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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza Dec. 2013

 

ARTIGOS

 

O analista gestor

 

The manager analyst

 

El gestor analista

 

Le gestionnaire d'analyste

 

 

Mônica Eulália da Silva

Faculdade de Políticas Públicas, Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. E-mail: monicaesilva@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Esta pesquisa investiga em que medida a prática de um analista de orientação lacaniana que ocupa o lugar de gestor no campo público da saúde mental implica ou não em renunciar à psicanálise. Um dos objetivos deste estudo foi contribuir para estabelecer a relação possível entre a prática da psicanálise aplicada de orientação lacaniana e o campo das políticas públicas de saúde. Trata-se de um tema muito pouco estudado no campo lacaniano, apesar de ser cada vez maior o número de psicanalistas que ocupam cargos de gestores nos campos da saúde mental, da educação, da assistência social e dos meios jurídicos. O método utilizado para subsidiar tal estudo foi o da Teoria dos Discursos, formulada por Jacques Lacan em seu "Seminário 17 - O avesso da psicanálise". A partir da articulação entre o discurso do mestre, representando o campo da política, e o discurso do analista, como sendo a própria prática clínica, enfatizou-se a relação entre os aspectos referentes ao lugar e às funções desempenhadas no campo da gestão pública. Essas reflexões serviram de base para a formalização do conceito de "analista gestor".

Palavras-chave: psicanálise; gestão; discurso; analista; política.


ABSTRACT

This research study to what extent the practice of a Lacanian analyst who occupies the place of a manager in the field of public mental health implies or not the dismissal of psychoanalysis. One of the goals of this study was to contribute to the establishment of a possible relationship between the practice of applied Lacanian oriented psychoanalysis and the field of public health policies. This is a subject little studied in the Lacanian field, despite an increasing number of psychoanalysts occupying management positions in the fields of mental health, education, social care and legal resources. The method used as a basis for this study was the Theory of Speeches, elaborated by Jacques Lacan in his "Seminar 17, The Reversal of Psychoanalysis". Departing from the relationship between the master's discourse, representing the field of politics, and the analyst's discourse, as being his own clinical practice, an emphasis was put on the relationship between the aspects relating to the location and functions performed in the field of public management. These refections formed the basis for the formalization of the concept of "manager analyst".

Keywords: psychoanalysis; management; speech; analyst; policy.


RESUMEN

Investigar em qué medida la práctica de um analista de orientación lacaniana que toma el lugar de um gestor publico em el campo de la salud mental significa dejar de aplicar o no el pasicoanálisi.. Uno de los propósitos de este estúdio es contribuir a estabelecer la posible relación entre la práctica del psiconalisis aplicado del orientación lacaniana y el campo de las políticcas de salud pública. Es um tema poço estudiado en el campo lacaniano, aunque um número creciente de psicioanlistas que ocupan puestos de gestion em los campos de la salud mental, educación, asistencia social y los recursos legales. El método utilizado para subsidiar este estúdio fue la teoria de los discursos pronunciados por Jacques Lacan em su "Seminario 17, lo contrario del psicoanálisis". de la relación entre el discurso del maestro, lo que representa El campo de la política y el discurso del analista, como su propia práctica clínica, centrándose em la relación entre el lugar y los aspectos relacionados com las funciones desempeñadas en el campo de la administración pública. Estas ideas sirvieron de base para la formalización del concepto de "analista gestor".

Palabras-clave: psicoanálisis; gestión; discurso; analista; política.


RÉSUMÉ

Afin d'etudier dans quelle mesure la pratique d'um conseil analyste lacanien qui prend la place dês gestionnaires publics dans le domaine de la santé mentale signifie de renoncer ou de ne pás la psychanalyse. Un but de cette étude était de contribuer à établir la reation possible entre la pratique de la psycanalyse lacanienne orientation appliquée et Le champdes politiques de santé publique. C'est um sujet peu étudié dans le champ lacanien, bien qu'un nombre croissant de psychanalystes occupant des postes de gestion dans les domains de la santé mentale, l'éducation, lês soins sociaux et de ressources juridiques. La méthode utilisée pour subventionner ette étude était la théorie dês discours prononcés par Jacques Lacan dans son Séminaire 17, à l'opposé de la psychanalyse. De la relation entre le discours du maître, représentant le champ de la politique et le discours de l'analyste, comme as propre pratique clinique, em se concentrant sur la relation entre le lieu et lês aspects liés aux fonctions accomplies dans le domaine de l'administration publique. Ces idées ont constitué la base pour la formalisation de la notion de gestionnaire de l'analyste.

Mots-clés: psychanalyse; la gestion; discours; analyste; politiques.


 

 

Introdução

A primeira referência ao termo "política" que encontramos em Lacan (1992) aponta que ele equivale ao conceito de discurso do mestre, sendo, portanto, o avesso do discurso do analista. O termo "discurso" surge em sua obra como sendo aquilo que estabelece laço social entre os seres de linguagem. Tais conceitos foram formalizados na teoria lacaniana entre os anos de 1969 e 1970, em seu Seminário 17 - O avesso da Psicanálise, e compõem com mais outros dois discursos, o da universidade e o da histérica, a Teoria dos Discursos de Lacan. Nesse contexto teórico, política e psicanálise se opõem. A política é associada ao discurso da universalização dos homens, produzindo, assim, um saber totalizante que está a cargo da maestria, do domínio do outro, ou seja, o discurso do mestre. Do outro lado, a análise põe em movimento um discurso que visa extrair o saber próprio do sujeito, aquilo que o torna único, retirando-o da série em que o campo da política aponta todos como iguais.

O conceito de política nos remete a um campo complexo que articula relações de poder e dominação, bem como pensamentos dualistas que levam em conta formas de organização social nas quais autonomia e protagonismo oscilam entre submissão e assujeitamento. Para Bobbio, Matteuicci e Pasquino (2010), o termo "política" sofreu importantes mudanças - desde seu conceito clássico encontrado na obra de Aristóteles, Política, em que o termo se refere à arte ou ciência de governar, até o período moderno, em que a política passou a se referir às atividades, ou ao conjunto delas, que possuem como referência a pólis, ou seja, o Estado.

Dessa atividade a pólis é, por vezes, o sujeito, quando referidos à esfera da política atos como ordenar ou proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um determinado território (...). (Bobbio et al., 2010, p. 954)

No que se refere ao conceito de políticas sociais, Demo (1996) as define como direitos garantidos aos indivíduos, com a finalidade de reduzirem desigualdades sociais por meio de ações equalizadoras, preventivas, emancipatórias e redistributivas. As relações de poder que as engendram convocam a presença de um agente capaz de operar certos aspectos de dominação. Assim, levando em conta unicamente o contexto que tal estudo pretende abordar, destaca-se a figura do gestor como o agente que corporifica o discurso da política, ou seja, o discurso do mestre.

Da forma como Lacan (1997) a definiu, a psicanálise não é uma política, e sim uma ética. Não uma ética moral da antiguidade grega, que se insere em uma discussão filosófica clássica; tampouco uma ética humanitária envolvida na defesa dos direitos humanos do homem. A ética da psicanálise é a do desejo do sujeito do inconsciente. Lacan criticou duramente os ideais de universalização presentes no campo da política ao apontar para o componente segregativo presente neles.

Só conheço uma única origem da fraternidade - falo da humana, sempre o húmus-, é a segregação. Estamos evidentemente numa época em que a segregação, ergh! Não há mais segregação em lugar nenhum, é inaudito quando se lê os jornais. Simplesmente, na sociedade - não quero chamá-la de humana porque reservo meus termos, presto atenção ao que digo, constato que não sou um homem de esquerda - na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação, e a fraternidade em primeiro lugar. (Lacan, 1992, p. 107)

Ao identificar-se com o ideal da unicidade, a política massifica os indivíduos, localizando a dimensão da subjetividade em um segundo plano. Um dos maiores e mais poderosos instrumentos utilizados pela política é o mecanismo da idealização. Esse conceito também é caro para a psicanálise no que se refere às teorias de constituição do sujeito. No entanto, esta "(...) não lida com o homem em massa, se assim posso dizer, mas com um por um. Ela o retira da cena pública, o submete a uma experiência singular, que permanece na confidência dos dois parceiros" (Miller, 2004, p. 8).

A presença da psicanálise subverte a rigidez do campo das universalidades, propondo uma maneira de conceber a subjetividade como aquilo que singulariza cada sujeito em meio ao conjunto de ações que considera todos como iguais.

Nos últimos anos, a chamada "psicanálise aplicada" tem se apresentado a fim de buscar respostas para as demandas sociais vigentes, inclusive no campo da política, das quais não deve se esquivar.

Se sustentamos que a prática lacaniana se diferencia de todas essas terapêuticas, temos de demonstrá-lo. Enfrentamos um duplo desafio: de um lado, encontrar os modos de 'rivalizar da boa maneira com a psicoterapia', cujo terreno é a psicanálise aplicada à terapêutica; do outro, esse terreno traz consigo um perigo de desvio: fazer mau uso da psicanálise aplicada, de tal modo que ela se transforme em uma psicoterapia. (Laia, 2003a, p. 7)

Em Psicoanálisis puro, psicoanálisis aplicado y psicoterapia, Miller (2001) diz que a psicanálise pura, ou seja, aquela que se dá entre o analista e o analisante, e a psicanálise aplicada, que intervém nos diversos temas e instituições, não se opõem, pois ambas são psicanálise. Brodsky (2003) ressalta que, "(...) em sentido estrito, para Lacan, psicanálise e psicanálise aplicada são sinônimos" (Brodsky, 2003, p. 21). Na prática analítica, a distinção que se faz necessária diz respeito apenas à diferença entre psicanálise e psicoterapia.

Enquanto de um lado "a psicanálise modifica o mapa, o território dos saberes" (Laurent, 2000, p. 51), de outro, segundo Di Ciaccia (1996), o impacto da teoria psicanalítica no mundo contemporâneo é superior ao dos próprios analistas. Isso porque, segundo o autor, até o período que compreendia a segunda metade do século XX, os psicanalistas eram questionados e davam "(...) a impressão de se esquivarem diante das escolhas éticas e políticas do mundo contemporâneo" (Di Ciaccia, 1996, p. 28). Felizmente, muito tem se modificado nesse cenário. Os psicanalistas têm ocupado diversos cargos no campo das políticas públicas, cujas funções principais são: garantir, formular e executar ações para todos. Nesse sentido, a questão colocada neste estudo trata também da formalização de um uso possível da psicanálise nos dias atuais.

Não é a psicanálise enquanto corpo teórico que é questionada em sua aplicabilidade no mundo contemporâneo, e sim a prática dos analistas. Dessa forma, "há que formar analistas que possam dedicar-se a este objetivo; precisamente, não oferecer a cura analítica a todos, mas poder instalar-se em lugar de 'uso possível' para todos" (Laurent, 2000, p. 58). "Este objeto-psicanalista é, doravante, disponível - disponível no mercado como se diz - e se presta a usos muito distintos daquele que fora concebido sob o termo de psicanálise pura" (Miller, 2001). No entanto, é preciso ressaltar que os usos possíveis da psicanálise devem estar, segundo a orientação lacaniana, sustentados por princípios.

A prática lacaniana é, por princípio, sem standard, ou seja, recusa-se a ser orientada por um conjunto padronizado de ações. Mas isso não significa que se mantém à deriva das características de seu tempo. A recusa ao standard foi apontada por Lacan (1998) em trabalhos como A direção da cura e os princípios de seu poder, Ato de fundação (Lacan, 2003b), Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (Lacan, 2003a) e outros. Trata-se, então, de uma prática que se guia pelo inusitado do caso a caso, pelos modos singulares com que cada sujeito vai articulando soluções e ocupando lugares no campo do Outro. Uma clínica não standard, segundo Laurent (2000), é uma clínica consumidora de novas ficções jurídicas, formalizadora e inventiva. É uma clínica que inventa dispositivos clínicos de intervenções em qualquer lugar onde seja praticada, desde que, para isso, consiga sustentar a subjetividade da palavra do sujeito em meio às ações universalizadas.

Diante disso, é possível apontar que os praticantes da psicanálise de orientação lacaniana devem estar direcionados para uma mudança de foco, pois, "(...) hoje, já não se questiona mais os fundamentos da teoria analítica, mas os fundamentos éticos do ser psicanalista são questionados" (Di Ciaccia, 1996, p. 28). E é por isso a afirmação de Brodsky que, sob essa perspectiva, "(...) nesses últimos anos, temos nos dedicado a renovar o conceito de praticante" (Brodsky, 2003, p. 21), ou seja, da prática do analista lacaniano.

O contexto de atuação que esse analista encontra no século XXI aponta, segundo Laurent (2000), para uma exigência de eficiência. Essa exigência traz como consequência uma questão crucial para a psicanálise, a saber: como se nortear através da eficácia se o saber do analista consiste em um saber sobre aquilo que falha?

A ideia imaginária do todo tal como é dada pelo corpo - como baseada na boa forma de satisfação, naquilo que, indo aos extremos, faz esfera -, foi sempre utilizada na política, pelo partido da pregação política. O que há de mais belo, mas também de menos aberto? E o que se parece mais com o fechamento da satisfação? (Lacan, 1992, p. 29)

É preciso reconhecer que, se a criação freudiana sobreviveu à contemporaneidade, isso nos aponta para a possibilidade de que também ela, a psicanálise, possui uma função social. Negar essa possibilidade é inscrever a psicanálise numa prática vazia e alienada. Mas isso não é o que pensa Laurent. Para ele, a psicanálise é "(...) uma prática eficaz e pode sustentar esta posição no século XXI - porque é verdade que no século XXI se não é eficaz não se tem nenhum lugar" (Laurent, 2000, p. 52).

Brodsky (2003) contribui com essa discussão dos usos possíveis da psicanálise fazendo uma reflexão sobre o que define se alguém é ou não um analista. A autora lança a seguinte pergunta: "Um analista é questão de função ou é questão de ser?" (Brodsky, 2003, p. 24). É preciso definir porque só se sabe o que é psicanálise se o agente do discurso em questão é um psicanalista.

Se considerarmos que o psicanalista é uma questão de ser, estaremos afirmando que ele não depende de estar em exercício, que não é uma variável de um discurso, e sim uma constante. Mas se considerarmos que o psicanalista é uma questão de função, então teremos de afirmar que ele depende de uma relação com o lugar em que se encontra. No sentido matemático, função é uma relação existente entre dois termos de forma que a alteração em um significa mudança no outro. Assim, podemos dizer que alguém é psicanalista quando funciona como analista, ou seja, quando ocupa o lugar de analista. No entanto, não se trata de um lugar geográfico, mas de um lugar discursivo. Lacan parece concordar com essa ideia ao refletir sobre o que muda quando ele próprio é colocado no lugar de analista.

Sou um pequeno analista, uma pedra rejeitada, lançada de antemão, mesmo se me torno, em minhas análises, a pedra angular. Desde que me levanto de minha poltrona, tenho o direito de ir passear. A coisa se inverte, a pedra rejeitada passa a ser a pedra angular. Pode ser também ao inverso, a pedra angular vai dar um passeio. (Lacan, 1992, p. 102)

Avançando um pouco mais nessa discussão, percebemos também que o analista pode ocupar em outros discursos outros lugares que não exclusivamente o de objeto causa de desejo. A função a ser desempenhada depende do lugar discursivo ocupado, e "(...) se essa maneira de pensar é seguida, um psicanalista não cumpre em um hospital a mesma função que em seu consultório, ainda que, no transcurso de meia hora faça exatamente o mesmo: escutar, interpretar" (Brodsky, 2003, p. 25). Considerando que, nesse caso, a função se aplica ao lugar, esses dois termos, função e lugar, estão aqui dependentes um do outro. Portanto, a função a ser desempenhada no lugar da gestão não é a mesma convocada no lugar da análise. Esse modo de pensar nos remete à seguinte questão: é possível sair da posição de analista sem deixar de sê-lo?

 

Sair da Posição de Analista sem Deixar de Sê-lo

No Seminário 17 - O avesso da psicanálise, Lacan (1992) estabeleceu sua Teoria dos Discursos. Trata-se, na verdade, de quatro maneiras de conceber a construção do laço social.

Lacan aprofunda nesta ideia e define o conceito de discurso como vínculo social, isto é, como uma maneira particular de ordenar os elementos em jogo (sociais, políticos, culturais, individuais) que permite assim fundar a realidade (construção social da realidade) e outorgar um lugar ao sujeito/indivíduo nessa realidade criada. (...) O discurso é, pois, um marco regulador que permite a um sujeito inserir-se numa realidade, é seu vínculo. (Ubieto, 2003, p. 85)

Os discursos são: o discurso do analista, o discurso do mestre, o discurso da universidade e o discurso da histérica. Cada discurso funciona a partir de quatro lugares fixos: o do agente, o do outro, o da produção e o da verdade. Nesses lugares, quatro elementos se alternam num movimento giratório (sentido horário) e a cada um quarto de volta dão origem a um novo discurso. São eles: S1 (significante mestre), S2 (saber), a (objeto de gozo) e $ (sujeito) - "(...) essas funções próprias do discurso podem encontrar diferentes posições. É o que define sua rotação nesses quatro lugares (...)" (Lacan, 1992, p 87).

Tendo em vista o objetivo deste estudo, faz-se necessário destacar o lugar de agente nos quatro discursos lacanianos, pois é esse o lugar que aqui está em causa. Nesse sentido, observamos que em qualquer dos quatro discursos tal lugar é sempre um lugar dominante, de ordem, de mandamento. No caso do discurso do mestre, esse lugar é ocupado pela lei, pela dominação, pelo S1. O mestre dispõe do outro enquanto escravo, mas apenas de seu corpo, de seu trabalho, e não do gozo produzido. A verdadeira estrutura do discurso do mestre aponta que o saber está do lado do escravo - é este quem tem o saber, não o mestre. O saber no lugar do outro é meio de gozo, pois é o escravo quem o produz. Na linha inferior à direita está a produção do discurso, que é o gozo, e à esquerda, sua verdade. A verdade desse discurso é algo que o mestre não quer saber, o que faz Lacan (1992) nomeá-lo de mestre descabeceado.

O discurso do mestre esconde, assim, o seu segredo: o mestre está castrado. É esse segredo que o discurso histérico desmascara. Ao apresentar-se como idêntico ao seu próprio significante, o discurso do mestre instaura o campo de uma suposta palavra também idêntica a si mesma. Hasteia a verdade de sua metalinguagem, sabe o verdadeiro sobre o verdadeiro e tenta fazer desaparecer a barra que cruza o Outro. (Rabinovich, 2006, p. 9)

Quando esse mesmo lugar dominante é ocupado pelo analista, este o faz rechaçando o discurso de dominação:

(...) a referência de um discurso é aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar. (...). É exatamente esta a dificuldade daquele que tento aproximar tanto quanto posso do discurso do analista - ele deve se encontrar no pólo oposto a toda vontade, pelo menos confessada, de dominar. (Lacan, 1992, p. 65 -66)

No discurso da universidade, esse lugar é ocupado pelo saber, o S2. Mas o S1 pode ocupar outros lugares que não apenas o do agente no discurso. No discurso do analista, o S1 é a produção do discurso. Nesse caso, ele é o produto da operação que o analista desencadeia ao interrogar o sujeito, fazendo surgir "(...) o significante que dará ao sujeito a chave da sua divisão" (Rabinovich, 2006, p. 13). No discurso da universidade, o S1 está no lugar da verdade - da verdade da ciência, diz Lacan (1992). Trata-se de um mandamento de continuar a saber, sempre mais e mais. No discurso da histérica, o S1:

(...) é o outro ao qual seu discurso se dirige, aquilo que dele espera são significantes; sua esperança, sempre frustrada é que ele lhe descubra o significante chave de seu destino. Esta busca de significantes nos desvela a própria origem da sugestionabilidade histérica: buscando o significante mestre (S1) de seu destino a histérica se coloca nas mãos do mestre a quem confunde com esse significante. (Rabinovich, 2006, p. 9)

Aqui, ocupar o lugar do S1 também significa colocar-se enquanto um outro, interrogado como mestre e ao mesmo tempo destituído enquanto tal.

Dessa forma, não se trata, necessariamente, de renunciar ao S1 enquanto mandamento, e sim, como aponta Laia (2003a), de fazer diferentes usos dele, desde que esteja em questão um saber-fazer que implique em ser um S1 sem se confundir com o regulamento ou com o standard. Isso tem relação com um saber se fazer útil.

O que é o utilitarismo? É saber que os significantes não passam de semblantes, e que se trata de dispô-los, de articulá-los em dispositivos jurídicos, políticos, sociais, econômicos, de modo a maximizar o prazer e a minimizar o sofrimento. O prazer e o sofrimento não são semblantes, é o real, e se trata de operar sobre isso buscando a melhor montagem significante. (Miller, 2004, p. 18)

É preciso descompletar o discurso da política, ou melhor, histericizar o discurso do mestre, como diz Lacan (1992). Ao lançar o mestre à sua verdade, o analista o institui instalando uma barra que o divide. É assim que o discurso da histérica surge e esse é um dos usos possíveis que o analista gestor pode fazer desses significantes, ou seja, pôr em movimento um discurso que originalmente tende à estagnação.

Sair da posição de analista sem deixar de sê-lo é a questão aqui colocada. Numa situação de análise, o analista ocupa o lugar de objeto. Como agente do discurso, ele está sempre em posição de perda, contudo, mesmo na experiência clínica, pode ser necessário operar a partir de um lugar discursivo distinto do discurso do analista, como o da histérica, da universidade ou do mestre. Isso depende do momento em que o sujeito está na análise e da estratégia do analista.

Dessa forma, essa mudança de lugares e de funções discursivas pode acontecer em qualquer situação nas quais existam seres falantes. Lembremos que, para Lacan (1992), discurso é o vínculo social que se estabelece entre os seres falantes. É claro que, numa experiência clínica, o analista está como agente do próprio discurso, mas, aponta Brodsky (2003), uma função se modifica dependendo do lugar discursivo que ocupa. Dessa forma, um analista que dá aulas tem como função produzir e transmitir conhecimento. Ele não está ali para analisar, proceder a uma escuta clínica ou interpretar ninguém. Até porque tudo isso dependeria de uma situação transferencial. Ao dar aulas, ele está localizado em um campo discursivo no qual o objetivo é a produção constante de conhecimento universal. Mas isso não significa que não possa operar com um saber-fazer próprio da psicanálise.

O lugar de gestor não convoca à singularidade da clínica, tendo em vista que as ações a serem desempenhadas devem ter impacto na vida do cidadão, e não necessariamente para o sujeito, pois as políticas públicas são para todos. Nesses termos, o gestor opera com a ideia da unicidade que localiza os seres humanos em uma mesma categoria universal. Temas universalistas, como direitos humanos, estão nesse mesmo patamar, em que ideais éticos são usados para sustentarem ações, pensamentos e ideias. Um gestor público não pode se furtar a isso. Mas a questão é: como ocupar esse lugar sem renunciar à singularidade que a psicanálise propõe?

Nesse sentido, é conveniente estarmos advertidos: "(...) situar-se em uma posição de direção significa almejar que, do lugar do universal sustentado por ela, se permaneça vigilante para não se assenhorar do campo de aplicação da regra" (Belaga, 2003, p. 13). Brodsky (2003) nos lembra que todo agente de um discurso é um semblat, ou seja, é um falso agente que trabalha por representação. Um agente é apenas uma função. Um discurso não é um instrumento aprisionador; há algo da ordem da estrutura que lhe escapa. Não se pode, por exemplo, passar do discurso do mestre diretamente ao discurso do analista - é preciso histericizá-lo.

Ser um analista gestor significa, sobretudo, construir relações diversas com o significante da maestria e com o lugar dominante do discurso, pois "há mestres bons, há mestres maus, há mestres ferozes, há mestres generosos, há todo tipo de mestres". (Brodsky, 2003, p. 27). O analista gestor não está necessariamente a serviço da clínica, mas pode sair de sua posição sem deixar de sê-lo, na medida em que, de onde está, pode operar com seu saber-fazer, que é um saber-fazer sobre aquilo que falha, que deixa resto, que encontra os próprios meios de funcionar.

A orientação lacaniana como um operador no campo da política pode propiciar rearranjos, transformações e vacilações na dinâmica discursiva que engendra essa prática.

 

Estratégias de Intervenções

Acreditamos, assim, que o analista gestor pode e deve atuar na rede de serviços, no agenciamento das políticas púbicas e na busca de soluções possíveis para os conflitos e angústias cotidianas. Autores como Ubieto (2003) propõem estratégias de conversação no trabalho em rede, uma "clínica do vínculo social". Trata-se de uma estratégia operada pelo saber-fazer da psicanálise que tenta extrair a lógica dos discursos de cada conversação.

Isso requer analisar os conceitos chave que o formam e suas relações. Sem essa análise e compreensão não há caminho real possível. A persuasão ou a imposição, por si mesmas, não modificam a crença de um indivíduo ou de um grupo sobre suas idéias xenófobas, misóginas ou segregacionistas. É preciso desvelar as condições de possibilidade dessas crenças, o pressuposto ideológico que as sustenta e sua relação com a satisfação (por exemplo, o domínio, o abuso, a passividade do outro), dos que ali se identificam. O discurso funciona, portanto, como um regulador do gozo. (Ubieto, 2003, p. 86)

Tal intervenção ressalta as questões surgidas no cotidiano dos serviços públicos através da noção de caso clínico, considerando-o enquanto um elemento que funciona como algo que articula a limitação dos saberes e a reflexão compartilhada por todos da equipe: "Assim, como não partimos do saber dos profissionais, colocamos em primeiro lugar, no centro da conversação, o sintoma, aquilo que não cede e que nos interroga a todos" (Ubieto, 2003, p. 87). Outro ponto importante é a consideração do marco institucional como elemento-chave e estratégico para viabilizar a construção de projetos de intervenção, assim como a gestão do tempo e dos recursos. Há também a promoção de espaços amplos de debate e informações mútuas entre os serviços da rede para promover a corresponsabilidade na intervenção possível. Ressalta, ainda, a importância de se sustentar a ideia de processo, ou seja, de uma lógica temporal de continuidade que faz oposição à ideia de eficácia atrelada ao tempo. Por fim, o autor destaca também a construção de projetos intersetoriais de intervenção, como forma de articulação da rede.

Retornando a Laia (2003b), citemos seu relato de um coordenador do campo público da saúde mental que não responde ao sujeito do lugar de mais um imperativo, dentre os outros tantos que se encontram inscritos aí. Ao ser chamado a intervir junto às dificuldades colocadas por um usuário em permanecer inserido no Programa de Serviços Residenciais Terapêuticos, o coordenador se serve da referência à lei corporificada nele próprio para convidar-lhe a ocupar um lugar diferente daquele em que sempre o impulsionava para um fora da lei.

 

Concluindo

O analista gestor, tal como o concebemos, aproxima-se do referencial do analista cidadão formulado por Laurent (1999), pois o "(...) analista que toma partido nos debates, o analista útil e cidadão, é perfeitamente compatível com as novas formas de assistência em saúde mental, formas democráticas, antinormativas e irredutíveis a uma causalidade ideal" (Laurent, 1999, p. 19).

Para atuar num campo específico, como é o caso das políticas públicas de saúde mental, é fundamental ao analista não desconhecer a lógica que constitui tal lugar, assim como a função social que exerce na sociedade. A orientação lacaniana não está alheia a isso, tendo em vista que, atualmente, um de seus principais eixos de atuação consiste na questão da prática do analista e de seus usos possíveis na contemporaneidade.

Através da teoria lacaniana dos discursos, vimos como uma função depende de um lugar discursivo e que ocupar o lugar de gestor, mesmo a partir de uma formação analítica, determina que a função a ser exercida é política, e não necessariamente clínica. Mas vimos, também, que isso não significa deixar de operar nesse campo a partir da psicanálise. Um analista gestor talvez precise sacrificar uma parcela de sua prática clínica, mas não renunciar ao saber-fazer que surge a partir dela. Não é preciso renunciar à psicanálise.

Trata-se de fazer diferentes usos da função dominante de um discurso, especialmente do significante mestre que no discurso da política refere-se a um mandamento. A ideia de um analista gestor aponta para um analista de orientação lacaniana que, enquanto tal, está aberto à construção de uma prática não standard, além de transitar por outros discursos, dando ao significante mestre encontrado no discurso da política outros usos possíveis, no sentido de servir-se dele.

 

Referências

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Recebido em 15 de dezembro de 2011
Aceito em 11 de maio de 2013
Revisado em 25 de outubro de 2013

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