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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. v.7 n.14 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ

 

A relação entre ideologia e crítica nas políticas: reflexões a partir da psicologia social

 

The relation between ideology and criticism in public policies: reflections based on social psychology

 

 

Eda T. de O. TassaraI1; Omar ArdansII2

IUniversidade de São Paulo
IIUniversidade Federal de Santa Maria

Endereço para correspondência
 

 


RESUMO

O artigo propõe uma reflexão, a partir da psicologia social, sobre a relação entre ideologia e crítica nas políticas públicas, focalizando algumas interfaces da psicologia social com a ciência política, a lógica, a antropologia e a sociologia e implicando a discussão do objeto da psicologia social como sendo de caráter interdisciplinar, assim como seu método. Tal método apóia-se também na relação entre hermenêutica e filologia, na elucidação de premissas que sustentam a argumentação lógica, base da racionalidade e, portanto, da crítica.

Palavras-chave: Ideologia; Racionalidade; Crítica; Política; Psicologia Social; Políticas Públicas.


ABSTRACT

The article proposes a reflection, based on social psychology, about the relation between ideology and criticism in public policies, focusing on some interfaces of social psychology with politics, logic, anthropology and sociology, and implying the discussion of the object of social psychology as being of an interdisciplinary nature, as well as its method. This method is also supported by the relation between hermeneutics and philology, by the elucidation of premises that sustain the logical argumentation - the basis of rationality and, therefore, of criticism.

Keywords: Ideology; Racionality; Criticism; Politics; Social Psychology; Public Policies.


 

 

Para introduzirmo-nos no estudo da relação entre ideologia e crítica nas políticas públicas, propomos dois caminhos de análise.

De um lado, na interface da psicologia social com a ciência política e também com a sociologia e a antropologia, discutiremos a relação entre política e políticas públicas; isto nos levará ao cerne dos problemas vinculados ao primeiro dos termos que compõem o título deste artigo: ideologia.

De outro lado, em relação ao segundo termo do referido título e na interface da psicologia social com a lógica, nos debruçaremos sobre a problemática da racionalidade, único alicerce legítimo da crítica, partindo do pressuposto de que não é possível a crítica se não há condições de se analisar a argumentação em jogo e ainda, sem a possibilidade de se compreender e aceitar (ou rejeitar) as premissas que sustentem a dita argumentação.

Deste modo, a interface entre psicologia social e lógica deve ser subsidiada pela hermenêutica e pela filologia. Este será o eixo para aproximarmo-nos do terceiro dos referidos termos: políticas públicas.

Como o leitor poderá perceber, os dois percursos envolvem diversas articulações da psicologia social com outros campos do conhecimento, evidenciando uma determinada posição, interdisciplinar, no entendimento do que seja o objeto e o método da psicologia social.

A este respeito, apoiamo-nos nas palavras de Florestan Fernandes (1969) quando, ao sintetizar as posições defendidas por diferentes autores, ao longo da primeira metade do século XX, relativas às fronteiras disciplinares entre a sociologia, a psicologia, a antropologia e a psicologia social, define o campo da sociologia, afirmando:

A Sociologia não estuda a interação considerada em si e por si mesma; observa-a, descreve-a e interpreta-a como parte e expressão do modo pelo qual se organizam e se transformam os vários tipos de unidades sociais no seio das quais ela transcorre. Essas unidades apresentam magnitudes diversas, pois aparecem: a) como instituições e grupos sociais que incorporam os indivíduos a papéis e posições sociais nucleares, b) como camadas sociais que absorvem e coordenam tais instituições e grupos sociais e c) como sistemas sociais globais que integram tais camadas e condicionam o seu funcionamento, pertinência ou transformação (Fernandes, 1969, p. XI, grifos nossos).

E, em nota de rodapé, acrescenta:

psicologia social constitui uma matéria híbrida situada num ponto de confluência da psicologia, da sociologia e da antropologia. Embora ela seja fundamental para cada uma destas ciências, a problemática específica da sociologia se define além e acima desse campo híbrido, marginal e necessariamente interdisciplinar (Fernandes, 1969, p. XI, grifos nossos).

Embora esta definição tenha sido publicada na década de 60 do século passado, está a mesma ainda presente no debate contemporâneo no campo das ciências humanas.

Assim, Fernandes (1969) entende que a disciplina que estuda a interação “considerada em si e por si mesma” é a psicologia social, a qual é caracterizada, pelo autor, através de três elementos: hibridismo, marginalidade e interdisciplinaridade, afirmando, ainda, que ela seria fundamental para três disciplinas científicas, a psicologia, a sociologia e a antropologia.

Entendemos que, ao assim caracterizar a psicologia social, Fernandes (1969) não tenha empregado, de forma pejorativa, tais termos. Assim é que lemos as suas palavras da forma que se segue.

A expressão “matéria híbrida”, que adviria das ciências naturais, particularmente da botânica, indicaria que algo, em sua gênese, surge da mistura de diferentes “coisas”, combinação de diferenças que, no entanto, produzem uma nova forma. Além disso, o híbrido não permitiria a identificação, na nova forma, daquilo que corresponderia a um ou outro (uns ou outros, poder-se-ia dizer, pluralizando as origens) dos seus geradores e, mais ainda, não impede que esta nova forma venha a possuir características que, eventualmente, a tornaria mais apreciável que as daquelas que lhe deram origem.

Todavia, não se deve esquecer que o uso científico da palavra híbrido tem uma raiz semântica importante no âmbito da mitologia. Neste âmbito, os híbridos são geralmente considerados como resultados monstruosos, derivados de metamorfoses de formas de seres não monstruosas, em sua origem.

No entanto, em outros campos das ciências naturais, o uso científico da palavra “híbrido” sustenta-se sobre um significado no qual uma origem, baseada em diferenças, torna possível o surgimento de uma nova forma não necessariamente monstruosa.

Sob tais perspectivas é que, a interação humana, a materialidade fenomênica da psicologia social, “híbrida”, na metáfora de Fernandes (1969), pode ser entendida como se originando da diversidade de sociedades, de culturas, de valores, de modos de vida, etc. A interação humana seria sempre um híbrido que, para cada geração e para cada indivíduo, colocaria desafios inquietantes, todos relacionados à negação da diversidade humana e remetendo à problemática da identidade social, de sua constituição, de sua permanência e de suas metamorfoses. Um estudo filológico-hermêneutico desta negação da diversidade poderia deitar raízes no campo mitológico supra-referido, sugerindo uma relação de monstruosidade advinda da miscigenação de povos, de raças, de culturas.

Na sociedade contemporânea, face à intensificação dos fluxos de comunicação sociocultural, evidencia-se uma dialética que se sustenta sobre a aceitação, ou não, do caráter híbrido da interação humana. Esta dialética apresenta-se enfrentando dois pólos: de um lado, a aceitação das diversidades humanas, através do seu encontro historicamente determinado (historicização), produz um descentramento de mesmices identitárias (alterização); de outro, a recusa de tal caráter híbrido, hierarquiza (hierarquias essas arbitrárias em sua origem) formas de interação humana, sustentadoras de ideologias subjugadoras de seres humanos por outros seres humanos, gerando racismos, xenofobias, sexismos, fundamentalismos e outros.

Desta forma, a partir da aceitação do caráter híbrido da interação humana, desenha-se um dos grandes desafios da psicologia social, qual seja, precisamente, o da defesa da diversidade humana como pré-requisito ético da compreensão científica do humano. Este compromisso, cujas raízes podem ser encontradas já nos primórdios do pensamento clássico grego, emerge como um axioma necessário no estudo ético da sociedade contemporânea. Embora alimentado por interpretações filosóficas arcaicas ou emergentes, a explicitação hodierna deste compromisso apresenta-se como uma decorrência dos processos históricos que se deram, intrínseca e extrinsecamente, no campo do conhecimento científico ao longo da modernidade, bem como, das transformações sociais que os sustentaram e/ou foram deles resultantes.

Esta vinculação, ético-política, estaria indelevelmente imbricada com o próprio avanço do conhecimento sobre a interação humana e suas múltiplas formas de manifestação. Configura-se, desta forma, um elo ético necessário entre a psicologia social e a política que comprometido, em seu significado, com o híbrido, com as diferenças, localizar-se-ia nos propósitos da construção democrática das sociedades e da compreensão dos processos de socialização dos indivíduos nessas sociedades. Caberia enfatizar, então, como uma exigência ética, a necessidade de aceitação da pluralidade de formas de interação humana possíveis evidenciando-se o caráter arbitrário com o qual as hegemonias se legitimam. A vinculação ética gera a indissociabilidade da interface política-psicologia social.

Se a análise feita nos parágrafos anteriores dizia respeito à natureza específica do objeto da psicologia social, a interação humana e seu caráter híbrido, campo marginal, por sua vez, referem-se à disciplina Psicologia Social, configurada em função da posição ocupada por seu objeto específico no campo das ciências humanas: nos interstícios disciplinares (margens) e nas fronteiras dos conhecimentos por elas alcançados; margens estas que são compartilhadas, nas suas interfaces, com outros posicionamentos disciplinares, e que se situam na vanguarda da produção do conhecimento nos domínios da sociologia, da antropologia e da psicologia e, indo além da posição de Fernandes (1969), da psicanálise, constituindo-se de forma original e autônoma deles.

A formulação da psicanálise veio introduzir, de forma não intencional, um novo fator de perturbação na delimitação objetiva das fronteiras entre as disciplinas em análise sem, contudo, dissolvê-las. Se, de um lado, a antropologia cultural trouxe como referência a diversidade das manifestações culturais, a psicanálise assenta suas teorias sobre a pressuposição da universalidade das manifestações simbólicas humanas. Esta perturbação, que potencialmente conturbaria o sistema naturalista de interpretação do mundo, sistema este do qual decorre a ciência moderna e que separa de forma absoluta a cultura da natureza e, portanto, os fatos e objetos humanos dos não-humanos (Descola, 2005), paradoxalmente o reafirma, configurando aspectos universais no bojo da diversidade das interações humanas. Ao formular princípios atemporais para a compreensão da capacidade simbólica humana e de sua formação, restaura a cisão natureza-cultura no campo das ciências humanas, englobando nele o estudo atemporal da diversidade de fenômenos temporais (e, portanto, sociohistóricos e políticos).

Assim, situada às margens das ciências humanas, nelas incluindo a psicanálise, a psicologia social continuaria comprometida com seu caráter híbrido e necessariamente interdisciplinar. Cumulativamente, então, se a interação humana for considerada sempre, e desde sempre, híbrida, esta consideração implica, ao mesmo tempo, a aceitação lógica da impossibilidade de determinação a priori, seja de suas origens e manifestações, seja das interfaces disciplinares no interior das quais o objeto se situará.

Estas considerações poderiam ser ilustradas em analogia com as palavras com as quais G. Agamben (2005) caracteriza a produção de seu pensamento:

Esta posição está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de ‘um campo’, onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política, filologia, literatura, teologia, direito, não representam disciplinas e territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta intensidade. A configuração do que você chama de meus ‘múltiplos campos de interesse’ depende, pois, da contingência capaz de determinar uma tensão na situação histórica concreta em que me encontro. Não devemos esquecer, por exemplo, que é impossível haver filosofia sem filologia, da mesma forma como é impossível teoria sem história. Para mim, assim como para Foucault, a investigação histórica do passado, é apenas a sombra da interrogação histórica sobre o presente. E atualmente, mais do que nunca, a arqueologia é a única via de acesso ao presente (Agamben, 2005, p. 4, grifos nossos).

Decorre dessas ponderações que o estudo dinâmico (histórico-geográfico ou espaço-temporal) de seu objeto só será consistente na medida em que se inscrever nos interstícios das margens, dos limites, das fronteiras, entre os quais o híbrido vem, em todo momento, a se constituir.

Esta caracterização, que é ética, política e metodológica ao mesmo tempo, aponta para algo (implícito no trecho de Fernandes) que consideramos essencial ao caráter científico da pesquisa em psicologia social: qualquer pesquisa verdadeiramente científica em psicologia social deve apreender seus objetos nas margens disciplinares, se ela quiser, efetivamente, produzir conhecimento “novo”. Isto determina que a Psicologia Social, para ser caracterizada como uma área de pesquisa científica, deve constituir-se como uma ciência “de ponta”, situada nas fronteiras do conhecimento, falando pelas retóricas das vanguardas.

Ainda sob tais considerações e por definição, todo conhecimento é sempre algo novo, embora esteja necessariamente alicerçado no conhecimento anterior, como exemplifica G. Bateson (1972), ao escrever sobre a descoberta da máquina de vapor3. Assim, seria também um absurdo dizer-se que o conhecimento novo estaria já contido naquele outrora produzido. Pelo contrário, para produzi-lo, tem-se que ir além dele. E para tanto, quem quiser produzi-lo, há de se situar nas margens (daquilo que é conhecido) do objeto (a interação humana). Tal semia do termo marginalidade transforma, portanto, esta última em um pré-requisito da heurística.

Conforme foi anteriormente analisado, a psicologia social situar-se-ia, como campo de conhecimento, “entre” os campos definidos pelas disciplinas humanas historicamente consolidadas e nas suas fronteiras temporais. Sob tal perspectiva e no sentido da conceituação de psicologia social oferecida por Fernandes (1969), faz-se, aqui, necessário acrescentar que “entre” os campos disciplinares elencados por esse autor, está a psicologia, abrindo-se com isto, um território vasto e cheio de conflitos escolásticos no plano metodológico.

A apresentação da psicologia social como constituindo uma área científica independente da psicologia, vem conflitar com o pensamento intuitivo disseminado na sociedade, que não distingue esses dois campos disciplinares dado conterem o termo “psicologia”; contudo, esta apresentação se sustenta na evolução histórica destes campos de conhecimento.

As origens da psicologia social autônoma remontam a uma bifurcação histórica ocorrida ao longo do século XX, pela qual, foram configurados novos, genuínos e específicos objetos para a mesma, distinguindo-a dos objetos das demais ciências humanas.

Esse objeto consiste no comportamento político e em suas implicações e desdobramentos sobre as interações humanas, contribuição que deve ser creditada aos eminentes estudos de Kurt Lewin (1948), os quais permitem atribuir a este autor, com legitimidade, o epíteto de pai da psicologia social uma vez que, com suas reflexões e proposições, delimitou (cf., por exemplo, Lewin, 1948) este novo campo de investigação, não contido na psicologia, na antropologia, na sociologia e na psicanálise.

Tal campo permitiu delimitar como figura a psicologia social autônoma, inscrita no zeitgeist do momento em que surge e delineada a partir de um fundo quatripartite (antropologia, sociologia, psicologia e psicanálise), inter-relacionando seus elementos de forma necessária. Como disciplina autônoma, a psicologia social configura, então, uma unidade fenomênica, o grupo, um objeto específico, o comportamento sóciopolítico, e uma metodologia científica própria, a pesquisa-ação4.

Há, ainda, que se acrescentar às considerações precedentes, a posição de Barthes (1984) sobre a interdisciplinaridade. Em analogia com o pensamento deste autor, a psicologia social não seria interdisciplinar somente porque, como campo, deve se situar entre as disciplinas, nem tampouco porque para produzir conhecimento deveria se situar às margens do objeto, mas, e principalmente, porque para produzir conhecimento, há de se pressupor, no objeto, dimensões desconhecidas que, portanto, fazem com que se venha a considerá-lo, sempre, como um novo objeto. Escreve Barthes (1984):

A interdisciplinaridade, de que tanto se fala, não está em confrontar disciplinas já constituídas (das quais, na realidade, nenhuma consente em abandonar-se). Para se fazer interdisciplinaridade, não basta tomar um ‘assunto’ (um tema) e convocar em torno duas ou três ciências. A interdisciplinaridade consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém (Barthes, 1984, p. 102).

Nesta perspectiva, um novo conhecimento produzido não é uma verdade estabelecida de uma vez e para sempre, mas apenas pré-requisito para se ir além, para se atravessar fronteiras do já sabido em direção ao que se almeja conhecer. A caducidade da verdade se dá pela transformação histórica do objeto, implicando outras abordagens metodológicas para a sua apreensão cognoscitiva. Embora a racionalidade com que se abordam os objetos possa ser de natureza atemporal, sua temporalidade se situa no contexto histórico no qual se inscreve sua circunstância.

Após a enunciação destas considerações sobre a complexidade metodológica envolvida no estudo dos objetos da psicologia social, dado que o presente artigo visa uma reflexão sobre relações entre ideologia e crítica nas políticas públicas e as articulações de caráter interdisciplinar que elas envolvem, passamos à análise da questão da ideologia, caracterizada por Foucault como uma “noção muito importante e ao mesmo tempo muito embaraçosa”. (Foucault, 1973, p. 27)

Para introduzir seu pensamento sobre ideologia, o filósofo inicia seu texto se confrontando com o marxismo:

Nas análises marxistas tradicionais a ideologia é uma espécie de elemento negativo através do qual se traduz o fato de que a relação de conhecimento é perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência, por relações sociais ou por formas políticas que se impõem do exterior ao sujeito de conhecimento. A ideologia é a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre o sujeito de conhecimento que, de direito, deveria estar aberto à verdade (Foucault, 1973, p. 27).

Na posição marxista tradicional, segundo Foucault (1973), há um lugar importante para o conceito de véu. A relação de conhecimento é velada pelas condições de existência, sendo a ideologia o próprio véu que perturba, obscurece a referida relação de conhecimento. Foucault (1973) vai se contrapor a essa posição, que se poderia denominar de velamento. A seguir, oferece sua conceituação, nos seguintes termos:

O que pretendo mostrar (...) é como, de fato, as condições políticas, econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade. Só pode haver certos tipos de sujeitos de conhecimento, certas ordens de verdade e certos domínios de saber, a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade (Foucault, 1973, p. 27, grifos nossos).

Aquilo que, para a posição marxista, seria um obstáculo, é entendido por Foucault (1973) como solo, substrato; substrato este que dá origem, ao mesmo tempo, à formação do sujeito, aos domínios do saber e as relações com a verdade. Mas, o que conformaria esse solo? Este solo se constitui, a nosso ver, nas condições políticas nas quais se socializam os indivíduos (substrato). Constitui-se, portanto, em um outro obstáculo, uma venda que obnubila também o conhecimento dos objetos porque se interpõe entre o sujeito e objeto.

Esta dialética permite incorporar, na análise do problema em questão, tanto a posição marxista como a foucaultiana, e que diz respeito, ao mesmo tempo, aos véus (do objeto), que se interpõem entre o sujeito e o objeto do conhecimento como ato de dominação e as vendas (do sujeito) que se interpõem entre o sujeito e o objeto, vindas da formação da subjetividade na socialização, e que também dificultam o conhecimento. Em síntese, para nós, os problemas que a análise da ideologia obriga a enfrentar são, ao mesmo tempo, os dos véus (do objeto) e os das vendas (do sujeito) (Tassara e Ardans, 2005).

É a partir desta consideração que a relação de conhecimento torna-se verdadeiramente dialética, pois, junto ao desvelar, o desvendar do sujeito significa o conhecimento das condições políticas da formação do próprio sujeito, sua socialização. Em outras palavras, permite a emergência da consciência do sujeito enquanto sujeito histórico que, ao desvelar ao sujeito a historia social, desvenda a ele sua própria historia, em um movimento que desfaz, concomitantemente, a falsa consciência e a ilusão.

Com base nessas considerações, podemos passar para a análise do termo crítica5.

Para Aristóteles, uma sentença seria verdadeira quando o predicado conviesse ao sujeito. Tal afirmação mostra-se consistente com a crítica apresentada por Foucault (1973) sobre a questão da verdade: de fato, só é possível julgar a verdade de uma afirmação, dentro da ortodoxia lógica, se houver uma semântica que permita julgar tal “conveniência” entre sujeito e predicado, independentemente da complexidade dos termos componentes das asserções e afirmações. Obviamente, nesta semântica estão implícitos os valores, as crenças, as ideologias, construídos ao longo do processo civilizatório, de onde resultam certezas e verdades, afirmadas nos argumentos em pauta (Tassara, 2003).

Por tal razão, a crítica lógica do argumento, não pode prescindir da crítica hermenêutica e filológica das semânticas que o sustentam. Através desta crítica emergirão as tensões e divergências implícitas nos processos de subjugação e dominação, e se explicitarão os fundamentos lingüísticos das semânticas, eivados de significados ocultos, produzidos pelos silêncios e silenciamentos6, resultantes dos referidos processos de dominação.

A consciência da arbitrariedade semântica advinda da crítica lógica explicita, pari passu com a análise filológico-hermenêutica dos seus significados e usos, dimensões cognitivas e afetivas. As primeiras, referidas à compreensão do caráter arbitrário da verdade nos argumentos lógicos, e as segundas, evidenciando, em uma poética, a construção humana do conhecimento, desnaturalizando-a.

G. Agamben (2003), a esse respeito, considera que a terminologia é o instante propriamente poético do conhecimento7. Por outro lado, A. Bosi (2003) refere-se à definição de poética de Benedetto Croce (1953), como a síntese entre o pathos e a figuração8.

Assim, a apreensão da arbitrariedade semântica alimenta buscas históricas dos sentidos soterrados nas palavras, levando à apreensão afetiva desses sentidos (o pathos) e de sua figuração. Qual é a poética da política? Borges afirma: “A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, têm algo a nos dizer - ou alguma coisa já nos disseram que não deveríamos ter perdido. Esta iminência de revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético” (Borges, citado por Tassara, 2001, p. 211).

Parafraseando Borges, e na esteira do pensamento de Croce (1953), a poética da política estaria, então, situada na dialética da descoberta difusa daquilo que perdemos (no processo histórico de dominação), alimentando aquilo que buscamos (a utopia da emancipação e da democracia radical).

O disciplinamento não democrático, naturalizado, a nosso ver, mata a força poética, na medida em que oculta a sua produção humana e histórica em sua multiplicidade e diversidade, e se apresenta como alternativa única. Trata-se, portanto, de recuperar a poética, através da desnaturalização (democratização) provocada pela crítica (lógica-filológica-hermenêutica), permitindo a emergência da consciência daquilo que requer solução, dos problemas inerentes às interações humanas cristalizadas em um contexto de disputas e tensões provocadas pela implantação de formas de convívio subjugadoras e dominadoras de uns pelos outros. Ou seja, formas não democráticas, no sentido mais arcaico do termo: a não defesa das minorias frente às maiorias, como ato essencial de governo.

Política, nesse sentido, pode ser entendida, à maneira aristotélica, como a definição de regras de convívio que disciplinam as dinâmicas históricas das interações humanas, e, portanto, a definição do futuro social. Sob tal configuração, Política e políticas públicas são sinônimos, uma vez que o espaço das interações humanas, em sua totalidade, é o espaço público em uma sociedade democrática. Logo, a relação entre ideologia, crítica e políticas públicas é uma relação de indissociabilidade, quando situada em um contexto social democrático, na medida em que a desnaturalização da ideologia, produzida pela crítica necessária, alimentará poeticamente as buscas de compreensão dos problemas de interação humana inerentes à vida social em cada instante de sua dinâmica, em um processo ininterrupto de aperfeiçoamento da mesma, rumo à utopia da democracia radical.

Esse processo crítico fomentaria a transparência das interações humanas na vida social, aceitando o hibridismo gerado pela diversidade das possibilidades humanas, aproximando suas fronteiras de sua consecução utópica. Qual seria, então, o papel da psicologia social neste processo?

Quando as políticas públicas coincidem com a Política, no sentido aristotélico, a psicologia social é esse processo de desconstrução crítica e o conhecimento dele derivado sobre a vida social como um todo. Seu método, como já afirmado: a pesquisa-ação. Seu instrumento: a intervenção psicossocial emuladora da crítica do processo de socialização. Seus resultados: o incremento do processo de desnaturalização histórica e identitária e a emergência e/ou consolidação da consciência histórica e social dele resultante. O conhecimento daí decorrente é o esclarecimento do processo de construção histórica da interação humana e de seus resultantes psicossociais no plano material e simbólico.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Eda T. De O. Tassara
E-mail:lapsi@usp.br

Omar Ardans
E-mail:ardans@uol.com.br

Recebido em: 10/08/2007
Aprovado em: 27/02/2008

 

 

1Professora Titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Intervenção (LAPSI-IPUSP). Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, Travessa 4, Bloco 17, Sala 15B, Cidade Universitária, 05508-030, São Paulo, SP.
2Doutor em Psicologia Social. Coordenador Adjunto do LAPSI-IPUSP. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, Travessa 4, Bloco 17, Sala 15B, Cidade Universitária, 05508-030, São Paulo, SP.
3“Uma vez conheci um menininho na Inglaterra que perguntou a seu pai: ‘Os pais sabem sempre mais do que os filhos? ’ E seu pai disse: ‘Sim’. A pergunta seguinte foi: ‘Pai, quem inventou a máquina a vapor? E o pai disse: ‘James Watt’. E, então, o menino replicou: ‘Mas, por que não a inventou o pai de James Watt? ’” G. Bateson (1972, p. 47).
4Dentro dessa concepção disciplinar, torna-se irrelevante a dicotomia entre a psicologia social psicológica, com predominância de explicações de cunho psicologista e a psicologia social sociológica, com predominância de explicações de cunho sociologista.
5“A palavra ‘crítica’ surge como um tópico do debate filosófico ao longo do século XVIII. Inúmeros livros e escritos introduzem, em títulos pedantes, característicos da época, a palavra ‘crítica’ ou ‘crítico’. (...) Em compensação, a expressão ‘crise’ era empregada muito raramente no século XVIII e, de maneira alguma, constituía um conceito central para a época. Este fato está longe de ser uma casualidade estatística, pois guarda uma relação específica com a primazia da crítica. (...) A palavra kritik, crítica (em francês critique; em inglês criticks, hoje apenas criticism) tem em comum com Krise (em francês, crise; em inglês, crisis) a origem grega, a partir de [verbo significando] separar, eleger, julgar, decidir, medir, lutar e combater. O emprego grego de krisis, crise em português, significa em primeiro lugar, separação, luta, mas também decisão, no sentido de uma recusa definitiva, de um veredicto ou juízo em geral, que hoje pertence ao âmbito da crítica” (Koselleck, 1959, p. 201-2).
6“(...) realidades ausentes por via de silenciamento, da supressão e da marginalização, isto é, as realidades que são ativamente produzidas como não existentes” (Santos, s/d).
7“Se, como se sugeriu, a terminologia é o momento propriamente poético do pensamento, então as escolhas terminológicas nunca podem ser neutras” (Agamben, 2003, p. 15).
8“A expressão poética é definida [por Croce] como intuição, logo conhecimento por imagens. Poesia não é nem puro conceito nem sentimento imediato. É síntese de pathos e figuração” (Bosi, 2003, p. 75).

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