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Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento

Print version ISSN 1519-0307On-line version ISSN 1809-4139

Cad. Pós-Grad. Distúrb. Desenvolv. vol.17 no.2 São Paulo Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.5935/cadernosdisturbios.v17n2p92-100 

ARTIGOS

 

Depressão pós-parto: discutindo o critério temporal do diagnóstico

 

Postpartum depression: discussing the temporal criterion for the diagnosis

 

Depresión posparto: discutiendo el criterio temporal del diagnóstico

 

 

Evanisa Helena Maio de Brum

Centro Universitário Cesmac

 

 


RESUMO

A Depressão Pós-Parto (DPP) tem sido considerada um problema de saúde pública devido à elevada prevalência, à dificuldade diagnóstica, assim como ao seu impacto no desenvolvimento infantil. Desta forma, este estudo objetiva discutir o critério temporal do diagnóstico, através de uma pesquisa qualitativa com revisão crítica da literatura. Esta discussão tem como base a falta de consenso sobre o momento ideal para realizar o diagnóstico, se no pós-parto, no periparto ou em até quanto tempo depois do parto a depressão ainda pode estar relacionada a ele. Os manuais oficiais apresentam um tempo curto para a ocorrência do diagnóstico. O CID-10 afirma ser em até 6 semanas após o parto; o DSM-V, por sua vez, alega ser da gestação até 4 semanas após o parto. Por outro lado, a maioria dos artigos científicos da área apresentam um prazo diferente que se estende da gestação até 1 ano após o parto. Desta forma, os manuais oficiais que norteiam a prática clínica não refletem os avanços obtidos nas pesquisas científicas publicadas na área, assim sendo, torna-se necessário que os profissionais da área considerem expandir o critério temporal do diagnóstico até um ano após o parto.

Palavras-chave: Depressão pós-parto; depressão; diagnóstico, triagem, periparto.


ABSTRACT

Postpartum Depression (PPD) has been considered a public health issue due to its high prevalence, its difficult diagnosis and its impact on child's development. Thus, this study aims to discuss the temporal criterion for the diagnosis through a qualitative research with critical literature's review. This discussion is based on the absence of consensus about the ideal moment to perform the diagnosis, whether in the postpartum period or in the peripartum or how long after the delivery the depression may still be related to it. The official manuals present a short time to the occurrence of the diagnosis. The ICD-10 claims to be up to 6 weeks after the delivery; the DSM-V, in its turn, claims to be from gestation up to 4 weeks after delivery. On the other hand, most scientific articles present a different timeframe which extends from the gestation up to 1 year after delivery. Thus, the official manuals, which guide the clinical practice, do not reflect the advances achieved in scientific researches disclosed in the area, it is therefore suggested that the practitioners consider expanding the temporal criterion of the diagnosis up to 1 year after delivery.

Keywords: Postpartum depression; depression; diagnosis; screening, peripartum.


RESUMEN

La depresión postparto (DPP) ha sido considerada un problema de salud pública debido a la elevada prevalencia, a la dificultad diagnóstica, así como a su impacto en el desarrollo infantil. De esta forma, el objetivo de este estudio es debatir el criterio temporal del diagnóstico, a través de una investigación cualitativa con revisión crítica de la literatura. Este debate está basado en la falta de consenso sobre el momento ideal para realizar el diagnóstico, si es en el posparto, en el periparto o en hasta cuánto tiempo después del parto todavía se lo puede relacionar a la depresión. Los manuales oficiales presentan un tiempo corto para establecer el diagnóstico. Según el CID-10 ocurre dentro de las primeras 6 semanas después del parto; el DSM-V, a su vez, alega ser desde la gestación hasta 4 semanas después del parto. Por otro lado, la mayoría de los artículos científicos del área presentan un plazo diferente que se extiende desde la gestación hasta 1 año después del parto. De este modo, los manuales oficiales que dirigen la práctica clínica no reflejan los avances que se han obtenido en las investigaciones científicas publicadas en el área, se sugiere que los profesionales del área consideren expandir el criterio temporal del diagnóstico hasta un año después del parto.

Palabras claves: depresión posparto; depresión; diagnóstico; clasificación, periparto.


 

 

INTRODUÇÃO

A Depressão Pós-Parto (DPP) tem sido alvo de inúmeros estudos, tendo em vista o aumento da prevalência deste quadro clínico (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2017; MORAIS et al, 2015; BRUM, 2010; BRUM; OLIVEIRA, 2012), à dificuldade diagnóstica (MORAES et al. 2017; MARTINEZ et al, 2016), os danos causados à mãe, bem como pelo seu impacto no desenvolvimento infantil (PIZETA et al, 2013). Essa associação de fatores coloca em relevo a magnitude de um problema de saúde pública e que, portanto, necessita de maior atenção por parte das políticas públicas, dos profissionais de saúde em geral e dos pesquisadores e profissionais da área da saúde mental. Desta forma, este estudo objetiva discutir o critério temporal do diagnóstico de DPP, pois não há consenso sobre o momento ideal para realizar o diagnóstico, se no pós-parto, no periparto ou em até quanto tempo depois do nascimento do bebê a depressão ainda pode estar relacionada a ele.

Prevalência da Depressão Pós-Parto

Quanto à prevalência da DPP, encontramos uma grande variação que ocorre em função da falta de uniformidade nos parâmetros metodológicos utilizados nas pesquisas, tais como, diferenças na caracterização da amostra, nos instrumentos de rastreio utilizados e no período de realização do rastreio (MORAES et al, 2017; BRUM; OLIVEIRA, 2012). Os Estudos internacionais apontam para a prevalência de 10 a 20% (COX, 2004; MORAES et al., 2006; WANG et al, 2017) e de acordo com a Organização Mundial da Saúde a prevalência de DPP em países em desenvolvimento, como o Brasil, é de 19,8%. Entretanto, no Brasil, alguns estudos apontam para índices mais elevados, como o de Moraes et al (2017) que encontrou uma variação de 12% a 37% em sua revisão sistemática de artigos publicados no período de 2009 a 2014. Outro importante estudo realizado no Brasil e desenvolvido no âmbito da pesquisa "Nascer no Brasil", realizada com 23.894 mulheres, também encontrou índices de prevalência superiores aos informados pela OMS (THEME-FILHA et al, 2016), provavelmente porque as informações foram coletadas no período de 6 a 18 meses após o nascimento e avaliadas através da Escala de Depressão Pós-natal de Edimburgo (EDPE). Os resultados revelaram que a prevalência global de sintomas de DPP foi de 26,3%, e a comparação entre os períodos de 6 a 9 meses (25,7%) e de 9 a 12 meses (27,1%) não indicou diferença significativa no desenvolvimento do transtorno mental. Concluem que, no Brasil, em cada quatro mulheres, mais de uma apresenta sintomas de depressão no período de 6 a 18 meses após o nascimento do bebê.

Morais et. al. (2015) também avaliaram a prevalência de DPP em mães brasileiras residentes em São Paulo. A avaliação foi realizada com a EDPE aplicada entre o 3º e 4º mês após o parto, em 462 mulheres; destas, 205 estavam sendo atendidas em um hospital público e 257 em hospital privado. Os autores encontraram a prevalência de 9% de DPP nas mães do hospital privado e 26% no público. Os dados iluminam a associação da DPP com níveis socioeconômicos e anos de escolaridade. Abuchaim et al (2016) também avaliou a prevalência de DPP em 208 mães brasileiras atendidas num Centro de Incentivo ao Aleitamento Materno em São Paulo. O rastreio ocorreu em até 60 dias pós-parto com a EDPE e os sintomas de DPP estavam presentes em 31,25% das mulheres.

Estudos sobre prevalência realizados em outros países em desenvolvimento, descrevem índices que corroboram com o apontado pela OMS. Cherif et al (2017) em seu estudo transversal realizado na Tunísia, que objetivou examinar a prevalência de DPP e fatores de risco associados entre uma amostra de 126 mulheres que receberam atendimento em um hospital encontraram uma prevalência de DPP de 14,7% na primeira semana após o parto e de 19,8% na sexta semana após o parto. A DPP foi associada à idade materna (> 35 anos), ao baixo nível escolar, à existência de antecedentes pessoais, à paridade, à dificuldade de aceitar a gravidez e sinais simpáticos de gravidez. Shidhaye et al (2017) investigaram a DPP na Índia com a EDPE em 302 mulheres em seu período pré-natal e encontraram a prevalência de 16,9%.

Ainda que se tenha observado diversidade de índices mostrados pelos diferentes estudos decorrentes dos critérios utilizados, tais como a variabilidade das amostras, dos instrumentos e do período em que a avaliação ocorreu, chama atenção a elevada prevalência do diagnóstico no Brasil, que apresenta índices mais elevados do que os esperados para um país em desenvolvimento. Além desta elevada prevalência e dos prejuízos que tal quadro clínico traz para as mães, há também o impacto da DPP no desenvolvimento infantil.

O Impacto da Depressão Pós-Parto no Desenvolvimento Infantil

Pesquisas revelam que o comportamento de mães deprimidas pode influenciar o desenvolvimento de psicopatologias em seus filhos, ou seja, a DPP pode levar à ocorrência de desordens comportamentais, afetivas, cognitivas e sociais (ASHMAN; DAWSON; PANAGIOTIDES, 2008; BRUM; SCHERMMAN, 2006; CARLESSO et al, 2014; FRIZZO; PICCININI, 2005; LOOSLI et al, 2016), autoimagem negativa, distúrbios do apego, maior incidência de diagnóstico psiquiátrico (RADKE-YARROW, 1998) e de afeto negativo (SCHWENGBER; PICCININI, 2005), bem como maior risco para apresentarem alterações da atividade cerebral (ASHMAN; DAWSON; PANAGIOTIDES, 2008; MOTTA; LUCION; MANFRO, 2005).

Desta forma, a identificação precoce da DPP se torna fundamental para que a mãe receba tratamento adequado, bem como para diminuir o impacto do diagnóstico no desenvolvimento infantil. Ainda mais porque menos de 25% das puérperas acometidas têm acesso ao tratamento, e somente 50% dos casos de DPP são diagnosticados na clínica diária (RUSCHI el al, 2007). Portanto, a DPP permanece pouco diagnosticada e tratada (MARTINEZ et al, 2016; STEWART et al., 2004; RUSCHI el al, 2007), principalmente na Atenção Primária (MARTINEZ et al, 2016; STEWART et al, 2004), pois na maioria das vezes, a detecção e a eventual orientação repousam sobre os profissionais da Atenção Primária (médico generalista, ginecologista/obstetra, pediatra, enfermeiros) e somente, em um segundo momento, e se a DPP for diagnosticada, é que a mãe e seu bebê serão encaminhados para profissionais de saúde mental (BRUM, 2006; CATÃO, 2002; COX, 2004; GUÉDENEY; JEAMMET, 2002).

Estas dificuldades agravam-se quando a DPP apresenta intensidade leve e moderada, pois muitas vezes passam despercebidas e, portanto, merecem maior atenção (CATÃO, 2002; GOLSE, 2002). Guédeney et al (2002) corroboram com a questão ao destacarem que, na prática cotidiana, o diagnóstico de DPP permanece difícil de ser realizado. O que agrava ainda mais a questão é a preconcepção social e cultural do nascimento de um bebê como um acontecimento feliz. Tal aspecto acaba atrapalhando a identificação da depressão tanto pela mãe quanto pelos que convivem com ela (GOLSE, 2002). O parto visto insistentemente apenas pelo ângulo do ganho - de um bebê - escamoteia sua faceta obrigatória de perda, que quanto mais escondida mais retorna violentamente sob a forma de depressão materna (CATÃO, 2002).

Divergências Diagnósticas

Estas dificuldades diagnósticas têm também como base as divergências existentes na área para a realização do diagnóstico, tanto no CID-10 e no DSM-V quanto nos estudos científicos (COX, 2004; CRAMER; PALÁCIO-ESPASA, 1993; CAMPBELL; COHN, 1997; STERN, 1997). A ausência de uma concordância na conceituação e codificação da DPP, entre outros motivos, dificulta o diagnóstico e, consequentemente, o encaminhamento a tratamento, assim como a compreensão do seu impacto para o desenvolvimento infantil. Essas divergências abrem espaço para importantes discussões sobre o tema.

Nesse sentido, ao analisarmos as últimas três edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que abrange o período de 1994 a 2013 é possível verificar pouca evolução do conceito. Na versão do DSM-IV publicada em 1994 nos Estados Unidos a DPP é descrita como um especificador dos quadros de depressão: "com início no pós-parto"; diagnóstico aplicado a qualquer transtorno de humor atual ou recente, desde que seu início ocorresse dentro de 4 semanas após o parto. Na versão seguinte: DSM-IV-TR publicada em 2000, não houve mudanças em sua caracterização. A última versão: o DSM-V; publicada nos Estados Unidos em 2013 e no Brasil em 2014, o manual passou a utilizar o especificador "com início no periparto", permitindo a realização do diagnóstico na gestação e em até quatro semanas após o parto. A inclusão do período gestacional no diagnóstico foi um avanço importante, visto que 50% dos episódios de DPP começam antes do parto (APA, 2013). Neste sentido, Alavarenga e Frizzo (2017) apontam em seu estudo realizado com 79 gestantes brasileiras acompanhadas até o período puerperal, que transtornos mentais comuns na gestação foi o único preditor significativo da DPP.

As três versões do DSM, mencionadas acima, trazem a concepção da DPP como um especificador e não como um diagnóstico separado, isto ocorre pois há certo consenso de que a sintomatologia da DPP não difere da sintomatologia dos episódios de alteração do humor que ocorrem fora do puerpério. Assim podemos referir que as características principais descritas no diagnóstico de depressão são definidas pela presença obrigatória de humor depressivo ou anedonia (diminuição ou perda do interesse nas atividades anteriormente agradáveis), associada a quatro dentre os demais sintomas: mudança significativa de peso ou do apetite, insônia ou sono excessivo, fadiga, agitação ou retardo psicomotor, sentimentos de desvalia ou culpa, perda de concentração e ideias de morte ou suicídio. Os sintomas precisam estar presentes pelo período mínimo de duas semanas. Entretanto, o quadro que ocorre no pós-parto pode incluir acentuada labilidade de humor e sentimentos ambivalentes em relação ao bebê (APA, 2013).

Outro manual importante que caracteriza a DPP é a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). A primeira versão foi aprovada em 1893 em Genebra e, desde então, vem sendo periodicamente revisada. A décima revisão (CID-10) - em vigor; foi publicada em Genebra em 1992 e no Brasil em 1993. A CID possui mecanismos de atualização, como o Grupo de Referência de Mortalidade criado em 1997, o Comitê de Revisão e Atualizações que surgiu em 2000. Em 2007, foi criado o Grupo de Referência em Morbidade que passou a discutir mais detalhadamente questões para atualização relacionada à Morbidade (LAURENTI et al, 2013). Especificamente em relação a DPP o CID-10 (OMS, 1993) amplia em duas semanas o critério temporal quando comparado a caracterização do DSM-V (APA, 2013), entretanto, não inclui o período gestacional. Desta forma, descreve o diagnóstico como uma desordem comportamental e mental associada ao puerpério (F53) apenas se iniciar dentro de seis semanas após o parto e quando não atender aos critérios associados à outra categoria. Portanto, no CID o diagnóstico possui uma categorização própria e não é apenas um especificador de algum transtorno de humor, sendo também possível classificar a desordem como algum transtorno afetivo (F30 - F39). Além disto, destacamos que o CID-10 utiliza como terminologia depressão pós-natal.

Sumarizando o exposto sobre os dois manuais apresentados acima é possível constatar que o DSM-V traz a concepção da DPP como um especificador, o momento de realizar o diagnóstico deve ser da gestação até 4 semanas após o parto, e utiliza o termo periparto. Já o CID-10 apresenta a DPP como um diagnóstico separado, o momento de realizar o diagnóstico deve ser em até 6 semanas após o parto, e utiliza o termo pós-natal. Esta breve descrição reflete a falta de concordância nos manuais oficiais que norteiam os profissionais e pesquisadores da área. O esperado seria que tais manuais de classificações dos transtornos mentais apresentassem um padrão e refletissem não apenas os avanços científicos no conhecimento de causas e consequências dos diagnósticos, mas também seu uso comum na prática dos profissionais de saúde (COX, 2004). Entretanto, no caso da DPP isto parece não acontecer. Allen Frances que presidiu a força tarefa do DSM-IV e foi membro da força tarefa do DSM-IV-R reagiu a última publicação do DSM referindo que a organização da 5ª versão não é nem segura nem cientificamente correta. Apesar das severas críticas sobre a falta de confiabilidade diagnóstica ele destaca que o DSM é um grande avanço na psiquiatria, pois traz a descrição das categorias diagnósticas de forma detalhada levando credibilidade para a área (FRANCES, 2015).

Neste sentido, cabe destacar que a equipe da força tarefa do DSM-5 trouxe o debate da confiabilidade ao centro das atenções, uma vez que alguns distúrbios apresentaram pouca confiabilidade. Por exemplo, o transtorno depressivo maior, uma doença mental comum, teve uma estatística kappa de baixa confiabilidade (0,28), indicando que os clínicos frequentemente discordaram desse diagnóstico nos mesmos pacientes. Esta preocupação sobre a confiabilidade não é de agora, ela surgiu a partir da 3ª revisão (FREEDMAN et al, 2013). Desta forma, a falta de confiabilidade traz consigo o questionamento de como a ciência avançará se o diagnóstico não for confiável?

Poderíamos dizer que é melhor ter os manuais do que não os ter, mas que eles estão distantes de refletir o que acontece no mundo real, seja na clínica ou na pesquisa, pelo menos em relação a DPP. Neste sentido, pesquisadores do tema questionam o critério temporal estabelecido nos manuais para o surgimento da desordem. O questionamento surge, pois os pesquisadores apontam que o diagnóstico pode se estender e até iniciar fora deste período (COX, 2004; MORAES el al, 2017; DIKMEN-YILDIZ et al, 2017; STEWART et al, 2004). Já em 2004 na oficina The Satra Bruk Classification, que ocorreu na Suécia, com o objetivo de rever as classificações existentes no CID-10 e no DSM-IV e realizar propostas específicas para a formulação do CID-11 e do DSM-V esta questão foi discutida na comissão responsável pelo diagnóstico de DPP. A comissão concluiu a oficina com a seguinte proposta para DPP: a) a introdução de um início mais específico, dentro de três meses pós-parto, para cobrir todos diagnósticos sobre desordens de humor, de psicose e de desordens de ajustamento (CID-10 F20-29, F30-39; DSM-IV; esquizofrenia e outras desordens psicóticas, desordens de humor e de ajustamento); b) A omissão do F53 (desordens comportamentais e mentais associadas ao puerpério); c) uma categoria de desordem definida deveria ser introduzida na sessão de desordem de humor de ambas as classificações para sub-síndromes ou depressão menor, permitindo também o pós-parto mais específico (COX, 2004). Entretanto a publicação do CID-11 ainda não foi lançada e a 5ª versão do DSM não trouxe a efetivação destas propostas, as quais já seriam um avanço quanto ao critério temporal, apesar de ficar aquém do tempo apontado nas pesquisas.

Um período de 6 meses para a ocorrência do diagnóstico é defendido por Dikmen-Yildiz et al (2017). Os autores realizaram um estudo longitudinal para avaliar a prevalência de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático entre mães durante o período perinatal, examinando o percurso desses transtornos da gravidez até 6 meses pós-parto. As avaliações ocorreram em 3 momentos: na gravidez (n = 950); de 4 a 6 semanas (n = 858) e em 6 meses (n = 829) após o nascimento. Uma amostra de gestantes foi recrutada em três maternidades da Turquia. Para avaliar a depressão foi utilizada a EDPE. Os resultados revelaram que a prevalência de depressão foi de 14,6% na gravidez, 32,6% no período de 4 a 6 semanas após o parto, e, 18,5% aos 6 meses pós-parto. Constataram que a depressão atingiu o pico de prevalência no período de 4 a 6 semanas após o parto e depois caiu aos 6 meses pós-parto. Destacamos que o estudo traz um dado importante, pois encontrou o aparecimento de 24,6% casos novos no período de 4 a 6 semanas até 6 meses após o parto, exatamente o período que não seria considerado para a realização do diagnóstico de acordo com os manuais oficiais, o que levaria algumas mães a não serem diagnosticadas e tratadas. Por fim, os autores destacaram três pontos principais: 1) a importância de realizar o rastreio perinatal efetivo para identificar mulheres com necessidades psicológicas; 2) proporcionar tratamento antecipado a mulheres com problemas psicológicos graves para assegurar o bem-estar psicológico dessas mulheres e prevenir a cronicidade; e, 3) o rastreio psicossocial e as intervenções devem ser oferecidas em até pelo menos 6 meses após o nascimento para captar o início de novos casos.

Alguns pesquisadores defendem a necessidade de que haja um período maior ainda para a ocorrência do diagnóstico: de 1 ano após o parto. Stewart et al (2004) e Moraes et al (2017) fazem esta afirmação tendo como base revisões sistemáticas da literatura. Stewart et al (2004) utilizaram como critério de seleção estudos empíricos revisados por colegas, e publicados em inglês no período de 1990 a 2002. Dezenove bases de dados completas contendo literatura sobre ciência social, psicológica e médica foram pesquisadas, bem como jornais importantes, sessões de conferência e teses. Os estudos que preencheram os critérios de inclusão foram identificados, criticamente avaliados e sua qualidade graduada com base nos padrões metodológicos internacionalmente publicados. Os estudos variaram com relação à seleção da amostra no tempo de seguimento das avaliações e nas medidas de DPP. Limitações metodológicas comuns incluíram viés de seleção da amostra, falta de randomização e insuficiente poder de detectar efeitos. Através dessa revisão estabeleceram como critério temporal da DPP casos com início dentro de um ano após o parto e que fossem de depressão não psicótica. Os pesquisadores concluíram que, entre outras questões, a DPP é um significativo problema de saúde pública que afeta, aproximadamente, 13% das mulheres dentro do primeiro ano de vida do bebê.

Moraes et al (2017) em sua revisão sistemática selecionaram apenas artigos relacionados ao rastreio e diagnóstico da DPP publicados nos últimos 5 anos, chegando a uma amostra de 22 artigos. A análise dos artigos revelou a EDPE como a ferramenta de rastreio mais frequentemente utilizada (68%) e o período de realização do rastreio na maioria dos artigos foi de 0 a 3 meses pós-parto (43%), até 6 meses (19%), e até 12 meses (38%). Treze artigos selecionaram as mulheres durante os primeiros 6 meses (59%) e 8 (36%) o fizeram até 1 ano. Desta forma, os autores encontraram que o período mais comum para o diagnóstico foi de até 3 meses pós-parto. No entanto, alguns pesquisadores consideraram o diagnóstico de DPP em até 12 meses após o parto. Os autores chamam a atenção para a necessidade de maior padronização de parâmetros em relação à investigação desta doença e, especificamente que os achados mostram que o período de risco para a DPP se estende em até 1 ano após o parto.

A necessidade de um tempo maior para o estabelecimento do diagnóstico pode ser compreendida a partir das formulações teóricas de Cramer e Palácio-Espasa (1993) e de Stern (1997). Cramer e Palácio-Espasa (1993) consideram a DPP uma doença da interação ligada à chegada do bebê, sendo, portanto, necessário um tempo maior para que as interações se processem. Para os autores, o período pós-parto apresenta uma constelação psíquica original, a qual denominam de neoformação. Esta constelação é caracterizada por uma forma particular de funcionamento e de psicopatologia correspondente desencadeadas pela materialização do bebê, em função de seu nascimento. Os autores também consideraram a parentalidade, principalmente do primeiro filho, como uma nova fase do desenvolvimento, um evento de vida muitas vezes difícil para a adaptação psicobiológica, com um cortejo de expressões psicopatológicas (nos pais e nas mães) que nem sempre existiam antes. O elemento capital na criação dessa neoformação, estrutural e psicopatológica, que caracteriza o pós-parto, é a inclusão do bebê na organização psíquica da mãe (e do pai), o qual possui um caráter perturbador. Toda uma série de investimentos narcísicos e pulsionais da mãe, até então conservados em seu espaço intrapsíquico, irá se distribuir no espaço interpessoal da relação com a criança real e fantástica. Na verdade, é uma revolução que não possui equivalente em outras etapas da vida, o que legitima o conceito de neoformação.

Já Stern (1997) argumenta que com o nascimento do bebê, especialmente o primeiro, a mãe entra em uma nova e única organização psíquica, intitulada por ele de constelação da maternidade. Porém, não estabelece um período exato para a ocorrência da constelação da maternidade, referindo apenas que esta é temporária, com duração muito variável, podendo persistir por alguns meses ou anos. Mas durante a época em que ocorre, ela torna-se o eixo organizador dominante na vida psíquica da mãe. Essa constelação psíquica determina uma nova série de tendências de ações, sensibilidades, fantasias, medos e desejos. É compreendida como um constructo único e independente em si mesmo, de grande magnitude na vida da maioria das mães e inteiramente normal. A constelação da maternidade contém três preocupações e discursos diferentes, mas relacionados, que acometem interna e externamente a mãe: o discurso da mãe com sua própria mãe, da mãe com ela mesma e da mãe com o bebê. Essa trilogia da maternidade passa a ser sua principal preocupação, no sentido de que requer a maior quantidade de trabalho e de reelaboração mental. O presente (a chegada do bebê) traz o passado da mãe à tona, evocando memórias do período que a mãe era um bebê e de como foi cuidada. Salienta que a constelação da maternidade é limitada, específica e não obrigatória, pois as mulheres não precisam se tornar mães. Ela é uma resposta a ficar grávida e ter um bebê num determinado ambiente cultural.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A DPP tem sido considerada um problema de saúde pública, entre outros fatores, devido à dificuldade diagnóstica, ao aumento da prevalência, assim como ao seu impacto no desenvolvimento infantil. Espera-se que a revisão realizada neste estudo tenha evidenciado que a DPP ocorre em períodos mais longos do que o estabelecido no CID-10 e no DSM-V, e que os profissionais de saúde deveriam considerar este período maior para a realização de seus diagnósticos na prática clínica.

Dentro desta perspectiva, destacamos que o potencial dos efeitos adversos da DPP para a relação mãe-bebê e para o desenvolvimento infantil reforça a necessidade da identificação precoce do diagnóstico fazendo dela um fator de proteção. Assim os profissionais de saúde precisam adquirir habilidades, instrumentos e recursos para detectar de modo precoce e tratar de forma eficiente a DPP, expandindo o critério temporal do diagnóstico da gestação até 1 ano após o parto. Por fim, sublinha-se a magnitude da DPP como um problema que desafia a saúde pública, bem como destaca-se a necessidade de uma maior padronização do diagnóstico, pois os manuais oficiais em vigor na área não incorporam as evidências científicas.

 

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Data de submissão: 09.10.2017
Data de aceite: 28.11.2017

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