução

Neste estudo, buscamos apontar como os processos históricos possibilitam determinadas características ao consumo, como esses processos influenciam a dinâmica consumista da atualidade e como essa dinâmica se organiza para alcançar novos clientes e recapturar quem se afasta de seu sistema, apontando possíveis leituras, para além da suposta vitimização que o mercado impõe.

Nesse sentido, procuramos esclarecer o significado do ócio, a sua compreensão desde as sociedades arcaicas e como ele foi processualmente desvirtuado pelas relações socioeconômicas na história, especialmente agravadas a partir da Revolução Industrial. No entanto, as possibilidades de ócio sobrevivem em todos os tempos, independentemente de serem nomeadas ou não como tal. Nesses termos, o resgate desse diálogo entre ócio e contemporaneidade favorece novas perspectivas de significados para o enfrentamento da vida. Em uma época na qual a subjetividade, em grade parte, é caricaturada pela propaganda e reduzida pela massificação de comportamentos, questionamos se há possibilidades de experiências significativas como alternativas ao que está sendo oferecido pelo mercado. A experiência que advém do ócio, não podendo ser confundida com a experiência de modo geral, estabelece uma nova possibilidade para o sujeito lidar com o dilema social estabelecido pelo objeto (mercadoria/consumo).

Nesse particular, as relações da atualidade, mediadas pela propaganda e consumo, estão produzindo uma experiência subjetiva reducionista no sentido de compreensão da vida. O desafio é perceber quais as possibilidades de termos algo de maior crescimento e satisfação do sujeito sem ignorar o contexto sociocultural, isto é, do consumo.

Nessa direção, procuramos demonstrar como a propaganda, sustentada pela escrita e pela imagem, afeta a subjetividade, criando um sentido de verdade em tudo que é manifestado a partir do objeto (mercadoria) para o sujeito. Apontamos que a propaganda não é a causa do consumismo na atualidade, pois considerarmos que ela apenas mantém uma relação de apoio, uma vez que as questões subjetivas relativas ao consumo estão ancoradas em um movimento histórico de forças discursivas em função do princípio do prazer, o qual dispensa a implicação reflexiva. Essas questões fizeram com que o sujeito da atualidade pudesse se compreender por um fazer produtivo e consumista, pertinente à sociabilidade em que o capital fez-se meio e fim das relações entre sujeitos.

Por fim, apresentamos as possibilidades de escapar do automatismo que o mercado nos impõe - reflexão realizada tanto pelo viés psicanalítico como pelo conhecimento da experiência de ócio, os quais, segundo entendemos, são caminhos viáveis para se pensar em alternativas criativas de vida, em constante transformação.

 

Laço e Enlace do Consumismo: Os "Nós" que nos Prendem

Como será possível termos uma experiência de ócio criador frente às demandas do consumismo? Sendo este um laço que nos capturou, quase sempre, quem consegue escapar é recapturado de outra forma. Não precisamos ser nenhum estudioso das relações comerciais para sabermos que quando algum grupo rompe com a lógica do mercado, logo o sistema se reorganiza para realcançá-lo. Por exemplo: um grupo que rompe com a lógica do consumo dos alimentos industrializados, mais caros, e opta por alimentos naturais, produzidos caseiramente e a baixo custo, não se mantém afastado por muito tempo do interesse dos que vendem. Visto que houve, nas últimas décadas do século XX, um considerável aumento de hábitos naturalistas na população, dos discursos médicos em torno da chamada vida saudável e dos quase semanais programas televisivos em torno de temas relacionados à qualidade de vida, esse movimento sociocultural embala a dinâmica do consumo, que vê uma oportunidade de venda em tudo. A partir disso, cria-se toda uma mídia de valoração desse tipo de produto, gerando a ideia do 100% natural.

Com essa postura, recaptura-se o grupo que se deslocou do padrão de consumo industrializado e ainda agrega novos consumidores, superfaturando em cima. Produtos naturais são mais caros que os industrializados. Os produtos ditos "ecologicamente corretos", que dispensam os enormes usos de química e máquina tecnológica, deveriam ser mais baratos, mas quase sempre são mais caros que os demais.

Uma possível saída dessa trama é alcançar uma compreensão da nossa experiência enquanto possibilidade para o ócio criador frente ao que está posto, pois se não podemos mudar a lógica do consumismo, podemos mudar o consumismo na nossa lógica! Tudo vai depender de como ressignificamos nossa experiência, posto que, em última palavra, a questão não é o que acontece, mas como reagimos aos fatos.

 

Sobre ócio e subjetividade

Tendo em vista a engrenagem consumista da atualidade e as relações do sujeito com o objeto, parece-nos pertinente debater a ideia e as perspectivas da experiência do ócio. Entretanto, não podemos permanecer na vaga e superficial explicação de que ócio é um não fazer, como se fosse possível uma experiência do não fazer, afinal, sempre se está fazendo algo. Como nos confirma Amigo (2008, p. 79): "A mal chamada preguiça, que não consiste em não fazer nada, mas em fazer muitas coisas não reconhecidas nos formulários dogmáticos da classe dirigente, tem tanto direito a fazer-se valer quanto à laboriosidade". Talvez a noção ou sentido que levou à vulgarização da ideia do ócio seja porque este não necessariamente atende a uma expectativa produtiva que foi imposta ao homem em determinado tempo, sobretudo na modernidade. O homem sempre foi convocado a responder às exigências das demandas sociais, a ser um servidor do tempo e do trabalho.

Mas de que ócio estamos falando? Há muitos tipos e conceitos. A história bem demonstra essa afirmação. Na Grécia Antiga e no Antigo Egito, por exemplo, tempo e dinheiro não eram sinônimos e as relações humanas tinham outras formas de convívio.

Na Antiguidade, o Ócio Criador só nasce quando existe uma consciência de que é fundamental ter tempo para nós, para as pessoas que gostamos e, mais que tudo, quando começamos a gastar esse tempo não só com finalidade lucrativa. Gastar tempo não gera lucro, mas a única forma de podermos instalar uma busca criadora em nós e nos outros, onde é possível a recriação e a reconstrução. (Salis, 2008, p. 21)

Independentemente do período, o ócio é uma experiência individual que não se traduz por uma atividade, pois está simultaneamente nela e além dela, conforme cada indivíduo possa apreendê-lo. Segundo López-Quintás (2000, p. 87): "(...) uma das características essenciais do ócio é a sua capacidade para sairmos de nós mesmos, para 'di-vertir-nos', e fazer-nos escapar de outros âmbitos que exigem nossa atenção extrema e toda nossa responsabilidade". O ócio é uma possibilidade de satisfação autêntica, sustentada na compreensão do e no próprio sujeito. Cuenca (2008, p. 35) reitera: "(...) a essência do ócio que se vive hoje, especialmente a vivida pelas pessoas que possuem estilos de vida mais avançados, radica numa mudança de mentalidade, na diferente concepção da vida e do mundo". Portanto, o ócio se constrói na subjetividade, e esta se constrói pelos referentes socioculturais que a afetam. Essa dinâmica permite que, em cada tempo, o sujeito encontre mecanismos de buscar satisfação.

Quando as relações de guerra eram fundamentadas prioritariamente pela força física, os homens eram convocados a se tornarem soldados, de forma que seus corpos eram preparados diariamente em habilidades e rigores dessa demanda. Mas outro modo de relação começou a coexistir na sociedade, paralelo à necessidade de força física: as relações comerciais. De certo modo, ela representou um avanço, dado ao fato de que, se alguém queria alguma coisa, podia consegui-la não necessariamente pela força física, mas baseado em outra força: a inteligência ou a "maquinação racional", imbricada à cobiça e à ganância. Assim, para além das trocas, inventou-se uma nova mediação: as relações de troca, nas quais um objeto era trocado por outro, foram substituídas simbolicamente pela moeda (dinheiro). Essa dinâmica produziu uma violenta força escravizadora, tal qual a força física. Quando o mundo aprofunda suas relações para além das trocas e inventa a moeda (dinheiro), chega o tempo dos negócios:

Como era de se prever, o Ócio Criador progressivamente desaparece, dando lugar àquilo que ficou conhecido, no mundo romano, como 'Negum Otium', o qual nada mais é do que a origem da palavra 'negócio', e do modo de vida que ficou conhecido como 'negociante'. Agora, não se trata mais de celebrar a vida. (Salis, 2008, p. 13)

Em paralelo, surgiu o discurso do trabalho nas relações humanas, desde as primeiras experiências grupais, tomando lugar central nos modos de vida existente. Um discurso produzido por um saber datado e, sobretudo, aprofundado na modernidade para atender a demandas específicas. Desde a Revolução Industrial, não se tem possibilitado experiências mais significativas de compreensão da vida, pois, para atender às demandas de produção e consumo, os sujeitos têm que se anular, na ilusão de que somente serão realizados a partir da experiência do trabalho, embora nunca haja trabalho para todos.

A frase "estude/trabalhe para ser alguém na vida", tão conhecida em nosso país, representa, no imaginário social, uma meta de sucesso a ser buscada. No entanto, as condições econômicas, sociais e políticas não se realizam para todos. Ou seja, todos têm os mesmos direitos, mas esses direitos previstos em lei, que universalizam a promessa de estudo e trabalho, não se concretizam para todos, gerando sentimentos de fracasso nas experiências que não correspondem a um fazer instituído e dado como possível.

 

Ócio como Experiência

O ócio, para Cuenca (2008, p. 40): "É uma experiência humana integral, centrada em atuações queridas (livres, satisfatórias), autotélicas (com um fim em si mesmas) e pessoais (com implicações individuais e sociais)". Dessa forma, o próprio sujeito é quem tem a autoridade de autenticar a sua experiência de ócio, pois esta não se estabelece por um discurso do outro nem por uma atividade arbitrária, como se uma atividade pudesse necessariamente conceder a mesma experiência a todos. Nessa impossibilidade, fica claro que o que pode ser divertido e prazeroso para uns pode não ser para outros. No entanto, podemos compreender que os sistemas de referência de prazer e satisfação, na atualidade, estão se massificando numa compreensão homogênea. Os sujeitos estão cada vez mais dentro de um processo de engenharia de subjetividade a partir do qual os comportamentos se tornam mais parecidos e, não obstante, ganham uma esfera homogênea de satisfação e prazer, pois os mecanismos culturais autorizam o atravessamento do que foi posto de um suposto ideal coletivo (propagandístico) para o indivíduo. Então, este se sente uma pessoa realizada quando os referenciais são alcançados. O problema é que, via de regra, esses referentes não são possíveis de serem alcançados por todos. É aí que um possível sofrimento aparece. O sujeito, então, fala de uma experiência de fracasso e insatisfação frente ao que o constitui.

Mas o que estamos então afirmando sobre a experiência do ócio? Ainda de acordo com Cuenca (2008, p. 42): "As experiências de ócio nos situam num âmbito que não está dominado pelo dever ou pela obrigação, mas pelas ações com finalidade em si mesmas e por si mesmas". É uma experiência na qual o sujeito é quem pode falar dela, pois está na ordem da sua compreensão, portanto, subjetivada por sua história. A micro-história é contornada e perpassada pelo macroprocesso histórico, isto é, influências socioculturais que se apresentam na dinâmica de atender às demandas de sua composição. Existem nessa trama vantagens e desvantagens, como é próprio das relações da vida. Vantagens porque há possibilidades de autorrealização pelos referentes oferecidos e adquiridos. Desvantagens porque a oferta de satisfação anunciada, em parte, é restrita e, em outra, ilusória, deixando à margem a maioria dos sujeitos. Reconhecer os mecanismos da experiência do nosso tempo, que não em poucos casos são postos como armadilhas, é uma maneira de escaparmos, tanto quanto possível, das frustrações que o encontro do sujeito com o objeto (mercadoria) supõe estabelecer simbolicamente. Ter recursos subjetivos para sair das amarras do consumismo é o que nos esforçamos para argumentar neste artigo.

O contexto atual na sociedade ocidental, dita de consumo, tem produzido modos de experiência (subjetivação) bastante interessantes. Acreditamos que esses modos não são produzidos unilateralmente pela mídia, como se pudéssemos afirmar: somos todos manipulados pela mídia ou pelo meio. Podemos dizer que não somos tão passivos nessa teia de comunicação, pois somos também autores, vítimas daquilo que nós mesmos produzimos.

(...) é ilusório pensar que a criação de sentidos para a existência possa ser um ato individual. É uma tarefa coletiva, uma tarefa da cultura, da qual o sujeito participa com o seu grão de invenção. É uma tarefa simbólica, que se dá por meio da produção de discursos e narrativas sobre 'o que a vida é' ou 'o que a vida deve ser'. (Kehl, 2002, p. 10)

Por assim entender as experiências do sujeito, tanto de modo geral quanto as de ócio, é fato que elas perpassam a compreensão do seu tempo e as relações socioculturais em que estão inseridas. O que o sujeito expressa é parte das ideologias dominantes e, em proporção bem menor, sua autonomia e inventividade. Essa fuga somente é possível porque, no jogo de forças das relações sociais, sempre escapa algo não previsto dos laços que nos prendem, escoando-se por entre as brechas até ser recapturado.

 

Tempo de Consumo: Insumo do Processo Histórico

Não será possível compreendermos as relações de consumo da atualidade se antes não olharmos os processos históricos que as construíram. Desde que o homem necessitou viver em grupo para sustentar sua sobrevivência, ele teve que desenvolver uma técnica social, na qual as relações passaram a ser mediadas para além da força física. A força da linguagem (palavra) inaugura uma forma de entender a vida e controlá-la. É o preço que se paga para que o homem viva em sociedade.

Falar sobre o tempo é falar sobre como os homens perceberam a sua história e como puderam produzir um sentido de existência a partir de suas observações. A forma como o homem teve que lidar com o tempo dependia, primariamente, de como ele se relacionava com a natureza e o poder político. As experiências registradas mais antigas da percepção do tempo dão conta de como as sociedades se organizavam para se manterem vivas. Os grupos nômades, por exemplo, caminhavam para qualquer lugar onde o clima fosse favorável à sua sobrevivência. Quando eles perceberam a repetição do tempo (estações), mudaram as relações não só com a natureza, mas consigo. Residir no mesmo lugar trouxe algumas implicações: a passagem de grupo nômade para sociedade estática impôs um tempo certo para o trabalho de plantar, caso contrário, não havia colheita. Essa percepção exigiu da sociedade residencial uma dupla servidão: submissão ao tempo e ao trabalho.

Quando uma sociedade mais complexa chega a tomar consciência do tempo, seu trabalho é mais de negá-lo, pois vê no tempo não o que passa, mas o que volta. A sociedade estática organiza o tempo segundo sua experiência imediata com a natureza, no modelo do tempo cíclico. (Debord, 1997, p. 88)

A permanência no mesmo lugar também trouxe uma postura política que pudesse garantir a manutenção do grupo. Complementa Debord (1997, p. 88): "A passagem do nomadismo pastoral à agricultura sedentária é o fim da liberdade preguiçosa e sem conteúdo, o início do labor". Como se percebe, todo um vocabulário foi constituído e desenvolvido, de modo a conferir sentido a uma prática de trabalho. O tempo cíclico (estações) foi apresentado em forma de conhecimento (palavra) e fundamentou outros desdobramentos sobre o fenômeno do tempo para chegar à forma que hoje conhecemos.

O discurso sobre o tempo foi sendo refinado e apresentado sob outras formas de compreensão. O esquema monárquico (poder político) também encontra no discurso do tempo uma forma de se manter no ciclo natural do poder. A compreensão dos ciclos (estações), em certo sentido, sustentava a sucessão consanguínea do poder. A interpretação do cíclico para o sucessivo foi aceito com naturalidade nas relações sociais. A sucessão de gerações sob a égide familiar (pai para filho) se confirma numa condição de irrefutabilidade e irreversibilidade. Assim se justifica uma divisão de classes que, concomitantemente, vai sendo reforçada pelos mitos. O próprio tempo é divinizado, ganhando sentido de respeito, tanto pelas experiências de prazer como de castigos, vivenciadas pelos homens sob a forma de fartura ou seca, respectivamente. O "dia mal", o "tempo de angústia" e o "tempo das vacas magras" foram descritos em muitas literaturas religiosas dos povos antigos (sobretudo o Velho Testamento da Bíblia), tanto para significar a sua existência efêmera como para que os detentores do poder perpetuassem a sua predileção divina.

É na filosofia clássica (socrática) que vai se discutir uma nova visão de mundo, uma nova compreensão de tempo. O que era antes percebido como um eterno devir, isto é, a vida em tudo e em constante transformação, ligada à arte, sem uma única verdade, sem um único deus, sem começo e sem fim, que se mantinha em si e por si, foi substituído por outro saber, o saber verdadeiro, que se constituiu em um discurso dicotômico. O estabelecimento conceitual do Bem em detrimento do Mal, da Verdade em oposição ao Erro, da Alma em conflito com o Corpo, vai transformar toda uma maneira de compreender o tempo cósmico (que dá sentido de transcender), o tempo social (das relações) e o tempo da existência (da experiência). Essa cisão estabelece uma relação de contrários, na qual um vai ser privilegiado em oposição ao outro, sempre na lógica do espiritualmente nobre e o outro como carnalmente comum, baixo e ruim - o que é desta vida e do corpo, é temporal e efêmero, não tem valor real. A forma de entender o tempo de vida é ressignificado por um discurso de conflitos reflexivos. Essa lógica dicotômica vai se espalhar no mundo, sendo nós, ocidentais, seus herdeiros e maiores representantes.

Sócrates e Platão destituíram a forma de pensamento das sociedades arcaicas. Elas viviam sob uma visão de mundo em que o mítico ocupava um lugar central, ou seja, não havia uma separação rígida entre o real e o imaginário.

O mundo era visto como um lugar mágico e religioso, onde o divino se encontrava em toda parte. Como consequência, todas as coisas, sejam elas plantas, animais, o ar (o tempo - tradução nossa) (...) rios etc. eram divinizados e, portanto, existia uma ordenação e um respeito a tudo que existisse. (Salis, 2010, p. 37)

A nossa percepção de tempo e verdade atual quase sempre não nos permite olhar as sociedades passadas como evoluídas, pois estamos embalados por um movimento racionalista de evolução, como se a atualidade fosse fruto de um processo linear e quem nos antecedeu não fosse tão desenvolvido quanto nós, como se o tempo cronológico nos desse por si um amadurecimento reflexivo. Essa ilusão de tom narcísico, que nos coloca na suposta ponta de lança da evolução humana, faz um desserviço, pois não percebemos que precisamos resgatar algo das relações humanas aniquiladas no processo histórico, sobretudo dentro daquilo que nega o ócio, pois ele proporcionou às sociedades arcaicas a elaboração de uma ética que suscitou uma experiência de vida das mais interessantes na humanidade.

A questão é que "tempo e ócio" e "tempo de ócio", que, na atualidade, contraditoriamente, aparecem em confronto com a lógica do mercado, sob a assertiva de que "tempo é dinheiro", são instâncias que precisam dialogar com a nossa época e a nossa subjetividade. A forma como cada sujeito experimenta o tempo e o ócio é de suma importância para a elaboração da vida, principalmente quando se compreende como os discursos sobre essa temática historicamente construída nos afeta. A partir desse pressuposto, afirmamos que o tempo do consumo no século XXI é herdeiro de discursos históricos que se firmaram, sobretudo, pelo argumento do trabalho como origem do saber verdadeiro. Através dele, encontram-se as origens do caos atual, no qual o sujeito não sabe o que fazer com o seu tempo livre, pois não aprendeu a criar satisfação pelos mecanismos livres de sua subjetividade, estando quase sempre comprometido com a verdade estabelecida pelo discurso da ocupação produtiva, legitimada pelo mister do pleno sucesso, incapaz de se universalizar na sua totalidade.

O tempo livre deveria ser um tempo onde se pudesse vivenciar o ócio em sua forma mais livre, no entanto, toda a educação voltada para formação do homem desde a sua infância se volta para o consumismo que termina por deteriorá-lo, mercantilizá-lo e empobrecendo-o de significados. (Martins, 2008, p. 220)

A frase "estou perdendo tempo!", bastante conhecida em nosso dia a dia, representa uma ideia de tempo como objeto de consumo ou, mais do que isso, um consumo produtivo para o sistema capitalista de produção. Essa constatação só pôde ser elaborada na modernidade, a partir das relações humanas pautadas sob a fragmentação do tempo e a mecanização do trabalho. Os quatro séculos passados foram marcados por um movimento de fragmentação em todos os meios (social, cultural, político, científico e religioso). O tempo cindido e fragmentado é uma representação do sujeito, o qual, ao mesmo tempo em que o inventa, é por ele também inventado.

 

Tempos Apressados, Prazer pela Posse de Objetos: A Sociedade Contemporânea Rumo ao Vazio

A modernidade fragmentada produz uma nova época para o século XXI: é o tempo da hipermodernidade. Segundo Lipovetsky e Charles (2004, p. 26): "Hipermodernidade: uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo (...)". Essa trama sociocultural, até então desconhecida das relações humanas, apresenta uma nova postura das relações do sujeito com a vida, mais especificamente pela ideia de lidar com o tempo, o trabalho e o ócio, na qual a pressa e a intensidade estão sempre no ritmo do excesso. Na pretensão de satisfação pessoal, são cooptados muito mais pelas exigências do mercado e traduz-se por uma consciência fragmentada, cindida, pela qual a compreensão não dá conta do todo que nos afeta, sempre nos escapando algo.

Conforme Freud (1911/2004), os processos psíquicos inconscientes são os mais arcaicos processos da vida do sujeito. São fenômenos primários, remanescentes de uma fase de desenvolvimento na qual eram os únicos existentes. Assim, o que está anterior ao pensamento é uma dinâmica pulsional, que aspira à obtenção irrestrita do prazer. O sujeito, no contato com o mundo externo (princípio da realidade), mediado primitivamente pelos órgãos sensoriais, elabora uma atenção, a qual qualificará o que convém e transformará em necessidade interna inadiável. O inconsciente é uma ampla atividade de atos psíquicos que atravessam o sujeito, produzindo e processando registros, mas só alguns são possíveis de serem notados pela consciência. Eis uma explicação para a consciência cindida. O pensamento, portanto, é aquilo que se pode nomear de todos os atos psíquicos. Os afetos (amor, ódio, gostar, não querer) já estão subordinados à elaboração do pensamento, e este, às pulsões. As pulsões são cargas (energias) que buscam um ou mais representantes: objetos. Elas não podem ser recalcadas, somente seus representantes. São sem conteúdo moral, sem conceito (acéfala), mas podem ser representadas pelo afeto e pela ideia. Assim, a pulsão adere a um objeto para descarregar, e sua descarga dar-se-á mais frequentemente pelo afeto.

Portanto, a nossa compreensão de tempo, ócio, trabalho etc. não é fruto da nossa reflexão particular, como supomos. Há uma dinâmica pulsional que serve de anteparo à reflexão. Essa dinâmica está estabelecida no sujeito, porém, atravessada e construída pela cultura de sua época. A mesma dinâmica vai moldá-lo em sua aparição no mundo. Já se nasce afetado por um discurso estabelecido, por uma moral de referência partilhada sobre o que é bom e correto, de acordo com o tempo (época) em que se está inserido. Isso é o que posiciona o sujeito afetivamente em detrimento do que está posto. Seus sentimentos serão, por assim dizer, temperados ao sabor das possibilidades que a sua relação pôde experimentar. Não falamos de um determinismo que nos coloca na posição de vítima passiva, mas que as referências morais a que o sujeito tem acesso na sua história de vida vão lhe proporcionar uma maneira tal de dar sentido a sua vida. Com isso, sustentamos que aquilo que leva o sujeito a realizar suas escolhas não está no ato de refletir para agir, e sim em dimensões pouco percebidas (inconscientes), que não estão na ordem do pensamento consciente e ainda assim posicionam para a ação. Segundo Figueiredo (1995, p. 24): "É bem verdade que a questão da escolha é em parte uma falsa questão". Ela é caracterizada no movimento de aproximação e afastamento frente ao objeto:

Na verdade, o que aparece estar ocorrendo nesses casos é a atração e a repulsão acionadas por afinidades e simpatias que dizem mais de ressonâncias afetivas do que de exercício racional. É como se, muito antes de escolher já tivéssemos sido escolhidos, como que fisgados por dimensões muito pouco visíveis e objetáveis (...) nas suas relações subterrâneas com aspectos também obscuros de nós mesmos. (Figueiredo, 1995, p. 24)

Nesse sentido, podemos inferir, a partir de Freud (1911/2004), que o fenômeno que nos afeta, em parte, não pode ser sustentado na consciência, pois é separado "da massa principal da atividade psíquica". Mesmo sendo isolado da consciência, ele nos governa. Esse estranho que nos governa é nomeado de inconsciente:

O inconsciente é uma fase inevitável que ocorre regularmente nos processos que constituem nossa atividade psíquica, e todo ato psíquico começa com um ato inconsciente e pode assim permanecer, ou pode desenvolver-se em direção à consciência, dependendo de encontrar ou não resistência. (Freud, 1911/2004, p. 87)

Assim, o não percebido é quem direciona nossas relações. Agimos muito mais por razões obscuras do que reflexivas. A dinâmica pulsional (inconsciente), anterior ao pensamento, cria um sistema de ressonâncias internas que busca operar no sujeito um apaziguamento nas suas ações, ainda que desconheça a sua razão. Mas mesmo que as razões evidenciem riscos reais, muitas vezes, não deixará de agir em prol do "princípio do prazer". Eis, então, a frase que representa essa trama: "siga seu coração!".

Em um tempo de grande desenvolvimento técnico-científico, alimentamos a fantasia de que agimos porque pensamos, sem percebermos que uma dinâmica inconsciente produz uma postura reflexiva que acomoda nossas ações. Então podemos dizer: "todas as nossas decisões são racionais, mas os motivos, não". Fica claro, pela leitura psicanalítica, que a nossa forma racionalizante de pensar não nos direciona. A lógica do afeto, na qual reina o inconsciente, sobrepõe-se ao pensamento consciente, sendo no inconsciente que o consumismo encontra um terreno fértil para confundir o sujeito no objeto.

Tudo na atualidade está mediado por um discurso do consumo, de ordem material ou intelectual. A ideia do "Bem" (filosofia grega) foi substituída pela ideia dos "Bens" (filosofia do consumo):

O capitalismo substituiu definitivamente a ideia de um bem supremo pelo que Lacan chama de a 'dimensão dos bens', instaurando a promessa permanentemente de que o sujeito poderá contornar o seu desejo, encontrando, no real (no mercado), o equivalente possível de seu bem. (Kehl, 2002, p. 51)

Não é difícil imaginar que exista uma dinâmica similar na aquisição de bens - materiais ou intelectuais. Segundo Amigo (2008, p. 95), "Bauman pode afirmar que o consumo é arquétipo de toda a nossa conduta e não se circunscreve só aos centros comerciais". A mesma necessidade de comprar um objeto (material) para satisfazer a falta do sujeito é encontrada naquele que necessita de conhecimento. O saber serve para tamponar a sua falta e o conhecimento lhe dá um lugar no suposto saber, com uma dupla finalidade, diferenciadas, mas interligadas: tanto para dar sentido e coerência de existência como para dar um lugar que se diferencie do outro, portanto, ser um tanto mais nobre, mais elevado, mais diferenciado, tal como os objetos (mercadorias) prometem aos sujeitos que dele se apropriam. O consumo também está aí. Não se trata só de uma mera aquisição material, mas há algo faltoso na constituição do sujeito que precisa ser buscado para cumprir um sentido de satisfação, seja dos "bens" ou do "bem". A herança da verdade platônica, manipulada por séculos no cristianismo e refinada na aurora da modernidade, foi absorvida de forma integral no Ocidente. O intuito dessa absorção era dar conta do vazio gerado pela queda das ideologias religiosas, políticas e econômicas da velha ordem. A ausência das verdades prontas e acabadas que sustentavam o mundo medieval teve que ser substituída por outras. O vazio foi ocupado pertinentemente pela razão moderna, que se justificaria frente à Revolução Industrial. A percepção do tempo, do trabalho e da verdade estabelece os fundamentos nos quais vai se construir nossa compreensão atual.

O discurso consumista se encontra dentro de uma compreensão ambígua, pois tanto informa quanto aliena, tanto esclarece quanto manipula, fascina e assusta. É inegável como os discursos se tornaram um instrumento de poder, e quem detém esse conhecimento (mídia atual) tem influenciado setores da economia, filosofia (verdade), política e cultura. Eis um dilema apresentado por Cashmore (1994, p. 7): "A sociedade se vê diante de uma força brutal que tenta impor valores éticos e padrões culturais de um grupo para todo o conjunto social".

 

A Propaganda, a Subjetividade e o Consumo

O fenômeno do consumismo (século XXI) subsiste mesmo nas cidades mais afastadas dos centros urbanos, o que se dá, sem sombra de dúvida, pelo advento da televisão. Combater a televisão com um discurso anticonsumista seria uma forma de discurso superficial e essa não é a questão a que nos propomos. É, antes, compreender os discursos e a forma como o sujeito é subjetivado pela linguagem do consumo, como ele pode escapar do automatismo consumista e se, frente ao que está posto, poderá haver experiências de ócio que signifiquem possibilidades criadoras dentro do eixo criativo de cada sujeito. Pensamos que essa seja uma questão viável para clarear os processos que inflam o sofrimento e o prazer do sujeito em tempos de consumo.

Os novos mecanismos de consumo inserem um modo de subjetivação específica no sujeito. A oferta de felicidade pelo produto adquirido se torna inalcançável. O que se quer não pode ser encontrado e sustentado pelo e no objeto. Na aquisição deste, vivencia-se uma experiência ambígua, de frustração e motivação para uma nova busca. O valor que se dá ao produto é provisório, pois não se baseia na satisfação das necessidades do indivíduo. Assim sendo, o objeto perde seu poder no encontro com o sujeito. Porém, a mercadoria (objeto) se encontra na ilusão das satisfações do desejo. Com isso, não existe um final, pois o desejo é a experiência daquilo que falta. O mecanismo motivador do consumismo é este: a experiência é apresentada colada no objeto, isto é, cada nova experiência está ligada a um novo objeto, daí a grande produção de novas mercadorias para suprir a demanda de novas experiências. De acordo com Amigo (2008, p. 95): "A vontade de viver experiências inéditas ou mais intensas não pode alcançar nunca um estado de satisfação definitiva, porque, para mantê-la em movimento, as opções de consumo precisam somente ser novas". O tempo do consumo traz em si uma lógica: viver o desejo de novidade é a versão mais nova do consumismo.

Queremos apresentar, ainda que de forma panorâmica, como a imagem e a escrita (propaganda) participaram e participam na construção da experiência do sujeito na atualidade. Tendo como ponto de partida a consolidação da escrita de massa no século XVIII (Messias, 2011), podemos pensar como essa recém-criada mídia (propaganda escrita/jornal) influenciou toda uma cultura e como os pensamentos foram conduzidos a essa nova experiência de vida. Em um documentário intitulado Ética: A arte do viver, o ensaísta Wisnik (2005) diz: "O fenômeno da literatura de massa e o jornalismo significou algo como a introdução da máquina a vapor na indústria". De fato, a criação do sistema de imprensa trouxe novos ingredientes para compor os aspectos imaginários de compreensão da vida.

A palavra escrita ganha, a partir de então, uma proliferação popular que vai tocar a subjetividade coletiva de quem escreve e de quem lê. Esse fenômeno da escrita de massa operou nas sociedades novecentistas (inglesa, francesa, alemã e italiana) uma transformação curiosa, pois surgiu com a missão de reportar fatos da realidade, portanto, de revelar e mostrar a verdade. Essa escrita se inseriu ao cotidiano das pessoas por meio de uma vasta literatura: folhetins, livros e, sobretudo, o jornal na forma como conhecemos hoje (com assinantes e espaços de divulgação pagos). Ainda segundo Wisnik (2005), o que não se percebia e de modo geral ainda não se percebe é: quando um fato é retirado do seu contexto e deslocado para outro (a folha de jornal), esse recorte desfaz o contexto primordial e refaz um novo cenário, em meio ao qual o relato vai acontecer. O ensaísta segue afirmando: "(...) mesmo que não seja incluído nenhum dado imaginário, inventado, mesmo que o jornalista não invente nada, o simples recorte já tem um efeito de transformação, que é de certo modo comparado ao da literatura".

O que está se dizendo é que o jornalismo, em certo sentido, é também uma forma de ficção, como a literatura. Os métodos seguem caminhos diferenciados, mas os conceitos se misturam, no sentido de que ambos tentam uma representação da realidade.

Esse deslocamento - o fato retirado do seu contexto e colado em papel (foto e história) - via de regra, opera em quem lê um efeito de irrefutabilidade. É como se o lido fosse mais real do que o fato, e isso só acontece porque a palavra escrita ganhou no imaginário social o peso da verdade, parecendo-nos, frequentemente, uma forma acabada da realidade, dispensando uma postura crítica sobre o caso anunciado. Wisnik (2005) comenta que uma página escrita nos dá uma impressão de verdade, por um puro movimento de boa fé no que está impresso, formatado e divulgado. Mas vale pontuar que aquilo que se apresenta é sempre uma construção ideária da realidade, muitas vezes alterando completamente o significado do acontecido. Essa é uma transformação via subjetividade que jamais vai mostrar o fato como é, pois, por condições muito claras, não é possível alcançarmos a realidade de um outro, tendo em vista que não alcançamos sequer a nossa realidade com facilidade, se é que é possível dizê-la como é. Explicamos: até mesmo um sonho não será contado da forma que se sonhou, pois o que foi visto e sentido nele não corresponderá ao discurso contado pelo sonhador, pois já passou pela subjetividade e ganhou outros destaques e ênfases. Portanto, podemos entender o seguinte: um sonho sonhado não é um sonho contado. O que estamos propondo é que cada leitor, que também é um consumidor, tenha o direito de poder fazer a sua interpretação sem estar colado ao descrito, encarregando-se da sua versão, com os seus ingredientes de imaginação.

Essa ilusão de acreditar que toda página escrita é verdadeira só porque é verossímil é difícil de ser retirada. Eis o fenômeno que faz da propaganda um instrumento de poder, pois trabalha em cima dessa ilusão do sujeito. Não propomos dizer que todos os males são produzidos pela publicidade, mas precisamos considerar que ela tem aproveitado as oportunidades para se vender a qualquer preço. O psicanalista Jurandir Costa, ao comentar as questões da sociedade do consumo, argumentou, em uma palestra na TV Cultura, que os hábitos consumistas não são produzidos por uma mídia unilateralmente, como se a sociedade fosse vítima disso:

(...) por mais que exista a versão que quem quebrou (inventou, grifo nosso) isso foi a versão do consumismo capitalista, a publicidade, os meios de comunicação de massas a serviço dos interesses econômicos (...) eu acho que isso só pegou carona, (...) as pessoas que estão querendo vender produtos, elas sabem que sensibiliza, montam em cima e fazem. (Costa, 2008)

Segundo ele, as condições históricas, fomentadas pelo movimento do Romantismo, produziram na sociedade estilos de vida individualizados, que projetaram na mercadoria a sua autorrealização e autenticidade, próprias da contracultura socialista, concluindo que a publicidade só pegou carona no movimento histórico que se estabeleceu nessas relações de sentido socioeconômico e cultural. Portanto, as questões consumistas são da ordem de um movimento muito maior, enraizado na nossa subjetividade por um processo histórico que possibilitou as características que hoje vivemos.

Se a escrita ganhou um estatuto de verdade pelas razões subjetivas já apresentadas, a imagem tem o poder de se apresentar como verdade, já que se manifesta em uma experiência primordial da relação do sujeito com a realidade, muito anterior à palavra e ao pensamento. Kehl (2011) nos fornece algumas reflexões essenciais para elaborarmos o conceito de imagem e compreendermos como ela participa na elaboração da subjetividade. Nessa direção, toda imagem tem, em sua concepção, uma forma de violência: "Já que todo signo ocupa o lugar de uma coisa ausente, a imagem é o que mais se parece com a presença da coisa" (Kehl, 2011, p. 1). Violência no sentido de se apresentar como algo já dado, feito e definido, sem passar pelo crivo de uma reflexão crítica, que talvez possibilitasse uma experiência diferente do sugerido. Sem uma sensibilidade mais apurada, aceitamos como verdade pronta e acabada o que está na superfície das coisas, como se não pudéssemos duvidar. A frase do jargão propagandístico exemplifica isso: "uma imagem vale mais que mil palavras". Isso sendo aceito de boa fé pode equivaler a uma redução de tudo aquilo que é complexo, diverso e ambíguo a um plano estanque e classificatório. Em se tratando da imagem do sujeito e de como o discurso consumista a apresenta, poderá haver um retrocesso, se é que já não ocorre. Tendo em vista que o sujeito (antes da modernidade) sempre foi entendido como diluído na coletividade e a sua individualidade só ganhou traços de interioridade privatizada na modernidade, tal individualidade tem sofrido constantes ataques para que os aspectos que a diferencie sejam cada vez mais achatados e homogeneizados. O sujeito, na atualidade, embora complexo, diverso e ambíguo, é caricaturado, como se todos pudessem ser representados pelas mesmas características. A questão que nos parece notória é o fato de a imagem representar, na fantasia do sujeito, a expressão da verdade.

Pensando a partir da psicanálise, segundo Freud, citado por Kehl (2011, p. 1): "O imaginário (...) é o campo das 'primeiras e verdadeiras relações de objeto'. Forma-se antes que o contato dos humanos com o real seja mediado pela palavra". É nesse sentido que o sujeito, desde o seu nascimento, tem a infante e difícil experiência com o real. Ele encontra nas representações imaginárias uma forma de lidar com algo que até então não tem ligação com a palavra. A imagem, nesse sentido, é anterior ao pensamento. Eis a razão pela qual a subjetividade encontra-se dispensada de elaborar qualquer pensamento que demande um gasto de energia psíquica, dado ao princípio econômico. A imagem, portanto, torna-se proporcionadora de uma fonte de compreensão apaziguadora, como se ela "apresentasse a plenitude do real dispensada tanto de seu caráter de enigma quanto de seu efeito traumático" (Kehl, 2011, p. 1). À medida que tais estímulos mediados pela imagem se incorporam na vida cotidiana, corre-se um risco: o diferente do proposto encerrado na imagem poderá se tornar aberração, cômico, feio ou simplesmente não verdadeiro - um padrão poderá ser tornado como única referência. Outro risco é que a ideia do discurso da televisão aponte ininterruptamente a um "universo do consumo". O consumismo habita implacavelmente a sua programação, pois tudo o que se vende está voltado para o prazer, e ninguém quer o desprazer. Portanto, esse discurso cuja ênfase é facilitar a vida e dar prazer acaba por colocar uma armadilha que aprisiona observadores menos atentos.

 

Considerações Finais

Finalizamos esta investigação discutindo alguns aspectos da propaganda em sua relação com o consumo, particularmente, sua face escrita e imagética. Ainda precisaríamos nos debruçar sobre outros aportes para termos desdobramentos maiores, como é o caso da música e da fala na propaganda.

As temáticas aqui abordadas serviram a contento para situarmos as questões que levantamos neste trabalho. No final deste artigo, podemos apontar alguns resultados. A frase que insiste nas relações de consumismo é: "eu preciso". Tomando como referência a visão de sujeito da psicanálise, podemos afirmar que o eu já é uma elaboração racional, portanto, uma parte intrínseca do sujeito, embora ilusória. Ele é constituído em um processo dinâmico das relações edípicas. Nessas relações, o sujeito na composição do eu será posicionado frente ao seu objeto de amor, que, na vida infantil, em condições razoáveis, preenche uma função cuidadosa de amparo, satisfação e afeto. A criança vivencia uma fantasia baseada na necessidade de dependência para existir, compreendendo-se como sendo o centro do amor dos pais (cuidadores), mas, ao crescer, percebe que não há como se sustentar nesse suposto lugar. O sujeito frente à realidade exige estratégias para encobrir a falta. Substituir o que imaginariamente se perdeu será a tarefa do desejo. A experiência dessa trama paternal na infância lançará uma marca profunda na subjetividade e, na vida adulta, tentará se resgatar simbolicamente a suposta relação de completude da infância.

Podemos, então, dizer: a necessidade de encontrar o objeto do desejo primordial que traga de volta ao centro, à completude, é uma questão muito mais existencial do que comercial. Explicamos: o consumismo é um sintoma, e não a causa. Sobre a propaganda, tão superficialmente criticada e que leva toda a responsabilidade pelo consumismo, numa postura mais problematizadora, podemos dela dizer: ela ocupa o mesmo lugar do sujeito - o lugar do desamparo, buscando acreditar na existência do objeto que o completará satisfatoriamente. A mídia consumista se aproveita da forma como o sujeito se constitui em relação ao objeto. O que sustenta a busca do objeto na atualidade é uma estrutura subjetiva (da falta) na qual as relações sócio-históricas nos transformaram. Portanto, não há um culpado nem uma causa, como gostaríamos de apontar, pois a vida é complexa, ambígua, e suas tramas se enlaçam para além do visível (imagem) e do falado (discurso), e subjazem aos jogos de forças que a nossa razão não alcança. Reconhecer as questões do existir poderá munir o sujeito de uma capacidade para lidar com a angústia.

O que podemos afirmar sobre a subjetivação produzida pelo discurso do consumo? Podemos pensar sobre o consumismo não a partir do certo ou errado, do bom ou ruim, do necessário ou descartável, pois seria superficial essa lógica dicotômica, mas contemplando as dimensões subjetivas que estão atravessadas pela dinâmica cultural e pelas práticas de saberes e poderes. Portanto, faz parte da existência humana o consumo, mas há de se considerar que a centralização do consumo na trama das relações sociais superestima o valor simbólico do objeto para o indivíduo. Mercadorias se confundem com pessoas e vice-versa. A tentativa que tem obtido êxito para a propaganda é a de colar o objeto no sujeito, a fim de dar características humanas ao que está sendo vendido. A propaganda exibe carros com inteligência e com desejo em determinado combustível e, não raro, nomeia-se o automóvel, na construção de uma relação com ele. Remédios ganham nomes humanos ("chama a Neusa que a dor desaparece") e determinados objetos são mais estimados que pessoas. Apontamos isso não por demérito, mas para uma compreensão da lógica simbólica.

Portanto, há uma experiência pouco construtiva ao desenvolvimento humano. Aqui, há um ponto de encontro com a psicanálise. Esta diz que o triunfo de formulações hedonistas dificulta o desenvolvimento humano. O sujeito hedonista reduz a vida ao plano de experiências orgânicas, isto é, ao princípio do prazer. O hedonismo é um circuito de satisfações que são representadas no mercado como um saber viver, mas não passam de falsas representações.

Contudo, não se trata de evitarmos o que o tempo do consumo nos demanda, mas de criarmos sentidos de autonomia frente ao que está posto no mercado e sermos um tanto mais problematizadores, para não cairmos no automatismo das pulsões. Os atos criadores, embora sejam minimizados na lógica do consumismo de massa, podem escapar aos laços do mercado ou ressignificá-los, possibilitando uma nova postura. Daí a possibilidade de experiência do ócio criativo.

Psicanálise e ócio, portanto, são possibilidades subversivas ao que está posto e se constituem como alternativas construtivas para o século XXI. Século em que a ciência ainda ocupa o lugar prioritário de verdade e as relações humanas são ditadas pela lógica do trabalho e do consumo. Mas a capacidade da linguagem é a de produzir sentidos, visões de mundo, portanto, a psicanálise contribui com o seu saber no intuito de criar um espaço no qual o sujeito possa falar e se reinventar. Ócio é uma atividade inerente ao ser humano e lhe permite escapar criativamente do que é ordinário e cotidiano, fazendo-se autêntico dentro de normatizações. Assim, a conjunção desses saberes oportuniza questões fundamentais para se pensar a transformação da vida na sociedade contemporânea.

 

Referências

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Recebido em 10 de dezembro de 2012
Aceito em 19 de outubro de 2013
Revisado em 11 de dezembro de 2013

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