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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.9 no.17 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

A experiência de coletivização em um assentamento de reforma agrária do MST

 

The experience of collectivization in a MST (Landless People's Movement) land reform settlement

 

La experiencia de colectivización en un asentamiento de reforma agraria del MST

 

 

Apoliana Groff*, I ; Kátia Maheirie**, I ; Lorena Prim***, II

I Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil
II Universidade Regional de Blumenau – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo foi desenvolvido a partir de uma pesquisa cujo objetivo foi compreender os sentidos e significados do singular e do coletivo em um assentamento de reforma agrária do MST. O artigo discute questões, tais como, a experiência de coletivização em um assentamento de reforma agrária do MST, a luta pela terra como forma de superação do processo de exclusão social e inclusão perversa e o sofrimento ético-político. Para a realização da pesquisa, fez-se uma imersão de cinco dias no assentamento, onde se acompanhou o cotidiano dos assentados. Para apreensão das informações, foram realizadas entrevistas gravadas e observações assistemáticas registradas em diário de campo. O processo de análise das informações se deu por meio de uma análise de conteúdo. Os resultados apontam que a experiência de coletivização vivenciada pelos sujeitos, os potencializou para o enfrentamento de questões subjetivas, materiais e éticas, presentes no processo dialético de exclusão/inclusão social. Por meio de relações de cooperação e solidariedade, eles puderam superar o sofrimento ético-político, na construção do singular/ coletivo, possibilitando espaços de (re)criação na ótica do ético-político.

Palavras-chave: Assentamento, MST, Coletivização, Dialética exclusão/inclusão, Sofrimento ético-político.


ABSTRACT

This article was developed from a research aimed at understanding the individual and collective senses and meanings in a MST (landless people's movement) land reform settlement. The article discusses issues dealt in the research, such as the experience of collectivization in a MST land reform settlement, the struggle for land as a way of overcoming the process of social exclusion and perverse inclusion and the ethical and political suffering. To conduct the survey, a five-day immersion was taken in the settlement, where the settlers' daily life was experienced. For information collection, interviews were recorded and non systematic observations were registered in a field diary. The process of examining information was made through content analysis. The research showed that the collectivization experienced by the subjects has increased their ability to cope with subjective, material and ethical dimensions in the dialectical process of social exclusion / inclusion. Also, they have overcome the ethical and political suffering, through relations of cooperation and solidarity in the singular / collective constructions, allowing space for (re)creation in the ethical and political view.

Keywords: Settlement, MST, Collectivization, Dialectic exclusion / inclusion, Ethical and political suffering.


RESUMEN

El presente artículo fue desarrollado a partir de una investigación cuyo objetivo fue comprender los sentidos y significados del singular y del colectivo en un asentamiento de reforma agraria del MST (Movimiento de los Sin Tierra de Brasil). El artículo discute cuestiones trabajadas en la investigación, tales como la experiencia de colectivización en el asentamiento, la lucha por la tierra como una forma de superación del proceso de exclusión social e inclusión perversa y, el sufrimiento ético-político. Para la realización de la investigación, se hizo una inmersión de cinco días en el asentamiento, donde se vivió lo cotidiano de los asentados. Para la aprehensión de las informaciones, fueron realizadas entrevistas gravadas y observaciones asistemáticas registradas en diario de campo. El proceso de análisis de las informaciones ocurrió por medio de un análisis de contenido. La investigación apuntó a que la experiencia de colectivización vivenciada por los sujetos, los potencializó para el enfrentamiento hacia las dimensiones subjetivas, materiales y éticas presentes en el proceso dialéctico de exclusión/inclusión social. También, superaron el sufrimiento ético-político, por medio de relaciones de cooperación y solidaridad, en la construcción de lo singular/colectivo, posibilitando así espacios de (re)creación en la visión de lo ético/político.

Palabras clave: Asentamiento, MST, Colectivización, Dialéctica exclusión/inclusión, Sufrimiento ético/político.


 

 

O presente artigo é parte de uma pesquisa cujo objetivo foi compreender os sentidos e significados do singular e do coletivo em um assentamento de reforma agrária, vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (Groff, 2006).

Segundo Albuquerque, "uma revisão nos anais dos últimos congressos poderá mostrar que, embora pratiquemos uma psicologia aplicada ao Brasil e ao brasileiro, com sua cultura, sutilezas e nuanças próprias, realizamos uma psicologia urbana." (2002: 37). Neste caso, não se trata de exigir uma psicologia urbana e uma psicologia rural, mas revelar à necessidade do olhar para a parcela da população que vive no meio rural, tendo como parâmetro sua realidade concreta.

De acordo com Prim, atualmente, a intervenção da Psicologia Social no contexto rural é "tímida e carente de referenciais teóricos, restrita a práticas isoladas." (2004: 23). Concordase com a autora quando afirma que isso "[...] pode ser explicado pela gênese da psicologia voltada para compreender a realidade do homem da modernidade, e por considerar que a agricultura familiar, como modo de produção e de vida, ao longo do século passado, estaria condenada a desaparecer." (Prim, 2004: 24).

Para Prim, "outro problema na forma de a academia abordar o homem do campo é a consideração de que a população rural se resume a uma categoria homogênea." (2004: 24). É importante ressaltar que este contexto não é homogêneo e a população rural vive sob a égide da diversidade, exigindo um olhar atento para sua complexidade.

A pequena agricultura familiar é uma realidade numericamente significativa como modo de produção e de vida, constituída por agricultores, por bóias-frias ainda ligados ao meio rural, por agricultores de assentamentos vinculados ou não ao MST, quanto por pequenos e médios agricultores, consolidados economicamente, que estão associados ou não aos complexos agroindustriais ou ao cooperativismo tradicional. Desta forma, no estudo sobre o meio rural e a agricultura no Brasil, é necessário fazer referência ao MST por seu impacto significativo no Estado de Santa Catarina enquanto movimento de luta pela terra, por sua presença em quase todo o território nacional e, até mesmo, por seu amplo reconhecimento internacional. Dentro do contexto rural no país, encontramos 130 mil famílias acampadas e 370 mil famílias assentadas que se vinculam ao MST, dentre estas, cinco mil famílias estão assentadas e 1.100 acampadas no estado de Santa Catarina1. Entretanto, apesar do número relevante de assentamentos no Estado de Santa Catarina, ainda são poucos os psicólogos que tem se interessado no estudo com famílias que vivem no contexto rural e que se vinculam ao MST.

No Banco de Teses do Portal da Capes2, o qual apresenta as produções dos programas de pós-graduação no Brasil, com os descritores psicologia e MST, foram encontrados onze trabalhos, onde cinco são dissertações na área da psicologia. Os trabalhos na área da psicologia apresentam os seguintes estudos: o que leva indivíduos ou grupos a adotarem a ação coletiva como alternativa para a busca de mudanças sociais (Figueiredo, 1995); o fenômeno da participação de um grupo de trabalhadores junto ao MST (Narita, 2000); formação da consciência política entre famílias de um assentamento do MST (Silva, 2002); os sentidos produzidos por trabalhadoras(es) rurais sobre a divisão sexual do trabalho em um assentamento coletivo do MST (Salvaro, 2004) e, o processo de tornar-se um assentado rural do MST (Santos, 2005).

Considera-se que pesquisas com o MST a partir do olhar da psicologia são importantes e necessárias, pois como veremos mais adiante, os Sem Terra passam por diversas dificuldades que ultrapassam as condições precárias de sobrevivência dos acampamentos.

As famílias que estão na base social do MST passam por ocupações e acampamentos durante anos para que, por meio de sua luta, da pressão popular, possam conquistar um pedaço de terra para viver com dignidade. Quando conseguem esse espaço, passam por várias dificuldades, desde a questão estrutural, como as que envolvem convivência e ambientação, como as que envolvem todo o processo de significação dessa nova vida. Neste sentido, pode-se afirmar a necessidade da formação de uma nova forma de vida nos assentamentos do MST.

As transformações subjetivas que ocorrem na transição entre não ter e ter a terra se faz necessárias no campo de considerações na área da psicologia, já que a vida dos sujeitos, neste processo, é permeada por sentimentos de medo, desânimo e impotência. A conquista da terra é uma parte de todo esse processo, pois a luta pela cidadania permanece em seus horizontes de possibilidades.

Ter o acesso a terra não garante que os sujeitos exerçam o direito a uma vida digna, pois isso não se dá de forma natural como se os Sem Terra se tornassem sujeitos sem história. Pelo contrário, é a história dos homens e mulheres Sem Terra que dão sentido à conquista pela terra, mas isso não é igual para todos. No momento em que se percebe que os anseios do coletivo são permeados por questões individuais e, por vezes, individualistas, o grupo sente-se ameaçado, gerando conflitos.

Segundo Sigaud (2000), é necessário conhecer os significados que têm os acampamentos e assentamentos para os indivíduos, em vez de imputar-lhes sentidos que parecem lógicos para o pesquisador, mas que, no entanto, fazem parte de seus próprios julgamentos. Entendemos que os sentidos e significados da terra também podem ser transformados no processo de luta e conquista, pois os sentidos não são as palavras, mas estão nelas. Toda palavra carrega um conteúdo intelectual e afetivo, sendo que o sentido dado às palavras é singular e se transforma mais facilmente do que o significado, já que este é compartilhado coletivamente, de acordo com o contexto social, cultural, econômico em que os sujeitos se inserem.

A terra para os Sem Terra possui um sentido singular, mas também é significada coletivamente. O significado, ou seja, a palavra com significado é, para Vygotsky (1992), a unidade entre o pensamento e a linguagem, onde se pode afirmar que, por meio deste processo, os sujeitos se constituem. Assim, a terra possui sentidos e significados que não podem ser generalizados para todos os sujeitos.

A psicologia no contexto rural e, mais especificamente, a partir da realidade do MST, pode compreender os sentidos e significados presentes na vida dos sujeitos enquanto homens e mulheres rurais. Para isso, precisa também compreender sua base afetivo-volitiva, ou seja, as necessidades e inclinações, os interesses, afetos e emoções que motivam os sujeitos (Vygotsky, 1992), como imprescindíveis para produção de novos processos de subjetivação e objetivação.

 

Método

Inicialmente, estabeleceu-se um contato com um dirigente do MST, no estado de Santa Catarina, visando apresentar do projeto de pesquisa. O mesmo sugeriu que esta investigação fosse realizada em um assentamento localizado no município de Garuva (SC) que, segundo ele, difere da maioria existente neste estado, por sua experiência de coletivização.

Para a pesquisa realizou-se duas visitas ao assentamento. A primeira teve como objetivo conhecer o assentamento e seus moradores para apresentar a proposta da pesquisa. A segunda visita durou cinco dias, com o objetivo de acompanhar a vida cotidiana dos assentados, onde foram realizadas observações assistemáticas e as entrevistas.

A observação assistemática, "caracteriza-se pela interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas." (Gil, 2002: 55). Este momento da pesquisa pode ocorrer em espaços informais, onde o pesquisador está implicado enquanto sujeito que observa e dialoga, acerca do que ocorreu no horário de trabalho, durante as refeições e nas atividades de lazer. Nestes momentos, foi possível observar posturas, preferências, sentimentos, ações individuais e grupais, participando dos diálogos acerca de alguns temas, com o objetivo de focalizar as experiências singulares e coletivas. Todas as informações apreendidas no cotidiano, por meio das observações e diálogos, foram registradas no diário de campo.

As entrevistas eram abertas, seguindo um roteiro com temas como: história familiar; lugar de moradia antes do assentamento; atividade que realizava; período de acampamento até a conquista da terra; construção do assentamento; vida no assentamento; trabalho no assentamento; projetos para o futuro; e contribuição da psicologia nos assentamentos. Os temas tinham como objetivo nortear o diálogo com os sujeitos entrevistados, de forma que as informações eram produzidas em um processo dialógico.

Segundo González Rey (2002), o acesso à informação é facilitado na medida em que os sujeitos investigados podem expressar seus sentidos e sentimentos, ou seja, quando não ficam amarrados por instrumentos que cerceiam a sua participação na pesquisa. Numa proposta dialógica, o pesquisador também é um sujeito da pesquisa e o conteúdo e a forma como este faz as perguntas devem ser analisadas como fazendo parte do processo de elaboração do conhecimento, o qual se constrói numa postura ético-política.

Foram realizadas entrevistas, devidamente gravadas, com dois sujeitos, onde o critério de escolha dos entrevistados foi o tempo em que estes estavam assentados. Os entrevistados eram pessoas que estavam no assentamento desde sua formação, pois o objetivo também era compreender o processo histórico, desde acampados até o momento em que conquistaram o direito a terra. Outras entrevistas foram realizadas, mas sem a utilização de um gravador. Nestas, pôde-se manter diálogos importantes para a pesquisa, cujo registro se constituiu em anotações no diário de campo.

O tratamento das informações obtidas se deu a partir da análise de conteúdo, com categorização feita a posteriori, baseada nos objetivos da pesquisa, quais foram: investigar o cotidiano em um assentamento "coletivo" do MST, compreender os sentidos/significados do singular e do coletivo neste assentamento e estudar as possibilidades de contribuição da psicologia em assentamentos de reforma agrária do MST. O processo de análise das informações esteve sustentado a partir do olhar teórico que fundamenta a pesquisa, ou seja, a psicologia sóciohistórica, a qual traz em sua base o materialismo histórico e a dialética.

As categorizações produzidas a partir da análise foram: histórias do acampamento e do assentamento; organização do cotidiano, sendo que nesta categoria se desdobram a organização da produção agrícola e a organização dos trabalhos no assentamento; dificuldades enfrentadas; os sentidos do coletivo; o urbano versus o rural; e o significado do estudo no assentamento.

Com o objetivo de realizar um diálogo entre as categorias, este artigo apresenta discussões acerca da experiência de coletivização no assentamento estudado e o sofrimento ético-político vivido pelos sujeitos no processo dialético de exclusão/inclusão. Entende-se que estas discussões transversalizam as categorias que foram analisadas com o olhar da psicologia sóciohistórica.

 

Um Pouco da História: "a gente conta só um pouquinho por que se vai contar tudo..." (Tereza)3

As famílias moradoras do assentamento estudado são da região oeste do Estado de Santa Catarina. Elas passaram por vários acampamentos em Campo Erê, Abelardo Luz, Dionísio Cerqueira e Garuva, cidade onde estiveram acampados de 1987 a 1995, até a conquista da terra onde foram assentados. No acampamento em Garuva estavam várias famílias, as quais foram sendo assentadas em outras cidades.

Vieram para cá oito famílias, as pessoas do acampamento foram sendo assentadas em Araquari, Mafra e foi ficando aqui o pessoal que não queria sair de Garuva. Daí quando nós viemos para cá a terra, mais ou menos, comportava essas famílias, só que como a gente ia trabalhar com verdura, faltava mão-de-obra. O que tinha não dava, por isso, o assentamento tem 15 famílias. (Neuza)

Mesmo depois de assentadas, as famílias viveram por mais quatro anos em barracos de lona, na terra destinada à construção do assentamento. Isso porque, além da falta de financiamentos, noventa e quatro hectares de terra, destinadas ao assentamento, eram cobertos por mata atlântica e as famílias tiveram dificuldades em construir sua moradia.

Quando viemos era tudo mato. Um pedacinho foi desmatado para fazer barraco, daí depois de feito os barracos foi desmatado um pouquinho para plantar, fazer os lugares para as vacas, mas a polícia ambiental toda vida dava... de parar de trabalhar, dá meia hora, a policia ambiental chegava, mas nós nunca desanimamos, com a polícia, sem a polícia. Nós viemos para o assentamento, mas assentado mesmo, só em 1998, demorou até a liberação do INCRA4, tudo aquilo para eles comprar a área. (Neuza)

Durante um período, os assentados não tinham energia elétrica, o que dificultava as condições de vida nos barracos, já que não tinham como usufruir dos benefícios que a energia elétrica pode proporcionar.

A energia elétrica foi conquistada através de um programa do governo, onde o governo pagou uma parte, o governo estadual pagou outra parte e nós pagamos outra parte. Aí no primeiro ano conseguimos por a luz, nós morava em barraco não tinha luz. Era muito difícil. Nós tinha que fazer compra toda semana para comprar a carne ou comia tudo no sábado e domingo ou jogava fora. Daí tinha que saí daqui, lá na rua, na BR, onde tinha uma mercearia que cedia o freezer para colocar a carne e outro vizinho pro lado de cá. Aí era todo dia aquela folia, tinha que ir de bicicleta buscar um pedacinho de carne para cada um, porque o pessoal trabalhava no pesado, na lenha, tinha que comer carne para ter energia, daí era aquela folia. [...] Aí ficou mais fácil, nós trabalhava o dia inteiro, chegava em casa de noite, dá banho nas crianças, esquenta água, não tinha nada. (Tereza)

Daí foi feito financiamento do Pró-Terra, veio crédito habitação, daí quando veio e a gente guardou no banco, no primeiro momento, a gente não ia construir as casas, pois primeiro tinha que comprar enxadas, foices e tudo o que precisa. (Neuza)

Aí nós corremos para a prefeitura e EPAGRI5, daí fizemos análise do solo, daí nosso terreno tem 13, 14 tipos de solo que tem. Daí era puro morro, era buraco, água, daí os barracos, tocou de nós fazer tudo valetas, um pouco foi a prefeitura, um pouco foi a muque. Então foi sofrido os primeiros anos. (Tereza)

A produção agrícola começou a se consolidar no assentamento com apoio da EPAGRI, que orientou as famílias para que produzissem legumes. Nessa época, eles ainda não moravam nas casas.

Daí veio o pacotão, tipo a EPAGRI, que vinha dar orientação na área de hortifrutigranjeiro que é disso, daí o pessoal foi fazer curso se especializar, aí vieram com um pacotão, tomate, pimentão, vagem, tudo. Nós comecemos pelo mais difícil, pelo pimentão. E foi onde nós entramos no mercado em Joinville6. Só que até ali..., depois a vagem, pepino, tomate, só que daí nós estávamos se matando dia por dia porque era colheita todo dia, era colheita e veneno. [...] E nós matando o solo. Aí quando nós vimos que a situação tava ficando complicada, porque ninguém quer fica andando com a morte nas costas, daí nós partimos para as verduras. (Tereza)

Atualmente, toda produção de verduras é vendida na cidade de Joinville, em dois grandes mercados de uma mesma rede e em diversas verdureiras da cidade.

Depois começamos a conversar, foi feito o projeto para construir as casas, primeiro foi pedido para o pessoal fazer uma planta das casas, por que nós conversamos por causa da rede de luz e por causa do saneamento, as casas perto e, que ia se tornar mais barato e é mais fácil. [...] Já pensou distribuir treze casas nesse pedaço, não ia sobrar terra para nada, daí foi pensado em fazer em agrovila, para economia de terra, do material do saneamento e a luz se puxar do poste da rua é mais longe. Depois daí foi pedido para cada um fazer um desenho da casa como que eles queriam, para apresentar na assembléia para ver qual casa é a melhor. Todo mundo desenhou, daí foi passado num quadro e foi escolhida uma e foi feito igual para todos. (Neuza)

Primeiro fizemos as casas, depois vimos que a questão da verdura não dava mais para fazer comida em casa, não tinha mais horário pra fazer uma comida bem feita, ai tinha o horário de as piazadas irem para escola, que o transporte vinha pegar, ai foi que a gente montou a discussão da cozinha comunitária. (Tereza)

No outro ano foi começado a cozinha, por que dava para aproveitar mais a mão-de-obra para o trabalho. Com a cozinha era mais fácil porque tu chegava cansado e não tinha que chegar em casa, fazer almoço, lavar a louça e ainda limpar tudo. [...] Assim tu vai lá almoça, se é o teu dia de lavar a louça, faz a limpeza e vai para casa. (Neuza)

Aí a gente não tinha estrutura financeira para fazer a cozinha, um refeitório, ai nós fizemos a cozinha numa casa ali onde tem o escritório. Daí ficamos um tempo ali, uns 3 anos, ai a gente fez um projeto, um pouco tinha sobrado em caixa, de investimento, ai nos mudamos, construímos ali em cima. (Tereza)

E, segundo Tereza, "a gente conta só um pouquinho por que se vai contar tudo". Esta é um pouco da história do assentamento. Percebemos no processo de construção deste assentamento, que os sujeitos criam e recriam formas de viver e que, para a Reforma Agrária realmente possibilitar a inclusão cidadã de trabalhadores rurais, não é suficiente a democratização do acesso a terra, pois para consolidar a sobrevivência com dignidade é necessário o acesso a diferentes políticas públicas.

 

Pequeno Relato da Experiência de Coletivização no Assentamento Estudado

No assentamento estudado, encontra-se uma forma de organização totalmente coletiva, considerada pelo MST como "a mais complexa", pois o uso da terra, a organização do trabalho, a tomada de decisões e o capital são totalmente coletivos. Porém, a escolha por esta forma de organização se deu, também, pelas condições desfavoráveis para produção agrícola e pela pouca quantidade de terra disponível para as 15 famílias7. Apesar de eles serem incluídos perversamente em uma terra que praticamente não tinha condições de se construir um assentamento, os assentados viram como estratégia para superação dessas dificuldades, o modelo coletivo de organização, como forma de maximizar a utilização da terra.

A forma de organização coletiva no assentamento gira em torno do trabalho. Seja na produção agrícola, seja nas atividades do refeitório, onde as refeições são realizadas de forma coletiva, assim como nas atividades da Ciranda8 e nas atividades festivas. As atividades do assentamento são organizadas em quatro setores: administrativo, financeiro, social e de produção. Elas são constituídas por equipes de trabalho, de forma que cada uma conta com uma coordenação. O trabalho entre setores é articulado, sendo o poder descentralizado, garantindo autonomia de cada uma para o encaminhamento e a resolução das atividades do dia a dia. Porém quando uma decisão implica o grupo todo, o setor analisa a situação que surgiu e passa para a decisão com o coletivo. Assim, ao mesmo tempo em que o grupo se organiza para o trabalho, ele se trabalha na medida em que se organiza (Lapassade, 1983).

Para que o coletivo concretize suas tarefas é preciso planejamento, organização e disciplina. Cada setor e cada assentado têm a sua função, conforme organizado pelos coordenadores: "[...] a função é ‘determinação indeterminada' que deixa lugar a criatividade individual. É, portanto ele, o indivíduo comum definido pela função, que age com todos os outros no sentido dos objetivos, na totalização dessas práxis." (Lapassade, 1983: 238). Assim, o grupo depende do engajamento de cada um e, por sua vez, cada um depende do todo, demonstrando o caráter de interdependência do grupo, na realização dos objetivos do coletivo. Em relação ao pagamento, este é feito a partir do tempo de trabalho realizado por cada assentado. No final de cada dia, as horas são registradas num controle, onde ao final de cada mês, estas definem a quantidade de trabalho realizado por cada um e o valor a receber. As despesas coletivas como a alimentação, o consumo de energia elétrica, o uso do telefone, são divididas entre os assentados e descontadas. Ao final de cada período, é feito um balanço da situação, de cada assentado e do coletivo, e é exposto em um mural.

A organização do trabalho coletivo acaba tendo as tarefas bem distribuídas entre os assentados, sendo poucos aqueles que não têm mais do que uma responsabilidade no assentamento. A maioria dos assentados ocupa posições de grande importância para o grupo, pois cada um depende da atividade realizada pelo outro, seguindo o modelo de autogestão, onde a organização e o planejamento são realizados na forma e sustentados na tomada de decisão coletiva.

Tomando como base a teoria de Sartre, para Lapassade (1983: 229), "um grupo só é verdadeiramente tal se for fundado, de maneira permanente, ao mesmo tempo na autogestão, ou na autodeterminação, e na autocrítica, ou na auto-análise." Neste caso, falar em autogestão é, também, falar de cooperação, pois se estabelece relações de comprometimento entre os sujeitos, em uma unificação que valoriza os interesses do coletivo sem massificar as singularidades. "[...] Portanto, os benefícios de uma coletividade organizada são relevantes a todos, e a vontade comum a todos é mais poderosa do que o conatus individual, e o coletivo é produto do consentimento e não do pacto ou do contrato." (Sawaia, 2002b: 116).

O grupo organizado de forma a unificar o coletivo permite uma flexibilidade nas relações cotidianas, pois o processo de interdependência entre aqueles que constituem o coletivo auxilia cada um na resolução de dificuldades ou de problemas individuais. Pertencer ao coletivo e ter o sentimento de pertencimento a este, garante o envolvimento para além das obrigações, gera compromisso e autonomia, sobrando tempo para fazer as coisas de interesse individual, pois o coletivo, quando não homogeneíza as particularidades, garante o respeito às diferenças e a racionalização do trabalho.

 

A Luta Pela Terra Como Forma de Superar a Dialética Exclusão/Inclusão e o Sofrimento Ético-Político

Segundo estudos de Santos (2004), a mídia brasileira, em sua grande maioria, coloca os Sem Terra na ilegalidade por meio da veiculação de textos e imagens que correspondem à posição do governo e dos latifundiários. Isso resulta na classificação do Movimento como fora da lei e provoca reações deslegitimadoras do mesmo. Também na pesquisa de Núbia S. Santos (2004), a grande imprensa está, em sua maioria, atrelada aos interesses do "poder", produzindo textos "monodiscursivos", pasteurizados e portadores de sentidos predeterminados em relação ao MST.

Neste sentido, os meios de comunicação de massa no Brasil têm contribuído significativamente para a formação de preconceitos e estereótipos sobre MST junto à grande parcela da sociedade. Este fato demonstra uma das faces da exclusão na qual um Sem Terra é submetido, pois sua mobilização coletiva na luta pela garantia do direito a terra (por meio de manifestações, caminhadas, ocupações, entre outras) fica, na maior parte das vezes, descaracterizada.

Para Sawaia (2002a), o conceito de exclusão vem sendo banalizado e utilizado como sinônimo de pobreza material, ou seja, econômica. Entretanto, a autora defende a importância de superar o viés economicista e ampliar a análise com a "dimensão ético-psicossociológica". "Esta concepção introduz a ética e a subjetividade na análise sociológica da desigualdade, [...] exclusão passa a ser entendida como descompromisso político com o sofrimento do outro." (2002a: 8).

Portanto, quando se analisa a condição de milhares de pessoas excluídas, sem acesso à vida digna, não se fala apenas da sua classe social, mas de uma subjetividade que sofre pela impossibilidade de agir, enclausurada por sentimentos como o medo, a vergonha, a humilhação, dentre outros. Na condição dos Sem Terra, "a sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão." (Sawaia, 2002a: 8).

Em síntese, a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. (Sawaia, 2002a: 9).

Da mesma forma, para Maheirie (2003: 63), "a exclusão social de toda e qualquer ordem, só pode ser compreendida se trouxermos para as análises o seu contrário - a inclusão, devidamente contextualizada". Ou seja, o que se evidencia é o processo dialético de exclusão/ inclusão, onde sujeito e contexto se constituem na interioridade deste processo contraditório, pois "a dialética exclusão/inclusão se objetiva em negação da negação de ações e valores hegemônicos, onde a crítica denuncia a própria origem que se nega." (2003: 64).

Para Sawaia (2002b), o processo dialético de exclusão/inclusão envolve três dimensões: material (econômica), ética (injustiças, preconceito, discriminação) e subjetiva (cognitivo e afetivo). Em relação à reforma agrária, muitos acreditam que basta dar a posse da terra para que tudo se resolva. Entretanto, a grande maioria das terras destinadas para os Sem Terra se localizam em lugares distantes dos centros urbanos, são lugares íngremes, sem condições geográficas para a construção das casas e para a realização das atividades agrícolas.

Ao conquistar a terra e estabelecer o assentamento, são necessários equipamentos agrícolas, insumos para usar na produção, assistência técnica, assim como escolas e postos de saúde. Também não é possível se consolidar na terra sem políticas de preços mínimos, sem seguro agrícola para cobrir os riscos das intempéries climáticas, caros à agricultura. Caso as necessidades materiais não sejam sanadas, os Sem Terra acabam caindo na armadilha da inclusão perversa, pois não ocorre a efetivação de uma vida digna.

Acerca disso, Maheirie nos fala que "há a exclusão/inclusão real e concreta, que é perigosa e tirânica, e precisamos estar atentos as suas novas formas de objetivação, estabelecendo uma luta efetiva teórico-prática, para excluir a dominação e incluir a emancipação, a ética e a justiça no campo das relações concretas da vida." (2003: 66). Quanto à dimensão ética, o preconceito em relação à população dos Sem Terra é freqüente nos espaços de convivência social. Tal fato faz com que no entorno dos assentamentos e acampamentos, a população vizinha vivencie o medo, produzindo estigmas em relação aos Sem Terra. A conseqüência deste processo gera dificuldades na relação com eles, seja com as crianças nas escolas, nos postos de saúde nos comércios, ou no transporte, produzindo um sofrimento ético-político. O sofrimento ético-político, segundo Sawaia (2002b: 104), "varia historicamente, de acordo com a mediação priorizada no processo de exclusão social: raça, gênero, idade e classe".

Para além das necessidades materiais, a dimensão subjetiva faz parte da vida cotidiana, se fazendo necessidade afetiva, a qual deve ser considerada nos estudos e práticas sociais, já que o sofrimento ético-político,

qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, [...] retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade (Sawaia, 2002b: 104).

Os sujeitos moradores do assentamento estudado passaram por situações reveladoras deste sofrimento, segundo o relato de uma assentada na época em que ainda estavam acampados e que, devido aos preconceitos sociais, não conseguiam trabalho.

No acampamento, nem sempre se arruma trabalho, pois o pessoal é contra Sem Terra [...] eu vi muita gente no acampamento passar fome, ninguém quer ver isso, mas, às vezes empresta uma xícara de arroz. Tu tens uma xícara e divide para não ficar sem, não podia ficar sem, mas aí vai indo devagarinho, se levando a vida (Neuza)

Os sujeitos sofrem a rejeição que a sociedade tem em relação aos Sem Terra e suas falas contam o preconceito e a discriminação enfrentados. Este fato faz com que, no período em que ficam acampados, as necessidades se tornem ainda maiores, fazendo com que os Sem Terra tenham que viver de doações, se submeter à miséria e à fome, devido à falta de oportunidades de trabalho. A vida vivida por anos nos barracos dos acampamentos, sem condições mínimas para se ter uma existência descente e, como descreve Sigaud (2000), socados debaixo da lona preta, compartilhando com os demais as intempéries do tempo, os despejos, a alimentação precária, a falta de condições de higiene, a incerteza em relação ao futuro e, ainda, como vimos em nossa pesquisa, sofrendo os preconceitos sociais, faz com que os sujeitos experienciem o sofrimento ético-político.

Segundo Sawaia (2002b), a dimensão subjetiva não é considerada nas pesquisas da exclusão, pois se olha apenas para uma face da moeda, ou seja, a condição objetiva. Entretanto, esta autora recupera o lugar da subjetividade nos estudos e análises acerca do processo dialético da exclusão/inclusão, mostrando que o sofrimento decorrente desta condição é ético-político, já que torna o sujeito impotente para agir frente a seu contexto de dominação. Este sentimento de impotência ainda é produzido e reforçado socialmente pelas idéias liberais, pelos meios de comunicação de massa e, até mesmo, por alguns "psicologismos", que acreditam que os sujeitos podem sair de sua condição, por meio, única e exclusivamente, de sua força de vontade. O sujeito acaba sendo culpabilizado por sua própria situação e se sente impotente para agir. O sentimento de culpa, subjetivado, anula a si como sujeito.

Ao pensar o sentimento de impotência e anulação vivido pelos sujeitos do assentamento estudado, compreende-se o sofrimento ético-político. Porém, também se pôde visualizar que a impotência transforma-se em revolta individual e que no encontro com o coletivo é possível potencializar os sujeitos para a luta. A esse respeito, Espinosa, citado por Sawaia (2002b), constrói o conceito de potência de ação e o contrapõe à potência de padecer que gera a servidão. Neste caso, a potência de ação fundamenta-se no conceito de potência que é o direito que toda pessoa tem de ser, de se afirmar e se expandir, sendo estas as condições para se alcançar a liberdade, que carrega afeto e alegria.

À medida que as revoltas individuais são experenciadas pelo coletivo, constituindo identificações entre os sujeitos, a potência deste coletivo surge como estratégia de enfrentamento à exclusão social e ao sofrimento ético-político. O processo de transformação que passa de uma revolta individual para uma revolta grupal, potencializa os sujeitos a fim de concretizar a conquista pela terra que é um sonho vivido de forma singular, como de forma coletiva.

Porém, os sofrimentos não são superados com a conquista pela terra, já que sentimentos negativos em relação aos sujeitos deste assentamento estavam presentes no início da formação do assentamento, vivido em situações de desconfiança, descrédito e discriminação. Uma assentada contou que muitos são aqueles que têm uma compreensão negativa dos Sem Terra e, depois que conhecem a realidade em que eles vivem e, sobretudo, a forma como trabalham, mudam sua postura e passam a ter uma relação que antes parecia impossível.

Antes de a pessoa vir pra cá eles pensam uma coisa, eles ficam meio para trás pra ver nossa questão, ainda mais quando fala em assentamento de Sem Terra as pessoas já tem o pé atrás. Mas depois que conhecem, que começa a conversar e anda pra cá, anda pra lá e vê todo nosso trabalho, a pessoa muda de idéia rapidinho, é rapidinho para mudar de idéia. Tanto que aquele da verdureira tinha preconceito, depois que ele conheceu nós aqui, defende nós até embaixo da água. (Neuza)

A mudança na relação dos assentados com aqueles que tinham uma visão negativa dos mesmos, além de superar o sofrimento ético-político, produz também o sentimento de tornarse reconhecido pelos anos de luta.

Neste trabalho de construção de novas relações, a Psicologia pode contribuir de forma significativa, pois sua atuação junto ao contexto onde os Sem Terra estão inseridos, pode produzir mudanças na base afetiva para que as pessoas possam (re)significar suas opiniões. Desta forma, se estará contribuindo para que os sujeitos Sem Terra transformem o medo, a vergonha, a culpa, em coragem, esperança e na crença da possibilidade de investir e lutar para a construção de novos modos de produção da vida.

Cabe à Psicologia, então, potencializar os sujeitos na conquista de uma felicidade éticopolítica, pois "potencializar pressupõe o desenvolvimento de valores éticos na forma de sentimentos, desejos e necessidades, para superar o sofrimento ético-político." (Sawaia, 2002b: 114). Porém, a felicidade ético-política não é algo momentâneo como o prazer ou a alegria, mas uma experiência emancipatória que supera a conquista das condições materiais e econômicas, para dar lugar à construção de um novo sujeito, na medida em que "se ultrapassa a prática do individualismo e do corporativismo para abrir-se a humanidade." (Sawaia, 2002b: 105).

Neste sentido, no assentamento onde foi realizado este estudo, a experiência coletiva de enfretamento às dimensões da exclusão e dos sofrimentos, possibilitou a luta pela felicidade ético-politica, construída no cotidiano da dialética singular/coletivo.

 

Algumas Considerações

Não pretendemos a partir deste estudo, fazer generalizações para todas as experiências de assentamentos no país, até mesmo porque, nos 24 estados em que o MST se faz presente, os contextos econômicos, sociais, territoriais e culturais são extremamente diversificados.

Os sujeitos do assentamento estudado permaneceram por vários anos em condições precárias de vida em acampamentos, onde se iniciou um processo de aprender a viver coletivamente e de forma organizada. Neste processo, o objetivo era conquistar a terra e consolidar o assentamento no modo de vida cooperativo e solidário. O processo de aprender a viver sob a égide de outra compreensão social, que tem como centro relações sociais que privilegiem o fazer coletivo, não é uma tarefa fácil. Afinal, estes sujeitos são constituídos mediados por valores liberais pautados no individualismo, na competição, na acumulação de riquezas e na exploração do homem pelo homem, como todos nós.

Na experimentação de novas formas de organização da vida, da produção social do trabalho, os sujeitos são atingidos de forma concreta. Novas formas de subjetivação vão sendo construídas por meio, não somente do processo de reflexão crítica predominantemente cognitiva, mas também, de suas afetividades. Em um processo dialético de viver, pensar e ser afetado por suas experiências de vida, e por meio deste exercício de abstração de sua própria existência, construindo novas formas de viver e sentir, é que se pode pensar na constituição de um novo sujeito.

Os sujeitos entrevistados no assentamento pesquisado deixaram claro que em seu horizonte estava à realização da reforma agrária para, a partir do modo de produção coletiva, concretizar o sonho de um mundo melhor, onde as pessoas tenham seus direitos garantidos, suas necessidades atendidas e onde se tenha um espaço para trabalhar e construir uma família. A luta pela terra é significada como a luta por uma nova forma de ser e viver, constituindo a base afetivo-volitiva de seus sentidos. A conquista pela terra construiu novos sentidos e significados em relação à própria terra e ao coletivo. Sua propriedade e função social coletiva não permitem a coexistência do individualismo. A competição e inveja aos poucos vão sendo substituídas pela solidariedade, compromisso com o grupo, autonomia e cooperação.

As relações sociais de produção neste assentamento têm como característica principal a cooperação, vivenciada no cotidiano, pois é base da manutenção da vida de todos. Devido à interdependência nas relações do grupo com os sujeitos, cada um compreende a importância do outro para o coletivo, como também para suas necessidades individuais.

A construção das relações de cooperação e solidariedade dentro do assentamento foi se constituindo ao longo da história de cada sujeito assentado, como também, na história do coletivo, demarcando que no assentamento não há lugar para o individualismo e sim, lugar para as singularidades. Quando se dá lugar aos aspectos singulares de cada sujeito, valoriza-se a relação eu - outro como indispensável para própria existência, abrindo espaços de abertura a alteridade. A experiência coletiva neste assentamento respeita as singularidades, pois entende que um depende do outro e que todos dependem do grupo. Portanto, os sujeitos que constituem o coletivo são constituídos pelo mesmo, onde as necessidades singulares e coletivas se relacionam de forma dialética e, nessa relação, se produz objetividades/subjetividades.

Quanto às dimensões presentes no processo dialético de exclusão/inclusão, pôde-se reconhecê-las durante o estudo no processo de transformação no modo de vida no assentamento, seja material, subjetiva e ética. Na dimensão material, por meio do modo de produção coletiva, os assentados construíram sua base econômica, produzindo riquezas, que são socializadas igualmente entre todos, sem interesse de acúmulo da mesma. Esta concepção baseia-se no modo pelos quais os sujeitos se relacionam ao seu processo de produção. Este processo produziu transformações na dimensão subjetiva e nas condições objetivas que possibilitaram a construção das relações de cooperação e solidariedade no coletivo. Da mesma forma, na dimensão ética, as transformações foram sendo construídas durante o processo histórico do assentamento na relação deste com o meio urbano, onde se observa um processo contínuo de superação dos preconceitos e discriminações em busca da cidadania.

A superação do sofrimento ético-político vivido nos acampamentos e assentamentos é um processo onde a Psicologia pode estar presente. Ao introduzir nas relações sociais de produção uma nova forma de organização, mais próxima dos valores coletivos e distante do individualismo, há a possibilidade de se construir novos espaços comunitários, onde prevaleça a igualdade social e o respeito às diferenças. A Psicologia pode cumprir papel importante como mediadora, problematizando as situações cotidianas, as formas de organização, as relações entre o singular e o coletivo, com o objetivo de superar o sofrimento éticopolítico, no sentido de potencializá-los para vida.

A partir do contexto encontrado neste estudo, a Psicologia, enquanto disciplina da área de Humanas, precisa se aproximar das populações rurais que compõe a base do MST, como também, as demais famílias e organizações do campo, pois seus saberes e fazeres estão ainda pouco comprometidos com essa parcela da população. A partir da experiência de coletivização no assentamento estudado, elementos psicossociais foram (re)pensados para se compreender a constituição dos sujeitos, os processos de exclusão/inclusão, as transformações do mundo contemporâneo e as (im)possibilidades de formas de vida mais coletivas e solidárias.

 

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Endereço para correspondência
Apoliana Groff
E-mail: poligroff@gmail.com

Kátia Maheirie
E-mail: maheirie@gmail.com

Lorena Prim
E-mail: lprim@uol.com.br

Recebido em: 28/11/2008
Revisado em: 07/04/2009
Aceito em: 31/05/2009

 

 

* Psicóloga e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil.
** Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de santa Catarina – Brasil.
*** Professora do Curso de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau – Brasil.
1 Dados retirados do site do MST http://www.mst.org.br , acesso em 22 de março de 2009.
2 http://www.capes.gov.br.
3 Os nomes dos sujeitos entrevistados são fictícios.
4 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
5 Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S.A.
6 Joinville é a maior cidade do estado de Santa Catarina e está a 40 km de Garuva.
7 No assentamento estudado foram assentadas 15 famílias. Porém, duas das famílias assentadas optaram pela forma individual de organização. Estas habitam o mesmo terreno, mas não participam da organização coletiva das outras 13 famílias.
8 A Ciranda no assentamento estudado constitui-se em um espaço onde as crianças que ainda não estão em idade escolar, ficam durante o dia na responsabilidade de uma pessoa que realiza atividades educativas, brincadeiras, alimenta-as e dá banho antes delas retornarem para suas casas no fim do dia.