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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.8 no.15 São Paulo June 2008

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e política

 

Psychoanalysis and politics

 

Psicoanálisis y política

 

 

Roberto Calazans*

Universidade Federal de São João Del Rei - Brasil. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo demonstrar os diversos modos de relação entre a psicanálise e a política – escolha forçada entre uma e outra, reunião e intersecção, as razões desses diversos modos de relação e os impactos que eles têm sobre os projetos que encontramos em diversas partes do mundo de considerar a clínica psicanalítica como uma psicoterapia e, a partir daí propor em Assembléias Legislativas um plano de controle da práxis da psicanálise. Demonstraremos que tal proposta é, de certa maneira, um modo de evitar uma das características da política – o debate –, que, longe de ser uma proposição feita em bases científicas, traz implícita uma ética de controle dos sujeitos.

Palavras-chave: Psicanálise, Política, Psicoterapia, Controle, Sujeito.


ABSTRACT

The present article has for objective to demonstrate the several relationship manners between the psychoanalysis and politics - forced choice among one and another; meeting and intersession -, the reasons of those several relationship manners and the impacts that they have on the projects that we found in several parts of the world of taking the clinic psychoanalitical a psychotherapy and, since then proposing in Legislative Assemblies a plan of control of the praxis of the psychoanalysis. We will demonstrate that such proposal is, in a certain way, a way of avoiding one of the characteristics of the politics – the discussion – and that, far away from being a proposition done in scientific bases, brings an implicit ethics of control of the subjects.

Keywords: Psychoanalysis, Politics, Psychotherapy, Control, Subject.


RESUMEN

El artículo presente tiene el objetivo de demostrar los varios modos de la relación entre el psicoanálisis y la política - la opción forzada entre un y otro; unión e interseccion -, las razones de esos varios modos de la relación y los impactos que ellos llevan puesto los proyectos que nosotros encontramos en varias partes del mundo de tomar la clinica psicoanalítica como una psicoterapia y, proponiendo desde entonces en las Asambleas del Legislativo un plan de mando del práxis del psicoanálisis. Nosotros demostraremos esa tal propuesta es, de una cierta manera, una modo de evitar uno de las características de la política – el debate – y que, lejos de ser una proposición hecha en las bases científicas, trae implícito un ética de mando de los sujetos.

Palabras clave: Psicoanálisis, Política, Psicoterapia, Mando, Sujeto.


 

 

Introdução

Sob o título deste artigo, podemos encontrar várias questões, tais como: se a psicanálise deve ou não tomar partido político como alguns psicanalistas já o f izeram – basta lembrar a conjugação da psicanálise com o marxismo proposta por Reich (Laurent, 1995:180) –, ou responder à habitual acusação de a psicanálise ser apolítica ou de que o inconsciente é o efeito de uma posição de classe, uma invenção burguesa (Eagleton, 2005:53). Antes de dizer que essas posições são derivadas de erros de leitura de alguns autores, devemos dizer que essas posições são frutos mesmos da posição de diversos psicanalistas. Tirando a última posição, podemos encontrar passagens no ensino de Lacan que vão a uma ou a outra direção.

Mas podemos pensar as relações entre psicanálise e política também sob a forma lógica trabalhada por Lacan em seu seminário sobre os conceitos fundamentais da psicanálise (1985:200): haverá uma interseção, união ou até mesmo uma escolha forçada entre psicanálise e política? Cremos que podemos encontrar pontos de respostas da articulação entre psicanálise e política se nos preocuparmos primeiramente em não tomar as formulações que encontramos nos textos como fórmulas fechadas em si mesmas, mas como respostas a problemas específicos. Isso é importante para que não nos percamos no que podemos chamar de risco de citações sem a articulação conceitual. Por isso, iremos neste artigo apontar, em primeiro lugar, para o sentido das declarações de Lacan, que Jean-Claude Milner chama de antipolíticas (1996:123); em segundo lugar, para o sentido que as declarações do mesmo Lacan, em que fala de uma política em relação à psicanálise, na qual podemos encontrar tanto pontos de união quanto de interseção; e, em terceiro lugar, partir desses esclarecimentos para trazermos elementos para demonstrar uma tese: a tentativa de tratar a psicanálise como uma psicoterapia e estabelecer ou um ensino universitário da mesma, ou a procura de um protocolo único para todas as psicoterapias, uma questão do registro político, a despeito das pretensões de que essa proposta seja amparada em termos supostamente objetivos. Essa questão tem sido proposta atualmente em diversas Assembléias Legislativas de vários países. Se a questão está sendo tratada no registro político, devemos, antes de mais nada, ter clareza do que se trata quando estamos nesse registro.

Por essa razão é que não damos o título de nosso artigo de Psicanálise ou Política, pois tomaremos o "e" de Psicanálise e Política da mesma forma que Jacques-Alain Miller tomou-o em seu artigo Psicanálise e Psicoterapia (1997:10): não como um sinal de igualdade ou de adição, mas como o sinal de que há um ponto em comum entre elas e que deve ser explicitado.

 

Escolha Forçada

A escolha forçada salientada por Lacan em seu seminário sobre os conceitos fundamentais seria um modo lógico de relação no qual o sujeito é forçado a necessariamente escolher uma posição em relação à outra. Seu exemplo maior é a expressão "a bolsa ou a vida": se o sujeito escolhe a bolsa, perde a vida. Se escolhe a vida, tem uma vida sem a bolsa, uma vida "decepada" (1985:200), no dizer de Lacan. E como o sujeito não pode não escolher a vida, vemos que essa escolha é forçada. Podemos dizer que, em relação a uma dimensão da política, a escolha da psicanálise é forçada: escolher a psicanálise é ir contra a política. Mas antes de declararmos que a psicanálise nada quer saber de política, vejamos em que dimensão nós temos essa escolha forçada.

Lacan se refere à política de maneira depreciativa nas últimas lições de seu seminário sobre a ética da psicanálise (1988:348, 362, 373). Essa depreciação se dá por que, para Lacan, a política é da ordem do serviço dos bens. E, como todo serviço dos bens, a política é feita em torno de um pólo identificatório. Se encontramos em psicanálise certa oposição em relação à política, podemos dizer que é em relação à tomada de partido que a política implica. E se a psicanálise se recusa a tomar partido, é por que pretende fazer vibrar outra coisa para além da pressão identificatória. Essa é a mesma posição tanto de Alain Badiou (1998) quanto de Jacques-Alain Miller (2004). Para o primeiro, a política é sempre uma política particular que visa a articulação de três elementos: as pessoas, as organizações civis (como os partidos políticos e as organizações não-governamentais) e o Estado (Badiou, 1998: 42). Os partidos são modos de agrupamentos de pessoas em torno de ideais para a ocupação do Estado. E o Estado é uma função meramente funcional e consensual, cujo trabalho é o gerenciamento dos bens. Para o segundo, a psicanálise opõe à política a noção de ética. Segundo Miller, se Lacan deprecia a política no final de seu seminário sobre a ética, é por que a política atua em nome do que podemos chamar de ideais, de projetos identificatórios (Miller, 2004:35). E a psicanálise atua em nome de uma ética. Nesse caso, a ética é contrária à política porque, como aponta mais uma vez Badiou (1998:42), o sujeito não pode delegar representação, mas deve responder em seu próprio nome. A ética, como diz Jacques-Alain Miller (2003:11), é o pensamento quando as etiquetas – a identificação – fracassam, e se torna imperioso pensar os fins de uma ação. Afinal, a ética é domínio de pensamento apropriado para articular uma resposta a partir do momento em que uma orientação pela via do mestre fracassa.

A prática psicanalítica é contrária a toda identificação, vai em direção ao questionamento dos significantes que pretendem dizer qual é o bem do sujeito. Como diz Miller: "A psicanálise proporciona ao sujeito um novo ponto de partida. Como? Destituindo suas identificações, devolvendo ao sujeito seu vazio primordial encoberto pelo discurso do mestre" (2004: 21). Desse modo, podemos dizer que a psicanálise, como uma clínica do sujeito, não é uma prática que visa o bem, mas que visa pensar e questionar o mal que é feito em nome dos bens da identificação que têm o poder de evitar qualquer questionamento sobre a situação do sujeito. A psicanálise, por sua vez, opera um corte com certo estado de coisas, donde não podermos desvincular a prática clínica da ética da psicanálise.

Podemos dizer que a interrogação sobre a ética vem na seqüência da afirmação dos fins da psicanálise. Como afirma Lacan, "se há uma ética da psicanálise (...) é na medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação" (1988:374). E em que direção vai essa ação? Nessa mesma lição, Lacan coloca em questão se a ação da psicanálise vai em direção à felicidade. A felicidade seria algo que é demandado pelo paciente, mas não o que é ofertado pelo psicanalista. Lacan aqui, nada mais, nada menos, segue a posição de Freud em Mal-estar na civilização, quando este afirma que os homens se esforçam em alcançar a felicidade e a definem em torno do princípio do prazer (1996c:84).

Se Lacan afirma que a psicanálise não promete a felicidade, é por duas razões: a primeira é que a felicidade definida em termos do princípio do prazer é, para ele, a ética aristotélica, a ética da boa medida, ou como diz o próprio Lacan no seminário vinte: o pensamento do manche, o discurso do mestre. Em segundo lugar, por que a felicidade se tornou, a partir do que ele chama de reversão utilitarista (1988:21), uma questão de política de serviço dos bens. "É pelo fato da entrada da felicidade na política que a felicidade não apresenta, para nós, como possível, a solução aristotélica" (1988:350). Desse modo, a ética da psicanálise, que comanda suas ações em função dos fins estabelecidos pela política do tratamento, não é uma "ética que incide sobre a ordenação, a arrumação do que chamo dos serviços dos bens" (Lacan, 1988:375-6). Aqui, reencontramos a política, uma vez que a ética da psicanálise não se coaduna com a política de ordenação dos bens que visa promover a felicidade.

Por essa razão, podemos dizer, junto com Jean-Claude Milner, que a indiferença da psicanálise em política é no sentido de que os "discursos políticos mais opostos podem aparecer aí como função de uma mesma variável" (1996:123). Desse modo, podemos concluir que se a psicanálise se opõe à política é no sentido de que a política é sempre a tomada de partido em função de um ideal. Logo, a acusação de que a psicanálise é apolítica não se trata de uma alienação em relação aos temas políticos, mas uma posição tomada em função de uma ética contrária aos avatares da identificação.

 

Psicanálise e Política: união e interseção

Se, por um lado, encontramos essa oposição entre política e ética, uma oposição entre pólos identificatórios partidários e a psicanálise, por outro lado, encontramos um ponto de articulação entre política e ética. E mais uma vez recorremos a Badiou (1998:42) quando este afirma que a política demanda uma ética para que possamos fugir à hegemonia do pensamento único em política. Desse modo, podemos dizer que a ética força uma ruptura em relação às posições políticas vigentes. Ou seja, a ética força uma nova concepção de política que não passe pelos ideais.

Aqui, podemos dizer que a psicanálise e a política têm pontos em comum. Em primeiro lugar, como aponta Jean-Pierre Vernant, a política surge como meio de debate que implica necessariamente a palavra. Surge no momento em que a cidade não tem mais uma orientação divina, demandando, assim, um debate sobre os rumos da mesma. Desse modo, "a arte política é essencialmente a arte do diálogo, exercício da linguagem" (1981:35). Ora, onde temos debate, temos necessariamente diferença. E aqui temos um ponto em comum entre a posição dos gregos e a de Badiou: para haver política, é necessário que haja diferença de posições e debate. Onde há linguagem, há sujeito. Ora, a psicanálise, por definição, é uma prática do campo da fala e da linguagem e implica necessariamente um sujeito cuja questão primordial se dá em torno de uma discordância dele consigo mesmo, devido ao questionamento do que eram suas identificações, seus pontos de apoio no Outro. Não é gratuito que Lacan coloque em seu seminário sobre a ética da psicanálise a questão de saber quais as conseqüências gerais da hipótese do inconsciente sobre a ética (1988:350), uma vez que a hipótese do inconsciente nos leva a tomar o sujeito não como uma substância nem mesmo como um fundamento da ação moral, mas como um vazio, uma interrogação.

Em segundo lugar, tomemos a afirmação de Lacan em a Direção do Tratamento e os Princípios do seu Poder (1998:596): a política da psicanálise é que determina os fins da ação do psicanalista e do tratamento analítico. Como diz Jacques-Alain Miller (2002:10), trata-se de qualificar de políticos os raciocínios e a argumentação que concernem à finalidade do tratamento analítico. E que, em relação a esses fins determinados pela política psicanalítica, o analista não deve ceder. Jacques-Alain Miller (2002), ao traçar o que seria uma política lacaniana, nos mostra que o termo política pode ainda ter outros dois sentidos para a psicanálise: o de uma política de formação, em relação aos institutos, e o de uma política em geral, relativo às questões de poder.

Mas se podemos dizer que há uma política do tratamento que determina os fins – o que se deve esperar de uma psicanálise –, podemos dizer também que essa noção orienta a ação analítica em relação aos outros dois sentidos que a política pode ter em relação à psicanálise, conforme afirma Lacan nesse mesmo texto, "o analista cura não com o seu ser, mas com sua falta-a-ser" (1998:593). Essa falta-a-ser significa que o analista não atua na direção da identificação, do dizer para um sujeito o que ele deve ou não fazer, mas, ao contrário, o analista atua no questionamento dos significantes que até então serviram de pontos de identificação ao sujeito. Se há aqui uma política, é por que esse modo de não-ser coordena não somente os fins da psicanálise, mas também um discurso articulado em torno desses fins. E pensar os fins é, por definição, pensar uma ética. Não é o que indicam os temas próprios à psicanálise desde Freud, como o da identificação, mal-estar na civilização, satisfação e final de análise? Se as identificações são modos de estar abertos à influência do Outro, se o mal-estar é devido ao furo estrutural do Outro, o resultado da análise não pode ser indiferente a uma posição dentro da cidade, o que não significa que tenha que tomar partido entre as posições às quais a cidade se apega, mas pôr em questão o próprio lugar do poder.

Desse modo, podemos dizer que há uma política em psicanálise coordenada pelos fins éticos da mesma. E como diz Jean-Claude Milner, "a indiferença em política – a tomada de partido em função de pólos identificatórios – não é indiferença à política – ao assunto da política que é a relação que o sujeito trava com os outros em função de determinados fins" (1996:124, interpolações nossas).

Mas qual fim seria esse em relação ao qual o psicanalista não deve ceder? Ora, ceder é a mesma palavra utilizada por Lacan para definir a ética da psicanálise: não ceder em relação ao desejo. É o desejo, no que ele tem de subversivo e não de revolucionário, que encontramos os fins da psicanálise para aquele que se encarrega de fazer uma psicanálise. Se há algo que o desejo vai contra é a afirmação de ideais. E como lembra Miller (2004) em uma entrevista, tanto as posições revolucionárias como as reacionárias e progressistas são posições que giram em torno dos ideais e da identificação aos significantes mestres. Freud (1996b: 155) já afirmara em seu texto sobre a Weltanschaunng: não há visão de mundo da psicanálise, pois isso seria fazer com que a psicanálise fosse uma prática de fortalecimento de identificações. É nesse mesmo texto que temos uma das poucas referências de Freud à revolução russa e seu desacordo com ela. Esse desacordo não é contra a revolta do povo russo, mas contra a política de partido (1996:175) que se tornou o pólo de ordenação da revolução após a morte de Lênin e a subida de Stalin ao poder.

Se a ética da psicanálise implica necessariamente uma ação, implica também um discurso, um laço social em que as relações sejam arranjadas e pensadas de modo diverso daquele da busca ou da oferta da felicidade. É nessa teoria dos discursos que reencontramos a política: se a direção do tratamento, seus fins são comandados por uma política, essa política coordena uma modalidade de laço social. Ora, sabemos que Lacan, em seu seminário O avesso da psicanálise (1992), não deixou de teorizar sobre os discursos e afirmou que a psicanálise era o avesso do discurso do mestre. Mas é no seminário Mais, ainda (1996) que Lacan extraiu as conseqüências da política psicanalítica comandada por uma ética própria: se há uma ética que não é a da felicidade, se há um discurso que não é o do mestre, temos aqui, por lógica, uma ruptura entre ações e modalidades de laços sociais: "o fato de que lhes falo são fatos de discurso, de discurso do qual solicitamos, na análise, uma saída em nome do quê – de se largarem os outros discursos" (1996:20).

Nesse mesmo ponto, encontramos um autor que se vale de Lacan para pensar ou ao menos nomear qual a sua posição sobre a política atual: Slavoj Zizek. Em seu livro "Às portas da revolução" (2005), ele remete a definição de política à definição da ética de Lacan como ética do desejo. Afinal, desejar é desejar o impossível em dada situação. Se não se deve ceder em relação ao desejo, se o desejo deve ser decidido, é por ele forçar o impossível acontecer. Assim, o impossível e o desejo colocam em cena duas condições: a ruptura com determinado laço social que incita o debate e a alteridade radical. E, para Zizek, pensar a política é pensar apenas em condições de debate, de rupturas, e não de consensos. Desse modo, podemos dizer novamente que se o problema da psicanálise é a clínica, não podemos dizer que ela é a clínica do sujeito, que envolve necessariamente um questionamento sobre os fins. E interrogar sobre os fins leva a um questionamento sobre o laço social que se deseja.

Se a psicanálise afirma que sua ética é a ética do desejo e que desejar é desejar o impossível, em tornar possível o que os ideais dizem ser impossível, podemos apontar uma questão importante hoje: o interesse em várias partes do mundo ora em submeter a psicanálise ao regime das psicoterapias, ora submeter a psicanálise e as psicoterapias ao regime médico. Podemos chamar esse movimento de movimento em prol da regulamentação das psicoterapias. Esse movimento se dá em torno de uma questão mal colocada: a de que haveria riscos para os pacientes se não tivéssemos uma regulamentação das psicoterapias e/ou um protocolo de avaliação das diversas psicoterapias. Trata-se de reunir as psicoterapias sob a marca do discurso da saúde da Organização Mundial da Saúde, que define saúde como um bem-estar. Ora, um bem-estar é tomado sempre em torno de uma questão de gerenciamento dos bens e é tributário de uma ética que não é a do desejo tal como a psicanálise afirma a sua. Mas há mais nesse movimento: esses protocolos de avaliação são tomados como postulados de cientificidade. Desse modo, uma psicoterapia eficaz é uma psicoterapia científica que permite distinguir quem é charlatão de quem não é.

Poderíamos questionar esse interesse, uma vez que a psicanálise não é uma psicoterapia entre outras porque se dá fins diferentes – e em muitos casos, divergentes – das outras psicoterapias. Se a psicanálise trabalha na contramão da identificação, as psicoterapias atuam nessa direção pela via da influência (Roudinesco, 2005:42) ou da sugestão (Soler, 1997:110). Como diz Jacques-Alain Miller: "Todo significante do Outro, toda palavra do Outro, na medida em que reconhecemos nesse outro a posição de grande Outro, tem efeito de identificação" (1997:14). A psicanálise só é operativa de acordo com os seus fins se ela recusa o desejo de ser uma mestria e passa a atuar na direção do desejo que não pode ser chancelado pelo Outro.

Por que podemos dizer que a questão de discutir a regulamentação das psicoterapias, disfarçada sob a pecha de cientificidade, é uma questão política? Retomemos os três elementos que compõem a política situados por Badiou: "Na questão política, existem sempre três elementos: 1) Há as pessoas, com o que elas fazem e pensam; 2) há organizações: os sindicatos, as associações, os grupos, os comitês e os partidos; 3) há órgãos de poder do Estado, os órgãos oficiais e constitucionais do poder: as assembléias legislativas, o poder presidencial etc." (1998:35).

Ora, o movimento de regulamentação e seu debate têm ocorrido sistematicamente em várias Assembléias Legislativas. Esse não é um movimento isolado em um país ou em uma região no mundo. Temos esse movimento tanto na Itália (Lei Ossicini, Ciaccia, 1997), Espanha (Lei de Ordenança de Profissões Sanitárias, Fernández-Blanco, 2006:128), Grã-Bretanha (DPC: Desenvolvimento Profissional Contínuo, Van den Hoven, 2006:31), França (Emenda Accoyer, Roudinesco, 2005), Áustria (Roudinesco, 2005:129), Alemanha (Roudinesco, 2005:132) e Argentina (Laurent, 2005), para citar apenas alguns.

No Brasil, esse movimento tomou duas feições nos últimos tempos: a primeira é a que foi chamada de Ato Médico, que pretendia submeter toda e qualquer disciplina considerada como do campo da saúde – as psicoterapias aí incluídas – a decisões de avaliação dos médicos; a segunda é a pretensão de criar um protocolo único de avaliação de uma psicoterapia. Tanto uma quanto outra pretendem subsumir a psicanálise no campo geral das psicoterapias. Ela seria controlada por uma Associação Brasileira de Psicoterapia, apoiada pelo Conselho Federal de Psicologia. Sua tarefa seria, como aponta seu ex-coordenador Luiz Alberto Hans em entrevista à revista Diálogos, do Conselho Federal de Psicologia, "ditar opiniões sobre os métodos vigentes de validação e prescrição de psicoterapias" (2004), um protocolo de avaliação que não leva em consideração a especificidade de cada psicoterapia e muito menos as articulações teóricas próprias a cada uma e que pretende estabelecer um órgão regulamentador. E essa regulamentação viria de uma pesquisa científica, na qual contaríamos com a participação de experts em várias psicoterapias para chegar a um consenso.

Nós temos com esses dois casos a colocação em termos políticos de questões que são de ordem clínica: qual tratamento dispensar a um sujeito que sofre? E são políticas por que pretendem agir ora em função de legislação, que é um poder do Estado, ora em função de uma Associação, que é relativo a uma representação de grupos?

Podemos dizer que três elementos estão em jogo nesse movimento de regulamentação das psicoterapias: o primeiro é situá-las como uma prática avaliada e determinada pelo Estado, que se encarregaria de fornecer diplomas de psicoterapeutas; em segundo lugar, o recurso do Estado a experts para avaliar a eficácia das psicoterapias e assim poder dizer quais são as autorizadas e quais não são; e, em terceiro lugar, a afirmação de que o Estado deve zelar pelo bem-estar da população e a definição desse bem-estar a partir do conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde. Ora, se temos aqui uma pretensa atuação do Estado, é necessário saber que ética regula essa sua atuação, ou a dos que pretendem, por meio de Associações, educar o Estado em nome de uma suposta cientificidade. Analisemos, então, cada um desses elementos.

Eric Laurent (2005), em um texto sobre a diferença entre a política de psicanalistas que acham que devem fazer com que a psicanálise se alie ao discurso universitário para que este seja responsável pela formação do analista, coloca que a psicanálise deve seguir a ética do desejo e o dispositivo clínico inaugurado por Freud. Desse modo, ele aponta que a formação do analista nunca precisou ser fornecida pelo Estado mediante graus universitários, mas que sempre se deu fora da universidade. Não custa lembrar que, para Freud, a condição sine qua non da formação de um analista é passar por um processo de análise. Isso não significa que a psicanálise não possa estar na universidade nem que não se possa oferecer ensino sobre psicanálise na mesma. Significa que a formação de um analista passa por um discurso que não é o universitário. O discurso universitário se ampara, no dizer de Jacques-Alain Miller, "em saberes que permite o mestre, pois é este quem sustenta as relações universitárias" (1998a:112). E, mais adiante, Miller explicita o porquê uma análise não pode se amparar no saber do mestre universitário: "é do analisando que se espera a matéria prima do saber, e aí está o porquê não se pode ensiná-lo" (1998a:116). Ou seja, quando se pretende reduzir a psicanálise a uma psicoterapia e a psicoterapia a quadros universitários, nós temos um discurso que é estranho à psicanálise, uma vez que a psicanálise opera não pela promoção de um saber estabelecido, mas, por ser uma clínica, por impasses do sujeito em relação ao saber. Como diz Freud ao final de seu texto Análise terminável e interminável (1996a): a psicanálise oferece ao sujeito a possibilidade de efetuar novas escolhas sem que o psicanalista ou o Estado determinem quais são essas escolhas.

Essa busca de um saber, de determinação de um saber para um sujeito, se ampara na suposição de que há um saber objetivo sobre o sujeito. Se há um saber sobre o sujeito, a psicoterapia deve ser, por definição, uma psicoterapia científica. Ora, tratar um sujeito como algo passível de ser objetivado, tomar decisões que envolvem a vida de todos em função dessa suposta cientificidade é o que Jean-Claude Milner chamou de política das coisas (2005). Segundo Milner, o governo das coisas, na verdade, dispensa a política (2005:20), pois as decisões não são tomadas nem em nome de uma ética, nem em função de um debate que instaura uma ruptura ou não, mas em nome de competências ditas científicas. Esse é o segundo momento desse movimento de regulamentação das psicoterapias no que concerne à psicanálise: se a psicoterapia é uma profissão regulamentada pelo Estado, ela deve ser avaliada pelo mesmo. A função do Estado é zelar pelo bem-estar dos cidadãos e gerenciar os negócios da cidade com a finalidade de evitar que os charlatães atuem. Desse modo, o Estado apela para experts que, em nome de competências, pretenderão dizer o que se deve e o que não se deve fazer em termos psicoterápicos sem se preocupar com os fins de cada psicoterapia. Não leva em conta o que Eric Berenguer et al. nos apontam: a de que, por mais que eles queiram trazer para o campo do debate especialistas que dirão o que é o exato, esquecendo-se de que o debate se dá justamente por que o exato nesse campo não funciona, há uma ética implícita nesse movimento: "há uma influência massiva de uma ideologia neo-utilitarista que tende a confundir fins – que são relativos a uma ética – com resultados. Assim, a promoção de um ideal terapêutico recobre uma ética no sentido de que esse ideal define o que deveria ser considerado como um bem para o sujeito" (Berenguer e cols. 1997:30).

Na verdade, essa questão da avaliação das psicoterapias é apenas mais um dos aspectos que pretendem um rígido controle do social. Para além da questão clínica, temos outra, que sustenta esse desejo e que, de certo modo, sustenta uma modalidade de laço social proposto pela medicalização. Como demonstra Jorge Forbes: "Esse fenômeno regulamentador vem em seqüência lógica a tentativas desses mesmos grupos de pessoas em codificar em protocolos padronizados os atendimentos clínicos, guiados por uma vontade, entre outras, de responder aos propósitos dos planos de saúde" (Forbes, 2004).

A saúde, desse modo, se converte em definição do que é o bem. Se tomarmos a definição de uma organização que é antes de mais nada uma organização política (a Organização Mundial de Saúde), isso fica claro: a saúde é um completo bem-estar biopsicossocial. É esse conceito que serve de parâmetro para que os experts façam suas avaliações. É esse o bem que deve ser proposto ao e pelo Estado mediante a atuação dos experts. Se houver uma prática que pense em outra direção, ela deve, segundo os experts, ser impedida. Não estamos dizendo que ela não possa ser política e que não possa traçar planos de ação para a saúde, mas estamos dizendo que, por ser uma organização política, ela deve, necessariamente, pôr em debate suas proposições em vez de tomá-las como fruto de trabalho de experts. Entendemos por expert a definição dada por German Garcia (2006): é aquele que, ao contrário do intelectual, está a serviço de uma instância do poder e submetido às suas regras.

Por essas considerações, podemos colocar alguns questionamentos sobre a ordem de problemas relativos à saúde. Como diz Canguilhem (2005:42), a saúde não é um conceito científico, mesmo que tenhamos meios científicos de determinar se um organismo está em determinado funcionamento ou não (determinado e não bom: como aprendemos com Canguilhem, a doença é uma outra norma da natureza, e não a falta de norma ou um déficit). Para falarmos de saúde, dependemos da opinião do sujeito para começar a reflexão sobre ela, principalmente se considerarmos as palavras de Claude Bernard que afirma que em fisiologia científica não há espaço para se perder em divagações sobre a saúde e aquilo para o que Canguilhem chama a atenção: quanto mais a medicina se torna científica (com os trabalhos de Starling, Cannon e Kayser), menos se usa o conceito de saúde (2005:43).

Desse modo, concordamos em parte com Jacques-Alain Miller (1998b:335) quando ele define que a saúde dita mental como a ordem pública; acreditamos que no discurso corrente sobre a saúde, seja ela mental ou não, estamos às voltas com a ordem pública, seja no nível econômico, seja no nível do imperativo da boa saúde. Por essa razão, a saúde não perde seu aspecto político. Mas esse aspecto político corre risco de ser despolitizado quando se definem normas de conduta a partir de um conceito que se pretende científico, mas que se julga, ao mesmo tempo necessário para a paz entre os povos. Pela via dos experts, não há por que haver política tal como ela é propriamente definida: debate, discussão, afirmação de outros princípios e de outros discursos.

Por essa razão, podemos chamar de impostura o uso que os experts fazem de algumas ciências biológicas (neurociência, genética etc.) para validar suas posições e, assim, regulamentar um campo sem que se abra para os debates. E temos também uma posição que, ao pretender se fundamentar em ciência, mesmo não sendo da alçada de uma ciência digna desse nome, quer evitar todo e qualquer debate franco.

Por isso, terminamos este artigo com as palavras de Slavoj Zizek: o que esses autores pretendem é fazer uma política apartada de tudo que seja próprio a uma política comandada por uma ética: o debate, a ruptura (2005:235). E a psicanálise, por sua ética, toma uma posição política contrária a essa regulamentação de seu campo. Se a confundem com a psicoterapia, é para forçá-la a abrir mão de sua ética, que, no caso em questão, é renunciar ao político por excelência, pois é querer que haja um consenso entre as diversas psicoterapias sobre seus fins. A maneira de fazer isso é apelar à noção de saúde para legislar sobre esses diversos assuntos. É esquecer que a psicanálise é uma clínica do sujeito, e não necessariamente de uma saúde definida em termos de bem-estar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Roberto Calazans
E-mail: calazans@ufrj.edu.br

Recebido em: 26/09/2007
Aceito em: 06/03/2008

 

 

* Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Prof,. Adjunto do Dep. de Psicologia da Universidade Federal de São João Del Rei - Brasil.

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