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Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento

versão impressa ISSN 1519-0307versão On-line ISSN 1809-4139

Cad. Pós-Grad. Distúrb. Desenvolv. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.5935/cadernosdisturbios.v21n1p9-23 

Intervenções em funções executivas na primeiríssima infância: revisão da literatura

 

Interventions in executive functions in early childhood: literature review

 

Intervenciones en las funciones ejecutivas durante la niñez temprana: revisión de la literatura

 

 

Raquel Ferreira dos Santos TomazI; Camila Barbosa Riccardi LeónII

IFaculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: kellsantostomaz@gmail.com
IIFaculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: mirellarodriguesnobre@hotmail.com

 

 


RESUMO

As funções executivas são habilidades mentais importantes que regulam o comportamento, a cognição e a emoção, além de auxiliarem na realização de objetivos. A primeiríssima infância, que compreende bebês e crianças de 0 a 3 anos, é um período sensível para o desenvolvimento de diferentes habilidades cognitivas, pois nos primeiros anos de vida constrói-se a base estrutural para o desenvolvimento do cérebro. Estudos apontam que o desenvolvimento das funções executivas pode ser visto já nos primeiros meses de vida, indicando a possibilidade de intervenções precoce-preventivas. Sendo assim, este estudo realizou uma revisão de literatura com o objetivo de levantar evidências científicas sobre intervenções precoce-preventivas em funções executivas realizadas no contexto escolar voltadas para bebês e crianças de 0 a 3 anos de idade. Para tanto, foram pesquisadas as bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PubMed, Scielo, Education Resources Information Center (Eric) e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic). Aplicados os critérios de elegibilidade, encontrou-se apenas um artigo experimental que propõe um programa de intervenção baseado em treinamento linguístico para crianças de 26 a 31 meses. O estudo de intervenção revelou que o treinamento em linguagem impactou positivamente as funções executivas. Nos demais artigos encontrados, observaram-se muitos estudos direcionados a avaliar as funções executivas em bebês e crianças pequenas com desenvolvimento atípico, bem como pesquisas cujo objetivo era o de identificar o poder das suplementações nutricionais para o desenvolvimento da cognição em crianças típicas de baixa renda. Dessa forma, a presente pesquisa verificou uma lacuna em estudos sobre a temática em questão. Considerando a relevância das funções executivas para o desenvolvimento infantil e a prática de intervenções precoce-preventivas, sugere-se a condução de futuras pesquisas a fim de promover as funções executivas na primeiríssima infância.

Palavras-chave: Desenvolvimento infantil. Educação. Criança. Cognição.


ABSTRACT

Executive functions are important mental skills that regulate behavior, cognition and emotion, besides helping in the achievement of goals. The early childhood comprises children and babies whose ages range from zero to three years old. It is a sensitive period for the development of different cognitive skills since the structural basis for the brain development is also built in the first years of life. Studies pointed out that the development of executive functions can be seen in the first months of life, which suggests the possibility of early preventive intervention. Therefore, this study was anchored in a literature review aiming at gathering scientific evidence on executive functions in early preventive interventions at early childhood education whose attendee's ages vary from zero to three years old. We used the Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PudMed, Scielo, Education Resouces Information (Eric) and Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic) databases. After applying the eligibility criteria, only one experimental article was found with an intervention program based on language training for children aged 26 to 31 months. The intervention study revealed that language training caused a positive impact on executive functions. Most of the other papers found focused on evaluating executive functions in babies and young children with atypical development, as well as identifying the power of nutritional supplements for the cognitive development in low-income children. Thus, the present study showed a lack of studies regarding the theme of this research. Considering the relevance of executive functions in child development and the need of early preventive practices, it is important to point out that future research should be conducted, in order to promote the executive functions in early childhood.

Keywords: Child development. Education. Child. Cognition.


RESUMEN

Las funciones ejecutivas son habilidades mentales importantes que regulan el comportamiento, la cognición y la emoción, ayudando en la consecución de objetivos. La primera infancia, que incluye bebés y niños de cero a tres años, es un período sensible para el desarrollo de diferentes habilidades cognitivas, porque en los primeros años de vida se construye la base estructural para el desarrollo del cerebro. Estudios indican que es posible observar el desarrollo de las funciones ejecutivas ya en los primeros meses de vida, lo que lleva a pensar en la posibilidad de intervenciones preventivas tempranas. Por consiguiente, este estudio se focó en una revisión de la literatura con el objetivo de reunir evidencias científicas sobre intervenciones preventivas tempranas a través de las funciones ejecutivas en espacios escolares dirigidas a bebés y niños de cero a tres años. Se utilizaron las bases de datos de la Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PubMed, Scielo, Education Resouces Information (Eric) y Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic). Una vez aplicados los criterios de elegibilidad, se encontró solamente un artículo experimental que propone un programa de intervención basado en el aprendizaje linguístico para niños de 26 a 31 meses. El estudio de intervención reveló que el entrenamiento del lenguaje tuvo un impacto positivo en las funciones ejecutivas. En los otros artículos encontrados, se observó una gran cantidad de estudios destinados a evaluar las funciones ejecutivas en bebés y niños pequeños con desarrollo atípico, así como otras investigaciones que buscaron identificar el poder de los suplementos nutricionales para el desarrollo de la cognición en niños típicos de bajos ingresos. Por lo tanto, este trabajo encontró una falta de estudios sobre el tema en cuestión. Considerando la relevancia de las funciones ejecutivas para el desarrollo infantil y la práctica de intervenciones preventivas tempranas, se sugiere que se puedan realizar investigaciones futuras para promover las funciones ejecutivas en la primera infancia.

Palabras clave: Desarrollo infantil. Educación. Niño. Cognición.


 

 

INTRODUÇÃO

As funções executivas são habilidades mentais importantes para aprender coisas novas, pensar, refletir, focar o pensamento, controlando as interferências do ambiente, permitindo ao indivíduo interagir com o mundo de maneira mais adaptativa (DIAMOND, 2013; GAZZANIGA; IVRY; MANGUN, 2006; MENEZES et al., 2012; MALLOY-DINIZ et al., 2008). Nas crianças, essas habilidades são essenciais para direcionar e controlar o comportamento em diferentes situações, empenhar-se nos estudos em grupo e, também, seguir as orientações de pais e professores (CARDOSO, 2017).

Há evidências de que as funções executivas são fundamentais para a saúde, tanto mental quanto física, e para obter sucesso na vida pessoal e acadêmica (DIAMOND, 2013). Especificamente em relação à aprendizagem, alguns estudos verificaram que as funções executivas preparam o aluno para o ingresso no ensino formal mais do que o nível de inteligência ou o nível inicial de alfabetização ou de conhecimentos matemáticos (BLAIR, 2002; BLAIR; RAZZA, 2007), além de melhorar o desempenho acadêmico ao longo da trajetória escolar (BLAIR; RAZZA, 2007; RAVER et al., 2011).

Outras evidências verificaram que as funções executivas são preditoras de aprendizagem (DIAMOND, 2013), especificamente das habilidades de linguagem e matemática em crianças pequenas (BLAIR; RAZZA, 2007; DUNCAN et al., 2007) e das habilidades de leitura, escrita e matemática em escolares (GONÇALVES et al., 2017). Considerando o poder preditivo das funções executivas para a aquisição das habilidades acadêmicas básicas e seu impacto ao longo da vida escolar, destaca-se a importância da sua estimulação já em crianças pequenas.

As funções executivas abarcam um conjunto de habilidades cognitivas complexas. Há consenso na literatura de que tais habilidades não se constituem de uma única competência, mas de diversos componentes que foram propostos por diferentes modelos explicativos (SEABRA et al., 2014). Um dos modelos mais conhecidos é o modelo fatorial proposto por Miyake et al. (2000), que confirmaram os componentes memória de trabalho, flexibilidade e inibição em adultos. Tal modelo foi corroborado pela revisão de Diamond (2013) numa perspectiva do desenvolvimento infantil. Para Diamond (2013), controle inibitório, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho são as três habilidades básicas interconectadas das funções executivas. A partir da interação entre elas, derivam funções executivas mais complexas, como planejamento, resolução de problemas e raciocínio.

O controle inibitório (ou inibição) permite que as pessoas resistam à vontade de agir impulsivamente, envolve resistir às tentações e controlar as interferências para manterem-se focadas. A memória de trabalho (ou memória operacional) contribui para fazer planos e tomar decisões, envolve a habilidade de manter as informações em mente, procurar conexões entre coisas aparentemente desconectadas e recombinar elementos de novas maneiras. Já a flexibilidade cognitiva está associada a pensar criativamente, buscando encontrar novas maneiras de resolver um problema, e a ser capaz de ver as coisas de diferentes ângulos e perspectivas, sendo que seu surgimento se dá a partir da interação entre memória de trabalho e controle inibitório (DIAMOND, 2013; DIAMOND, 2014; DIAS; SEABRA, 2013).

Alguns autores sugerem que as funções executivas são necessárias para que as pessoas alcancem a autonomia em relação ao seu meio ambiente. Falhas no funcionamento executivo podem ser evidenciadas, por exemplo, em forma de comportamentos de desatenção, hiperatividade motora e impulsividade comportamental, mesmo sem haver um diagnóstico (OLIVEIRA-SOUZA et al., 2018; DIAS; SEABRA, 2013). Logo, a estimulação precoce pode auxiliar no desenvolvimento da autonomia ainda na infância, minimizando o impacto de problemas associados ao longo da vida.

Com efeito, uma das maiores responsabilidades da sociedade é proporcionar o suporte adequado para o desenvolvimento da autonomia das crianças desde a creche. Construir a base dessas habilidades, que são funções executivas, é uma tarefa desafiadora e essencial nos primeiros anos de vida, sendo de grande importância para o desenvolvimento saudável, que impacta a infância e a adolescência (CENTER ON THE DEVELOPING CHILD [CDC], 2011). Há inclusive evidências de estudos longitudinais (MOFFITT et al., 2011; CASEY et al., 2011) que verificaram que crianças com melhor funcionamento executivo na primeira infância tenderam a ter melhores desfechos na adolescência e na vida adulta em vários aspectos (cognitivo, acadêmico, de saúde, financeiro e profissional). Logo, torna-se relevante estudar o desenvolvimento das funções executivas em crianças menores e como ocorre a estimulação dessas habilidades na primeiríssima infância.

A primeiríssima infância, que compreende bebês e crianças de 0 a 3 anos de idade, é um período sensível para o desenvolvimento de diversas habilidades cognitivas. Nesses primeiros anos de vida, constrói-se a base fundamental para o desenvolvimento do cérebro, sendo estrutural para todo o desenvolvimento posterior (COMITÊ CIENTÍFICO DO NÚCLEO CIÊNCIA PELA INFÂNCIA [CCNCPI], 2014). Nesse período, inicia-se uma fase de oportunidade para promover ações que estimulam o desenvolvimento das funções executivas (DIAS; SEABRA, 2013), intensificando-se entre 3 e 5 anos de idade e, novamente, entre 13 e 25 (CCNCPI, 2016).

A criança depende de fatores intrínsecos (como a maturação do sistema nervoso e o estado nutricional adequado) e extrínsecos (como a estimulação ambiental da família e da escola em seus diferentes aspectos) para que se desenvolva de forma plena (ANJOS et al., 2019). Apesar de fundamentais, a criança não nasce com as funções executivas já desenvolvidas, mas com o potencial para desenvolvê-las ou não. Esse desenvolvimento dependerá das experiências vivenciadas no ambiente desde os primeiros anos de vida. Logo, as interações sociais adequadas e saudáveis são de extrema importância para que isso aconteça (CDC, 2011; DIAS; SEABRA, 2013).

Dessa maneira, as funções executivas podem ser ensinadas e aprimoradas com treino. Atividades que promovem o desenvolvimento das funções executivas permitem ao indivíduo praticar e regular seu comportamento, cognição e emoção. Tais atividades já podem ser estimuladas desde os primeiros anos de vida (DIAS; SEABRA, 2013; DIAMOND, 2013).

É possível observar em bebês e crianças pequenas o início da manifestação das funções executivas em seu comportamento (MILLER; MARCOVITCH, 2015; DIAMOND, 2006). Um estudo (ROSE; FELDMAN; JANKOWSKI, 2012) realizado com bebês e crianças de 7 meses a 3 anos de idade verificou que a força motora que impulsiona o desenvolvimento das funções executivas começa na infância. Parece que essa fase fornece raízes para o desenvolvimento posterior de habilidades mais complexas, tendo implicações em longo prazo. A pesquisa revelou que o desenvolvimento das funções executivas pode ser visto já desde os primeiros meses de vida, e se pode ser visto, talvez seja possível melhorá-lo diretamente durante esse período (ROSE; FELDMAN; JANKOWSKI, 2012).

De fato, oportunizar meios para a prática e o desenvolvimento das habilidades executivas, buscando minimizar ou prevenir dificuldades posteriores, parece ser benéfico para todas as crianças. As atividades de estimulação e intervenções precoce-preventivas parecem ser uma alternativa para atingir tais objetivos. Esse tipo de intervenção visa a garantir o suporte e a estimulação adequada para que as funções executivas sejam vivenciadas e exercitadas de acordo com o estágio de desenvolvimento atual da criança (DIAS, 2013). Programas que visam à estimulação precoce-preventiva buscam potencializar ou promover o desenvolvimento cognitivo e psicológico em indivíduos típicos, por meio de ações promocionais direcionadas à melhoria ou manutenção de níveis de saúde e bem-estar (CARDOSO, 2017).

Embora a primeiríssima infância seja um período fértil para a estimulação e o desenvolvimento de diversas habilidades cognitivas, incluindo os primeiros sinais de controle executivo, há um contraste em relação à produção de literatura sobre o assunto, que apenas se iniciou nos últimos anos. Já há evidências que fundamentam a existência de uma diversidade de competências presentes desde os primeiros meses de vida e que possibilitam a desconstrução de visões que subestimavam o potencial dos bebês (CCNCPI, 2014), porém parece haver poucos programas específicos de estimulação de funções executivas para a primeiríssima infância. Nesse sentido, este estudo realizou uma revisão de literatura com o objetivo de levantar evidências científicas sobre intervenções precoce-preventivas em funções executivas realizadas em bebês e crianças de 0 a 3 anos de idade no contexto escolar.

 

MÉTODOS

Foram consultadas as bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic), Scielo, Education Resources Information Center (Eric) e PudMed, por serem consideradas importantes bases de publicações em áreas relacionadas à educação, saúde e neurociência. Utilizaram-se as seguintes combinações de palavras-chave: executive functions e baby; executive function e baby; executive functions e infant; executive function e infant; executive functions e toddler; executive function e toddler; executive functions e infancy; executive function e infancy; executive functions, infant e intervention; e executive functions, infancy e intervention, em inglês e português, nas referidas bases de dados. Os descritores utilizados, embora indicassem alguns artigos repetidos, evidenciaram artigos não contidos em outras palavras-chave, possibilitando uma maior abrangência das pesquisas realizadas.

O procedimento de coleta de dados foi realizado nas seguintes etapas: 1. consulta nas bases de dados com os cruzamentos das palavras-chave descritas anteriormente e descrição dos achados em planilha Excel; 2. supressão das duplicatas; 3. análise preliminar do total de artigos localizados, a partir da leitura dos títulos e resumos; 4. aplicação dos seguintes critérios de inclusão para leitura na íntegra: a) estudo experimental com ênfase total ou parcial em estimulação das funções executivas; b) participantes deveriam ser crianças de 0 a 3 anos; c) intervenções realizadas no contexto escolar; d) textos publicados em português, inglês ou espanhol; e 5. descrição dos resultados detalhados em planilha Excel.

Foram adotados os seguintes critérios de exclusão: 1. artigos teóricos, de revisão e/ou metanálise; 2. estudos com o objetivo de desenvolver ou validar instrumentos de avaliação de funções executivas; e 3. estudos de intervenção com outros públicos ou objetivos.

 

RESULTADOS

Inicialmente foram identificados 886 artigos científicos, sendo 277 indexados na BVS; 192 na Eric; 40 na Pepsic; 53 na Scielo; e 324 na PubMed. Na etapa seguinte, sucedeu-se a supressão das duplicatas (334) e realizou-se a análise preliminar do total de 552 artigos, a partir da leitura dos títulos e resumos.

Dentre os 552 artigos identificados e analisados, após aplicação dos critérios de elegibilidade, apenas um foi identificado na base de dados Eric, o estudo de Cozzani, Zanobini e Usai (2016), que será descrito mais adiante. Os demais estudos identificados não atenderam a um ou mais dos critérios de inclusão, especificamente 507 não atenderam ao critério a (ou seja, não eram experimentais), 20 dos 45 estudos experimentais não atenderam ao critério b (ou seja, não eram crianças entre 0 e 3 anos de idade) e 24 dos 25 estudos experimentais dentro da faixa etária pesquisada não atenderam ao critério c (ou seja, não foram intervenções conduzidas no contexto escolar). A Tabela 1 apresenta os resultados obtidos em cada base e totais, assim como o processo de seleção, considerando os parâmetros de inclusão e exclusão até chegar-se à amostra final.

Grande parte dos estudos excluídos da amostra final eram voltados para a avaliação de funções executivas em bebês e crianças pequenas com desenvolvimento atípico ou tinham o enfoque em identificar o poder das suplementações nutricionais para o desenvolvimento cognitivo em bebês e crianças típicas de baixa renda. Sendo assim, será descrito a seguir o único estudo que atendeu aos critérios de inclusão estabelecidos pela presente pesquisa, o estudo de Cozzani, Zanobini e Usai (2016).

Cozzani, Zanobini e Usai (2016) avaliaram a eficácia do treinamento linguístico, com base no uso do método Drežančić (reabilitação criativa da comunicação oral e escrita que envolve estruturas musicais), em contextos educacionais para promover a competência linguística na primeira infância, além de analisarem a associação entre o desenvolvimento da linguagem e das funções executivas. Participaram 41 crianças italianas, com idades entre 26 e 31 meses, que frequentavam creches públicas havia pelo menos um ano. As crianças foram divididas em grupo experimental (GE) (n = 20 crianças), que recebeu a intervenção, e grupo de controle (GC) (n = 21 crianças), que participou das atividades normais da creche.

O estudo de Cozzani, Zanobini e Usai (2016) foi dividido em três partes: pré-teste, intervenção (treinamento) por seis meses e pós-teste. Todas as crianças foram avaliadas em seu nível cognitivo (escala de desenvolvimento cognitivo), linguagem (vocabulário e competência fonológica) e funções executivas (controle inibitório e memória de trabalho) no pré e no pós-teste. A intervenção foi composta por 15 sessões de uma hora aplicadas ao longo de dez semanas, com frequência de três vezes a cada duas semanas. O GE foi dividido em agrupamentos de sete ou oito crianças. As atividades de intervenção foram conduzidas por apenas um fonoaudiólogo treinado em intervenção de linguagem. No início de cada sessão, o grupo sentava-se em círculo com o fonoaudiólogo à sua frente. O tempo de intervenção foi modulado pelo interesse dos participantes. Descrevem-se, a seguir, alguns exemplos de atividades relatadas no estudo:

• estimulação de reconhecimento e produção de fonemas por meio do canto e a voz modulada, enfatizando as características distintivas de cada um;

• estimulação de produção oral e compreensão auditiva de palavras e frases, por meio de enunciados fáceis de pronunciar e exemplificando seu significado com objetos concretos;

• associação entre objetos e respectivos sons;

• as atividades corporais marcadas pelo ritmo da música;

• estimulação de produção oral de todas as categorias de palavras: substantivos, verbos, adjetivos e palavras funcionais, para possibilitar a criação de palavras simples.

Cozzani, Zanobini e Usai (2016) revelaram que o treinamento teve impacto positivo para promover a competência linguística, pois o GE apresentou maior variedade de palavras e frases mais completas do que o GC no pós-teste. A intervenção também afetou positivamente o desenvolvimento das funções executivas, pois as crianças do GE demonstraram maior capacidade para modular sua velocidade de respostas motoras e inibir seus impulsos, confirmando a interação entre linguagem e função executiva, mesmo em crianças menores de 3 anos de idade. Os autores destacaram que se trata de uma intervenção de fácil aplicabilidade e de baixo custo em contextos escolares. Algumas de suas limitações são em relação ao tamanho da amostra (n = 41 crianças) e à falta de acompanhamento a longo prazo, as quais sugerem a necessidade de mais pesquisas.

 

DISCUSSÃO

O presente estudo revisou a literatura nacional e internacional com o objetivo de levantar evidências científicas sobre intervenções precoce-preventivas em funções executivas realizadas em bebês e crianças de 0 a 3 anos de idade no contexto escolar. Apesar da hipótese de que parecia haver poucos programas específicos de intervenção em funções executivas para a primeiríssima infância, considerando a importância da estimulação de tais habilidades, esperava-se encontrar um número maior de estudos realizados no contexto escolar com crianças de creches.

Dos 552 artigos identificados e analisados, apenas um atendeu aos critérios de elegibilidade. Este único estudo identificado (COZZANI; ZANOBINI; USAI, 2016) verificou a eficácia de atividades de intervenção precoce-preventiva em habilidades de linguagem, mas com o objetivo de também promover as funções executivas em crianças com desenvolvimento típico, com menos de 3 anos de idade. Os resultados da pesquisa de Cozzani, Zanobini e Usai (2016) identificaram que as crianças que participaram das atividades de intervenção tiveram ganhos não apenas em linguagem (maior variedade de palavras e frases mais completas), mas também em funções executivas (maior controle nas respostas motoras e inibição de impulsos). Tais resultados corroboram a literatura da área, indicando que já é possível perceber e melhorar as funções executivas de crianças ainda pequenas (ROSE; FELDMAN; JANKOWSKI, 2012).

Algumas hipóteses podem ser levantadas a partir dos resultados desta revisão da literatura: 1. talvez não haja muitos estudos com essa faixa etária, pois o ensino não é obrigatório em muitos países, incluindo o Brasil, para essa população. No Brasil, o ensino é obrigatório em todo o território nacional a partir de 4 anos de idade (BRASIL, 1988, 1996, 2009); e 2. no contexto nacional, os cursos de graduação em Pedagogia, que formam professores para ministrar aulas para essa faixa etária, não possuem disciplinas que abordam contribuições da Neurociência aplicada à educação, conforme estudo de Crespi e Nóbile (2019) e de León, Dias e Seabra (2018).

Ainda assim, considerando o número de creches que o Brasil tinha em 2018, 69,7 mil (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA [INEP], 2018), sendo a maioria municipal (59,4%), e as demais, que eram particulares, tinham convênios com estados e/ou municípios, a presente pesquisa se faz necessária no sentido de identificar práticas de estimulação de funções executivas mais eficazes para crianças da primeiríssima infância. Afinal, milhões de alunos brasileiros se encontram em creches para receber a estimulação de habilidades cognitivas dos seus professores. Considerando a escassez de estudos experimentais de estimulação de funções executivas com crianças de 0 a 3 anos de idade, futuras pesquisas podem investigar estudos teóricos de estratégias de estimulação específicas para melhor orientar práticas educacionais e, talvez, estudos experimentais futuros possam ser realizados para testar a eficácia de tais práticas no contexto nacional.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que o panorama nacional e internacional pouco avançou em relação às pesquisas voltadas para a intervenção precoce-preventiva em funções executivas nos espaços escolares, especificamente de bebês e crianças de 0 a 3 anos. Essa parece ser uma área que demanda mais interesse e investigação científica.

Embora o único artigo encontrado evidencie o impacto de um treinamento linguístico também nas funções executivas de crianças menores de 3 anos de idade e haja depoimentos e estudos correlatos sobre atividades que possivelmente estimulam o desenvolvimento de tais habilidades, emerge a necessidade de novos estudos para testar a eficácia dessas e de outras intervenções para a promoção de funções executivas em crianças menores de 3 anos.

A falta de pesquisas voltadas para as crianças de 0 a 3 anos de idade dificulta a melhoria da qualidade da intervenção nos espaços de educação infantil. O Brasil necessita de bases de dados com informações mais extensas a respeito do desenvolvimento infantil para além da questão da saúde (CCNPI, 2014).

Cabe ressaltar que há a possibilidade de alguns estudos não terem sido contemplados nesta revisão, dada a combinação específica de palavras-chave e as bases de dados selecionadas. Entretanto, os resultados desta revisão evidenciam aos profissionais da área educacional resultados acerca de atividades de intervenção disponíveis, como também identifica a carência nessa área de intervenção em funções executivas nos espaços escolares voltada para a primeiríssima infância. Assim, espera-se que futuras pesquisas possam desenvolver e testar atividades de intervenção para essa população no território nacional.

 

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Recebido em: 05/06/2020
Aprovado em: 07/08/2020

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