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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.8 no.16 São Paulo dez. 2008

 

DOSSIÊ

 

A eloqüência do silêncio: gênero e diversidade sexual nos conceitos de família veiculados por livros didáticos

 

The eloquence of silence: gender and sexual diversity in the concepts of family disseminated by school textbooks

 

La elocuencia del silencio: género y diversidad sexual en los conceptos de familia vehiculados en los libros de texto

 

 

Cláudia Vianna*, I, II ; Lula Ramires**, III

I Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
II Universidade Autônoma de Madrid-2008-2009 - Madri - Espanha
III CORSA: Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca examinar as ocorrências homofóbicas no que diz respeito à diversidade sexual e às relações de gênero presentes nos modelos de família expressos nos livros didáticos avaliados e distribuídos pelo governo federal, em uso nos anos 2007 e 2008. Foram selecionados 67 dos 98 livros didáticos mais distribuídos nas escolas públicas brasileiras do ensino fundamental e médio. Constatou-se que a inexistência de alusões explícitas aos homossexuais e/ou à homossexualidade nos modelos de família é um silenciamento sobre a diversidade sexual. A interpretação dos dados permitiu concluir que – apesar dos avanços decorrentes da abundância de imagens e exercícios voltados para a introdução de alguns aspectos para além dos padrões tradicionais de família – a ausência da diversidade sexual e, portanto, de famílias homoparentais nos livros examinados é expressão das relações de poder que sustentam um modelo ainda patriarcal e heterossexual de família. Além disso, a naturalização da heterossexualidade sustenta a possibilidade da homofobia e a legitima ao excluir outras formas de família para além do modelo hegemônico.

Palavras-chave: Homofobia, Família, Livro didático, Diversidade sexual, Relações de gênero.


ABSTRACT

This paper is part of a broader research project whose characteristics were specified in the presentation of the four articles which discuss the research results. It intends to identify and analyze, using the concepts of sexual diversity and gender relationship, the homophobic occurrences in family models presented in school textbooks evaluated and distributed by the Brazilian government, and in use in 2007 and 2008. 67 of the 98 school books widely distributed to Brazilian public schools which provide basic education were selected. It was found, however, that the lack of explicit mentions to homosexuals and/or homosexuality shows indeed the silence covering the subject. The data interpretation led to the conclusion that – in spite of the advances resulting from the abundance of images and exercises aimed at introducing some aspects of gender relations that go beyond the traditional family patterns – the absence of sexual diversity and of homoparental families in images and texts is an expression of the power relationship that sustains the patriarchal and heterosexual model of family. On the other hand, the naturalization of heterossexualidade sustains the possibility of homophobia and somehow legitimates it as other relational forms of social visibility are excluded.

Keywords: Homophobia, Family, School textbook, Sexual diversity, Gender relations.


RESUMEN

Este artículo es parte de un proyecto más amplio ya especificado en la presentación de este Dossier. Busca examinar los aspectos homofóbicos con respecto a la diversidad sexual y a las relaciones de género en los modelos de familia expresados en los libros de texto evaluados y distribuidos por el gobierno federal en 2007 y 2008. Han sido seleccionados 67 de los 98 libros de texto más distribuidos en las escuelas brasileñas de enseñanza primaria y secundaria. Hemos constatado que la inexistencia de menciones explicitas a los homosexuales y/o a la homosexualidad en los modelos de familia es un silenciamiento sobre la diversidad sexual. La interpretación de los datos ha permitido concluir que – a pesar de los avances venidos por la abundancia de imágenes y ejercicios volcados para la introducción de algunos aspectos más allá de los patrones tradicionales de familia – la ausencia de la diversidad sexual y, por lo tanto, de familias homoparentales en los libros examinados es una expresión de relaciones de poder que sustentan un modelo patriarcal y heterosexual de familia. Además, la naturalización de la heterosexualidad sustenta la posibilidad de homofobia y la legitima al excluir otras formas de familia más allá del modelo hegemónico.

Palabras clave: Homofobia, Familia, Libro de texto, Diversidad sexual, Relaciones de género.


 

 

Introdução

As considerações arroladas neste artigo têm como fonte os resultados de levantamento realizado durante a investigação denominada Qual diversidade sexual dos livros didáticos?, cujo objetivo era – com base na teoria de Strauss & Corbin (2007) sobre metodologia de pesquisa – examinar sob diferentes ângulos a qualidade discursiva sobre diversidade sexual enunciada em 67 dos 98 livros didáticos mais distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático e pelo Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio entre as escolas públicas do país. O ângulo privilegiado por este artigo diz respeito à análise da reiterada ausência de conteúdos e imagens diretamente relacionados à diversidade sexual nas concepções de família contidas nos livros didáticos abrangidos e, também, do papel exercido pelo discurso e pelas imagens de família nesse mesmo contexto. Se, como se pode constatar, os indícios homofóbicos encontram-se, de modo geral, nas sutilezas e nas entrelinhas, a tarefa primordial foi buscar o não-dito, que pode ser tão ou mais devastador do que palavras explícitas.

Mas por que examinar o papel da família no livro didático? De acordo com o sociólogo sueco Göran Therborn, a "família é o espaço cercado nos campos de batalha abertos pelo sexo e pelo poder (...). Como tal, a família é uma instituição social, a mais antiga e a mais disseminada de todas" (Therborn, 2006:11-12). Claro que tal instituição mudou ao longo dos tempos, especialmente nos últimos 100 anos. Mas para o autor, que empreendeu a tarefa de analisar a família e suas transformações durante todo o século XX, essa instituição se encontra suspensa entre forças biológicas e sociais, sendo responsável por regular quem pode e deve – ou não – ter relações sexuais, e com quem. Nesse sentido, família, poder e sexualidade sinalizam para o uso do gênero, não apenas como uma construção social que evoca as diferenças sem reconhecer as desigualdades ou as hierarquias de poder que são construídas socialmente. Aqui essa categoria diz respeito, necessariamente, às relações de poder, ou seja, à desconstrução analítica do modo como as relações sociais se constituem. E, claro, elas não são neutras, incluem todas as desigualdades e entre elas as de gênero. Nesse processo, criamos permissões e proibições no que diz respeito aos saberes produzidos sobre a sexualidade e sobre os modos como esta aparece ou é cerceada no processo de construção da família enquanto uma instituição social. No caso deste artigo, o exame dos modelos de família se cruza com o exame da educação e, especialmente, do livro didático, como uma das formas utilizadas para elaboração e transmissão dos conteúdos escolares. Assim, cabe perguntar: qual a ligação possível entre família, conteúdo do livro didático, diversidade sexual e relações de gênero?

 

Escola, Família, Diversidade Sexual e Gênero

A idéia de família tem uma constância na escola, pois ambas são vistas como lugares importantes no embasamento do processo de socialização. E essa socialização não é neutra; ela transmite, produz e reproduz modelos de comportamento, sensibilidade e racionalidade próprios da cultura. Corpos, masculinos e femininos, são construções sociais e históricas, e as instituições sociais – família, escola, etc. – atuam nesse processo educativo. Elas fixam modelos, formas e valores, produzindo sujeitos e significados de gênero (Vianna & Ridenti, 1998). Assim, firmamos a idéia de que os conteúdos utilizados pela educação formal estão repletos de significados de gênero, denunciando, mas também, muitas vezes, justificando desigualdades, ora por meio do preconceito explícito, ora valendo-se do silêncio.

De acordo com Joan Scott (1992, 1995) e Linda Nicholson (2000), todas as palavras têm uma história, sendo distintos os símbolos, significados e interpretações que se tem a respeito de determinadas normas e instituições. Nesse sentido, o conceito de gênero pode permitir que percebamos o caráter sociológico e interessado da construção dos conteúdos veiculados pela educação escolar. Para tal, procuramos sair de explicações fundamentadas exclusivamente sobre as diferenças físicas e biológicas, afirmando a natureza social, histórica e política que a socialização de gênero inevitavelmente apresenta.

Em aguda análise das relações de gênero na cultura ocidental, Nicholson (2000) referese à idéia de que o próprio conceito de gênero possui historicidade. Esta é importante para a compreensão de como se constitui o saber a respeito das diferenças sexuais, o qual, por sua vez, é gerado pelas culturas sobre as relações humanas e a partir de disputas políticas. Assim, a noção de família está carregada de sentidos que remetem às relações e às desigualdades de gênero. É evidente seu peso na educação. Interpretando o contexto de produção de publicações em língua portuguesa endereçadas a estudantes e professores da quarta série do Ensino Fundamental, editadas entre 1975 e 2003, Neide Cardoso de Moura (2007) cruza a teoria da ideologia do historiador inglês E. B. Thompson com o conceito de gênero de Joan Scott. Ela conclui que, a despeito de toda a movimentação no âmbito das políticas públicas de educação e do esforço de nelas incrementar a temática de sexo e gênero, o livro didático continua sendo veículo de discriminações de gênero. O mesmo acontece quando se fala em desempenho escolar. Se a família se mostra ausente, negligente ou omissa, é acusada pela escola de ser a culpada pelo rendimento insatisfatório dos filhos.

Ao examinar o discurso pedagógico de professoras das séries iniciais das redes municipais e estaduais de ensino de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Maria Cláudia Dal Igna (2005) nos mostra que a noção de família desestruturada é apontada como uma das principais causas do baixo desempenho escolar dos alunos e alunas. Isso transparece na fala de uma professora entrevistada: "questão do estímulo, assim, quando tu vê que a criança não é estimulada, a família não está nem aí, não olha o caderno, não olha tema, eu coloco também. (...) Chamar um pouco mais a família, [para] a família se empenhar um pouquinho mais" (Dal Igna, 2005:106).

Por outro lado, família e escola são instituições concorrentes no que tange à educação, pois não ficam claramente definidas as atribuições e fronteiras entre uma e outra (Carvalho & Vianna, 1994). A esse propósito, parece ainda valer o que afirmou Michelle Perrot a respeito das crianças francesas do século XIX: "A infância é, por excelência, uma daquelas zonas limítrofes onde o público e o privado se tocam e se defrontam muitas vezes de maneira violenta" (Perrot, 1991:148). Como conseqüência, tal indefinição causa atritos, sobretudo no que diz respeito ao controle e ao castigo físico das crianças, isto é, ao exercício da autoridade. Nesse embate, muitas vezes procura-se ganhar força classificando uma família de desestruturada, atribuindo a ela o efeito prejudicial sobre o desempenho escolar da prole. Diversas características são invocadas para justificar essa visão: pobreza, ausência do pai e/ou da mãe (a ser suprida por tias e avós), instabilidade de emprego, analfabetismo ou pouca escolarização tanto do pai quanto da mãe, entre outros.

A família está, assim, na base de um currículo oculto, já que a escola conta com ela para que alunos e alunas alcancem uma aprendizagem satisfatória. Trata-se, na verdade, da família assim chamada de estruturada, isto é, daquela idealizada como nuclear – pai, mãe e filho(a) –, de classe média, na qual os genitores são portadores de boa formação e totalmente dedicados à obtenção do mérito escolar de seus filhos. Essa organização familiar passa a ser a norma a partir da qual se erige um modelo tido como universal, comum e inalterável. Tal modelo, porém, é desprovido de qualquer referência às especificidades culturais e históricas. A inexistência de estrutura familiar, entendida como falta de capital econômico e cultural, é diagnosticada pela escola como a causa do baixo rendimento, da precária auto-estima e, principalmente, dos problemas de comportamento, que podem ir da apatia à agressividade:

Um que tem 10 anos, é um menino que já foi meu aluno na 1ª série, ele repetiu. (...) Ele tem problema de linguagem. Não tem pais, é órfão. O pai eu nem sei se ele chegou a conhecer, a mãe faleceu no ano passado. Então ele mora com uma tia. (...) Tem uma outra menina também, a questão social é bem complicada. Os pais são catadores de lixo e... muito complicado. (Dal Igna, 2005:1055).

Desvela-se, dessa maneira, a forma de organização familiar considerada sadia. Ao tomar a dita família estruturada como padrão, a celebração da diferença passa a ser apenas auto-referida. Recusam-se, assim, os arranjos que se afastem da norma, com base em uma visão que opõe a família estruturada àquela desestruturada. Além disso, quem descumpre a norma não funciona, não dá certo, e a diferença é então utilizada para construir uma hierarquia que distingue e valora alguns grupos em detrimento de outros. O paradoxo dessa situação é que a mesma professora que defende a inclusão do diferente e das diferenças e que abraça entusiasticamente o multiculturalismo e a diversidade lança mão da noção de família estruturada para explicar o fracasso escolar de seus alunos. E o conteúdo veiculado pelos livros didáticos pouco foge a essa regra.

No caso específico deste texto, aborda-se a introdução do conceito tradicional de família, em particular na produção dos livros didáticos. Este é o objetivo do presente artigo: examinar mais detidamente de que maneira a diversidade sexual e de gênero são ou não abordadas nos modelos de família veiculados pelos livros didáticos examinados, qual o contexto de sua introdução e/ou de seu silenciamento e que funções esse processo pode cumprir.

Referências à família são constantes nos livros didáticos analisados. O tema aparece em 135 páginas de um total de 67 livros entre os mais distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM). O que se ressalta é a tensão entre a permanência de um modelo muito próximo do estereótipo de família estruturada veiculado pelas escolas e a indicação de mudanças em que emergem e se realçam modalidades alternativas. Um exame atento do material revela a constância do tema da família nos livros didáticos, com amplo destaque para os livros voltados para o Ensino Fundamental. Do total examinado, apenas dois livros tratam dessa temática no Ensino Médio, ambos de português (Cereja & Magalhães, 2003a; Terra & Nicola, 2001).

Um dos inúmeros exemplos que sintetiza essa característica está em um livro didático de história, destinado a professores/as da primeira série do Ensino Fundamental. Nele, a família é apresentada como instituição capaz de introduzir elementos da socialização e da cultura, destacando-se seu papel primordial na continuidade social por meio da manutenção da tradição: "Convivendo com a família, as crianças aprendem muitas coisas. Por exemplo, aprendem a falar a língua de seu povo, a seguir os costumes de seus antepassados. Seguir costumes significa continuar praticando hábitos da família" (Projeto Pitanguá, 2007a:23).

Ressalta-se assim a importância da família no processo de socialização e, talvez por isso, a forte ênfase dada a esse tema nos livros voltados para o Ensino Fundamental.

Contudo, essa relevância não é neutra. A maneira como o tema é tratado revela uma evidente tensão entre permanências e mudanças nos modelos de família presentes nos livros didáticos de Ensino Fundamental e Médio desde a perspectiva de gênero. Há implicações importantes tanto para a manutenção da heteronormatividade nos padrões de família veiculados nos livros didáticos quanto para a promoção de conteúdos que desafiem esses padrões. Assim, podemos dizer que o conteúdo examinado aponta para um convívio tenso entre permanências (há fortes referências patriarcais em descrições sobre história, cotidiano, divisão sexual do trabalho, cuidado infantil, etc.) e mudanças (há famílias monoparentais, chefiadas por mulheres, lares adotivos, intergeracionais, multirraciais, com homens exercendo o cuidado infantil, etc.) nos padrões tradicionais de família. Ainda que, como discutiremos mais tarde, a diversidade sexual continue silenciada quando se trata dos modelos de família divulgados por esses livros.

 

Sobre Permanências

Desempenhando o papel de manutenção da ordem social estabelecida e colaborando para erigir a família como uma das âncoras que sustentam o status quo das relações de gênero, foi constatada, no conjunto, uma potente mensagem: a permanência de um determinado modelo de família nuclear, branca e de classe média. A maior parte das imagens remete à tríade pai, mãe e filho(s) e à organização heterossexual.

Outras constâncias também são visíveis, como é o caso do uso prevalente – no âmbito da linguagem – do genérico masculino. Salvo poucas e honrosas exceções, as narrativas e exercícios falam sempre em o(s) aluno(s), o professor, o(s) irmão(s), etc. Em nossa sociedade o uso do masculino genérico tem sido hegemônico. Entretanto, esse uso não é neutro. A linguagem como sistema de significação é expressão da cultura e das relações sociais e as frases contidas nesses livros indicam uma discriminação sexista e reforçam um modelo lingüístico androcêntrico que dá margem para ocultar as desigualdades de gênero. O reconhecimento dessas desigualdades na linguagem é o primeiro passo para a sua supressão.

E o que vale para a linguagem também se aplica às situações. Na maioria das vezes, os exemplos utilizados são com pessoas do sexo masculino, donde se depreende que as meninas devem, desde cedo na sua escolarização, se adequar à tarefa de se enxergarem sob o manto da invisibilidade e do silenciamento ao não serem explicitamente nomeadas.

Esse tipo de mensagem é reiterado quando, nas capas dos livros de história organizados por Cristiano Biazzo Símon e Selva Guimarães Fonseca (2006a, 2006b), há três meninos na proa de uma caravela, como se fosse domínio exclusivo do sexo masculino a curiosidade e o ímpeto que nos levam a desbravar os mares e a descobrir novos territórios. Outro exemplo aparece em um livro de língua portuguesa destinado à segunda série do Ensino Fundamental (Carpaneda & Bragança, 2007a), em um texto cujo título é O filho do meio. A estória se desenrola ao redor de personagens masculinos, três irmãos, com alusão a como seria a vida do menino se ele fosse filho único. Fica implícito que o ideal é ser filho único em uma família de classe média para ter o próprio quarto e não ter que dividir nada com ninguém. Trata-se de um modelo que corrobora a defesa da família nuclear de classe média como padrão de família estruturada e que tem implicações na sociedade em geral e na instituição escolar.

Ora, se é verdade que essa é uma possibilidade real, uma vez que a família brasileira atual tem em média dois filhos, não deixa de ser emblemático que se recorra a uma família com três filhos, todos do sexo masculino, para discutir a relação entre eles. Não há nenhum esforço, nos livros examinados, de comparação com a hipótese de o problema ser vivenciado por uma menina. No fundo, o que transparece é uma dificuldade de inversão da situação e de exploração do potencial pedagógico nela contido: que os meninos consigam – a título de exercício comparativo – se colocar ocasionalmente no lugar das meninas. Por isso, há implicações sociais e políticas importantes quando os livros introduzem signifi cados de gênero que excluem as meninas de determinadas funções, ações e direitos (Vianna & Unbehaum, 2006).

É claro que as personagens femininas aparecem nos modelos de família examinados, afinal, esse é o universo próprio delas. Mas, na quase totalidade das vezes, as mulheres surgem para ilustrar e demonstrar sua função primordial: a do cuidar. Em um mero exercício que ensina a fazer limonada, é à mãe que se pede para cortar o limão com a faca (Augusto, 2004). No livro de história para a primeira série do Ensino Fundamental (Lima, 2007a), na ausência do pai e da mãe, é a filha quem deve se encarregar de cuidar do irmão menor, ainda que isso implique o abandono da escola por parte da menina. Ao falar do cuidado, as figuras masculinas estão na maior parte das vezes ausentes ou não são relevantes. Em suma, é à mulher, mãe ou futura mãe, que cabe esse aprendizado, essa adequação ao que Badinter (1980) já em décadas passadas denominava ideologia do amor materno e que esses livros insistem em propagar.

O uso dos termos família ou lar encobre, assim, o fato de que são as mulheres, na maior parte das vezes, as responsáveis pelos cuidados básicos de crianças em nossa sociedade (Manicom, 1984). Isso significa que, além de levar em conta as condições e os preconceitos relativos à classe social dos alunos, uma postura crítica também precisa considerar a hierarquia de gênero prevalente nesses modelos de família, juntamente com os modelos de criança, mulher e mãe engendrados por tal hierarquia. Um efeito decorrente desse processo é a identificação entre ser mulher e ser mãe como algo intrínseco, instintivo, natural e inevitável. Essa visão, nascida na Europa no século XVIII, torna a mãe responsável exclusiva por toda e qualquer faceta do desenvolvimento físico, intelectual, moral e psicológico do filho (Badinter, 1980).

Ressalta-se um padrão insistente de oposição: proteção versus cuidado; família nuclear versus outros modelos de família; homens versus mulheres. Na intenção de tornar vigentes os preceitos e comportamentos considerados apropriados a cada sexo, bem como de converter as crianças em homens e mulheres genuínos ou de verdade, parte-se do pressuposto de que masculinidades e feminilidades se constroem não só distintamente, mas também contrapondo-se mutuamente: ser uma coisa implica necessariamente não ser a outra.

Nesse sentido, um exemplo bastante significativo é trazido por um livro de língua portuguesa destinado à quarta série do Ensino Fundamental, o qual apresenta um elenco quase completo da divisão sexual do trabalho que ainda impera na elaboração dos livros didáticos. Entre as ações ligadas à criação da prole, as que dizem respeito à coragem são do genitor: "Todo pai tem o direito de não saber andar de skate" (Carpaneda & Bragança, 2007b: 23), ao passo que à genitora se reserva o medo e a insegurança: "Toda mãe tem o direito de se recusar a ver A hora do pesadelo" (Carpaneda & Bragança, 2007b:23). O feminino se vincula ao superficial, ao detalhe, à mera aparência: "Toda mãe tem o direito de considerar Freddy Krueger um inimigo e exigir que procure uma manicure" (Carpaneda & Bragança, 2007b:24); por sua vez, o masculino irrompe como aquele que abarca o mundo ao redor: "Todo pai tem o direito de assistir ao noticiário na TV" (Carpaneda & Bragança, 2007b:24).

Por último, evidencia-se a atribuição mecânica das tarefas domésticas às mulheres: "Toda mãe tem o direito de se recusar a juntar as roupas que os filhos atiram no chão" (Carpaneda & Bragança, 2007b: 24). Essa frase, que numa leitura condescendente poderia até ser interpretada como sinal de mudança, já que implica uma possível rejeição ao paradigma tradicional, não deixa de reforçar que a preocupação com a ordem e limpeza da casa permanece fundamentalmente atrelada às mulheres.

A meticulosa análise da feminista Carole Pateman na década de 1980, e publicada no Brasil alguns anos mais tarde (1993), sobre os modelos de contrato social nos mostra que essa desigualdade entre os sexos, até hoje reiterada nos livros didáticos, é parte de um contrato sexual, fruto de características específicas que o patriarcado adquire na modernidade. Para a autora, a sociedade civil passa a ser fundada no contrato social, base dos direitos civis. No entanto, ele não é igual para todos e todas. As mulheres não são consideradas indivíduos de direitos nos mesmos termos em que os homens. A esfera pública, mais amplamente dirigida aos homens, não tem a mesma relevância que a esfera doméstica, reiteradamente destinada às mulheres. Esse aspecto do direito civil patriarcal justifica a sistemática exclusão das mulheres como sujeitos amplos de direitos e a profunda relação estabelecida entre condição feminina, maternidade, cuidado e trabalho doméstico. E o contrato sexual é o meio pelo qual as relações de subordinação são mantidas.

Essas características são cuidadosamente lembradas, como em um livro de história destinado à segunda série do Ensino Fundamental, no qual a imagem da mãe responsável pelo cuidado se soma à concepção de que a mulher é sinônimo de instabilidade emocional: às vezes está alegre e brinca, e em outros momentos está cansada, irritada ou "brigou com o pai" (Lima, 2007b:44). Quando se fala da história das famílias, utilizamse imagens. Uma das fotos ilustra um menino ativo, na rua, de boné, caminhando com livros debaixo do braço. Na figura ao lado, há uma menina quieta, sentada, com olhar sereno (Lima, 2007b:46).

Apropriando-se de uma música popular, Família, de Tony Bellotto e Arnaldo Antunes (do grupo Titãs), um livro de português destinado à sexta série reforça alguns estereótipos de gênero: "A mãe morre de medo de barata; o pai vive com medo de ladrão" (Sarmento, 2008-2010b:97). Na mesma publicação, o enredo das discussões envolvendo violência tem personagens masculinos, foco muito comum em outros livros também. Em um dos textos da obra, um menino é assaltado e tem seu tênis roubado pelo ladrão. É o pai quem cobra dele uma reação, mostrando claramente que o papel masculino é sempre o dominante, motivo pelo qual é preciso ser forte, agressivo, assertivo e enfrentar o perigo sem medo (Sarmento, 2008-2010b). Tais significados integram o conteúdo curricular de uma educação diferenciada e desigual para meninos e meninas, garotos e garotas, consonantes com os binômios força/fraqueza, coragem/temor, raiva/choro, etc. Qualquer desvio de conduta corre o risco de ser evidenciado e duramente criticado.

Em suma, esses significados prescrevem rígidos modelos de gênero que inspiram representações e práticas sociais polares, desiguais e excludentes. Nas palavras de Fúlvia Rosemberg (1992:176), a ideologia do amor materno, o paradigma da família nuclear e a divisão sexual do trabalho são distintas facetas de um único processo: "perpassam o todo social: orientam políticas sociais e escolares; produzem conhecimento científico; são divulgadas pela mídia, por profissionais da psicologia e ensinadas às professoras na sua própria formação" (Rosemberg,1992:176).

Mesmo em algumas das tentativas de contextualizar a família atual e explorar o potencial educativo que a mesma pode oferecer por meio da convivência, comparando-a, por exemplo, com a indígena, não se aponta para um questionamento das desigualdades de gênero e de sua cristalização – como se fosse mesmo natural que as coisas fossem assim. Em um livro de história destinado à segunda série do Ensino Fundamental (Lima, 2007b), descreve-se que o menino ganhou uma flecha e a menina, um pilão; assim, sobre uma postura que poderíamos definir como multicultural, não incide qualquer visão crítica, e nenhuma indicação nesse sentido é fornecida à professora ou professor.

Assim, quando o menino indaga, "você lembra, pai, quando me ensinou pela primeira vez a utilizar o arco e flecha?" (Lima, 2007b:85), fica implícito que é com a figura masculina que se aprende a lidar com a dor física, isto é, que se dá o adestramento para a coragem. Em outras páginas do material aparecem narrativas de famílias em outros tempos históricos, seja na Grécia ou Roma Antiga, seja no período colonial brasileiro. Não se estabelecem correlações com a sociedade atual, sob a capa de uma descrição neutra. Contudo, diferenciam-se as primeiras famílias vindas ao Brasil como legítimas, ou seja, conformes ao modelo tradicional europeu, em contraposição à vida de homens amigados com índias, o que explicaria a miscigenação de nosso povo (Lima, 2007b). No máximo, o que se obtém é uma indicação da existência de diferentes costumes, mas não se chega a falar na diversidade de famílias; em outras palavras, há um claro limite no que tange à variação possível desse tema.

Em outros materiais, constatamos que a visão tradicional permanece ao se abordar a gravidez quase exclusivamente nos livros de ciências. Mesmo quando há uma busca de envolvimento dos meninos nesse assunto, ele ainda é tratado como coisa de mulher, deixando no ar a idéia de que está na maternidade a verdadeira realização feminina. Todavia, ainda que o peso da permanência seja visível e marcante no acervo de livros didáticos sob escrutínio nesta pesquisa, é preciso perceber que há um grande número de indícios que apontam para importantes alterações na maneira de conceber e apresentar o tema da família sob a ótica da diversidade sexual e das relações de gênero.

 

Sobre Mudanças

Em diversas situações captadas por esta pesquisa, as relações familiares são discutidas sob a ótica da diversidade, como quando no livro Interagindo com a história, voltado para a primeira série do Ensino Fundamental, se pede ao aluno ou aluna que "faça um desenho representando sua família e escreva o nome de cada uma das pessoas representadas" (Sourient, Rudek & Camargo, 2007:76). Nesse exemplo, percebemos que é grande o potencial para surgirem nas produções das crianças arranjos inusitados, e o próprio texto faz um alerta aos docentes: "Destaque as mudanças que acontecem hoje na formação das famílias. Elas estão sendo chamadas de "famílias mosaicos", pois apresentam diferentes composições (pai, padrasto, mãe, madrasta, filho, irmão, meio-irmão etc.)" (Sourient e cols., 2007:76).

Mesmo quando as crianças são apresentadas a modos de observação e registro como a construção padronizada da árvore genealógica, em um livro de história para a primeira série, a orientação dada aos docentes é bastante cuidadosa:

É possível que alguns alunos tenham dificuldades em preencher toda a árvore. O importante é que exercitem o procedimento da entrevista e se familiarizem com este método de investigação. Alguns alunos também podem se sentir constrangidos por não saberem quem é ou quem foi o pai, a mãe ou ambos. É importante tratar esta questão com cuidado e esclarecer aos alunos que pais e irmãos não são necessariamente os biológicos, mas aquelas pessoas que, na relação diária que estabelecem conosco, cumprem esse papel. (Projeto Pitanguá, 2007a:27).

De modo similar, um exercício proposto por um livro de história indicado para a primeira série do Ensino Fundamental solicita: "Desenhe numa folha as pessoas com as quais você convive". E o desafio maior vem em seguida, por meio de uma proposta de comparação: "Veja os desenhos de seus colegas" (Símon & Fonseca, 2006a:46). Na seqüência, chama-se a atenção e valoriza-se o que não é igual: "As famílias vivem e se organizam de maneiras diferentes. Veja as fotos. Converse com a turma sobre diferenças e semelhanças" (Símon & Fonseca, 2006a:51).

Na mesma coleção, agora no manual do professor de um livro de história destinado à segunda série, há a seguinte chamada:

Cada família tem um jeito de se organizar, de viver e de se relacionar. As famílias não são iguais. Toda família tem uma história! As histórias das famílias podem ser contadas por meio de fotografias, artigos de jornais, músicas, pesquisas. Elas mostram as mudanças que ocorrem com o passar do tempo, as diferenças e também aquilo que as famílias têm em comum. (Símon & Fonseca, 2006b:18).

Há exercícios que abrangem a diversidade humana ao refletir sobre as pessoas que compõem uma família sem vinculá-las a nenhuma característica especial ou marcante de qualquer um dos sexos. Isso se aplica ao tratamento dado a uma criança em um livro de história para a primeira série: "Você recebe cuidados, atenção e respeito de sua família? E você oferece o mesmo a ela?" (Lima, 2007a:72-73). Revela-se aqui um inequívoco caso em que o cuidar não é reduzido à mãe ou outras figuras femininas.

Outra tendência de mudança que pôde ser apreendida diz respeito a um recorte multicultural e temporal das relações de parentesco e dos costumes praticados em seu seio. Ao apontar para novas configurações, com alto grau de modernidade, o livro didático de história para a segunda série do Ensino Fundamental solicita de alunas e alunos as seguintes informações: "Com quem você mora?", "Seus pais vivem na mesma casa ou em casas separadas?" e "Todos os filhos de seus pais são de um único casamento ou de casamentos diferentes?" (Lima, 2007b:42). Vez por outra, o elemento geracional irrompe, contrapondo-se a fisionomia e os hábitos da figura mais velha aos de outra mais nova de uma mesma família. E nesse aspecto ressalta-se sempre o tamanho das famílias, as antigas sendo mais numerosas.

Diversas expressões denotam os esforços de arejamento na concepção dos arranjos familiares. Família e casamento deixam de estar intimamente associados, como em um livro de história dedicado à quarta série. Ao se tratar da época da colonização, é dito que "muitos se casavam. Outros formavam família sem se casar" (Lima, 2007c:86).

Essa idéia de que "as famílias podem ser diferentes" é forte indício de que se começa a mostrar outras possibilidades, destoantes do padrão da família compreendida como "estruturada" (Sourient e cols, 2007:74). É o caso de uma avó cuidando do neto, de um pai que cuida das filhas sem uma mulher por perto (Lima, 2007c:74), ou de outro que aparece com o filho recém-nascido no colo (Lima, 2007b:47). Duas ou três décadas atrás, essas imagens seriam impensáveis.

Ainda que em muitas publicações figurem para uso didático afirmações como as de que "uma família é um grupo de pessoas ligadas umas às outras por nascimento, casamento ou adoção" (Sourient e cols, 2007:75), num claro leque fechado de opções, há vias paralelas sendo construídas. Em outro livro de história para a primeira série, uma foto apresenta um pai que vive com duas filhas e uma outra, vinda de um orfanato, para ilustrar casos em que a criança foge de casa devido a maus tratos, sendo posteriormente levada a um abrigo e adotada para que ganhe uma família "de verdade" (Símon & Fonseca, 2006a:49).

Abordando a situação de um menino que morava com outras crianças num orfanato e, por isso, não conheceu pai ou mãe, um livro didático voltado para a segunda série do Ensino Fundamental sugere que é como se pudesse provar, no contato com diversas outras pessoas adultas, sorvete de todos os sabores (Lima, 2007b).

Em um livro de português destinado à quinta série (Sarmento, 2008-2010a), há a narrativa de um garoto que, ao caminhar pela rua, observa meninos tomando banho num chafariz em praça pública, mas recebe um tapa da mãe (supostamente para que não se envolva com aquele mundo, que não é o seu). Vêm à tona as diferenças de classe, que são problematizadas de maneira crítica. Destaca-se nesses últimos exemplos um sinal de mudança na abordagem da família, o que decorre da temporalidade com a qual alguns livros já convivem: na situação da criança que vive na rua, ela é descrita como alguém também dotado de família. Rompe-se, assim, com a noção de que família é algo restrito à esfera privada, sobre o qual não se pode falar ou interferir. Em suma, introduz-se um debate público sobre essa questão.

As novas maneiras de ver a instituição familiar também buscam levar as crianças a refletir sobre mudanças ocorridas nos papéis e tarefas considerados masculinos e femininos. Voltemos ao exemplo já citado da aluna que não tem ido às aulas e sobre a qual se descobre que foi encarregada pela mãe de cuidar do irmão mais novo (Lima, 2007a). Tal exigência, se cumprida, levará inexoravelmente ao abandono dos estudos. Se, por um lado, o livro não questiona a ausência da(s) figura(s) masculina(s) na responsabilidade pelo cuidado da prole, por outro, menciona a existência de uma organização não-governamental dedicada ao trabalho com a infância desfavorecida e usa termos como cidadania, valorização da cultura brasileira e políticas públicas justas. Vale lembrar que se trata de material destinado à primeira série do Ensino Fundamental. Revelase, assim, uma tentativa de envolver alunos e alunas na reflexão sobre o problema de crianças que não têm quem cuide delas e que, provavelmente, ficarão fora da escola. Mais ainda, o livro instiga as e os estudantes a buscarem respostas a esse agudo desafio.

Em um livro de história para a primeira série (Projeto Pitanguá, 2007a), problematiza-se o fato – em vez de simplesmente descrevê-lo – de que cerca de 100 anos atrás as famílias eram diferentes. O livro destaca um tópico com o título "O papel dos homens e das mulheres" e argumenta que, "naquela época", o homem sustentava o lar e a mulher cuidava da casa e dos filhos (Projeto Pitanguá, 2007a:28-29). Além disso, menciona-se a existência de mulheres desempenhando outras funções, inclusive citando exemplos, como o da compositora Chiquinha Gonzaga, que alcançou o reconhecimento popular.

Na mesma coleção, o livro de história para a quarta série traz uma charge publicada em 1905 na qual uma família se vê expulsa do morro onde vive em razão de obras. O homem diz à esposa: "Cala-te, mulher, e vai puxando com a trouxa!" (Projeto Pitanguá, 2007b:101). O texto que acompanha a imagem questiona o tratamento do marido, chamando a atenção para o mesmo e indagando se hoje as mulheres são tratadas da mesma forma. Ainda nesse livro, são apontadas mudanças de comportamento, deixando implícita a incorporação de um discurso feminista pelo livro didático. Revela-se que o lugar das mulheres na sociedade mudou, indicando-se que a partir dos anos 1950 crescia o número de moças que prosseguiam seus estudos até a faculdade, que deixavam a família numa cidade pequena para ir morar num grande centro, gozando de maior liberdade, sem o controle dos familiares. Embora malvisto por uns, isso era considerado um exemplo a ser seguido por outros.

Embora pouco apareçam, são notáveis as passagens em que o texto é inclusivo do ponto de vista da linguagem, explicitando os termos no feminino em instruções dadas às e aos estudantes. O livro de Marisley Augusto destinado à alfabetização diz: "Acompanhe a leitura do professor ou da professora" (Augusto, 2004:22).

Observa-se também uma nova atitude na abordagem da gravidez. Embora ainda seja tratado com maior ênfase nos seus aspectos biológicos, esse assunto também passa a ser objeto de reflexão em termos das relações interpessoais que suscita. Chama a atenção o número de vezes em que os meninos são instados a se envolver com o tema da maternidade, descaracterizando-o como exclusivamente coisa de mulher. Esse é o caso do livro destinado à alfabetização, que convida a pensar sobre as situações de gravidez com claro esforço no sentido de aproximar os meninos a esse fato da natureza humana, solicitando-lhes que toquem na barriga da mãe e conversem com ela sobre a criança que está para chegar (Augusto, 2004).

Os homens adultos, futuros pais, também se envolvem no processo, como demonstra o livro de ciências para a terceira série do Ensino Fundamental organizado por Janeth Wolff e Eduardo Martins (2007a). Além disso, vemos retratada a situação de gestação não planejada, e o esforço preventivo que os livros didáticos parecem ter assumido é o de levar os e as jovens a considerarem as conseqüências que a chegada de uma criança poderá trazer para a garota, para o rapaz, para o pai e a mãe e para o próprio bebê. Esse é o caso de um livro de ciências para a quarta série do Ensino Fundamental (Wolff & Martins, 2007b).

Destaque merecem as ocasiões em que o discurso feminista aparece intimamente vinculado a outros elementos de crítica social. Num livro de português para a sétima série, há uma charge em que uma empregada negra, ao ouvir na TV o anúncio de um programa que está para ter início, divulgado pelos dizeres "no ar, o programa da mulher brasileira", grita para a patroa: "Madame, seu programa começou!" (Cereja & Magalhães, 2003b:18).

Entrelaçando os eixos de classe, raça e gênero, o material prossegue com o excerto de um texto teatral, Lua nua, da dramaturga feminista Leilah Assunção. Em cena, um casal está prestes a sair de casa, ambos para uma entrevista de trabalho, mas precisa decidir quem ficará em casa (e perderá a entrevista) para cuidar da criança, já que a empregada acaba de ser demitida. Em seguida há um trecho impactante em que a personagem feminina diz: "Sempre de braços dados com alguma referência, ‘a mulher de', ‘a mãe de', ‘a filha-do-dono-do-boteco'. E eu, Silvia, onde é que estou, o que é que eu sou? Me ajuda, Lúcio..." (Cereja & Magalhães, 2003b:20). A visão em prol do direito das mulheres recebe, em outro momento do mesmo livro, o reforço de uma tira da Mafalda, personagem infantil argentina criada por Quino (Cereja & Magalhães, 2003b:172).

 

Entre Permanências, Mudanças e Silenciamentos

Na análise aqui empreendida, constatamos que várias das permanências de desigualdades de gênero nos modelos de família veiculados pelos livros didáticos examinados convivem com muitos indícios de mudanças. Permanências ou mutações? Optamos por considerar a evidente contradição que marca esse processo. As mudanças indicam transformações nas relações de gênero e, portanto, nas relações de poder que as definem. Contudo, essas mudanças são tensionadas por insistentes e poderosas permanências.

Trata-se do declínio de um modo específico e histórico de configuração da família nuclear, branca e de classe média, trata-se de chamar a atenção para a maior visibilidade de famílias monoparentais, muitas chefiadas por mulheres. Nesse processo a forma ainda hegemônica não desaparece, mas é tensionada por novos contornos: famílias monoparentais, chefiadas por mulheres, intergeracionais, multirraciais, com homens exercendo o cuidado infantil, com crianças provenientes de adoção.

Contudo, apesar dos interessantes indícios de mudanças que se contrapõem às permanências e acenam para a existência de outros arranjos nos modelos de família divulgados nos livros didáticos, a ausência da diversidade sexual e, portanto, de famílias homoparentais em imagens ou textos é expressão das relações de poder que sustentam um modelo ainda patriarcal e heterossexual de família que pode legitimar a homofobia.

A maior evidência da escassa visibilidade da diversidade sexual está em uma das ilustrações de um livro de história para a primeira série. Entre crianças abandonadas em praças e ruas e um casal sem filhos, a foto de um homem adulto que mora sozinho e está passando roupa (Símon & Fonseca, 2006a:50).

De todas as imagens observadas no material colhido e analisado, essa é a única que dá margem a falar sobre pessoas que moram sós, possibilitando expressar um outro estilo de vida, diferente daquele da maioria dos adultos, que são casados e vivem em família. E esse é o limite máximo de como a diversidade sexual é desprezada nos livros didáticos quando se abordam os tipos de família e sua construção histórica, social e política. Nenhuma alusão se faz à possível variação da orientação sexual.

Na seqüência do mesmo livro de história para a primeira série (Símon & Fonseca, 2006a), encontramos um bom exercício pelo qual se instiga a ou o estudante a observar padrões que não coincidem com aquele que ele ou ela vivenciam: "Você conhece uma família diferente?" (Símon & Fonseca, 2006a:51). A resposta deve ser desenhada num quadro em branco; como se depreende, fica a cargo da professora ou professor ampliar ou limitar o leque de possibilidades. Mesmo assim, o livro não oferece ao educador(a) mais aberto(a) e atento(a) que chegue a propor a possibilidade de uma família homoafetiva o aporte necessário ao maior adensamento do tema, nem mesmo argumentos que favoreçam a reflexão sobre o assunto.

A esse respeito, podemos questionar com Carole Pateman (1993): que tipo de contrato é esse? Até quando a família hereterossexual será tomada como naturalmente definida e como único modelo? Até que ponto se trata apenas de saber que podem existir outros modelos de família, ou de fato dar visibilidade para direitos que deveriam ser efetivamente iguais? Nessa mesma direção, Daniel Borrillo (2005) nos auxilia a entender o silêncio imposto pelos livros didáticos ao tema da homoparentalidade ao refletir sobre os direitos de homossexuais na França:

Tudo para o indivíduo, um pouco para o casal e nada para a família. Eis como poderíamos resumir a situação jurídica francesa referente aos direitos dos homossexuais. Efetivamente, se por um lado o indivíduo se encontra bem protegido pela regra do direito, o casal de mesmo sexo não atinge um nível de proteção equivalente àquele do qual se beneficia o casal de sexos opostos. É no plano do direito de família, no entanto, em particular no de filiação, que as uniões homossexuais encontram as maiores dificuldades. (Borrillo, 2005:s/p).

Assim, não é possível concluir que as imagens de homens sozinhos – com bebê no colo (Símon & Fonseca, 2006a: 47), contando histórias para duas crianças (Sourient e cols., 2007:74), no parque com duas meninas pequenas (Símon & Fonseca, 2006a:49), passando roupa em casa (Símon & Fonseca, 2006a:50) – ou de uma mulher sozinha com uma garotinha (Símon & Fonseca, 2006a: 48) acenem necessariamente para a possibilidade de uma família homossexual com filhos(as).

Trata-se de um eloqüente silêncio: não há a menor condição de um aluno ou aluna se identificar com um(a) homossexual quando se trata das famílias apresentadas nos livros didáticos examinados. Essa realidade é posta de fora do universo tido como "comum" aos seres humanos, o que pode abrir espaço para a permanência da homossexualidade como algo bizarro, estranho, disparatado, marginal ou excêntrico.

Nesse sentido, podemos dizer que a idéia de família nos livros didáticos incorpora permanências e mudanças no que diz respeito à diversidade sexual e às relações de gênero. Contudo, as implicações dessa forma de incorporação são ainda pouco eficazes para a promoção de práticas que desafiem a heteronormatividade na escola.

A reiteração da heteronormatividade nos modelos de família examinados se mantém hegemônica e, como nos recorda Rogério Junqueira (2006), adquire capacidade de atualização, indispensável para que a hegemonia se mantenha e produza seus efeitos. Constata-se, portanto, que o modo prevalente de abordar a família corrobora vigorosamente o padrão heterossexista. Este produz e alimenta a homofobia na medida em que fornece elementos imprescindíveis para que a educação em geral – e dentro dela, a instituição escolar em particular – não se ocupe e, mais ainda, não questione a violência física e verbal sofrida por estudantes homossexuais. Permite-se, por meio da negligência, que a experiência educacional de tais estudantes se transforme num verdadeiro "inferno", relegando-os(as) a um não-lugar (Ramires Neto, 2006).

O inescapável silêncio de imagens ou textos que pesadamente recobre esse tema abre espaço para a manutenção do preconceito e da discriminação homofóbica como uma forma de inferiorização. Como diz Foucault, "não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apóiam e atravessam os discursos" (Foucault, 2005:30). Essa é uma conseqüência direta de relações de gênero que opõem e hierarquizam os sexos e que têm a heterossexualidade como "única possibilidade de sexualidade normal e sadia". Assim, o silenciamento imposto à diversidade sexual – e, portanto, à família homoparental – por todos os livros didáticos examinados nos transmite um eloqüente recado: apesar da maior tolerância em relação a gays e lésbicas, o lugar que lhes é destinado está à margem, e permanece invisível.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Cláudia Vianna
E-mail: cpvianna@usp.br

Lula Ramires
E-mail: lularamires@yahoo.com.br

Recebido em: 09/10/2008
Aceito em: 30/11/2008

 

 

Financiamento:
O Projeto "Qual a diversidade sexual dos livros didáticos brasileiros?", TC N. 247/07, foi financiado pelo acordo de cooperação PN-DST-AIDS/SVS/Ministério da Saúde/BIRD/UNODC – Projeto AD/BRA/03/H34 Acordo de empréstimo BIRD 4713-BR.
Agradecimentos:
O projeto agradece à Coordenação dos Programas do livro do FNDE, à Editora do Brasil, à Editora Dimensão e ao IBEP; às bibliotecas do Centro Educacional Asa Norte, do Centro de Ensino Médio Paulo Freire e do Centro Educacional GISNO pelo apoio na fase de coleta de dados. Os autores agradecem à Marilena Corrêa pelas sugestões. Ao CNPq pela Bolsa de Pós-Douramento no Exterior.
* Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e Professora-Visitante na Universidade Autônoma de Madrid-2008-2009 - Madri - Espanha - com Bolsa de Pós-Doutoramento no Exterior concedida pelo CNPq.
** Mestre em Educação e membro do corpo diretor da organização não-governamental CORSA - Brasil.