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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.8 no.16 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Os novos Quixotes da psicologia e a prática social no "terceiro setor"

 

The new Quijotes of psychology and the social practice in the "third sector"

 

Los nuevos Quijotes de la psicología y la práctica social en el "tercer sector"

 

 

Ilana Lemos de Paiva*, I Oswaldo Hajime Yamamoto**, II

I Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte (FARN) - Brasil
II Departamento de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo desenvolve reflexão sobre as possibilidades de atuação do psicólogo no âmbito do "terceiro setor", a partir da prática comunitária. Apesar do quadro crítico de pobreza e desigualdade social em que vivemos no país, as perspectivas atuais apontam para o fim do "Estado interventor" e para a redução do gasto público destinado às políticas sociais. Com o enxugamento do Estado, o "terceiro setor" está encarregado de pacificar a questão social, reduzindo-a ao âmbito do dever moral. Convocado ao compromisso social, o psicólogo também começa a trabalhar na fronteira da exclusão, sem questionar a funcionalidade e as implicações políticas do novo cenário. A perspectiva apresentada é a de que no campo das intervenções sociais, e mais acentuadamente no "terceiro setor", os psicólogos seriam "novos quixotes", agindo com boa vontade, com grandes sonhos de transformação, mas realizando ações que não partem de uma leitura crítica e adequada da realidade, não enxergando suas possibilidades reais e seus limites de atuação. Por fim, defendemos que se deve buscar, com a inserção profissional, melhorar a qualidade de vida e o bem-estar, através de uma intervenção proativa, buscando o desenvolvimento, a organização e a emancipação das pessoas, grupos e comunidades.

Palavras-chave: Psicologia comunitária, Intervenção psicossocial, Terceiro setor, Compromisso social, Emancipação humana.


ABSTRACT

This article develops a reflection about the psychologist interaction possibilities on the "third sector" field, through communitarian practice. Despite the critical poverty and social differences frame in which we live in Brazil, current perspectives aim for the end of the "Intervener State" and for the reduction of social policies public expenses. With the State shrinkage, the "third sector" is being commissioned to pacify the social matter, reducing it to the social duty scope. Summoned to social duty, the psychologist also starts to work on the verge of exclusion, without questioning the functionality and political implications of the new scenario. The presented perspective is that in the social interventions field, and substantiality in the "third sector", psychologists would be "new quixotes", acting with good will, great transformation dreams, but doing actions that do not come from a critical and proper view of reality, not seeing its real possibilities and its boundaries of action. Lastly, we defend that, with professional insertion, improvement in life quality and welfare must me persued, through an proactive intervention, seeking persons, groups and communities development, organization and emancipation.

Keywords: Communitarian psychology, Psychosocial intervention, Third sector, Social compromise, Human emancipation.


RESUMEN

El artículo reflete sobre las posibilidades de actuación del psicólogo en el ámbito del "tercer sector", a partir de la práctica comunitaria. Auunque haya un cuadro crítico de pobreza y desigualdad social en el que vivimos en el país, las perspectivas actuales apuntan para el fin del "Estado interventor" y para la reducción del gasto público destinado a las políticas sociales. Con la disminuición del Estado, el "tercer sector" está encargado de pacificar la cuestión social, reduziendola al ámbito del deber moral. Convocado al compromiso social, el psicólogo también comienza a trabajar en la frontera de la exclusión, sin cuestionar la funcionalidad y las implicaciones políticas del nuevo escenario. La perspectiva presentada es la de que en el campo de las intervenciones sociales, y más acentuadamente en el "tercer sector", los psicólogos serriam "nuevos quijotes", actuando con buena disposición, con grandes sueños de transformación, pero realizando acciones que no partem de una lectura crítica e adequada de la realidad, no miran sus posibilidades reales y sus límites de actuación. Finalmente, defendemos que se deve buscar, con la inserción profesional, mejorar la cualidad de vida y el bienestar, a través de una intervención proactiva, buscando el dessarrollo, la organización y la emancipación de las personas, grupos y comunidades.

Palabras clave: Psicología comunitaria, Intervención psicosocial, Tercer sector, Compromiso social, Emancipación humana.


 

 

O processo de desagregação da sociedade brasileira, que tem como um dos principais determinantes a desigualdade de renda, evidencia um quadro social de desemprego, violência, falta de acesso à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho e às mínimas condições de cidadania, para um imenso contingente populacional.

Mesmo diante dessa realidade, as perspectivas atuais apontam para o fim do "Estado interventor", para a redução do gasto público destinado a tais políticas sociais e para a desregulação das condições de trabalho. Enfim, um Estado protetor unicamente da propriedade privada e das liberdades individuais.

Dessa forma, poderíamos pensar, como pacificar a questão social, com esse enxugamento do Estado? Ora, a resposta atual e concreta para essa questão chama-se "terceiro setor". Com a refilantropização da questão social, apontada por diversos autores, o "terceiro setor" toma para si a responsabilidade de diminuir a pobreza e a exclusão social que assolam nosso país, através de parcerias com diversos segmentos da sociedade.

Cabe-nos questionar, de que maneira uma atuação do "terceiro setor", e dos profissionais que o compõem, poderá contribuir com a garantia de direitos, sem implicar uma despolitização da questão social, reduzindo-a ao âmbito do dever moral, na busca pela desmontagem do papel do Estado? Que armadilhas o discurso do "terceiro setor" nos coloca?

Montaño (2003) já chamava a atenção para a funcionalidade do "terceiro setor" com o processo de reestruturação do capital, "particularmente no que refere ao afastamento do Estado das suas responsabilidades de resposta às seqüelas da ‘questão social', sendo, portanto, um conceito ideológico (como falsa consciência) portador de encobrir e desarticular o real" (p. 16). O referido autor relaciona o processo de minimização do Estado à direita neoliberal e à expansão do "terceiro setor" à nova esquerda, que utiliza o discurso do "fortalecimento da sociedade civil", porém considera que ambos são concomitantes e vinculados.

Na verdade, o discurso de que o Estado transfere sua responsabilidade para instituições do "terceiro setor" traz um fator extremamente preocupante: o discurso de que a questão social está sendo cuidada.

O que se observa no "terceiro setor" é que, não obstante a grande quantidade de recursos que circula nesse campo, a maioria das instituições funciona em condições precárias, com recursos escassos e sem garantia de continuidade de suas ações. E com a redução dos gastos com o social, é o "terceiro setor" quem deve se responsabilizar em angariar recursos para as demandas sociais. O Estado deixa de ser um instrumento para a correção das desigualdades geradas pelo capitalismo e passa a ser um fomentador dessas iniciativas (Dadico, 2003).

Segundo Gohn (2005), há a necessidade de aumentar o número de estudos e pesquisas sobre as ONGs, para se ter conhecimento da sua realidade, sobre sua natureza, comportamento e papel na sociedade, já que a Universidade não tem dado a atenção devida a essas questões. Para a autora, é preciso aumentar o número de estudos feitos por não-militantes ou não-profissionais das ONGs, para se evitar os vieses na leitura desse fenômeno: "dificilmente um ‘ongueiro' ou ‘ex-ongueiro' se liberta dos condicionamentos da forma de ver e agir do mundo das ONGs. Sua visão de mundo fica marcada pela leitura que as ONGs fazem desse mundo" (p. 101).

Para muitos autores, o "terceiro setor" é um campo novo, ainda em construção, mas que está posto e caminhando a passos largos. Parece inevitável, na nossa conjuntura atual, falar sobre "terceiro setor".

Sendo assim, o que buscaríamos, então, com o chamado fortalecimento da sociedade civil? Na era da globalização, qual o lugar dos movimentos sociais, das organizações nãogovernamentais, ou mesmo desse "terceiro setor"? Estamos falando do mesmo fenômeno ou de coisas distintas?

Sobre isso, Blanco (2002) também se questiona:

La tarea principal que hemos asumido es la de plantear criterios para la discusión de las posibilidades que ofrecen las ONG para la participación política, es decir, las posibilidades reales de añadirse a los repertorios de acción política de los ciudadanos. Eso nos lleva a preguntarnos, ¿en nombre de qué o de quién ocupan un lugar en el espacio público? (grifos nossos) (p. 30)

Uma primeira pergunta que ajudaria a pensar essa questão seria: o que é "terceiro setor"? Mas, a busca dessa definição não constitui tarefa fácil.

Segundo Coelho (2000), a denominação "terceiro setor" coloca em evidência o papel econômico que essas organizações assumem, principalmente na economia americana. Dessa forma, ao analisar o fenômeno do "terceiro setor", vale salientar que adotamos a mesma perspectiva de Montaño (2003), colocando o termo sempre entre aspas, naquilo que alude ao referencial teórico marxista, indicando que o conceito de "terceiro setor" tem sua origem ligada a "visões segmentadoras, setorializadas da realidade social (nas tradições positivista, neopositivista, estruturalista, sistemista, funcionalista, do pluralismo e do institucionalismo norte-americano)" (p. 16).

 

Estado, Mercado e Sociedade Civil: novos papéis?

Por que cada vez mais esse tipo de instituição ganha espaço, ganha força, ganha dinheiro? O que faz com que tantas pessoas se engajem nas suas ações? Solidariedade? Desemprego? Ou um pouco de tudo isso?

Nas últimas duas ou três décadas do século XX, tem sido generalizado o uso da denominação "terceiro setor" para designar esse segmento crescente de organizações voluntárias sem fins lucrativos, nem dependência estrita do governo, em sociedades com economia de mercado e com regime político liberal democrático. Com o tempo, o uso desse conceito se estendeu para sociedades em vias de desenvolvimento (como o Brasil), ou para sociedades com características das mais diversas (Pérez-Días & Novo, 2003).

Para Gohn (2005), o "terceiro setor" é um tipo de Frankstein: grande, desajeitado, construído de pedaços, com múltiplas facetas. Bastante contraditório, pois ora se apresenta como conservador, ora como progressista, como se tivesse duas faces, ora médico, ora monstro...

Na verdade, a grande heterogeneidade e diferenciação entre instituições que o compõem, como Organizações Não-Governamentais (ONGs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Fundações, Instituições Filantrópicas, Associações, dentre outras, dão a exata dimensão desse Frankestein.

As origens e conceituações do "terceiro setor" não são unívocas e englobam esse emaranhado de instituições com histórias e vocações distintas, sendo em geral definidas por organizações de direito privado, que visam serviços e bens públicos (Carneiro Júnior, 2002; Fernandes, 1994, Coelho, 2000), formando parte de um tecido social associativo. O difícil é ainda dizer: o que faz parte e o que está fora dele?

Em países desenvolvidos o "terceiro setor" tem atendido a determinados coletivos sociais, na tentativa de evitar que fiquem excluídos de níveis suficientes de bem-estar:

(...) la recomendación es que los gobiernos deberían cesar de ver con reticencia las iniciativas privadas en la esfera del interés público y explotar su potencial de solución creativa de problemas, facilitando e incentivando su desarrollo, a lo que se añade la recomendación complementaria de que la sociedad se decida a tomar esa iniciativa sin esperar el permiso ni a la incentivación del estado (Pérez-Días & Novo, 2003:27).

Afinal, a estratégia do "terceiro setor" é adotada por sociedades neoliberais e capitalistas desenvolvidas, em substituição à estratégia keynesiana de gestão da economia e do Estado de bem-estar (welfare state), com a crise econômica da década de 1970, que revelou seus limites para esses países.

A estratégia neoliberal visava, como sabemos, a contenção com gastos sociais. Fez-se evidente que o Estado não ia poder satisfazer todas as demandas sociais suscitadas no período pós-guerra, como se havia estabelecido na expansão do welfare state.

Outro fator determinante foi o progressivo envelhecimento das populações, fazendo soar um alarme sobre a viabilidade futura do Estado de bem-estar: mais uma vez era necessário racionalizar e controlar o crescimento dos gastos sociais.

Pensou-se, nesse contexto, que o Estado não era o único que atendia às necessidades sociais nas sociedades capitalistas, mas que organizações sem fins lucrativos já estavam fazendo esse trabalho, há tempos, sem pesar sobre os cofres públicos. Estas organizações privadas e sem fins lucrativos não eram um fenômeno recente, sempre haviam estado ali, e algumas delas contavam com uma dilatada história, porém, até então, haviam carecido de visibilidade institucional. Foi considerado que o desenho bisetorial (Estado e Mercado) do capitalismo misto do pós-guerra, não lhes conferia um papel distintivo (Pérez-Días & Novo, 2003).

A literatura atribui a data de nascimento do "terceiro setor" à investigação realizada pela comissão Filer1, nos Estados Unidos, na década de 1970. A análise realizada pela comissão mapeou o trabalho desenvolvido pelas instituições do setor não lucrativo naquele país, nas áreas de saúde, educação, serviços sociais e cultura, além da geração de empregos e contribuição para a vida política. Pela primeira vez, se pressupôs que esse conjunto de instituições constituía um setor diferenciado e autônomo (Pérez-Días & Novo, 2003, Salamon, 1999, Coelho, 2000).

Inicialmente, parecia que o "terceiro setor" era uma singularidade norte-americana. Ao final do século XX, ele já era visto como um fenômeno universal. Supõe-se que tem crescido em todas as dimensões, nos últimos anos, principalmente nos países mais desenvolvidos, onde é o responsável por pelo menos 5% do PIB nacional (Salamon, 1999).

Mas, o que dizer do papel do "terceiro setor" em países em que a grande maioria da população vive em condição de pobreza absoluta, e seus direitos à assistência básica não são garantidos em nenhum nível?

Embora com nova roupagem, novo papel, novas definições, tais organizações também atuam há muito tempo no cenário social brasileiro, baseadas em conceitos de filantropia e beneficência, como as Santas Casas e as obras sociais ligadas geralmente às Igrejas. A mudança está em como se coloca o "terceiro setor" nos dias atuais, fortalecendose, pleiteando igualdade em relação ao Mercado e ao Estado, oferecendo soluções aos problemas sociais mais emergentes do país.

No ano de 1997, inclusive, o Governo Federal realizou diversas reuniões com representantes de organizações do "terceiro setor", através do Conselho da Comunidade Solidária, a respeito do "marco legal do terceiro setor", identificando-se as principais dificuldades legais relativas às organizações da sociedade civil. Em 1998, foi enviado projeto de lei que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sancionado no ano seguinte como Lei nº 9.790/99.

A lei das OSCIPS pretendeu trazer à tona o novo perfil desejado para as entidades do "terceiro setor": organizações que devem pautar suas ações por princípios éticos de gestão, administradas por profissionais qualificados e remunerados, capazes de planejar estrategicamente suas ações e desenvolver programas de interesse público eficazes, usando com eficiência os recursos que lhes forem alocados.

No entanto, poucas ONGs aderiram à terminologia, influenciadas pela Associação Brasileira de Organizações não-governamentais – ABONG (Ferreira, 2005). Segundo Ferreira (2005), a ABONG desestimula os filiados a se qualificarem como OSCIP, pois isso está atrelado à lógica do Banco Mundial de parceria na execução de políticas públicas, o que gera um esvaziamento das funções do Estado. Acrescenta ainda que, a despeito de preconizar a independência das ONGs em relação ao Estado, a ABONG defende a realização de parcerias com repasse de recursos públicos. Estaríamos diante de mais uma contradição nesse campo? É inegável que a relação de parceria com o Estado limita a aclamada autonomia das Organizações Não-governamentais.

No entrelaçar de ações que articulam ONGs e outros atores da sociedade civil, vários discursos problemáticos se sobrepõem, constituindo verdadeiros dilemas.

Será que esse conjunto heterogêneo de organizações tem mesmo algo em comum? Segundo Fernandes (2005), ele teria, entre outras, as seguintes características que as identificam:

1) Faz contraponto às ações de governo (A idéia de que não há nenhum serviço público que não possa ser trabalhado por iniciativas privadas);

2) Faz contraponto às ações do mercado (A idéia de que o "terceiro setor" pressionaria a cultura empresarial para tornar-se mais consciente e investisse no social).

Além disso, é ponto pacífico entre os teóricos do "terceiro setor" que ele teria como caráter básico a alteração do status quo.

Logo, nem toda organização sem fins lucrativos pode integrar o "terceiro setor". A questão que volta a se repetir é até que ponto estamos assistindo a transformações de base?

Ainda são acrescentados alguns critérios para esse enquadre, como, por exemplo, que sejam:

1. Privadas: não integrantes do aparelho do Estado;

2. Sem fins lucrativos: não distribuem eventuais excedentes entre proprietários ou diretores; não geração de lucros;

3. Institucionalizadas: legalmente constituídas;

4. Auto-administradas: ou capazes de gerar suas próprias atividades;

5. Voluntárias: no desejo de constituir-se.

No Brasil, três figuras jurídicas atendem a esses critérios: Associações, Fundações e Instituições Religiosas (Szazi, 2003). A denominação ONG, por exemplo, não existe juridicamente, e para que seja reconhecida de utilidade pública deve assumir uma dessas personalidades.

Como exemplo de composição do "terceiro setor", teríamos:

• Associações comunitárias;

• Movimentos Sociais (ainda que não legalmente constituídos);

• ONGs temáticas ou de serviços (Defesa de direitos / atendimento social);

• Entidades filantrópicas tradicionais (instituídas antes da década de 70);

• Fundações e institutos empresariais.

Não são consideradas instituições do "terceiro setor", por utilizarem recursos privados para interesses de grupos específicos:

• Partidos políticos, entidades sindicais, condomínios, cartórios, sistema S (SESI, SENAI, SESC, SEBRAE);

• Entidades recreativas, esportivas e de lazer, clubes de serviço, fundos de pensão, escolas.

Trata-se de uma composição que está sendo mobilizada para finalidades tão variadas, de impulsos tão contraditórios, que não se sabe aonde se quer chegar. É impossível pensar o "terceiro setor" a partir de uma única linha teórica ou de ação, bem como é impossível pensar que esse emaranhado de instituições busca de maneira eqüitativa a transformação social.

Mais difícil ainda é pensar o conceito de sociedade civil pensado a partir de algo tão difuso e separado da seara das reivindicações políticas, como na afirmação abaixo:

Lo que está en el debate en los discursos en torno a las ONG (pero no solo en ellos), es el espacio de lo social en el marco de esa "naturalización" burguesa de la relación público-privado, Estado-individuo, política-economía, o, dicho de otro modo, la revisión del espacio de la sociedad civil (Blanco, 2002:29).

Enfim, o chamado "terceiro setor", na realidade não existe, como já demonstraram outros autores.

Podemos afirmar que, sem desmerecer as intenções de inúmeros profissionais e voluntários que atuam em busca de uma transformação social, não há sustentação para a tese de um papel realmente transformador atribuído ao "terceiro setor". É preciso deixar claro, desde o início, que devemos primar pela garantia dos direitos básicos da população, e aqui se fala em direitos adquiridos e garantidos, e não solidariedade, como querem os defensores do "terceiro setor". Por isso, esse debate não pode se esgotar em si mesmo.

 

A Psicologia e o "Terceiro Setor"

Diante das discussões anteriores, chegamos ao ponto que nos interessa: E a Psicologia nesse contexto?

Afinal, o que nos inquieta é saber que contribuição a Psicologia, como profissão inserida no campo do bem-estar, tem a dar aos graves problemas sociais que enfrentamos no nosso país.

Há um discurso dentro da Psicologia que precisa ser superado: É preciso recompor saberes e práticas para que saibamos como construir uma Psicologia comprometida com o social.

Nesse novo cenário, o psicólogo começa a trabalhar na fronteira da exclusão. Começamos a ter a miragem de que nossa profissão tenha um grande papel social. E quando partimos na busca de mudanças da realidade, muitas inquietações surgem. Será que também somos esses "novos quixotes", que sonham com o impossível? Esse sonho é uma utopia?

Adotamos o sentido figurado da definição de "quixotesco", ou seja, estamos fazendo referência a pessoas com intenções e ideais nobres, mas sonhadoras e afastadas da realidade.

É justamente essa análise que fazemos da Psicologia no campo das intervenções sociais e, mais acentuadamente no campo do "terceiro setor". Dito em outras palavras, acreditamos que a Psicologia ainda não se "encontrou" quando se trata da área social, que age com muita boa vontade, com grandes sonhos de transformação, mas sua ação não parte de uma leitura crítica e adequada da realidade, fazendo com que não enxergue suas possibilidades reais e seus limites de atuação, como nos lembra Yamamoto (2007):

Nunca é demais lembrar que o psicólogo, no limite, como um executor terminal das políticas sociais (...), atua nas refrações da questão social, transformadas em políticas estatais e tratadas de forma fragmentária e parcializada, sendo uma das formas privilegiadas, a delegação para o "terceiro setor". Portanto, atuar no campo do bem-estar social, seja nas instâncias estatais, cuja manutenção deve ser uma bandeira para os profissionais e para a sociedade, seja no "terceiro setor", será sempre, no limite, uma intervenção parcializada (p. 35).

Ao apostar numa atuação comprometida, significa também que sugerimos um realinhamento de expectativas, sabendo onde nossa atuação esbarra dentro dos marcos do capitalismo, e dentro de um sistema social fragmentado como o "terceiro setor". É importante entender que são as condições do mercado de trabalho atual, que empurram o psicólogo para esse campo, que direcionam essa prática. Ou seja, no campo do "terceiro setor", o eixo profissional é matizado por características filantrópicas e políticas.

Isso não significa, por outro lado, assumir qualquer tipo de conformismo social, como o que assistimos atualmente. O que queremos dizer é que uma Psicologia comprometida com o social não precisa se prover de escudos e espadas, na postura cavalheiresca de querer "salvar o mundo", mas precisa conhecer seu contexto de atuação, rever suas posturas e buscar soluções reais para os grupos comunitários a que serve, sempre em direção da emancipação.

Além disso, quando os psicólogos adentraram no "terceiro setor", carregando consigo grandes utopias de mudança social, não parecem ter levado na bagagem elementos críticos teóricos, técnicos e políticos suficientes.

Na passagem das concepções e práticas tradicionais para novos campos de atuação que vão surgindo, o problema que se coloca é que muitos profissionais, de diversas áreas, em especial os psicólogos, não tiveram uma formação acadêmica direcionada para as demandas específicas dessas organizações e, muitas vezes, apenas transpõem modelos e técnicas aprendidas e generalizadas.

Atualmente, o campo do "terceiro setor" vem se tornando um promissor campo de atuação para inúmeros psicólogos em todo o território nacional. Há, realmente, um novo campo de conhecimento para a Psicologia que difere das Psicologias tradicionais?

O que se observa muitas vezes na Psicologia é um discurso científico que reforça mecanismos de individualização da pobreza, classificando os sujeitos como aptos ou inaptos para o trabalho, além de reforçar um discurso funcionalista de inclusão social.

É importante lembrar que, durante muito tempo, a atuação da Psicologia restringiuse às áreas tradicionais: Clínica, Escolar, Organizacional e Magistério. Basicamente voltava seus serviços para orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica, diagnósticos e aplicação de testes, perícias e psicoterapia. Os psicólogos estavam, na verdade, preocupados em caracterizar o indivíduo, considerando-o previsível e controlável (Dimenstein, 1998, Bock, 2003).

Uma grande parcela da população não tinha acesso algum aos serviços de Psicologia. Suas teorias e práticas não estavam direcionadas para as populações de baixo nível sócioeconômico e cultural, mas sim para os padrões de classe média, que têm servido para definir seus valores em geral (Dimenstein, 1998). A Psicologia se constituiu como uma atividade elitizada, seguindo o modelo de consultório particular. Em sua análise, Botomé (1979) questionava-se: "O que dará a Psicologia a um povo pobre como o nosso?"

Nos últimos anos vislumbramos uma mudança, um redirecionamento dos alvos da Psicologia. Como referido alhures, o psicólogo vem se inserir em instituições voltadas para o atendimento à classe subalterna, ampliando o seu público e o mercado de trabalho, como ocorre no "terceiro setor". Mas, como uma profissão que historicamente esteve voltada para beneficiar determinada estrutura social, poderá contribuir com o desenvolvimento da sociedade?

Segundo Bock (2003), realmente o entusiasmo com o compromisso social, marcando uma nova fase da nossa profissão, não pode ocultar a história da Psicologia de compromisso com as elites no Brasil, sendo preciso superá-la definitivamente.

No entanto, nas sábias palavras de Eduardo Galeano (2002), "A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será" (p. 19). A Psicologia, ao longo da história, ocultou as determinações sociais dos fenômenos psicológicos, construindo ideologia (Bock, 2003). Logo, a superação desses elementos ideológicos presentes na nossa profissão não constitui tarefa fácil, mas necessária e decisiva para vislumbrarmos uma profissão comprometida com a redução da pobreza e das desigualdades sociais.

O movimento em direção às parcelas mais amplas da população, nos leva à indagação de como está sendo feita essa atuação. Yamamoto (2003) chama a atenção para o fato de haver um acesso desqualificado por parte de grandes parcelas da população aos serviços básicos no setor social. De que maneira uma atuação comprometida dos psicólogos e demais profissionais no âmbito do "terceiro setor" poderá diferenciar desse quadro?

O autor referido coloca ainda em questão o envolvimento das agências formadoras e de produção de conhecimento, para refletir a atenção às demandas das classes desfavorecidas, que deveriam partir de uma leitura diferenciada do real e do fenômeno psicológico.

Tais questionamentos são extremamente pertinentes, tendo em vista a relevância social e científica do tema abordado. É preciso reavaliar a formação profissional da Psicologia, seus saberes e fazeres, para que se possa, efetivamente, assumir o compromisso com o processo de redemocratização da nossa sociedade, renovação do espaço público e superação dos problemas que afligem a nossa população.

Afinal, como nos lembra Martínez (2003), o compromisso social do psicólogo e dos que formam psicólogos é necessário para uma prática profissional a serviço de uma sociedade mais justa.

É preciso ir além da avaliação das práticas profissionais, ou da discussão do "terceiro setor" como novo campo de atuação, mas questionar as respostas dadas pela Psicologia ao enfrentamento da pobreza no cenário político atual.

O impacto social da atuação do psicólogo, dentro dos espaços das organizações sem fins lucrativos, poderia ser mais eficiente a partir de uma reflexão acerca da formação profissional, dos modelos teóricos adotados e da compreensão da dimensão social e política na qual estão inseridas essas organizações. Enfrentar velhos problemas e construir uma identidade para que possamos lidar com a complexidade dos problemas brasileiros.

Nesse novo âmbito (não só no "terceiro setor", mas em todos os programas e projetos que lidam com a questão social), deve-se buscar, com a inserção profissional, melhorar a qualidade de vida e o bem-estar, através de uma intervenção proativa, ou seja, antecipando os riscos e situações de vulnerabilidade, buscando o desenvolvimento, a organização e a emancipação das pessoas, grupos e comunidades.

É bem verdade que, apesar da Psicologia não ter nascido com a vocação de "cuidar" da questão social, ela sempre lidou, de uma forma ou de outra, com populações pobres.

Uma das suas vertentes que vem demonstrando essa preocupação, inclusive na construção de novas formulações teóricas, é a Psicologia Comunitária e, mais recentemente, a chamada área da Intervenção Psicossocial.

Por isso, tentamos resgatar, neste artigo, alguns de seus preceitos, na tentativa de pensar outro modo de fazer Psicologia diante da nossa realidade social.

 

Psicologia Comunitária e Intervenção Psicossocial

Poderíamos pensar que não se trata de nenhuma novidade falar na atuação da Psicologia em comunidades pobres, como no caso do "terceiro setor", já que há tempos a chamada Psicologia Comunitária (PC) é desenvolvida em contextos semelhantes.

No entanto, parece-nos que a PC vem sendo considerada a "prima pobre" da Psicologia, carecendo de maiores estudos e pesquisas, dando maior visibilidade a experiências exitosas.

Propomos, então, resgatar minimamente os preceitos da PC, para que possamos repensá-los criticamente no nosso contexto atual de atuação, aliados às novas reflexões da Psicologia acerca de intervenção psicossocial.

É preciso reconhecer que há uma pluralidade de práticas possíveis na atuação do psicólogo, que podem assumir uma perspectiva crítica. A própria Psicologia Clínica tem, atualmente, se reinventado, buscando atuar na direção de uma clínica ampliada. Entretanto, acreditamos que a Psicologia Comunitária traz importante proposta de intervenção social, afastando-se substancialmente das práticas tradicionais, e que precisa ser valorizada. Vejamos porque, ao passearmos um pouco por essa área ainda aberta à exploração, chamada Psicologia Comunitária.

Podemos considerar o campo da PC bastante plural, pois se apresenta de formas diferentes em diversos países, o que seria evidente, já que os contextos comunitários são totalmente distintos. Dessa forma, não podemos falar de uma, mas de várias Psicologias Comunitárias, apesar de existir um substrato teórico comum, que se refere, justamente, à relação entre comunidade e bem-estar, ou seja, o desejo de melhorar a qualidade de vida e o bem-estar psicossocial dos indivíduos, considerando seu desenvolvimento em conexão com o entorno social (Ochoa, 2004).

Bem-estar e qualidade de vida são conceitos, dentro da PC, que funcionam como indicadores de quais são as condições de vida da população em questão. Ambos têm estreita relação com o desenvolvimento do Estado de bem-estar, na década de 1970, e que incorpora idéias como igualdade e justiça distributiva, atendendo, assim, às conseqüências dos processos de industrialização e formas de produção capitalista. (Martínez, 2004a).

Dessa forma, o aumento dos níveis de qualidade de vida e bem-estar social seria um dos objetivos básicos do trabalho em comunidades. Evidentemente, que nessa perspectiva, a comunidade deverá tomar consciência de seu papel histórico, ou seja, o sujeito da comunidade "é aquele que se descobre (compreende e sente) responsável por sua história e pela história da comunidade (...)" (Góis, 2003:30).

A PC pode ser considerada uma disciplina recente, surgida nos EUA e rapidamente disseminada e adaptada tanto na Europa como na América Latina.

Ela surge a partir de demandas e déficits específicos de uma realidade social, política e cultural concreta, que impregna todos seus espaços teóricos, metodológicos, ideológicos, e de intervenção (Ochoa, 2004).

Nos Estados Unidos, a PC é criada fundamentalmente por psicólogos clínicos, na década de 1960, insatisfeitos com a forma de atendimento à saúde mental, no contexto do pós-guerra e de luta por direitos civis. Poderíamos considerá-la uma conseqüência da criação dos Centros de Saúde Mental, em 1963.

Ficou mais conhecida naquele país como Saúde Mental Comunitária, pela semelhança entre a PC e o campo da Saúde Mental. Suas principais características, segundo Ochoa (2004), são:

1. Origem vinculada à saúde mental;

2. Ênfase na responsabilidade individual (condizente com a cultura local);

3. Escassez de aproximações realmente comunitárias nas intervenções.

Enfim, considera-se que a Saúde Mental Comunitária norte-americana é o campo a meio caminho entre o trabalho clínico individualizado e a PC (Sanchéz Vidal, 2007).

Na Espanha, a PC está ligada à transição democrática, à emergência acadêmica e profissional da Psicologia e ao fortalecimento do Estado de bem-estar no continente europeu.

Com a constituição de 1978, há a descentralização do poder central para as chamadas comunidades autônomas, o que amplia a cobertura de serviços sociais, levando inúmeros psicólogos para a atuação na comunidade. Mas, apenas ao final dos anos 80 se tem as primeiras disciplinas de PC nas Universidades espanholas.

Na América Latina, conhecida como Psicologia Social Comunitária, está relacionada a grupos de psicólogos conscientes politicamente, surgidos entre as décadas de 1950 e 1970, que usam como plataforma teórica as Ciências Sociais, a teologia da libertação, a pedagogia de Paulo Freire, os estudos de Martin-Baró e do colombiano Orlando Fals Borda, além de uma matriz essencialmente marxista (Montero, 1998).

No Brasil, a PC inicia-se em meados dos anos 1960 e vem sofrendo transformações ao longo de sua recente história, apresentando enorme diversidade na prática.

Vale ressaltar, porém, que, recentemente, em algumas regiões brasileiras, temos assistido a uma ênfase também na Psicologia Comunitária da Saúde, com clara influência norteamericana, voltada para o desenvolvimento de programas de saúde mental comunitária.

O que não podemos esquecer, a nosso ver, é que no nosso contexto, enfrentamos desafios bastante urgentes, visíveis e imediatos, relacionados à pobreza, à desigualdade e à opressão social. Logo, faz-se mister pensarmos um corpo conceitual e técnico que atenda às necessidades dos grupos de maior vulnerabilidade social, em intervenções mais eficazes.

Mesmo diante de todas essas diferenças assumidas pela PC nos diversos contextos, poderíamos, ainda assim, pensar num "conceito mínimo" de qual seria o papel do psicólogo. No campo da PC, o psicólogo deveria ser um dinamizador, catalizador de esforços em prol de projetos emancipatórios.

Para Sánchez Vidal (2007), a agenda da PC do século XXI é reafirmar a participação das pessoas, como valor central desse campo, ajudar a empoderá-las, bem como conhecer a fundo as razões dos que não participam. Enfim, levar a comunidade a sério, pois uma Psicologia ainda centrada na promoção individual não pode chamar-se comunitária: "(...) la tarea es, por tanto, tomarse en serio la comunidad y reafirmala en la doble condición de concepto y valor director del campo y de área de estudio que integre la investigación empírica y el análisis social existentes" (p. 54).

Sendo assim, a PC já nasce com uma vocação rupturista em relação às formas estabelecidas de entender e resolver os problemas psicológicos.

Para Ochoa (2004), os objetivos da intervenção comunitária seriam a participação, o empowerment (empoderamento) e o apoio social. E acrescenta ainda que um objetivo irrenunciável seria a facilitação e promoção da distribuição eqüitativa dos recursos psicossociais. Suas características principais seriam, então, a análise da realidade, dos processos sociais e dos indivíduos nesse contexto.

Podemos entender participação como um processo no qual os indivíduos influem e são influenciados, nas decisões de um coletivo, em assuntos de seu interesse (Martínez, 2004b).

Consideramos que a mera transposição de técnicas e teorias psicológicas de abordagem individual e a-históricas, para o campo da intervenção psicossocial, é responsável pelos problemas vivenciados pelos psicólogos nessa área.

Evidentemente que se os determinantes dos problemas são de origem social, conceitos e teorias de base individual são insuficientes para novas tarefas. Precisamos de corpos conceituais cujo núcleo seja social.

Acreditamos que um primeiro passo seria, justamente, diferenciar os campos, seus objetos de intervenção e suas finalidades.

Uma das diferenças mais importantes no campo da intervenção psicossocial, a nosso ver, é que o psicólogo não está passivo à espera do adoecer das pessoas, mas ele está em busca dos grupos vulneráveis e dos processos sociais responsáveis pelos problemas psicossociais, permitindo sua prevenção e o desenvolvimento do conjunto da comunidade. A isso chamamos de intervenção proativa, como citamos anteriormente.

Ademais, não podemos nos prender ao local de intervenção unicamente. Se estamos atuando dentro da comunidade, mas nossa abordagem é puramente individual, ainda assim não estamos considerando a comunidade como destinatário.

Para Montero (1998), a comunidade trata-se de um grupo social dinâmico, histórico e culturalmente constituído, pré-existente à presença de pesquisadores e interventores sociais, que compartilham interesses, objetivos, necessidades e problemas, em um espaço e tempo determinados, gerando coletivamente uma identidade. Além disso, a comunidade busca diferentes formas organizativas, desenvolvendo e empregando recursos para atingir seus objetivos.

A PC entende que a comunidade é um espaço social onde se podem desenvolver ações coletivas organizadas na direção da transformação social, constituindo, portanto, um espaço empírico de investigação e ação (Martínez, 2004b).

Evidentemente, é preciso considerar a heterogeneidade e complexidade das relações comunitárias, na hora de desenvolver nosso trabalho em comunidades concretas.

Por isso, nenhum trabalho comunitário deve ser dado a priori. Faz-se importante empreender, por exemplo, investigações que busquem as características da comunidade, suas necessidades e condições de vida, para que a ação comunitária possa buscar transformação de situações vistas como problemáticas (Martínez, 2004b).

Com a inserção do psicólogo no setor do bem-estar, acreditamos, como dissemos, ser necessário resgatar preceitos importantes da PC, tendo em vista que estamos lidando com grupos sociais em vulnerabilidade, como é o caso das organizações sem fins lucrativos, que têm se destinado a trabalhar com grupos diversos, como crianças e adolescentes, violência, alcoolismo, drogadição, terceira idade etc.., mas que guardam como característica principal a total falta de perspectivas e projetos de vida, principalmente, pela condição sócio-econômica em que vivem.

Nesses contextos de atuação, faz-se necessário pensar, não em intervenções centradas no indivíduo, mas em intervenções psicossociais, que pensem o grupo social e sua organização.

Na literatura psicológica brasileira, encontramos poucos trabalhos escritos sobre intervenção psicossocial, apesar da ampla inserção de psicólogos em organizações sem fins lucrativos e em programas governamentais de assistência social, como por exemplo, o Programa de Atenção Integrado à Família (PAIF), executado nos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS).

O objetivo da Intervenção Psicossocial é, justamente, reduzir ou prevenir situações de vulnerabilidade, melhorando condições humanas, e, para isso, requer uma abordagem interdisciplinar. Situação de vulnerabilidade aqui significa a falta de cobertura de necessidades humanas básicas, que se encontram diretamente relacionadas com o contexto social.

Sarriera (2004) define intervenção psicossocial da seguinte maneira:

A intervenção psicossocial é, dessa maneira, um trabalho de relação direta entre facilitador-interventor com o grupo-alvo, que incide em transformações nas histórias, ou melhor, na vida cotidiana, espaço onde as histórias pessoais, grupais ou coletivas ocorrem (p. 25).

Podemos dizer que esse tipo de intervenção, diferentemente da Psicologia individual, se sustenta na prevenção e educação, na promoção e otimização, no fortalecimento dos recursos e potencialidades dos grupos e coletivos sociais (Espinosa, 2004).

Como se trata de campo complexo, as funções do psicólogo seriam múltiplas, dependendo dos objetivos, como expõe Blanco e Valera (2007):

 

 

Como o processo de intervenção depende do seu âmbito, não existe um conjunto préestabelecido de estratégias ou técnicas, mas devem ser escolhidas de modo que sejam compatíveis com os objetivos da intervenção social (Sarriera, 2004).

Para Sánchez Vidal (2007), toda ação que se destine a grupos sociais deve ser justificada por critérios objetivos, e, para isso, deve partir de avaliação de necessidades e da participação dos envolvidos, pois é a participação que legitima a intervenção.

Dentre as diversas técnicas e procedimentos utilizados na intervenção psicossocial, estariam:

 

 

Evidentemente, necessitamos de uma Psicologia destinada ao nosso povo e aos nossos problemas. O que não quer dizer que não possamos tomar por base estudos e experiências exitosas de outros países, mas, como próprio preceito da PC, debater sobre sua função social e política dentro do nosso contexto, e, sobretudo, avançar na consolidação de uma disciplina que instrumentalize os profissionais em intervenções sociais eficazes.

Por fim, não podemos perder de vista que, ao assumir alguns preceitos da Psicologia Comunitária, as ações devem se articular numa perspectiva de totalidade histórica, e não focalizadas ou pontuais.

 

Considerações Finais

E como poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva? Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos. (José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira).

As alternativas apresentadas pelo "terceiro setor" e abraçadas pelo "novos quixotes" da Psicologia, não podem encobrir a luta pela transformação e pelos direitos. Por isso, fazse importante uma atuação crítica, reflexiva, que dialogue com todas as inconsistências e contradições presentes nesse campo.

Isso quer dizer que a Psicologia precisa contribuir com o debate sobre o "terceiro setor" e o papel da sociedade civil, que deve ser vista como esfera pública democrática, um espaço para a revalorização da política e da construção da cidadania, e não simplesmente instrumento de despolitização e desresponsabilização do Estado (Torres, 2003).

Diante de todo o exposto, poderíamos nos indagar se vale a pena estar inserido neste campo e realizar este trabalho.

A resposta a que chegamos é sim e não. Sim, se recuperamos o antigo sentido dos movimentos sociais e trabalhamos em prol da verdadeira organização da sociedade civil, valorizando o espaço público. Como também, se nossa prática social está na direção da emancipação humana, se repensamos nossos construtos teórico-metodológicos, e buscamos novas formas de intervenção.

Por outro lado, pensamos que não se ela reforça mecanismos de exclusão e manutenção das relações de dominação. Ou ainda, se travestimos esses movimentos de "terceiro setor" e esvaziamos o seu conteúdo político.

Enfim, sejamos "novos quixotes", se podemos, como psicólogos, contribuir para a construção de ações que, fortalecidas e articuladas na totalidade do movimento histórico, delineiam um novo projeto de sociedade.

 

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Endereço para correspondência
Ilana Lemos de Paiva
E-mail: ilanalp@bol.com.br

Oswaldo Hajime Yamamoto
E-mail: ohy@uol.com.br

Recebido em: 06/08/2008
Aceito em: 01/12/2008

 

 

* Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com estágio na Universidade Autônoma de Madri - Espanha. Atualmente é professora da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte (FARN) - Brasil.
** Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e atualmente é professor-titular no Departamento de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Brasil.
1 A comissão Filer era composta por um grupo de pesquisadores norte-americanos, denominada Commission on Private Philanthropy and Public Needs, que iniciou seus trabalhos em 1973, financiada pela Fundação Rockefeller e com o apoio de importantes componentes políticos (Pérez-Días & Novo, 2003).