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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.9 no.17 São Paulo June 2009

 

ARTIGOS

 

Análise psicossocial das visões de ativistas LGBTs sobre família e conjugalidade

 

Psychosocial analysis of LGBT activist's views about family and conjugality

 

Análisis psicosocial de visiones de activistas LGBT de família e conjugalidad

 

 

Raimundo Gouveia*, I ; Leoncio Camino**, II

I Universidade Federal de Pernambuco – Brasil
II Universidade Federal da Paraíba – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O preconceito tem provocado a estigmatização de homossexuais a partir dos comportamentos sexuais, mas também a sua organização política. Este movimento político-cultural tem conseguido a inclusão de alguns direitos civis na jurisprudência de vários países, os quais vinham sendo negados a partir da orientação sexual. Neste estudo, procura-se entender como se articulam os discursos oriundos do movimento homossexual a respeito da conjugalidade e da realização pessoal. Observa-se que a aspirações dos militantes não consideram necessariamente uma revolução nos modos de constituição familiar. No Brasil, os(as) heterossexuais não precisam mais registrar seus relacionamentos para merecerem a proteção da lei; os(as) homossexuais reivindicam os mesmos direitos. Estas reivindicações não parecem fundamentadas apenas na necessidade de legalizar suas relações, mas de conquistar a isonomia de direitos com os(as) heterossexuais.

Palavras-chave: Valores sociais, Movimento homossexual, Orientação sexual, Preconceito, Direitos civis.


ABSTRACT

Prejudice has caused the stigmatization of homosexuals on the basis of sexual behaviors, but also because of their politic organization. This politic and cultural movement has obtained the inclusion of some civil laws in the jurisprudence of certain countries, assuring rights that had been denied to people because of their sexual orientation. This study tries to understand how are articulated the discourses emitted by the homosexual movement regarding conjugality and personal accomplishment. It is observed that the aspirations of the militants do not necessarily consider a revolution in the ways of familiar constitution. In Brazil, heterosexuals do not need anymore to register officially their conjugal relations to deserve the protection of law; homosexuals demand the same rights. These claims do not seem based only on the necessity to legalize their relations, but to obtain isonomy of rights with heterosexuals.

Keywords: Social values, Gay/lesbian movement, Sexual orientation, Prejudice, Civil rights.


RESUMEN

Los prejuicios han producido la estigmatización de los homosexuales desde los comportamientos sexuales, pero también desde su organización política. Este movimiento político-cultural ha obtenido la inclusión de algunas leyes civiles en la jurisprudencia de ciertos países, que habían sido negados por motivo de orientación sexual de las personas. En este estudio, se trata de comprender como se articulan los discursos que derivan del movimiento homosexual con respecto a la conyugalidad y a la realización personal. Se observa que las aspiraciones de los militantes no consideran necesariamente una revolución de los tipos de constitución familiar. Actualmente, en el Brasil, los heterosexuales no necesitan más registrar oficialmente sus relaciones conyugales para merecer la protección de la ley; los homosexuales exigen los mismos derechos. Estas demandas no parecen basadas solamente en la necesidad de legalizar sus relaciones pero sí de conquistar la isonomía de derechos frente a los heterosexuales.

Palabras clave: Valores sociales, Movimiento homosexual, Orientación sexual, Prejuicio, Derechos civiles.


 

 

Introdução

Analisando os posicionamentos de estudantes universitários diante das reivindicações do movimento LGBT, Gouveia (2007) constatou que há muitas dúvidas na sociedade sobre a possibilidade de legitimação de famílias homoparentais. Essas dúvidas dizem respeito, principalmente, às formas que elas podem assumir e às suas consequências sociais e psicológicas, como também, à natureza das reivindicações e das bandeiras defendidas pelo movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT). Assim, sentiu-se a necessidade de verificar a visão dos sujeitos que estão mais diretamente implicados nesta questão. Através da análise da articulação de seus discursos, é possível conhecer as visões de pessoas envolvidas diretamente com a luta pela inclusão social dos(as) homossexuais em nossa sociedade, e compreender as aspirações que motivam as reivindicações sobre os direitos civis desta categoria.

Considerando que as visões sociais sobre a família, a vida conjugal, a filiação, atravessam várias categorias sociais, desejava-se saber se existem modos específicos de ver estas questões dentro dos grupos de militância dos LGTBs. Neste sentido, surgiram alguns questionamentos na busca de um melhor entendimento do fenômeno social da homofobia: Quais as atitudes dos(as) homossexuais diante da impossibilidade de legitimação das relações estáveis e da adoção de crianças? Será que eles(as) julgam necessária essa legitimação para sua realização pessoal? Para ele/as, o que caracterizaria uma família legítima?

Para investigar estas questões optou-se por abordar líderes do movimento, enquanto portavozes da categoria, considerando as diversas facções existentes dentro do movimento, as quais se organizam em entidades específicas. Esta análise permite-nos observar como se articulam as reivindicações do movimento homossexual sobre os direitos à união civil e à adoção de crianças e as crenças sociais sobre família e auto-realização.

 

A Naturalização de Valores e Normas Sociais

A rejeição aos/às homossexuais não está ligada apenas a uma ameaça objetiva dessas pessoas ao grupo próprio do sujeito, como no caso das relações étnicas em países ricos onde poderia existir algum tipo de competição ou conflito objetivo no mercado de trabalho. Podemos dizer que os conflitos materiais, embora importantes fundamentos dos conflitos identitários e simbólicos, não são suficientes para justificar a homofobia. Esta rejeição pode estar relacionada à heterofobia – entendida como o medo de parecer diferente da maioria - diante do questionamento subjetivo dos valores que sustentam e afirmam a identidade social do sujeito, tais como virilidade e heterossexismo. (Gouveia, 2007; Doise, 1991; Ibáñez, 1991). A não adesão a certos valores sociais pode colocar a categoria homossexual em uma posição social dissidente perante o que se entende como masculinidade. Em muitos casos, a homofobia pode ser interpretada como uma afirmação de virilidade que se manifesta através da rejeição aos modos de ser vistos como impróprios para o gênero masculino, justificando a visão do homoerotismo como um ato de subversão diante do que se entende como "ordem natural das coisas". Não é por acaso que a absoluta maioria dos casos de violência homofóbica tem como alvo os homossexuais masculinos.

Assim, não importa como os homossexuais se comportem, mas como são interpretados seus comportamentos. As pessoas podem interpretar como desrespeito e provocação a possível falta de valorização da virilidade pelos homossexuais masculinos, enquanto estes podem vivê-la como uma forma alternativa de masculinidade (Welzer-Lang, 2001). Essa interpretação não é motivada por informações objetivas sobre o assunto, mas pela necessidade de certos grupos ou sistemas sociais se posicionarem contra a difusão de ideias que contradigam as crenças que eles compartilham. Neste processo, determinados aspectos assumem maior saliência a partir de visões pré-definidas por padrões normativos socialmente construídos, neste caso, para confirmar a "naturalidade" da condição heterossexual. Um dos padrões mais difundidos em nossa sociedade é o que define a família como uma união heterossexual que tem a função de gerar filhos.

A rejeição de muitos setores sociais em relação aos homossexuais teria como base as doutrinas religiosas que defendem valores fundamentalistas, e que resultam em uma preocupação no sentido de conservar um padrão familiar ligado à crença de que um casal só pode ser composto por um homem e uma mulher. As reivindicações de legitimação das uniões homoorientadas e de concessão do direito à adoção de crianças por estes casais representariam uma ameaça a tais padrões (Touraine, 2004). Muito embora a realidade social mostre que a família típica composta por pai, mãe e filhos tem deixado de ser maioria estatística – cada vez aumenta a diversidade de tipos de família: monoparental, recomposta, adotiva, homossexual (conforme o Senso 2000 IBGE) – ainda há uma tentativa de manutenção da crença naquele ideal de configuração familiar. Devemos lembrar que uma reação semelhante foi observada antes da conquista do direito ao divórcio no Brasil, quando o principal argumento contra sua aprovação era a defesa dos valores familiares, uma vez que se via a família monoparental como antinatural.

Portanto, os valores sociais são determinantes para entendermos as visões sociais sobre o que consideramos como certo ou errado, natural ou antinatural (Rokeach, 1981). Vejamos a seguir como se compõem esses valores e crenças, como se constituem enquanto assertivas sobre a desejabilidade de certos comportamentos, e como a psicologia social tem abordado este tema tão subjetivo.

 

A Dinâmica das Crenças e dos Valores Sociais

De uma perspectiva clássica da psicologia social, os valores servem para estabelecer a conexão entre as atitudes e a estrutura social. Parsons (1957) entende que eles têm origem na experiência pessoal e no compromisso que o indivíduo possa ter com os critérios normativos de sua própria cultura. Partindo das teorias de Schwartz e de Inglehart, Pereira, Lima e Camino (2001) entendem os valores não como uma característica que compõe as personalidades dos indivíduos, mas como uma construção social resultante da inserção dos indivíduos na dinâmica social. Do ponto de vista mais psicológico e individualista do movimento da cognição social, Rokeach (1973; 1981) vê os valores como crenças sociais organizadas a partir do critério de importância que lhes é atribuído, cuja função é orientar as decisões do sujeito. Ele afirma que a dessemelhança de crenças pode ser um fator desencadeador da intolerância e do preconceito tão ou mais importante quanto outras características categoriais, como raça, gênero, etc.

Por serem generalizações estereotipadas, as crenças servem de fundamento para atitudes e categorizações. Segundo Monteiro (1993), o processo de categorização social, na busca de uma síntese das informações traz em si o risco do essencialismo, que pode nos levar a ver os membros de um grupo-alvo como protótipos das características atribuídas a esse grupo. Isso provocaria comportamentos discriminatórios em diferentes níveis de expressão desde a não verbalização sobre o assunto, seguindo-se o evitamento, a discriminação ou preterização, o ataque físico, podendo chegar até ao extermínio. Esses comportamentos encontrariam justificação na defesa e na conservação dos valores sociais.

No conceito de Rokeach, o sistema de valores sociais é uma "organização aprendida de regras para fazer escolhas e resolver conflitos entre dois ou mais modos de comportamentos ou estados finais de existência" (1981: 133). Esse sistema de valores seria formado pelos valores instrumentais enquanto ideais de conduta, e os terminais enquanto estados de existência considerados ideais, como por exemplo, o autocontrole e a salvação da alma, respectivamente. Esse autor afirma que "uma vez que um valor é internalizado, ele se torna, consciente ou inconscientemente, um padrão ou critério para guiar a ação, para desenvolver e manter as atitudes em relação a objetos relevantes, para julgar moralmente a si e aos outros e para se comparar com os outros" (Rokeach, 1981: 132). Assim, os valores fundamentariam as crenças que, por sua vez, serviriam como critérios de categorização das informações sobre pessoas, objetos e situações, a partir de semelhanças e dessemelhanças. Desse processo pode resultar a atitude preconceituosa. Portanto, o preconceito seria uma forma de raciocínio sobre a vida social, apoiado na adoção de um sistema de crenças determinado.

A visão cognitivista do preconceito tem sido criticada (Brown & Turner, 1981; Brown, 1988) por generalizar estudos de relações interindividuais para situações intergrupais. Além disso, os críticos afirmam que esses estudos limitam os conflitos sociais aos automatismos, deixando de considerar o aspecto estratégico e hegemônico dos grupos majoritários. Billig e Tajfel (1973) sustentam que a importância atribuída por Rokeach à semelhança de crenças não se sustenta em situação grupal, onde o processo de categorização social prevalece como fator determinante de comportamentos discriminatórios. Esses autores levam em consideração que as crenças sociais não podem ser entendidas como organizações objetivas de informações que seriam "armazenadas" pelos indivíduos, uma vez que sofrem constantes reavaliações diante da dinâmica social, podendo ser usadas de modos estrategicamente diferentes, dependendo das questões que estão em jogo na situação de interação.

 

O Preconceito como Construção Coletiva e Estratégica

Por serem produtos da interação social e do valor simbólico que ela assume, as representações sociais e as identidades sociais desempenham um papel determinante na compreensão das crenças, das normas e dos valores sociais que são considerados motivos e produtos do processo de categorização social, uma vez que se alimentam da dinâmica do poder inerente às relações sociais.

Doise (1972) chama a atenção para a necessidade de se adotar uma perspectiva mais ampla da sociedade se se quiser entender a influência de sua dinâmica no processo de categorização e nas identidades sociais. O preconceito não seria causado pela falta de informações sobre seu alvo, mas ao contrário, a falta de informações seria uma consequência do preconceito, uma vez que a rejeição ao outro grupo levaria o sujeito a evitar informações que contradigam seus estereótipos. Para Doise, os critérios de categorização não exercem apenas a função diferenciadora entre o grupo de pertença e os outros grupos, mas também levam em consideração a relevância que os traços diferenciadores adquirem nas relações intergrupais. Além disso, tais critérios obedecem a uma função justificadora da posição do próprio grupo no contexto da interação, de forma a acentuar os estereótipos múltiplos. Portanto, a valorização positiva se processa de modos diferentes nos grupos considerados majoritários e minoritários.

Desse modo, observa-se que a discriminação resultante dos processos de categorização dáse na dimensão psicossociológica, na medida em que suas estratégias levam em consideração o significado social das posições de cada grupo no contexto interativo. Ou seja, a discriminação não seria motivada apenas pela diferenciação e pela auto-valorização; há que se considerar também o papel das normas e valores sociais como referências sociológicas identificadoras (Amâncio, 1993). Estas normas e valores podem adquirir uma maior ou menor relevância, de acordo com os status dos grupos que compõem a situação social.

Segundo Dechamps (1982), os membros de grupos dominantes costumam se ver como indivíduos autônomos e singulares, cuja pertença contribui com a identidade do grupo; ao mesmo tempo, vêem os grupos dominados como uma massa indefinida que se submete a um destino comum, perdendo sua singularidade pessoal. De fato, pesquisas indicam que a pessoa do sexo masculino é representada como autônoma e singular e a do sexo feminino é definida a partir do estereotipo sexual e comportamental (Amâncio, 1993).

O grupo dominante é aquele que pode manipular os conteúdos simbólicos, conferindo-lhes significado universal quando eles servem para salientar sua destintividade, ou um significado categorial quando servem para salientar as diferenças entre os grupos, ao contrário do grupo dominado, para quem os conteúdos simbólicos assumem uma função claramente normativa, que evidencia a externalidade da sua condição social. (Amâncio, 1993: 306)

Portanto, o grupo assume uma conotação subjetiva a partir de significados simbólicos e ideológicos com uma função normativa e referencial. Diante disto, pode-se deduzir que o processo de categorização dos homossexuais – enquanto grupo "dominado" – é menos influenciado pelas características das pessoas que compõem tal categoria do que pela ausência de características atribuídas à categoria dos heterossexuais, que fundamentam a crença na distinção comportamental entre homens e mulheres enquanto "sexos opostos". A partir de uma representação dicotômica dos papéis de gênero, a homossexualidade pode ser entendida como a adoção de comportamentos próprios do gênero "oposto". Isto poderia explicar porque a homossexualidade masculina tem sido muito mais reprimida em nossa civilização do que a feminina (Spencer, 1999), já que provocaria estranheza e certo desconforto o fato de um membro de uma categoria socialmente "dominante" identificar-se com uma categoria "dominada". Assim, as representações sociais do que se entende por comportamentos masculinos e femininos são decisivas para a compreensão da discriminação dirigida às categorias homossexuais.

Denise Jodelet define as representações sociais como um conhecimento prático, conhecimento comum ou pensamento natural que "ao dar sentido, dentro do incessante movimento social, a acontecimentos e atos que se tornam habituais, este conhecimento forja as evidências de nossa realidade consensual, participa na construção social de nossa realidade" (1984: 473). A autora descreve a teoria das representações sociais como um ponto de intercessão entre a psicologia social e as demais ciências sociais, preservando a concepção original do conceito que propõe desconsiderar os limites entre o sujeito e o objeto do conhecimento e focalizar o processo interativo e dinâmico.

Justifica-se, então, também a integração dos conceitos de identidade social, de representação social e de minorias ativas proposto por Vala (1993b), partindo do entendimento da identidade social como uma forma de organização dimensional e não apenas como uma "coleção de categorias". Nesse processo, o sujeito é, ao mesmo tempo, ator e autor inserido em um cenário social, no qual tem oportunidade de agir e reagir aos fatos e às relações; como também de definir modos de comprometimento diante da dinâmica social, a partir do compartilhamento de representações sobre a ordem e as relações sociais.

Quando respondem à pergunta "quem sou eu?" os atores sociais não só se atribuem a pertença a uma categoria, como também e simultaneamente, se atribuem normas, valores de referência e representações [...]. Há representações que se impõem aos indivíduos, que são hegemônicas e, em larga medida, indiscutíveis. Mas há também representações discutíveis e discutidas pelos diferentes grupos sociais e cuja consensualidade no interior dos grupos se vai desconstruindo, a par com a conflitualidade que atravessa as relações sociais e a atividade cognitiva e estratégica dos atores sociais. (Vala, 1993b: 382 e 384)

Assim, no processo de construção das representações sociais, tornam-se relevantes o significado do pertencimento social e o papel que dada identidade social impõe ao sujeito nos processos de influência social, em termos de dependência ou de resistência diante das normas e valores socialmente hegemônicos.

 

As Minorias Sociais e o Questionamento das Normas Hegemônicas

Ao analisarem criticamente os estudos de Asch (1977) sobre o conformismo social, Moscovici e Faucheux (1972) passaram a se perguntar sobre quais as consequências da influência das minorias desviantes na construção dos consensos, uma vez que a adaptação e a evitação de conflitos já não poderiam ser vistas como as únicas funções da interação social. Afinal, era a época dos movimentos que ficaram conhecidos como Contracultura e vivia-se um momento histórico de grande ebulição política, onde vários movimentos sociais lutavam por uma renovação da ordem política e social vigente (Hobsbawn, 1994). Apesar de minoritários em termos de poder político, esses movimentos faziam "barulho" suficiente para provocar na cultura hegemônica alguma reflexão sobre as questões que apresentavam. Será que isso seria suficiente para promover uma inovação das normas e valores sociais? Neste processo, a ênfase se desloca da situação de dependência da minoria para a de contestação dos consensos, onde a dinâmica política levanta dúvidas em relação à questão, apontando para formas alternativas de resolvê-la (Mugny e Pérez, 1991).

Para Mugny (1981), o processo de inovação envolve basicamente três entidades socais: o poder majoritário, considerado aqui em seu sentido amplo como a entidade dominante em uma relação de dominação e simbolizado pelas normas consideradas hegemônicas em uma situação dada; a população, que compõe o alvo das influências do poder da maioria e das minorias e as minorias, definidas tanto pela contra-norma que propõem quanto por sua capacidade de argumentação. A tese de Moscovici (Moscovici e Faucheux, 1972) é que um estilo de argumentação percebido como consistente pode ser decisivo para que essa minoria seja bem sucedida no processo de influência social. Portanto, o que levaria um estilo cognitivo a ser considerado como eficaz no processo de influência seria uma argumentação voltada para a organização dos comportamentos e opiniões.

Moscovici afirma que os indivíduos ou os subgrupos minoritários podem exercer alguma influência sobre a maioria desde que disponham de uma solução de mudança coerente, definida com argumentos consistentes e apresentada de forma convicta e segura. Isto contradiz a ideia de que a minoria teria primeiro que se tornar maioria para conquistar o poder, e mostra que a influência social é bilateral e simultânea à conquista de certo poder. Além disso, mostra que a dependência da minoria em relação à maioria é relativa ao grau de resistência ou passividade da primeira diante da situação. Em outras palavras, antes se acreditava que os membros minoritários precisavam conformar-se primeiro (para serem aceitos pelo grupo), para depois tentarem provar sua capacidade de conquistar certa liderança e, só então, conseguiriam influenciar as normas vigentes. Os estudos da influência das minorias mostram que o poder tem mão dupla e pode ser influenciado a partir de sua contestação.

O aprofundamento da questão mostrou que as influências da minoria e da maioria têm resultados diferentes. Enquanto uma fonte majoritária geralmente provoca um conformismo superficial denominado de influência direta, uma fonte minoritária inspira uma mudança profunda, uma conversão de opiniões e crenças a médio ou a longo prazo (Moscovici, 1976). Esse "efeito retardado" é explicado por Ibáñez (1991) pelo processo de resistência que ocorre na população-alvo, já que provoca uma sensação de ambivalência dos valores e crenças e pressiona aquela a reavaliar seus posicionamentos, enquanto o conformismo é menos complexo, uma vez que implica em uma atitude de não-resistência.

Todo enunciado que implica um distanciamento em relação às posições do sujeito é por princípio eficaz e qualquer outro enunciado produz por direito, e pelo fato mesmo de sua expressão, uma influência sobre o sujeito. Que esta influência tome corpo de fato dependerá da natureza e da intensidade dos mecanismos de resistência que se encontrem mobilizados no sujeito ao intentar influir. Só os mecanismos de resistência mobilizados podem atenuar ou bloquear o efeito de mudança. (Ibáñez, 1991: 280).

Essas estratégias de resistência podem manifestar-se de diferentes formas e com variadas justificativas. Entre elas destacam-se o apoio social, as pertenças e identificações grupais, a denegação e a psicologização. Para um maior aprofundamento sugerimos consultar Moscovici, Mugny e Pérez (1991). Aqui, nos deteremos aos aspectos da psicologização e da identificação por considerá-los mais pertinentes à compreensão do tema abordado.

Segundo Papastamou (1991), a psicologização serve para justificar o conteúdo ideologicamente conflitivo a partir da atribuição de certas características psicológicas à fonte de influência. Desse modo, mascara-se o caráter alternativo do conteúdo inovador do discurso, ao mesmo tempo em que se neutralizam as características de objetividade e realismo de suas proposições e, a partir daí, passa-se a questionar sua coerência e sua estabilidade. Exacerba-se uma percepção da consistência como rigidez e intransigência e da flexibilidade como incoerência. Assim, o processo de psicologização da fonte de inovação interfere tanto nas formas diretas e imediatas de influência quanto nas indiretas e retardadas.

No entanto, nem sempre a psicologização é bem sucedida na função de neutralizar a influência minoritária. Para Papastamou, "os efeitos de resistência da psicologização requerem que confluam a saliência de uma norma concreta, que a psicologização seja fruto de um consenso e, por último, que ressalte o caráter desviado da minoria" (1991: 242). Assim, a forma como a população percebe o conflito provocado pela minoria é considerada decisiva para que a psicologização produza alguma resistência à inovação.

Quando a população atribui o discurso da minoria às características psicológicas explicitamente compartilhadas por várias minorias, a psicologização funciona como resistência à inovação social. Quando, pelo contrário, a população é levada a descobrir as características psicológicas individuais, que diferem as minorias entre elas, então a psicologização deixa de produzir efeitos de resistências. (Papastamou, 1991: 256)

Durante esse processo, estabelece-se uma relação intrínseca entre o conteúdo do discurso e a identidade de sua fonte como estratégia de resistência às mudanças. Para preservar as normas e as crenças que compõem sua identidade social, o sujeito passa a questionar defensivamente a identidade social da fonte. Ao atribuir as razões determinantes dos posicionamentos conflitivos da minoria a características psicológicas, o sujeito tenta reduzir a importância da mensagem da minoria ao âmbito da própria minoria, neutralizando sua capacidade inovadora já no momento de sua interpretação (Papastamou, 1991). Nessa busca de redução do conflito através de uma neutralização da fonte do discurso, o sujeito deixa de refletir sobre seu conteúdo e evita ser influenciado ao mesmo tempo em que se estabelece um processo de diferenciação grupal.

A atitude de resistência diante da proposta de inovação representa uma estratégia de defesa da própria identidade social na medida em que tenta preservar os valores e normas que são compartilhados a partir do sentimento de pertença social. Para provocar uma reflexão sobre as normas sociais vigentes, a minoria necessita estabelecer um processo de identificação com a população-alvo da inovação. Assim, a resistência à mudança traduz-se em uma resistência à identificação.

De acordo com os estudos de Papastamou, realizados na Europa, sobre a atitude diante de estrangeiros e os conflitos de identificação, às vezes, a rejeição à influência minoritária é maior entre os sujeitos-alvo mais próximos ideologicamente dessa minoria do que entre os sujeitos mais explicitamente xenofóbicos. O autor afirma que "para esses sujeitos parece haver urgência em acentuar as possíveis diferenças ou negar as possíveis semelhanças com a minoria, e afirmar ‘nós não temos nada a ver com essas posições'" (1991: 93). Conforme a minoria pertença ao mesmo grupo dos sujeitos ou a outros grupos, o estilo comportamental deve se mostrar mais conflitivo ou mais negociador para ser influente. No caso de uma minoria externa ao grupo do sujeito, a acentuação do conflito pode levar a uma maior resistência, enquanto que no caso de uma fonte interna pode levar a uma atitude mais conflitiva acentuando suas características de originalidade. Para Pérez e Mugny, "a influência direta da minoria geralmente encontra os obstáculos próprios da indesejabilidade social associada a suas características por um contexto intergrupal conflitante, no qual qualquer aproximação a ela suporá, quase automaticamente, um questionamento da identidade social do indivíduo" (Pérez & Mugny, 1991b: 169). No caso dos homossexuais, essa indesejabilidade identitária tanto pode ter origem externa quanto interna.

 

O Movimento dos LGBTs e a Inovação das Normas Sociais

Como mostra Gouveia (2007), até poucos séculos atrás, não existia uma categoria social composta especificamente por pessoas com preferência por relacionamentos com outras do mesmo sexo. A partir das políticas de higiene social desenvolveu-se um processo de categorização que teve como critério o comportamento sexual, classificando tais sujeitos de modo a facilitar sua identificação e seu controle (Foucault, 1985). No entanto, isto provocou reações de resistência entre os que se sentem discriminados a ponto de aproximá-los, facilitando sua organização em comunidades específicas (Spencer, 1999).

Mas, essa convivência comunitária tem revelado que as semelhanças entre as diversas subcategorias são muitas vezes resultado de estereótipos de origem externa. Na prática diária cria-se um conflito entre a necessidade de reagir à pressão externa associando-se aos que enfrentam uma situação semelhante e defender a própria identidade das consequências decorrentes dessa pressão, tentando se afastar dos que são alvos do processo de estigmatização social. Sendo assim, o que tem prevalecido? A necessidade mais ampla de mudança das normas que justificam a discriminação ou a necessidade imediata de defesa diante dos atos hostis? Nessa situação, pode ser decisiva a visão do sujeito sobre a eficácia de se engajar ou não nos movimentos que se expõem socialmente ao defenderem as mudanças sociais, considerando a dinâmica entre os custos e benefícios sociais desse engajamento (Gouveia & Camino, 1993; Silva, 2009). Será que tal exposição influenciará as normas sociais em busca de maiores níveis de tolerância ou provocará mais estigmatização?

Ibáñez (1991) acredita que, mesmo que a minoria não seja bem sucedida em sua tentativa de influência, o simples fato de provocar uma reação de resistência na maioria faz com que o debate sobre a questão seja reavaliado mais cedo ou mais tarde. Ele lembra que o processo de inovação deflagrado pelas minorias ativas depende da adoção e difusão das posições minoritárias por parte da maioria. Esta maioria representa os centros reguladores do poder que, portanto, não adotarão tais posições se elas colocarem em perigo sua posição hegemônica. Neste sentido, a minoria só introduz efetivamente as inovações se suas mensagens inscrevem-se nas grandes linhas da evolução social, ou seja, se forem consideradas pertinentes aos interesses de mudança. Realmente, a homossexualidade permaneceu por muito tempo como tema "proibido", no entanto, com o advento da epidemia do vírus HIV e sua vinculação inicial à população homossexual, surgiu a necessidade de debater sobre ela.

Portanto, o conteúdo inovador das mensagens da minoria não é engendrado apenas por ela própria, mas no seio do sistema social como um todo, no qual a minoria desempenha o papel de catalisador e difusor das necessidades de mudança apresentadas pelo sistema. Já que sua posição marginal e periférica deixa-a menos comprometida com as normas hegemônicas. Além disso, as minorias dependem dos sujeitos identificados com a maioria para adotarem e propagarem as mudanças que propõem (Ibáñez, 1991). A inovação é mais eficaz na influência privada – típica das minorias - do que no conformismo, que exerce uma influência pública maior, embora mais superficial. Isto significa que, mesmo não consiguindo influenciar a situação grupal imediatamente, a minoria influencia a percepção dos indivíduos; o que pode provocar uma reavaliação de valores e vir a influenciar futuramente as normas do grupo. No caso das minorias homoeróticas, a reavaliação desses valores e normas visa a inclusão de direitos essenciais para o exercício da cidadania.

O fato de os casais homossexuais não terem filhos biológicos leva-os a uma exclusão muito séria no que diz respeito aos direitos constitucionais assegurados àqueles que constituem um núcleo familiar considerado legítimo. Além da exclusão dos direitos, a jurisprudência dá motivos para que os homossexuais mantenham-se institucionalmente "invisíveis", e pode servir de justificativa para atos de violência física e moral contra eles, além das consequências em sua auto-estima.

A pesquisa, nos Estados Unidos, da organização Kaiser Family Foundation (2001) mostra que 74% dos homossexuais afirmam ter experimentado discriminação pela orientação sexual. Destes, 23% avaliam essa discriminação como "muita"; 34% não foram aceitos pelos pais depois de assumirem a orientação; 32% dizem já ter sido vítima de violência física contra si e contra suas propriedades. Peplau e Fingerhut (2007) citam estudos que estabelecem a relação dessa violência com desajustes psicológicos e com a instabilidade das relações afetivas dos sujeitos (Kusdell, 1988; 1995b).

Essas atitudes discriminatórias fundamentam-se em crenças e normas sociais mais amplas, buscando a preservação do que essas pessoas consideram como a maneira mais correta e saudável de formação dos novos cidadãos. Porém, não é possível ignorar seu efeito estigmatizador, que provoca e justifica processos discriminatórios que podem evoluir da simples evitação até a agressões físicas de graves consequências. Será que o estilo de vida próprio dos homossexuais representa uma ameaça à sociedade como algumas pessoas imaginam, a ponto de considerarem como legítima tal discriminação?

Pelos menos no que concerne aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, o levantamento bibliográfico feito por Peplau e Fingerhut (2007) reúne informações que ajudam a superar alguns estereótipos. Em primeiro lugar, mostram que estes casais não são necessariamente mais propensos à instabilidade da relação do que os casais heterossexuais; em segundo lugar, eles não são tão solitários ou desajustados afetivamente quanto se pensava; finalmente, não reproduzem os papéis masculino e feminino na relação afetiva nem nas relações de poder implicadas em uma parceria conjugal. Ou seja, as relações entre pessoas do mesmo-sexo são mais "familiares" do que muitas pessoas pensam, muito embora estejam expostas a problemas de desajuste tanto quanto os relacionamentos entre pessoas de sexos diferentes.

A compreensão dos processos de construção de crenças, valores e normas sociais podem ser úteis para facilitar o entendimento de formas mais ou menos tolerantes de interação entre a diversidade dos modos de vida que, mais do que nunca, têm vindo à tona na sociedade contemporânea. Com esta intenção, fomos buscar entre os diversos paradigmas produzidos pela psicologia social e pelas demais ciências sociais as teorias que consideramos como mais adequadas para apontar um caminho neste sentido.

No estudo descrito abaixo podemos observar como as reivindicações que servem de bandeiras de luta para o movimento dos LGBTs são representadas pelos seus ativistas e qual a importância dessas reivindicações para a sua realização pessoal. Será que a luta pela legitimação das uniões estáveis entre pessoas do mesmo-sexo representa uma necessidade particular, ou representam uma bandeira de luta visando uma agregação política dos sujeitos que se identificam com os homossexuais? A defesa da legitimação dessas uniões estáveis representa uma dissidência radical diante dos códigos morais referentes à constituição familiar, ou pretende adaptá-los de forma a incluir as famílias homoparentais?

 

As Visões dos Ativistas LGBTs sobre Família e Conjugalidade

Objetivos

Este estudo teve como objetivo analisar a articulação dos discursos de ativistas do movimento LGBT sobre a família, suas características e os personagens que a compõem e sua importância na vida de sujeitos homoeróticos. Pretendia-se compreender o quanto essas visões são influenciadas, por um lado, pelos conceitos e valores apreendidos na participação em movimentos de militância pelos direitos dos homossexuais e, por outro lado, pelos padrões oriundos do senso comum sobre família, conjugalidade, fidelidade e criação de filhos e os códigos morais que deles subjazem. Optou-se por uma análise de discursos obtidos através de entrevistas abertas, nas quais se podia criar - até onde uma observação empírica permite - uma situação relativamente espontânea, para que os conteúdos de origem panfletária e as crenças do senso comum fluíssem simultaneamente.

A principal questão motivadora foi a dúvida quanto aos padrões sócio-normativos que poderiam nortear as ideias dos participantes do movimento dos LGBTs sobre a interação amorosa e os direitos civis. As reivindicações sobre o direito dos casais homossexuais legitimarem suas relações estáveis, e/ou poderem adotar crianças em conjunto levam em consideração os valores sociais correntes em nossa sociedade sobre o assunto ou carecem de uma redefinição desses valores para fundamentar especificamente o tipo de família homoparental? Desse modo, pretendeu-se compreender as crenças sociais que fundamentam as reivindicações dos LGBTs e sua importância para o movimento em si e para as pessoas que o compõe. Especificamente, desejava-se investigar as crenças sociais sobre a família, a conjugalidade, a criação de filhos e sua importância na vida dos(as) homossexuais.

A expectativa era de que tais reivindicações não estariam relacionadas a uma pretensão revolucionária em termos de códigos morais. Acreditava-se que elas teriam como objetivo geral a inclusão social dos homossexuais, ou seja, a diminuição da discriminação social e institucional baseada na orientação sexo-afetiva.

Método

Foram entrevistados(as) sete ativistas do movimento LGBT no Estado da Paraíba, incluindo entidades representativas de gays, lésbicas e transgêneros como Movimento do Espírito Lilás (MEL), Movimento de Mulheres Maria Quitéria (MMMQ) e Associação de Travestis da Paraíba (ASTRAPA). Na época, todos(as) tinham uma participação ativa no movimento – a maioria como dirigentes – e idades entre 20 e 46 anos. Através de um roteiro semi-estruturado de entrevista verificaram-se as visões dos(as) militantes sobre a maneira como caracterizam uma família e como esta caracterização pode ser influenciada por fatores como: filiação, registro de casamento, fidelidade. A entrevista também questionou até que ponto uma união homoafetiva pode ser considerada pelos sujeitos como uma família. Finalmente, pediu-se a opinião sobre os direitos reivindicados: união civil, adoção, herança e sobre a importância da conquista desses direitos na realização pessoal dos(as) homossexuais.

Foi realizada uma análise quantitativa dos dados textuais, através do software Análise Lexical por Contexto em um Conjunto de Segmentos de Texto (ALCESTE). Ele realiza uma análise da frequência das diversas ideias ou palavras contidas no discurso e dos diversos contextos em que estão inseridas. Assim, é efetuada uma análise estatística que resulta em uma classificação hierárquica descendente, compondo classes lexicais específicas em torno dos vários aspectos da questão abordada no discurso. Em seguida, o programa efetua uma análise fatorial de correspondência, a qual permite mapear e visualizar as relações entre estas classes de ideias que compõem os discursos (Reinert, 2001).

Devemos lembrar que este método de análise não visa interpretar o significado do conteúdo dos discursos. Procuram-se as suas articulações internas e sua relação contextual, interpretando-as a partir das informações prévias sobre os sujeitos e os objetivos da pesquisa. Apesar de utilizar testes estatísticos, este programa apresenta os resultados de uma forma que requer uma interpretação subjetiva, na qual os termos agrupados e comparados só fazem sentido diante do contexto geral da pesquisa e da situação social pesquisada.

Resultados e Discussão

O programa agrupou o conteúdo dos discursos dos(as) ativistas em seis classes diferentes de ideias, compostas por palavras que, apesar de poderem ter significados semelhantes entre elas, adquirem diferentes sentidos de acordo com o núcleo contextual em que são agrupadas e dividem-se em dois grupos separados e opostos (ver Figura 1). De um modo geral, estas classes compõem categorias de posicionamentos em relação aos temas tratados, considerando que a proximidade ou o afastamento entre elas mostra o modo como se articulam os diversos aspectos da questão abordada no discurso dos participantes da pesquisa.

 

 

A partir das várias classes que a análise textual agrupou, pode-se verificar uma diversidade de ideias relacionadas aos temas abordados. Isto é compreensível, já que se pretendeu relacionar os aspectos estratégicos específicos das reivindicações do movimento com as ideias mais subjetivas sobre a vida afetiva dos homossexuais e das pessoas em geral. Enquanto o primeiro grupo de respostas compõe uma visão geral sobre a constituição familiar, incluindo as experiências conhecidas e as alternativas idealizadas. O segundo faz referência aos diversos modos de interação social e às alternativas de relacionamentos que podem contribuir com os anseios de realização pessoal dos homossexuais.

O primeiro eixo de análise posiciona-se à direita do dendrograma e subdivide-se em duas classes, as quais representam ou explicam juntas 37% do conteúdo dos discursos. A classe 3 remete às crenças sobre a família e à experiência familiar dos sujeitos, o que podemos chamar de família tradicional e seus problemas reais. Entre parênteses estão os valores dos quiquadrados da relação entre os trechos e a classe a que se referem. O tipo de discurso mais representativo desta classe é o seguinte: "Eu sou adotado, não tenho pai, não conheço meu pai, fui adotado por essa senhora e desde a infância a figura do pai não existia, fui criado ao redor de mulheres, duas mulheres que me criaram e um irmão por parte de mãe" (X² = 48). Os conteúdos desta classe evidenciam aspectos definidores da família e críticas sobre a família tradicional, como "hierarquia", "família é base de tudo", "unidade nuclear da sociedade", "viver sob o mesmo teto", "aquela coisa bem certinha como cena de filme". Esta classe representa 13% do conteúdo do discurso.

Este primeiro eixo de fatores completa-se com a classe 6, a qual remete à imagem de uma família idealizada ou desejada, acessível aos homossexuais sob certas condições. Os discursos que utilizam palavras contidas nesta classe remetem a aspirações de modos satisfatórios de se estruturar uma família. O trecho mais típico compõe-se da seguinte maneira: "Melhor que estar na rua... eu apoio adoção, mas desde que o casal tenha possibilidade de criá-lo... realmente botá-lo em uma boa escola, dar uma boa educação, deixá-lo dentro da sociedade" (X² = 21). Outros fragmentos de discursos que compõem esta classe falam sobre a adoção e os direitos dos homossexuais: "[...] vendo se o casal tem sustentabilidade para cuidar de uma criança", "somos seres humanos e temos todos os direitos", "fazemos as mesmas coisas que as outras pessoas consideradas normais fazem", "se o casal afetasse moralmente a criança não existiriam homossexuais filhos de casais heterossexuais", "o maior bem que se deixa para a criança é educação", "crianças abandonadas". Esta classe representa 24% dos discursos analisados.

Portanto, as duas classes de ideias que compõem o primeiro eixo expressam uma visão crítica da família tradicional e as expectativas diante do direito de casais homossexuais adotarem crianças. Neste sentido, apelam para a isonomia de direitos sem excluir a isonomia de deveres, uma vez que falam da responsabilidade que representa a constituição familiar e a socialização de filhos. Assim, percebe-se uma tentativa de representar uma família homoparental como uma família comum e passiva de erros e acertos, na qual se faz necessária uma constante construção social, tanto dos sujeitos envolvidos diretamente nesta família como das instituições sociais que regulam os modos de convivência familiar. Note-se que, no trecho mais representativo da classe 3, o sujeito apresenta uma definição de família que remete a uma explicação da própria homossexualidade, sabendo estar diante de psicólogos.

O segundo eixo de classes de discursos remete a aspectos relacionados a estilos de vida característicos dos(as) homossexuais (pelo menos dos(as) ativistas) e que se colocam em uma dimensão oposta ao da família. Esta dimensão é composta por quatro classes, organizadas em três níveis diferentes. Juntas elas representam 63% dos conteúdos. Aqui se apresentam aspectos gerais e específicos das relações sociais e de seu papel na realização pessoal e social dos sujeitos.

Em um primeiro nível está a classe 2 (movimento) que é composta por termos que remetem à militância, suas bandeiras e a forma como elas são e devem ser encaradas pela própria categoria e pela sociedade civil, tal como a parceria civil registrada. Trecho típico: "Tanto que esse é o projeto de Marta Suplicy, o de parceria civil. Não um casamento gay, que muito jornalista coloca para debochar da classe e até tirar brincadeiras com a classe de homossexuais, travestis, transgêneros e lésbicas" (X² = 46). Outros aspectos deste tipo de discurso: "projeto de lei da parceria civil", "luta vencida e direitos iguais de cidadania", "inclusão pelo lado tradicional, pelo consumismo", "lado conservador do movimento", "visibilidade política". Esta classe explica 21% do conteúdo total dos discursos analisados.

Assim, a classe 2 aparece como representante do papel da convivência em organizações políticas como alternativa de interação social e, ao mesmo tempo, de influência nos modos mais abrangentes de convivência social. Desse modo, faz referência à importância da luta pela igualdade de direitos civis entre heterossexuais e homossexuais, no que diz respeito à conjugalidade; bem como às expectativas específicas das diversas facções que compõem a categoria dos(as) homossexuais, tais como lésbicas, gays, transgêneros, etc.. Nesta classe também estão incluídas algumas críticas e temores a respeito das conseqüências da inclusão social dos homossexuais, tais como sua adesão a um estilo de vida consumista, ou a normas sociais contrárias a um estilo de convivência considerado ideal e socialmente saudável. Também faz referência às conseqüências positivas que a conquista destes direitos representaria, em termos de visibilidade política para o movimento e de isonomia de direitos para a categoria.

Em um nível abaixo está a classe 5 (trabalho), na qual se agrupam palavras que se referem a modos alternativos de relacionamentos sociais e afetivos que vão além das interações amorosas, tais como trabalho e amigos, por exemplo. "Se tu não és fiel com o amigo, que relação de amizade tu vais ter? Se tu não és fiel na relação de trabalho, que relação de trabalho tu vais ter?" (X² = 44). Outros fragmentos de discurso que compõem esta classe: "pode estar só e estar legal", "pode se dedicar a um trabalho, a uma atividade e se sentir bem", "relação sem dominação e poder, livre. Isto ajuda a pessoa a ter mais segurança na vida pessoal". Aqui há uma referência à possibilidade de se construir modos de convivência livres de dominação e de opressão -, tidos como um caminho para se alcançar mais "segurança" na vida pessoal. Neste contexto, a palavra "segurança" parece assumir o sentido de auto-estima e/ou auto-realização. Esta classe explica 8% do conteúdo.

No nível mais abaixo colocam-se duas classes que fazem referência aos modos de viver os relacionamentos amorosos, nas quais as questões ligadas à fidelidade e ao compromisso colocam-se como diferenciadoras. Estas classes juntas representam 34% do discurso.

A classe 1 (padrão) refere-se a questões como a traição, o ciúme, o desejo, a infidelidade, etc., como também se refere ao papel das relações estáveis na vida dos sujeitos e a sua importância para a realização pessoal. "Quando isso ocorre e a outra não sabe, para mim isso não é infidelidade e também não é traição. Pode ser até infidelidade, mas traição não" (X² = 31). São tratados ainda outros aspectos dos relacionamentos como: autoconfiança, referências positivas, estabilidade nas relações, etc. Isoladamente esta classe representa 15% do discurso.

A segunda classe deste último nível é a classe 4 (negociada) na qual se agrupam termos referentes a um tipo de relacionamento com regras negociadas entre o casal, e à necessidade de um relacionamento mais ou menos tradicional, bem como de legitimação jurídica das relações estáveis, apresentando questões como fidelidade, relacionamento, papel, amor, união, diálogo. "Para mim, na família o que é necessário é o diálogo com os pais... no caso sou eu só com minha mãe... a união é necessária, mas em muitas não existe" (X² = 18). Esta classe representa 19% dos discursos, e agrupa ainda ideias como: "diálogo", "aventuras", "romances", "relacionamentos fixos", "questão pessoal", "o amor não existe", "eu sou da noite e da fantasia", "quem está com dinheiro é quem manda no pedaço", "oficialmente o papel é necessário para garantir o direito", etc.

As classes 1 e 4 podem ser consideradas como complementares, na medida em que tratam especificamente das interações amorosas e das diferentes possibilidades de convivência, acentuando os papéis da fidelidade. A classe 1 faz referência às relações amorosas mais estáveis, vistas como promotoras da felicidade e da auto-afirmação; além de considerar a fidelidade entre o casal como sinal de compromisso entre as partes e como prova da própria estabilidade da relação. Esta classe representa uma visão quase institucional das relações estáveis, na qual o pacto de fidelidade pode assumir o papel de uma auto-oficialização, e é mais representativa da visão das lésbicas.

Já a classe 4 refere-se aos estilos de relacionamentos mais atípicos, nos quais a fidelidade assume significados negociados a partir dos interesses dos parceiros. O discurso chama a atenção para o papel do diálogo, da cumplicidade e da confiança mútua entre o casal. Estes discursos não negam a importância dos relacionamentos fixos, mas não abrem mão das aventuras e da liberdade individual dentro da relação. Também fazem críticas às relações assimétricas de poder entre o casal, particularmente sobre o uso do poder financeiro em relações de dominação. Não consideram necessária a oficialização jurídica para garantir a estabilidade da relação, mas sim para garantir os direitos civis do casal, em relação a um/a e outro/a parceiro/ a e às instituições oficiais.

 

Considerações Finais

O exame destes discursos não deve perder de vista seu caráter panfletário. Devemos considerar que os(as) participantes falam enquanto representantes de categorias sociais e não apenas de uma perspectiva pessoal. Embora seus posicionamentos não excluam as opiniões particulares, eles(as) buscam uma perspectiva coletiva enquanto porta-vozes das aspirações da categoria homossexual, assim como das subcategorias que representam (gays, transgêneros, lésbicas).

Desta perspectiva, concluímos que a legitimação da união civil e da adoção por casais homossexuais não são uma prioridade para estes ativistas do movimento, ou não parecem tão indispensáveis por si mesmas. O que se coloca como mais importante nestas questões é a isonomia de direitos entre heterossexuais e homossexuais. Como afirma um dos participantes, "oficialmente o papel é necessário só para garantir o direito". Esta frase representa uma visão da família como fundamentada em conceitos subjetivos como união, cumplicidade e proteção mútua. Também é levado em consideração que a oficialização dos relacionamentos pode gerar modelos de referências positivas de estabilidade afetiva entre os(as) homossexuais e, ao mesmo tempo, mudar o estereótipo de promiscuidade que prevalece na sociedade, no que diz respeito às relações entre pessoas do mesmo-sexo. No entanto, notase uma preocupação quanto à possibilidade de a legitimação do casamento entre homossexuais levá-los(as) cometer os mesmos erros apontados nos casamentos heterossexuais, a exemplo da assimetria de poder.

No Brasil, os(as) heterossexuais não precisam mais registrar seus relacionamentos para merecerem a proteção da lei. Os(as) homossexuais reivindicam os mesmos direitos. Porém, estas reivindicações não parecem fundamentadas apenas na necessidade de legalizar suas relações, mas de conquistar a isonomia de direitos com os(as) heterossexuais. Ainda mais fraco parece o desejo de adotar crianças, embora eles(as) reclamem do fato de haver uma proibição neste sentido, sob a alegação de que exerceriam más influências para os filhos. De uma forma geral, os discursos dos ativistas paraibanos parecem tentar mostrar que os(as) homossexuais são pessoas comuns, que, como todas as outras, podem adotar estilos de vida que venham a ser considerados mais ou menos satisfatórios pela família e pela sociedade.

De qualquer modo, não acreditamos que seus estilos de vida pretendam ou tenham o poder de degenerar ou revolucionar os padrões morais de convivência familiar da sociedade como um todo. No máximo, eles(as) tentam legitimar suas relações como forma alternativa de seguirem estes padrões, uma vez que isto poderia representar uma maneira de conquistar a inclusão social. O que eles(as) pretendem é modificar as atitudes das pessoas diante de suas diferenças e especificidades, de um modo que sejam mais respeitados(as) do jeito que são, e convocados(as) a lutar, junto de outros setores sociais, por uma sociedade mais justa e igualitária.

 

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Endereço para correspondência
Raimundo Gouveia
E-mail: raigouveia@yahoo.com.br

Leoncio Camino
E-mail: leocamino@uol.com.br

Recebido em: 16/07/2008
Revisado em: 01/12/2008
Aceito em: 20/04/2009

 

 

* Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba, Professor-bolsista DCR (CNPq/FACEPE) na Universidade Federal de Pernambuco – Brasil.
** Doutor em Psicologia pela Universite Catholique de Louvain e Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba – Brasil.