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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.8 no.16 São Paulo Dec. 2008

 

RESENHA

 

A saga da Bolívia relatada por seus personagens

 

The saga of Bolivia reported by its characters

 

La saga de Bolivia relatada por sus personages

 

 

Antonio Tupinambá*

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará - Brasil

 

 

Obra: Bolívia jakaskiwa
Autores: Mariléa M. Leal Caruso e
Raimundo C. Caruso
Florianópolis: Inti Editorial, 2008.
292 páginas.

 

Introdução

A sustentação dos governos, do mais despótico ao mais liberal, se faz mais eficiente via controle da opinião pública, a "segunda potencia mundial" segundo Noam Chomsky (2003). Seria, contudo, evidência de grande pessimismo acreditar que a opinião pública não pode expressar-se no sentido de ações concretas com efeito esclarecedor sobre questões nacionais e internacionais. Há aspectos encorajadores quando crescentes grupos sociais abraçam causas, nas quais acreditam e demonstram sua resistência ao domínio e à exploração. É o que ora testemunhamos em solo boliviano, o que exige dos seus protagonistas a construção de um novo modelo de organização política e social, baseado na autenticidade de experiências pretéritas e o acolhimento das invenções sóciopoliticas do tempo presente. Esse novo caminho boliviano pode ser seguido por meio dos diversos relatos e exposições presentes na série de reportagens e entrevistas que compõem o livro Bolívia jakaskiwa de Caruso e Caruso (2008). Naquele país, a luta pela autonomia guarda alguma semelhança com aquelas que se testemunharam em outras regiões do mundo, por exemplo, no Timor Leste nos idos de 1999, quando o país se revoltou, numa espécie de revolução cultural popular, contra o domínio do gigante indonésio patrocinado por seus comparsas internacionais e obteve, a duras penas, sua independência (Chomsky, 2005:50). O atual movimento político e social da Bolívia pode se configurar, da mesma forma, como um levante da população contra a exploração e domínio externo, a favor da sua auto-determinação. A despeito do controle da opinião pública estar nas mãos de uns poucos no país, isto é, nas mãos daqueles que preferem manter a grande maioria da população alheia às decisões nacionais, tem havido protagonismo popular que suplanta essa alienação e permite ao país buscar novos rumos, conforme os anseios do seu povo, majoritamente, de origem indígina. Em um trecho introdutório do seu livro, Caruso e Caruso (2008) afirmam que os bolivianos sabem que possuem "uma sábia agricultura, uma meticulosa organização social comunitária, uma enorme experiência política, ricas jazidas de gás e petróleo, idiomas autóctones tão complexos e expressivos quanto o espanhol e o inglês, e uma paisagem belíssima de montanhas, vales, lagos e planícies tropicais". Os bolivianos podem e devem, portanto, apostar na possibilidade de tomarem as rédeas do seu destino, à revelia da intransigência de grupos internos e das ingerências externas de Estados dominadores.

Visitando a história e a memória da Bolívia por meio de entrevistas com a gente do povo, da intelectualidade e de vários outros grupos sociais, os autores do livro "Bolívia jakaskiwa", apresentam o contraponto de uma propaganda viciada e mal informada sobre o país andino maís indígena da América do Sul sintetizado em "quase trinta textos com cem horas de conversas gravadas com alguns dos mais importantes e significativos personagens da vida política, administrativa, universitária e cultural" (Caruso e Caruso, 2008) daquele país. A luta, sem retorno, para a construção de uma nova nação é contestada por um clã separaratista formado por uma pá de famílias de grandes latifundiários na região oriental do país que recebem o apoio dos costumeiros governos hegemônicos, apostadores do controle externo das pequenas nações. Os autores do livro resenhado trazem, a partir de um outro olhar sobre o que está acontencendo no país vizinho que divide a maior fronteira em extensão com o Brasil, o retrato da política atual como reflexo de um processo emancipatório inédito na América Latina. Leitores atentos, podem, através dos relatos e das análises das entrevistas que formam o livro nomeado, compreender melhor os acontecimentos que povoam uma mídia dependente e manipuladora, depreciadora de "qualquer alternativa política" para os eternos desmandos que levaram o país andino a uma decadência econômica da qual teima em se libertar.

O livro com suas reportagens e relatos de vivências dos autores e dos muitos entrevistados – historiadores, políticos, líderes indígenas, economistas e professores universitários – apresenta o cotidiano de uma Bolívia desconhecida da grande mídia, apronta surpresas e descortina outra Bolívia diferente daquela apresentada à luz da grande imprensa; resgata temas de economia e de justiça comunitárias, da reforma agrária e da luta contra o racismo, um dos mais violentos da América, e das mudanças promovidas pelo governo Evo Morales1. O retrato de uma transição política, logo na nossa fronteira, um projeto nacional próprio e soberano, distante de tudo o que se fala e se comenta no Brasil.

Os vinte e três capítulos em forma de reportagem crítica interessam ao leitor que deseja conhecer o outro lado da história de um país em transição, "repleto de notáveis acontecimentos" , ignorados ou distorcidos pela mídia das grandes corporações.

Por sua originalidade no trato à geografia e cultura locais, o livro interessaria, seguramente, aos globbetrotters, aos viajantes do mundo, desejosos em visitar e conhecer as riquezas humana e geográfica do país. Viajantes aventurosos que desejam fugir dos guias de viagem convencionais e podem aproveitar as observações preciosas dos "diários de viagem" dos autores (Impressões de viagem, p. 161), extratos do diário de Che Guevera em solo boliviano (A agonia do peixe fora d'água: o diário de Che Guevara, p. 273), cuja vida e legado político na Amérida Latina são extensamente explorados no capítulo do historiador Carlos Soria Galvarro T. "A morte e o futuro de Che Guevara na América Latina" (p. 255), o mesmo e polêmico guerrilheiro visto pelo líder aymara no capítulo "Na Bolívia não há sociedade. E Che escondeu-se lá em casa" (p. 245).

Para esses visitantes e curiosos, não podem ser esquecidas as descrições do vice-prefeito de La Paz, Pablo Sánchez Ramos, da cultura e geografia originais de um país com montanhas nevadas, altiplano frio e uma cálida planície (p. 133). Tangenciam as muitas indagações sobre o país ora ameaçado artificialmente por uma guerra civil, diversas questões que merecem uma apresentação resumida e que são emolduradas pelos primeiro e último capítulo do livro, respectivamente sobre o racismo segundo a sociológa e escritora Silva Rivera Cusicanqui (p. 17) e sobre o problema da corrupção, parte da história do país, aprofundada com os conchavos pela posse do gás boliviano, segundo o ex-ministro de Estado para os Hidrocarburetos Andés Solíz Rada (p. 281). Certamente as considerações resumidas sobre os capítulos do livro não querem nem podem substituir a leitura integral, o que recomenda-se a todos os que desejem fazer essa viagem por meio de uma escrita em cuja fonte se encontra a alma e a cor da vida do nosso vizinho andino. Pois segundo as palavras dos próprios autores, assim como quer significar a palvra aymara jakaskiwa do título do seu livro: Bolívia está viva2.

Saindo do texto do próprio livro resenhado, pode-se, em outras fontes sobre a história boliviana, buscar explicações e fundamentação para as discussões e apresentações que compõem os diferentes temas explorados no trabalho de Caruso e Caruso. Por ser este livro de natureza eminentemente jornalística, a construção de pontes com a história do país facilita sua leitura e sua compreensão. A história de uma Bolívia que continua sendo o país mais indígena e mais pobre da América do Sul, com indicadores sociais comparáveis aos da África subsahaariana. Um país de três povos originais, os povos quechuas, aymaras e guranis que correspondem a cerca de 60% de sua população, sem real participação no controle da economia e política nacionais e de uma minoria de eurodescendentes que sempre teve esse poder em suas mãos.

O país guarda uma história de perdas territoriais, dependência econômica crônica e desigualdades sociais que se reflete na formação de grandes bolsões de miséria espalhados por todo o seu território. A prata foi, no período colonial, fonte de poder e luxo do império espanhol. Já no século XX dominou a exploração de estanho, cujos milionários rendimentos foram evadidos pelos empresários locais proprietários das minas. Os bolivianos de hoje tentam não repetir com as suas reservas de petróleo e de gás o mesmo desastre que aconteceu com as demais riquezas naturais do país.

O líder "cocalero" Evo Morales, presidente eleito em primeiro turno das eleições de 2005, apresentou aos seus eleitores uma plataforma política que, a despeito da pouca importância historicamente atribuída ao país, desagradou aos poderosos de Washington e deixou de sobreaviso outros países com interesses e investimentos locais, a exemplo do Brasil. Três diferentes momentos de sua curta trajetória presidencial ilustram a que veio o seu governo:

1) Morales ameaça restringir a entrada de cidadãos norte-americanos no país. A ameaça foi feita depois que um de seus vice-ministros foi impedido de viajar aos E.U.A., porque o consulado estadunidense negou a emissão de um visto. Em fevereiro de 2006, Morales já havia reclamado dos E.U.A. por não concederem visto à senadora e dirigente "cocalera" Lonilda Zurita, sua colaboradora sindical;

2) Os acordos, contratos e modus operandi da companhia petrolífera brasileira PETROBRÁS no país, principal ator econômico local, estiveram na sua mira desde os primeiros dias de governo. Agora, com a nacionalização do gás e do petróleo bolivianos, incluindo os poços explorados pela companhia brasileira, Morales consegue cumprir uma das mais importantes promessas de campanha e ainda força a criação de novos modelos de relação da multinacional brasileira com a Bolívia. Fica claro que o presidente boliviano levanta, com essas iniciativas, questões de natureza política, uma vez que envolvem, simbolicamente, o tema das nacionalizações de hidrocarbonetos e da necessidade de enfatizar o discurso contra a exploração de recursos naturais por companhias estrangeiras;

3) A EBX, siderúrgica brasileira, foi também impedida de operar no país andino. Por sua vez, a Orbisat Amazonas, contratada pelo governo anterior para desenvolver um software voltado ao aerolevantamento da faixa de fronteira do país, teve sua licença de funcionamento vetada, aumentando o clima de incerteza sobre o futuro dos negócios brasileiros na Bolívia.

O presidente tem uma missão gigantesca, em sua tentativa de forjar relações internacionais baseadas no respeito mútuo e no princípio de auto-determinação, no país que foi sempre considerado "terra de ninguém". Segundo uma definição de Chomsky (2004), a Bolívia encontra-se entre os ditos "países fracassados". Trata-se aqui de países que por não terem instituições de respeito e tampouco condições de proteger sua população da violência ou mesmo da destruição, poderiam ser alvo de intervenção forçada dos autoproclamados "estados iluminados", a exemplo dos Estados Unidos. Resta saber a natureza do apoio da opinião pública mundial ao projeto do presidente eleito democraticamente e que pela primeira vez representa, de fato, a maioria étnica nacional e a vontade política do seu povo.

O tema da eleição de Evo Morales e suas conseqüências é recorrente em diversos capítulos do livro resenhado. O relevo mundial do acontecimento e de seus resultantes na vida do país justifica tal insistência dos autores sobre o tema. Afinal de contas, a eleição de Evo Morales e de outros mandatários latino-americanos politicamente mais à esquerda foram largamente festejadas no hemisfério sul apesar de acolhida com ceticismo em Washington por contraditarem sua política externa imperial. Sabia-se que independente de quem chegasse à Casa Branca após as eleições presidenciais estadunidenses de novembro de 2008, prevaleceria o item principal da pauta governamental de manter sua hegemonia imperial. A estratégia continuará, ela "começa com o compromisso fundamental de manter um mundo unipolar no qual os Estados Unidos não tenham um competidor de igual estatura" (Chomsky, 2003:17).

Experiências políticas que fujam aos interesses oligárquicos e elitistas regionais são, não por pura coincidência, experiências que se distanciam do controle e dos projetos de Washington. A palavra de ordem é a repressão aberta às experiencias de auto-determinação, nacionalmente justificadas. A grande mídia, tradicionalmente de acordo com essas prerrogativas, terá um papel fundamental nesse processo antiemancipatório: "cria-se algum pretexto capaz de desqualificar o Governo em questão para que os grandes jornais, revistas, rádios e TVs comerciais possam fazer a campanha.

Nesse meio tempo, acontece um trabalho de articulação diplomática com os países vizinhos e algumas potências para garantir o apoio internacional. Daí, avalia-se se essas forças são suficientes. Caso positivo, desencadeia-se o golpe (sempre em nome da democracia), como foi regra nas Américas desde sempre...".(Brasil de Fato, 19 de setembro de 2008). Acontece, porém, que vivemos uma nova realidade na América Latina, especialmente na América do Sul que certamente implicará mudanças na velha receita dos EUA e da extrema direita para manobrar o Continente. (América do Sul em transe, Brasil de Fato, 19 de setembro de 2008)

Os atuais governos do Continente, vistas as nuances do espectro de centro-esquerda, e mesmo um e outro que fuja a esse campo, têm apostado numa diplomacia capaz de garantir a auto-determinação dos diversos países da região, e a busca de pontos de unidade que os defenda de ingerências externas e intervenções, mesmo considerando-se o Haiti um "ponto negro" dessa história. A criação da Unasul, há um mês, faz parte dessa nova concepção de política internacional dos países do Continente. (América do Sul em transe, Brasil de Fato, 19 de setembro de 2008)

No documento resultante da reunião da Unasul, A Declaração do Palácio de La Moneda, aprovada por unanimidade, os chefes de Estado e Governo presentes manifestam "seu mais pleno e decidido apoio ao governo constitucional do presidente Evo Morales", e rejeitam qualquer situação que leve a um golpe, à ruptura da ordem institucional, ou comprometa a unidade territorial da Bolívia.

Assuntos domésticos são preocupações que perpassam os textos do livro de Caruso e Caruso (2008). Isso porque a situação interna da Bolívia também é preocupante. Sua história revela um fosso quase intransponível entre duas partes que se distinguem cultural e economicamente. A parte economicamente dominante pretende dar as cartas do jogo político e se alia aos inimigos externos que vêem vantagem na manutenção do status quo, a despeito do desejo de mudança da grande maioria da população original do país. A parte que oprime vem das chamadas províncias da Meia-Lua, com seu epicentro em Santa Cruza de la Sierra: "Apoiadora das ditadutas até a década de 1979, e da democracia neoliberal a partir dos anos 1980, a burguesia de Santa Cruz sempre participou do governo central até que o ‘índo' chegou ao poder. ‘Vendo então seus interesses em perigo, esses grupos de poderosos inventaram a tese da autonomia. E toda uma campanha midiática lhes permitiu defender suas prebendas por meio de um novo mito no qual eles mesmos não crêem', diz Jorge Paz, dirigente de um bairro periférico da capital cruceña. Sua campanha é pela recuperação de seu ‘IDH confiscado' – da ordem de 30% das receitas, destinadas ao financiamento da renta dignitad – esquecendo, de modo calculado, que a nacionalização dos hidrocarbonetos compensou essa perda ao aumentar o preço de vendas das riquezas naturais do país e distribuiu uma parte maior do que foi arrecadado aos municípios". (Lemoine, 2008).

O problema presente do governo de Morales é o enfrentamento desse grupo minoritário que "continua dispondo de grande parte das riquezas do país e foi afetada pela nacionalização das riquezas naturais. Eles, que faziam com que a Bolívia pobre vendesse o gás a preço "solidário" para a Argentina e o Brasil, países mais desenvolvidos, querem agora reter uma grande fatia dos impostos que o governo de Evo Morales recuperou para o país, com a nacionalização. Querem, além disso, impedir que a reforma agrária se estenda por todo o país, buscando reservar para si o secular "direito" à concentração de terras em suas províncias, para continuar exportando soja transgênica e acumulando riqueza privada, em detrimento dos interesses nacionais e do povo boliviano. (Brasil de Fato, 19 de setembro de 2008).

Uma minoria arrogante porque protegida pelas políticas intervencionistas de países mais ricos, indiferentes a decisões do governo legítimo da Bolívia e reforçada pelo apoio simbólico da propaganda reacionária da grande mídia. Do poder da propaganda estadunidense jorra a fonte dos preconceitos sobre o então candidato a presidência da Bolívia, quando líder dos cocaleros. Uma pedra no sapato dos que queriam combatar a cocaína na Bolívia, quando as grandes metrópoles ocidentais eram as detentoras do consumo da droga. Nesse contexto de ingerência em assuntos internos de um país soberano, que o governo norte-americano conseguiu desvirtuar, no passado, o pratimônio natural e cultural que representava a folha de coca.

Voltando ao texto principal do livro ora resenhado, pode-se, nas páginas que compõem seu décimo sétimo capítulo, melhor adentrar nesse polêmico tema do uso boliviano da folha de coca. O capítulo se intitula: "As diferentes visões sobre o uso da folha de coca pela população boliviana (p. 205)". Nas perspectivas política e técnica, o médico Jorge Hurtado revela, de forma biográfica, os equívocos da política estadunidense que transformou um mercado outrora quase apenas doméstico para a folha de coca em um mercado exportador. Aborda a evolução da coca para a bebida que é um dos maiores símbolos norte-americanos e sua errônea associação com a cocaína, que fez o presidente Evo Morales, logo depois de eleito, circular pelo mundo para mostrar a diferença entre a folha de coca como elemento da tradição indígena que sequer é mastigada, como foi sempre erroneamente referido pelos espanhóis e a droga a ela associada.

Graças às lutas dos indígenas, Evo Morales se tornou o primeiro presidente não eurodescendente do país. No capítulo do livro intitulado "Governo e política indigenista revolucionária" (p. 127), Felipe Quispe, líder do grupo guerrilheiro Tupak Katari é radical no discurso a favor de mudanças profundas da Bolívia que supera o discurso do atual governo de refundação do país. Para Quispe, nem mesmo o nome do país se justifica, caso se queira de fato criar uma nação de indígenas, uma verdadeira nação aymara. O ex-assessor da presidência da República, Ivan Iporre, reforça no seu texto "Partidos vazios, e a tática política de Evo Morales" (p. 115), a idéia da dívida histórica com os indígenas que criaram, com a ascenção de Evo Morales, a oportunidade histórica de construção de um país melhor. E nesse mundo indígena não há, segundo o autor, espaço para um modelo ocidental que exalta o indivíduo e a propriedade individual: "para os povos originários, a relação com o meio ambiente é uma relação com a própria vida. É por isso que dizem, já faz algum tempo, que a proposta do mundo indígena poderá melhorar as condições de vida no planeta" (p. 121). Para além de uma historização do processo que deu origem à insurreição indígena de 2003 e a deposição do presidente, o professor Eduardo Paz Rada (p. 219), traça um perfil realista do atual presidente, desvelando as paixões e suas interfaces com o indígena e o não-indígena, seja em perspectiva étnica, cultural, política ou comportamental. O que pode advir de tal personalidade em face das expectativas resultantes de sua representação para o povo que o elegeu?

Desde que chegou à frente do Estado, os opositores de Evo Morales têm trabalhado incansavelmente para seu fracasso. Uma polarização entre campo e cidade atingiu um patamar extremo. Os departamentos de Beni, Pando e Tarija, seguindo os passos de Santa Cruz, queriam implementar um estatuto de autonomia em seus territórios, confrontando a autoridade do governo central, que havia obtido em 2006 ampla maioria, no conjunto do país, do não ao referendo sobre nomeada autonomia. Caso implementados, esses "estatutos autonômicos" atribuiriam ao Departamento as competências sobre políticas, planos e programas de educação e outros assuntos de natureza econômica, vitais para a nação como um todo. (Lemoine, 2008).

A esse respeito, o economista Bernardo Corro Barrientos passeia pelas "razões do separatismo das elites atrasadas de Santa Cruz no capítulo nove do livro (p. 107). Constata-se que os motivos para tamanha avidez residem na ilegalidade e nas dimensões das posses dos latifundiários de Santa Cruz.

Jorge Miranda e Viviane del Carpi Natscheff tratam, no capítulo sobre "Agricultura e sensibilidade dos povos Bolivianos" (p. 191), dos aspectos de uma Bolívia pre-hispânica que podem ser atualizados na realidade indígena pós-bolivariana que, nos dias de hoje, sobrevive sem manter uma efetiva comunicação com os povos não-indígena ou eurodescendente da Bolívia. Dentro do território boliviano uma idéia tem grande peso na atualidade, a idéia da descolonização. Como trata o filósofo Jorge Miranda Luizaga, no segundo capítulo "A subversão boliviana é a crítica do modelo ocidental" (p. 35), para quem a descolonização também começa quando se acredita que "em vez de um pensamento único, exclusivo de um país, existam vários pensamentos que podem conviver num só território, sem que haja violência ou agressões". Miranda afirma que por trás do colonialismo há o racismo: "o racismo é uma coisa tremenda. Então, este processo de consolidar a identidade boliviana através do conhecimento das nossas culturas originárias, e também de ter a capacidade de usar o bom das outras culturas, é a descolonização. E o processo deve dar-se na educação e na mente".(p. 44) Pablo Mamani, escritor e sociólogo foi o entrevistado que originou o capítulo quinze "Racismo, juntas vicinais, e o novo poder político" (p. 181), uma breve geopolítica indígena boliviana. Mamani reforça a idéia da apropriação do país por uma minoria insignificante de brancos, que usa o racismo como forma de dominação mas que não consegue anular a expressão indígena de política, cultura, poder e até de religião.

Alguns trechos do livro trazem referências diretas ao Brasil. Deixam claro que apesar da proximidade geográfica, o distanciamento dos brasileiros e bolivianos é maior do que se imagina. As referências desses capítulos dizem respeito a temas que merecem a atenção dos dois povos, e podem nos ajudar a diminuir essa enorme distância. O professor e sociólogo Esteban Ticona, no terceiro capítulo "Uma nova idéia de diplomacia que o Itamaraty precisa saber" (p. 47) discorre sobre a necessidade de um outro conceito para as relações internacionais, especialmente no que tange ao comércio, que, segundo o autor precisaria de mais equilíbrio, sob o risco de submergir à pobreza apesar de suas riquezas naturais. No campo da educação, Javier Medina apresenta o modelo pedagógico andino que pode ser uma referência para os dois países (p. 141): "um sistema pedagógico que permite a articulação do modelo técnico e científico do Ocidente pós-industrial com as civilizações holísiticas e ecológicas indígenas". O tema da educação continua na pauta do dia na entrevista com o ex-ministro da Educação do governo Evo Morales, Felix Patzi. "A violência da educação ocidental num país indígena" (p. 93) critica e mostra alternativas à prevalente educação branca, racista e monocultural que prega as utopias de uma sociedade européia, industrial e moderna, para a qual a sociedade indígena é ruim, arcaica e obsoleta. Mas a "filosofia é: cibernética, Deus, Grécia, Ocidente e indigenismo". Nesta reportagem (capítulo 13, p. 141), o filósofo Javier Medina mostra a tentativa de mudar as crenças das pessoas numa vida que existe apenas no sistema branco ocidental: No caso da Bolívia "é como aquela história grega da fatalidade, onde as próprias vítimas aproximam-se do precipício". O senador Antonio Peredo traz, no quarto capítulo, "Pensar numa guerra civil não faz sentido. Perderiam todos" (p. 55), uma revisão das origens políticas do conflito atual e apresenta, paralelamente, suas inquietações sobre o mal que significa a ameaça de uma guerra civil no país. Há algo de antecipador aos conflitos que ora se vivencia no país, uma vez a entrevista ter sido realizada em 2007, antes do referendo revocatório que legitimou a permanência de Evo Morales na presidência do país. Não haveria como se pensar num conflito interno sem que todos percam, o que hoje tenta evitar o governo, mesmo que tenha razões suficientes para desprezar seus causadores. Para Hugo Moldiz, jornalista e analista político, autor do capítulo "Nem Marx, nem Lenin. Na Bolívia, o sujeito histórico é o indígena" (p. 73), há somente três hipóteses para o país: "um pacto político negociado entre a esquerda e a direita, a vitória do projeto insurgente, ou um golpe de estado contra Evo Morales".

Para o autor, a terceira alternativa significaria o caos por muito tempo. Mas aqui temos na resistência a força de um movimento indígena e campesino, há também um processo de luta anticolonial de onde vem o conceito de descolonização, conforme tratado pelo filósofo Jorge Miranda Luizaga no capítulo dois (p. 35). Recentemente declarado persona non grata pelo presidente Evo Morales, o embaixador americano Phillip Goldberg foi expulso do país, em virtude de sua prática como agente desestabilizador do governo local, e colaboracionista das elites oligárquicas e racistas das províncias do oriente do país. O embaixador antecipa a metáfora do sociólogo Eduardo Paz Rada sobre o desejo de uma "iugoslavização", isto é, de que "os setores das oligarquias do oriente boliviano não estão somente reagindo contra o processo de transformações que o governo Evo Morales está implementando e que afeta diretamente seus interesses – sobretudo no manejo da terra e dos excedentes procedentes do gás –, como agora estão em uma clara ofensiva destinada a promover a divisão da Bolívia, com o argumento das autonomias"3. O que o professor Luiz Alberto Moniz Bandeira (p. 69), da Universidade de Brasília escreveu sobre o embaixador, ratifica sua designação como enviado da Casa Branca a fim de conduzir o processo de separação de províncias, caso isso viesse a ocorrer.

Em suma, passeia-se, através do livro resenhado, por uma série de textos de autoria variada, que propõem e fundamentam uma "nova lógica para o beco sem saída da crise social no continente. Em vez da imitação caótica de modelos ocidentais, como é o caso do capitalismo – destrutivo, ineficaz e individualista –", "discutem alternativas para a Bolívia a partir da sua realidade, da sua história e da sólida cultura originária". (Tudo isso, ainda parafraseando os autores, sem rejeitar a ciência e a tecnologia modernas, resgatando valores filosóficos próprios, principios de economia e de justiça comunitária, complexos sistemas agrícolas e pedagógicos, a lógica secular do relacionamento amistoso com a natureza com sua feição espiritual, que pressupõe um conceito holístico de presença no universo tão perseguido mas de difícil e quase impossível realização no Ocidente.

 

Referências

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* Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Prof,. Adjunto do Dep. de Psicologia da Universidade Federal de São João Del Rei - Brasil
1 Click news, http://www.clicnews.com.br/cultura/view.htm?id=82967, consulta em 24.09.2008.
2 Bolívia Jakaskiwa. http://www.fotolog.com.br/dikka/41737133. Consultado em 04 de abril de 2009.
3 Brasil de Fato. Acessado dem 19 de setembro de 2008, de //www3.brasildefato.com.br/v01/agencia/especiais/bolivia/201ca-bolivia-corre-um-risco-grave-de-iugoslavizacao201d.