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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. v.7 n.14 São Paulo dez. 2007

 

RESENHA

 

Laicismo e atualidade: relações entre religião civil e estado-nação

 

Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá

Universidade Federal do Ceará

Endereço para correspondência
 

 

CATROGA, Fernando. Nação, Mito e Rito. Religião Civil e Comemoracionismo (EUA, França e Portugal). Fortaleza: NUDOC-UFC/Museu do Ceará, 2005.

Embora a moral não tenha desaparecido do campo social, o fato é que ela é imposta de fora, pelas mensagens veiculadas na mídia, e não mais determinada de dentro. É verdade que as normas sociais não são mais decretadas nem impostas pelo espírito nacional, pela família ou pelas Igrejas e que os referenciais fornecidos pelas instâncias tradicionais não mais fazem sentido e precisaram adaptar-se à lógica do consumo (Lipovetsky, 2005:40).

As sociedades (hiper)modernas perderam a paciência de ouvir os sermões que beiram a hipocrisia e que, distante da realidade atual, pregam o que não podem nem querem cumprir. Apesar de sabermos que a mídia tem um papel normativo e exerce influência sobre o cotidiano com inquestionável poder de massificação, ela pode favorecer, mas não necessariamente impor, um ou outro comportamento público. As Igrejas engajam-se no uso do poder da mídia para veicular antigas mensagens em nova roupagem sem, contudo, produzir o efeito desejado. Para constatar tal situação é suficiente observar a relação igreja católica, sociedade e mídia na Espanha durante as campanhas religiosas contra o matrimônio homossexual ou o seu posicionamento sobre o uso de preservativos e a falta do efeito social esperado de tal posicionamento. Há um clamor social pela separação das forças estatais e eclesiásticas em nome da viabilidade de um Estado moderno e que cumpra o dever de possibilitar o acesso dos cidadãos a informações e a pontos de vista diversos, a uma gama variada de escolha. Isso proporciona autonomia de pensamento e de ação e liberdade de opinião sobre um número maior de fenômenos: “Aliás nossas sociedades se caracterizam não pelo consenso, mas pelo debate permanente, para o qual a mídia contribui muito.” (Lipovetsky, 2005: 42).

A Turquia de hoje é um exemplo disso e se divide entre uma população retrógrada e apegada a valores religiosos radicais, com objetivos de construção de um estado teocrático, segundo o modelo de outros vizinhos, e uma população realista, que deseja encurtar sua distância até a Europa por meio da manutenção e aprofundamento do laicismo já preconizado pelo fundador da Turquia moderna, Mustafah Kemal Ataturk. A estratégia de teocratizar as guerras estadunidenses no período W. W. Bush contribuiu para o sucesso de sua propaganda doméstica ao mesmo tempo em que reforçou a idéia de que tais modelos de governos com matizes religiosos implicam em retrocesso político. É para evitar essas surpresas desagradáveis, que a população turca protesta em massa contra a iminente escalada ao poder central do país de algum líder religioso, optando pela continuidade de um laicismo conquistado a duras penas, desde a fundação do seu estado moderno. Apesar de questionado internacionalmente por sua política interna de repressão aos curdos, no que tange ao laicismo do estado, os turcos têm muito o que ensinar a seus vizinhos.

Modelos nos quais um pensamento religioso, ou um mosaico de valores, buscam dominar o ideário e a existência de todos, pressupõem a prática de atos de base moral personalista em detrimento daqueles oriundos dos princípios democráticos das sociedades modernas.

Estados religiosos ou teocráticos provaram-se incompatíveis com as demandas deste século. Sloterdijk (2004) vê, na busca da verdade e do bem viver, uma idiossincrasia européia, assim como na defesa da justiça, da liberdade e dos direitos humanos. Mas isso não pode ser um privilégio europeu. Os povos, em geral, têm lutado por liberdade e justiça, ou ao menos por uma determinada idéia dessas lutas. Parte dessa luta é, pois, a busca da construção e consolidação de Estados laicos que realizem as demandas de seus cidadãos.

El Estado en su casa y la Iglesia en la suya.Victor Hugo (católico confesso!)

Nessa perspectiva de trazer à luz a discussão sobre as nações e seus ritos, apresentamos o livro do professor português Fernando Catroga. Doutor em História e professor da Universidade de Coimbra-Portugal, integra o Instituto de História e Teoria das Idéias e é pesquisador junto ao Centro de História da Sociedade e da Cultura e diretor da Revista História das Idéias. Da mesma forma que as idéias de Fernando Catroga nos ajudam a compreender o fenômeno do laicismo e das nações, também ajudam na árdua tarefa daqueles que buscam tornar as regras dos Estados boas para os homens, independente de suas crenças.

O livro Nação, Mito e Rito: Religião civil e comemoracionismo (EUA, França e Portugal), de Fernando Catroga, aprofunda tais questões e remete a uma análise rigorosa das relações entre religião e Estado, em suas múltiplas perspectivas. As fontes analíticas partem da observação da realidade de três nações: os Estados Unidos da América, França e Portugal. O autor adverte, em explicação prévia, a natureza dos quatro ensaios distintos que, apesar de delimitados pelos respectivos títulos, podem guardar diferenças e/ou semelhanças a serem descobertos pelo leitor, à guisa de desafio. As análises dizem respeito a dados mais remotos da história dessas nações, mas também da sua realidade atual, o que pode sobremodo ampliar o campo de pesquisas que pretendam tratar da fundação dos Estados, seus embates atuais no campo da política e da religião, bem como na compreensão do tempo presente, a exemplo dos embates de caráter político-religioso que ocupam o noticiário europeu.

Dois conceitos, a saber, o de religião civil e o de religião do homem, perpassam a discussão teórica do autor sobre os matizes da formação e da organização de Estados a partir dos princípios das religiões. A religião civil é compreendida enquanto “componente religadora que teve seu primeiro grande teorizador em Rousseau, e cuja função reside na sacralização do viver comum de uma dada colectividade” (Catroga, 2005:12). A religião do homem cinge-se, por seu turno, “a uma adesão puramente interior a Deus e aos deveres eternos da moral, intuídos a partir da consciência, criação divina por excelência” (Catroga, 2005:13). Vale, ainda na atualidade, a crença de que a ausência de religião gera o perigo e uma diferença insuportável, aproximando-se do que hoje conhecemos como idéia mestra dos Estados de fato ou, disfarçadamente, teocráticos.

Na pertinência religiosa estavam, segundo Catroga, as raízes do devir “americano”. Difícil imaginar que um cidadão imigrante pudesse encontrar o seu ethos fora dessa pertinência. “...nos EUA, existe uma religião civil estabelecida, a qual, embora não esteja organizada como Igreja, tem um papel fundamental na produção e reprodução do consenso nacional e social, tarefa tanto mais necessária quanto se trata de uma sociedade de imigrantes.” (Catroga, 2005:23). Essa religião civil postula, segundo Rousseau (citado por Catogra, 2005: 26), a crença num Deus transcendente, na imortalidade da alma e no Juízo Final, premissas dadas como necessárias para a sacralização do próprio contrato social. Apesar de nos EUA não existir, em sentido literal, uma religião de Estado, “...funciona, pelo menos, uma religião civil estabelecida, muito impulsionada pelo poder político”. (Catroga, 2005:26). É um país sacralizado, nos seus mitos, ritos e expressões nacionais. Desde seu mito de fundação até o alargamento territorial do expansionismo, seja em 1840, em direção ao México e hoje, em direções várias. Cabe nesse paradigma bíblico a idéia dos estadunidenses como “povo eleito”, sugerindo uma coincidência entre seus interesses específicos e os interesses do Bem, em geral. Hoje, a ameaça do terrorismo, elemento difícil de ser ignorado, dá asas à idéia original do surgimento de uma nova Nação, movida pela Providência, e cujo destino será o de iluminar os demais povos da Terra. As conclusões sobre a hegemonia estadunidense (Chomsky, 2004) se coadunam com o paradigma bíblico utilizado na retórica da religião, na qual se percebe a idéia de “povo eleito” “encarnada no novo povo americano, crente que é portador de uma vocação (no sentido weberiano do termo) que lhe dita o cumprimento de um manifest destiny”, (Catroga, 2005:31).

Ao contrário do modelo estadunidense, a França trilha, há mais de dois séculos, o caminho da laicização do Estado. Isso já em seus primórdios é compreendido como um processo de secularização da religião civil. Tratava não somente da separação do Estado das confissões, mas também de uma luta para a organização religiosa restrita à esfera da sociedade civil. E, como afirma Catroga, desigualmente do caso estadunidense, cuja missão de sacralizar a Nação, e sobretudo a Pátria, teve uma fonte divina:

(One Nation under God), o deísmo francês do período da Revolução evoluiu para uma fundamentação agnóstica dos primeiros princípios; o que, porém, não impediu que se tivesse gerado uma certa sacralização do profano. Ela encontra-se manifesta tanto no cariz universal dos valores fundantes da própria República, como na sacralização da idéia de Pátria, entidade mística que, no plano da formação das almas, irá ocupar o lugar deixado vazio pela ‘morte’ metafísica e cívica de Deus.(Catroga, 2005:114).

Não obstante uma reconhecida influência francesa no modelo português de formação de Estado e da forma como se pode compreender sua relação com a religião, pode-se falar também aqui de uma especificidade, de forma particular no que tange à construção de um sentimento coletivo, dentro de um sistema de educação nacional que recorreu, abundantemente, a mitos, símbolos e ritos. Conforme constata o autor, o peso dessa construção recai sobre o contraste entre os momentos gloriosos do passado e a decadência do presente.

Para defender o laicismo como pilar das democracias modernas, nos apropriamos de algumas idéias do artigo intitulado La laicidad y la nueva Europa de Luis María Cifuentes Pérez (2003). Os conceitos de laicismo e de laicidade têm especial tradição na França, onde esta tentativa resultou em uma lei de separação entre a Igreja e o Estado, em 1905. Talvez seja este o único país europeu que possui um estatuto de laicidade para suas instituições públicas, uma ética autônoma baseada nos direitos humanos e nos ideais do Iluminismo com base no lema revolucionário: “liberdade, igualdade e fraternidade”. Essa forma de espiritualidade laica característica do republicanismo francês, deveria ser o ingrediente essencial de uma nova ética humanista e laica própria das sociedades secularizadas atuais. Falamos de um laicismo ou laicidade que não significam necessariamente anticlericalismo, agnosticismo ou ateísm o. As acusações de anticlericalismo ao movimento laicista esquecem ou minimizam os abusos do poder clerical e dos partidos “clericais” na história mundial. A laicidade como projeto filosófico não promove diretamente o anticlericalismo nem consiste em uma rejeição sistemática ao clero; o laicismo como movimento social e cívico sustenta que nenhuma igreja, confissão ou instituição religiosa deve desfrutar de privilégios políticos, econômicos ou culturais no âmbito público e que os governantes não devem atuar na elaboração de leis sob os ditames de nenhum clero ou igreja, uma vez que os Estados e os poderes públicos devem ser neutros em matéria de crenças religiosas. O princípio fundante de laicismo do Estado exige que se garantam a todos a liberdade de consciência, não somente a liberdade religiosa, e, portanto, é inadmissível ao clero de qualquer confissão religiosa a utilização de mecanismos e poderes do Estado para fazer prevalecer suas crenças e para tentar impor a todos suas normas e seus valores morais. Nada impede que um governante de outra confissão religiosa ou sem nenhuma confissão seja igual ou melhor do que um governante de confissão cristã, pois a gestão dos assuntos de Estado não depende da profissão de fé, senão de uma ética pessoal e de uma ética pública que não estão vinculadas à religião. Ser um bom cidadão ou um bom governante não exige ser cristão nem adotar a expressão pública das crenças religiosas. O ateu pode ter um comportamento ético-social superior à prática de muitos crentes, como afirma Pierre Bayle (citado por Catroga, 2005).

As implicações da religião na política conduzem geralmente a condicionamentos teocráticos que impedem o livre exercício da liberdade de consciência dos cidadãos; a intolerância dogmática no modo de viver as religiões não é precisamente uma garantia de convivência pacífica e democrática. A liberdade de consciência individual, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, a total separação do Estado e das igrejas no âmbito jurídico e político e, por fim, a defesa da tolerância e do diálogo intercultural e interreligioso, são os elementos básicos constitutivos do verdadeiro laicismo. A utilização política das religiões tem sido historicamente fonte de violência, fanatismo e guerra. No fundo, há um elemento constitutivo de todas as religiões monoteístas que torna difícil o respeito e a tolerância das demais religiões e crenças. Se cada religião monoteísta, cada religião do Livro (cristianismo, islamismo e judaísmo) se apresenta como a única possuidora da Verdade em questões morais e de formas de vida, é impossível que não surjam conflitos entre elas. Por tudo isso, a laicidade e o laicismo podem se apresentar no mundo atual como uma ponte de diálogo entre as culturas e as religiões, já que promovem a tolerância das diferentes culturas e o respeito a todos os estilos de vida desde que não atentem contra os direitos humanos.

Não vale a pena falar da existência de um povo eleito cujos interesses sejam, por natureza, os interesses do Bem. Autodefinições dessa envergadura apenas levam a crer que as injustiças sociais causadas com “marcas da decisão humana na sua fabricação”, ao invés de desmistificadas sejam justificadas e aceitas como um “cumprimento de desígnios providenciais” a despeito do mal que possam causar ao homem:

Qualquer que seja a sua expressão, é um facto que, se o actual império da liberdade de consciência exige que se respeite não só a liberdade religiosa, mas também a liberdade à não religião, as religiões civis não se podem intrometer, de um modo directo ou indirecto, no pleno gozo desses direitos. É que elas também constituem representações ideológicas, que, ao sacralizarem destinos de povos em nome do universal, acabam por encobrir pretensões particulares. Com efeito, não se pode esquecer que estão marcadas pelas experiências específicas que lhes deram origem e que, reciprocamente, elas legitimam. Por conseguinte, mesmo quando falam em nome da humanidade, o que pretendem é, em última análise globalizar a sua concretude. Dir-se-ia que os seus manes estão demasiadamente condicionados pelos interesses de quem os inventou. E como os deuses das religiões propriamente ditas também continuam mais a dividir do que a pacificar, perguntar-se-á se não será necessário, para se criar uma nova ordem, desnacionalizar e ressecularizar a sacralização do político, a fim de que se possa praticar, em plenitude, não só a vivência autêntica do sagrado, mas também o cumprimento de uma cidadania capaz de construir e de respeitar, com mais transparência, a universalidade na diferença. (Catroga, 2005:581).

 

Referências bibliográficas

CATOGRA, F. (2005). Nação, mito e rito. Religião civil e comemoracionismo. Fortaleza: NUDOC-UFC.

CHOMSKY, N. (2004). O império americano: hegemonia ou sobrevivência. Tradução: Regina Lyra. Rio de Janeiro: Editora Campus.

CIFUENTES, L. M. (2003, novembro de). La laicidad y la nueva Europa. El rapto de Europa, (3), 37-50.

LIPOVETSKY, G. (2005). Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla.

SLOTERDIJK, P. (2004). Si Europa despierta. Reflexiones sobre el programa de una potencia mundial en el fin de la era de su ausencia política. Traducción de Germán Cano. Valencia: Pre-Textos.

 

 

Endereço para correspondência
Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá
E-mail: tupinamb@ufc.br

Recebido em: 30/04/2007
Aceito em: 19/06/2007

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