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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.9 no.18 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS

 

O pessoal torna-se político: o papel do Estado no monitoramento da violência contra as mulheres

 

The personal becomes political: the role of government in controlling the violence against women

 

El personal se convierte en político: el papel del Estado en el control de la violencia contra la mujer

 

 

Fábio Pereira Angelim*, I, II ; Glaucia Ribeiro Starling Diniz**, I

I Universidade de Brasília – Brasil
II Superior Tribunal de Justiça – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute o papel do Estado e do movimento feminista no controle da violência contra as mulheres. Problematiza a definição de violência e apresenta o contexto de luta política, em níveis nacional, internacional e também subjetivo, ilustrado no caso de Maria da Penha. A contextualização política do drama pessoal das mulheres vítimas é abordada de maneira a valorizar a participação e a autonomia das mulheres ao longo do processo de ajuda oferecido pelo Estado. Argumenta a importância da convergência de ações de promotores, magistrados, equipes multidisciplinares e mulheres vítimas no processo de interpretação da violência a fim de buscar a melhor forma de garantir a integridade física e a segurança dessas mulheres. Ao final, tece breve comentário sobre os desafios da psicologia nesse contexto.

Palavras-chave: Violência doméstica, Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), Movimento feminista, Intervenção multidisciplinar, Psicologia jurídica.


ABSTRACT

This article discusses the roles of State and the feminist movement in the control of violence against women. It stresses the definition of violence and presents the national, international and personal political struggle, as it is illustrated in the case of Maria da Penha. The political contextualization of the personal drama of women victims of violence is considered in order to value women"s autonomy and their participation along the helping process offered by the State. Argues about the importance of converging actions of prosecutors, judges, multidisciplinary teams and women victims in the process of interpreting violence in order to pursue the best way to guarantee women"s safety and their physical integrity. At the end, brief comments are made about the challenges of psychology in this context.

Keywords: Domestic violence, Maria da Penha"s Law (Lei 11.340/2006), Feminist movement, Multidisciplinary intervention, Forensic psychology.


RESUMEN

Este artículo discute el papel del Estado y del movimiento feminista en el control de la violencia contra las mujeres. Problematiza la definición de violencia y presenta el contexto de lucha política, en niveles nacional, internacional y también subjetivo, ilustrado en el caso de Maria de la Penha. La contextualização política del drama personal de las mujeres víctimas es abordada de manera a valorar la participación y la autonomía de las mujeres al largo del proceso de ayuda ofrecido por el Estado. Argumenta la importancia de la convergência de acciones de fiscales, magistrados, equipos multidisciplinares y mujeres víctimas en el proceso de interpretación de la violencia a fin de buscar la mejor forma de garantizar la integridad física y la seguridad de esas mujeres. Al final, teje breve comentario sobre los desafíos de la psicología en ese contexto.

Palabras clave: Violencia doméstica, Ley Maria da Penha (Ley 11.340/2006), Movimiento feminista, Intervención multidisciplinar, Psicología jurídica.


 

 

O Pessoal Torna-se Político: o papel do Estado no controle da violência contra as mulheres

A gravidade dos casos de violência contra mulheres e a complexidade de fatores envolvidos exigem uma contextualização política dos processos sociais que criaram as condições de visibilidade desse tipo específico de violência. Entendemos que a compreensão adequada desse fenômeno por parte de todos os profissionais que atuam nessa área exige que os mesmos conheçam o percurso histórico que permitiu a construção e a politização da definição da violência contra as mulheres, o papel do Estado no controle e intervenção em casos de violência e a importância da interpretação das mulheres vítimas nesse processo.

Este artigo busca, portanto, esclarecer o papel do Estado e do movimento feminista no controle da violência contra as mulheres. Toma como ponto de partida uma breve reflexão sobre o conceito de violência para apontar o lugar do Estado e seu monopólio no exercício legítimo da violência por meio de suas funções de pacificação de conflitos e controle social. Em seguida tece uma breve contextualização do processo histórico de afirmação dos direitos das mulheres no intuito de apontar sua importância para criar visibilidade para a violência contra mulheres no espaço doméstico. Por fim, aponta caminhos para a articulação entre a intervenção do Estado no controle da violência e o exercício da subjetividade com a publicação da Lei 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha.

 

O Papel do Estado na Definição e Controle da Violência

Existem muitas formas de violência. Definir e contextualizar o tipo de violência ao qual estamos nos referindo, ou seja, a violência contra a mulher, se constitui numa tarefa fundamental. O sociólogo Yves Michaud (1989) apresenta a etimologia da palavra violência como um ponto de partida para sua conceituação. Violentia, origem latina da palavra, significa transgredir, profanar, termos relacionados ao radical vis que significa vigor, força, potência. Este núcleo de significação é mantido quando se procura a origem do termo na língua grega, onde o vis, latino, corresponde ao is grego que significa músculo, ou força do corpo. Violência é interpretada aqui como uma força que transgride, que desorganiza ou que se impõe sobre o que já existia de maneira estruturada. Nesse sentido, é o emprego da força que, na medida em que vai além de certos limites, pode ser reconhecido como ato violento.

É interessante observar que não é a força em si que delimita a violência, mas sim o seu caráter de perturbação de uma ordem social. Aproximando o conceito de violência da perturbação de uma ordem social, a compreensão do ordenamento da sociedade torna-se imprescindível para estabelecer os limites da violência. Velho (1999:10) complementa essa reflexão, ao definir a violência como exercício de poder: "A violência não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza".

O discurso sobre a violência aponta para as possibilidades de uso legítimo e ilegítimo da força. A percepção da ação violenta está diretamente relacionada com a possibilidade de enunciar determinado fato como uma ação violenta ilegítima. A definição da violência, portanto, depende, em muitos casos, da possibilidade de redefinir as normas de legitimidade do uso da força. Controlando-se a definição de legitimidade do uso da força controla-se a conceituação da violência no campo dos relacionamentos interpessoais, internacionais ou paraestatais (Wieviorka, 1997).

No que concerne a violência contra as mulheres, as explicações sociológicas clássicas tornam-se bastante deficientes para compreender e para possibilitar intervenções no mundo privado da família e dos cônjuges. Suárez e Bandeira (2002) apontam que as pesquisas feministas chamaram atenção para as violências com base nas ações perpetradas e nos diversos sentidos que a palavra indicava em contextos variados: "violência contra a mulher; violência de gênero; violência sexual; violência doméstica; violência conjugal; violência familiar; violência no trabalho; violência nos serviços públicos; violência verbal; e simbólica, entre outras" (Suárez & Bandeira, 2002:305). Em suma, o que as autoras mostram é que as definições e os modelos explicativos genéricos da violência abriram espaço para compreensões mais contextualizadas.

Ao nomear as violências, o pensamento feminista salientou sua disseminação nos mais diversos espaços sociais e desfez sua invisibilidade. Esse processo de nomeação e denúncia permitiu que se exigisse do Estado maior envolvimento no sentido de garantir proteção e cuidado com as mulheres vítimas de violência na medida em que esse tipo de violência era desvelado em suas especificidades. Antes de avançarmos na problematização da intervenção do Estado em casos de violência contra as mulheres, é necessário contextualizaremos a legitimidade do controle da violência por parte do Estado.

O Estado de direito tem como um de seus fundamentos o controle da violência na sociedade. A legitimidade do uso da violência e os ritos formais para a sua identificação estruturam intervenções por meio de procedimentos jurídicos, policiais e militares. Max Weber define, da seguinte maneira, o entrelaçamento entre violência e o Estado de direitos:

O Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer em relação a qualquer outro grupo de indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere: o Estado se transforma, portanto, na única fonte do "direito" à violência (Weber, 2008:56).

Essa proposição acerca do monopólio do Estado no uso legítimo da violência é aceita, ainda hoje, por grande parte dos sociólogos e juristas (Wieviorka, 1997; Velho, 1999). A perspectiva clássica sobre a violência se afirma em torno do jogo de definições de um projeto de Estado detentor do monopólio de exercício da violência legítima e da percepção da violência como resultante de conflitos e desorganizações sociais.

O uso político da violência equivale ao exercício de direitos políticos que qualificam determinado grupo social de maneira que ele possa enunciar a ilegitimidade do exercício da violência contra ele. Existe uma relação de poder para que ocorra a rotulação de um ato como violento ou não. Isso implica numa possibilidade de uso do aparelho de Estado para intervenção ou reavaliação do exercício da violência por meio de suas agências tais como a polícia e as forças armadas. Wieviorka (2006) considera a violência o oposto de um conflito institucionalizado, ou seja, quanto mais espaços institucionais de resolução de conflito existirem, menores serão as chances de ocorrência da violência, daí que o esforço dos movimentos sociais na reivindicação de ações específicas para nomear diferentes tipos de violência e demandar o controle do Estado seja tão importante.

A aproximação entre esse discurso sobre o uso legítimo da violência e os discursos de afirmação de direitos civis e das práticas penais pode ser vista como uma decorrência da estruturação política de grupos sociais para criar visibilidade para as violências não normatizadas, ou mesmo, para aquelas que estão além do alcance das legislações do Estado. Um exemplo disso são os movimentos sociais como o feminista, de afirmação dos negros e dos homossexuais que buscam novos espaços de institucionalização de conflitos e o reconhecimento de direitos e garantias (Wieviorka, 2006). O movimento feminista criou as condições para que agressões físicas, humilhações, ameaças e múltiplas formas de submissões sexuais pudessem ser interpretadas como violência contra as mulheres tornando ilegítimas as ações de homens e reivindicando a atuação do Estado para reconfigurar as relações de poder no espaço doméstico.

Numa compreensão clássica da violência, ela deve ser entendida como um excesso de uso da força diante de normas sociais já estabelecidas. Considerando a participação social no Estado democrático de direito a denúncia da violência passa também pela reformulação do papel do Estado na medida em que diferentes tipos de relacionamentos podem ser considerados violentos. A interpretação da violência depende de um contexto sócio-político favorável para que a pessoa violentada possa enunciar a violência que sofre e ser legitimada nas instituições estatais de proteção e controle. Os movimentos sociais pressionam o Estado a reconhecer como violentas determinadas condutas que, por razões históricas ou de hegemonia de poder, configuram um determinado grupo social como vulnerável a violências específicas. Nesse contexto, a afirmação da violência é um processo subjetivo e coletivo. O processo de definição da violência contra as mulheres ilustra as dimensões políticas e subjetivas para tal definição e os desafios para o Estado no controle e intervenção desse tipo específico de violência, como será visto a seguir.

 

Violência Contra a Mulher: o pessoal torna-se político

Ao longo da história, as várias formas de violência doméstica, e em especial, a violência contra a mulher, foram ignoradas. Essa invisibilidade da violência contra as mulheres pode ser entendida como um fenômeno de legitimação da violência perpetrada por homens no espaço doméstico (Bandeira & Thurler, 2008; Araújo, 2003; Ravazzola, 1998). Atuando, apenas, até o limite das portas das casas, o Estado, durante muito tempo, se absteve de intervir nos conflitos domésticos. Essa omissão do Estado resultou em um risco especial para as mulheres vítimas de maridos violentos (Bandeira & Thurler, 2008; Dias, 2007; Soares, 1999; Ravazzola, 1998). Até a década de 70, na intimidade da casa, o homem seguia sendo incontestável em suas atitudes. O espaço doméstico permaneceu como a configuração social básica do patriarcado e era legitimado na esfera de ação pública do Estado.

A Violência Doméstica – ou mais especificamente a violência contra as mulheres – foi assumida como bandeira de luta e como um processo social por meio do qual o movimento feminista afirmou a ilegitimidade das várias formas de agressões de homens contra mulheres. Esse processo de luta envolveu a criação de condições para que as mulheres pudessem denunciar a violência ao mesmo tempo em que se sensibilizava o Estado para que não fosse conivente com o patriarcado que era utilizado como contexto ideológico que justificava ações violentas. Sem esse esforço político e histórico seria impensável a definição de uma agressão perpetrada por um cônjuge como um ato de violência passível de sanção penal. Na medida em que o movimento feminista demandou do Estado uma definição específica da violência contra as mulheres e ações direcionadas ao seu controle e erradicação, foram viabilizadas as condições para que mulheres, individualmente, percebessem e denunciassem a violência que sofriam.

O movimento de sensibilização da sociedade para a ‘violência contra a mulher", que surge na década de 1970 e ganha força na década de 1980 teve, portanto, um papel fundamental para acabar com a invisibilidade das várias formas de violências que ocorrem no ambiente doméstico e que são perpetradas por pessoas que deveriam proteger seus familiares (Diniz & Angelim, 2003). A pressão da sociedade civil organizada que passou a exigir medidas de controle e intervenção na área da violência contra a mulher, culminou no surgimento dos primeiros órgãos públicos para viabilizar as políticas de proteção e cuidado das mulheres (Suárez & Bandeira, 2002).

O SOS Corpo de Recife, aberto em 1978, e o SOS Mulher de São Paulo, aberto em 1980, foram organizações pioneiras na elaboração de políticas de atendimento, conscientização e proteção de mulheres submetidas à violência doméstica. Em 1983 surgiram os Conselhos da Condição Feminina em São Paulo e Minas Gerais, sendo criado em 1985 o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Esses Conselhos tinham como objetivo "eliminar a discriminação contra as mulheres, assegurando condições de liberdade de direitos bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país" (Suárez & Bandeira, 2002:298).

Concomitante à criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foram criadas as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher – DEAM"s. A primeira DEAM foi criada em 1985, em São Paulo, como produto da pressão feminista sobre o governo para garantir proteção para as mulheres vítimas de violência e a punição dos agressores (Grossi, 1997). As DEAM"s, ao exercerem a função de proteção para mulheres, viabilizaram, também, a compilação e o acesso a dados estatísticos sobre a violência existente contra as mulheres trazendo ainda mais visibilidade para esse fenômeno (Soares, 1999; Araújo, 2003).

O registro das queixas tornou-se mais frequente na medida em que as mulheres sentiramse mais confiantes na capacidade do Estado para protegê-las e coibir a violência (Bandeira, 1999). A representação contra o agressor esbarrou, na maioria dos casos, na desistência ou arquivamento do processo por interesse das próprias vítimas (Araújo, 2003; Hermann, 2002; Bandeira, 1999). A dificuldade para sustentar as representações criminais e as dificuldades pessoais vivenciadas por mulheres vítimas de violência doméstica foram então identificadas como elementos importantes no processo de persecução penal dos agressores.

Diante desse quadro surgiram outras iniciativas do poder público com vistas a facilitar a proteção das mulheres e a ação contra os agressores. Foram criadas as Casas Abrigo e as Defensorias Públicas das Mulheres buscando facilitar o acesso à segurança e proteção. A criação de dispositivos institucionais que permitiam e facilitavam a representação criminal contra os agressores parecia ser a solução para os casos de violência doméstica. Contudo, as mulheres vítimas, em mais da metade das vezes, continuavam a retirar as queixas contra os agressores, com grandes chances de reincidência das agressões (Bandeira, 1999; Hermann, 2002; Araújo, 2003, Soares, 1999).

Em 2002 foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), tendo como um de seus principais objetivos a integração de esforços para prevenir e erradicar a violência doméstica. A proposta de consolidação de redes integradas de atendimento ganhou força com os recursos provenientes dessa Secretaria. Com status de Ministério, a SPM pôde intervir nos grandes temas concernentes à proteção e a afirmação dos direitos das mulheres e coube a ela a tarefa de elaborar, junto com parlamentares e a sociedade civil organizada, o projeto de Lei que culminou na criação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.

O percurso brasileiro refletiu as grandes mudanças que ocorreram também na comunidade internacional. O Brasil inovou nesse cenário com a criação das DEAM"s e tendo sido palco de discussão dos grandes temas para a afirmação dos direitos das mulheres. O apoio social, as campanhas de conscientização, as agências especializadas e as DEAM"s permitiram que o problema da violência contra as mulheres pudesse ser contextualizado num espectro social mais amplo de afirmação de direitos e de dignidade da pessoa humana, viabilizando que o espaço doméstico fosse objeto de atenção pública e que o sofrimento pessoal das mulheres se tornasse objeto de intervenção do Estado.

O esforço feminista gerou gradativa atenção de diversos governos para os casos de violência contra as mulheres. Tal fato permitiu o estabelecimento de políticas para proteção e cuidado. Por absurdo que pareça atualmente, o reconhecimento das mulheres como merecedoras da chancela dos direitos humanos é produto de uma luta constante travada ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990. A politização da violência contra as mulheres teve nos palcos de debates da Organização das Nações Unidas (ONU) um apoio decisivo para pressionar os governos do mundo.

Muitas vezes, quando não existia nenhuma lei ou tratado positivado que protegesse as mulheres, as feministas interpretavam as leis existentes corrigindo o viés de gênero predominante. Kirvan (1999) apresenta o relato de um pedido de anistia apresentado por duas mulheres paquistanesas que haviam fugido de seus maridos e requerido asilo no Reino Unido. O risco real de agressões ou homicídio por parte de seus maridos e a falta de políticas para inibir a violência doméstica e proteger as mulheres vítimas no Paquistão permitiu que elas fossem asiladas no Reino Unido por decisão da Corte dos Lords. A violência contra as mulheres, nesse caso, ficou evidenciada como problema político e de Estado. Essa percepção da violência doméstica favoreceu a introdução de estratégias políticas para seu combate sem discutir individualmente as responsabilidades de agressores e vítimas. Nesses casos, o objetivo era a proteção e ampliação dos direitos humanos para as mulheres vítimas.

A neutralidade das leis sempre foi compreendida pelas ativistas feministas como uma forma de manutenção dos valores patriarcais, sexistas e machistas na prática dos operadores de direito (Araújo, 2003; Baratta, 1999; Campos & Carvalho, 2006). A "suposta" neutralidade das leis não suplantava o viés de interpretação dos operadores de direitos. Inúmeras vezes a hermenêutica jurídica permitia o estabelecimento de jurisprudências que exacerbavam a impunidade dos agressores e tornavam a violência contra as mulheres um tema a ser resolvido na esfera privada (Lima, 2008). Tais interpretações acabavam, muitas vezes de forma velada, minando a força das leis sancionadas para a proteção das mulheres vítimas.

Na longa senda para a formalização da afirmação e proteção dos direitos das mulheres pelos organismos da ONU, muitas Conferências foram realizadas e resultaram em Convenções com peso político decisivo para criar visibilidade e garantir a necessidade da intervenção do Estado em casos de violência contra as mulheres. Em 1975, foi realizada a I Conferência Mundial sobre a Mulher, que teve o mérito de focalizar a realidade feminina como tema principal; entretanto, essa conferência não teve desdobramentos políticos imediatos. Um marco importante foi a ONU declarar a década de 1975 a 1985 como a "Década da Mulher". Tal ação possibilitou um foco em estudos e reflexões sobre as condições das mulheres ao redor do mundo e impulsionou os avanços sociais desse período.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – Convenção CEDAW –, elaborada em 1979, teve como objetivo essencial definir a discriminação contra as mulheres e estabelecer as condições para que os países signatários eliminassem tais formas de discriminação. O Brasil subscreveu a essa Convenção em fevereiro de 1984, com reservas na parte relativa ao direito de família; mas foi somente em 1994 que a Convenção acabou sendo plenamente aprovada pelo Congresso Nacional e ratificada pelo Presidente da República (Decreto Legislativo 26/1994 e Decreto 4.377/2002). A Convenção CEDAW é considerada o primeiro instrumento internacional que dispôs sobre os direitos humanos das mulheres (Dias, 2007).

Os instrumentos internacionais de proteção das mulheres, até a década de 1990, haviam avançado bastante na denúncia da desigualdade entre homens e mulheres. Entretanto, ainda deixavam de fora a violência contra as mulheres como item objetivo. Foi no ano de 1993, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que a violência contra a mulher foi definida como uma violação aos direitos humanos.

No ano de 1994, foi realizada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica - conhecida como Convenção de Belém do Pará. Esse foi um passo decisivo para viabilizar a criação de leis específicas para a erradicação da violência doméstica nas Américas e, como será visto adiante, para a elaboração da Lei 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha. A definição de violência contra a mulher foi cunhada no próprio texto da Convenção e sua importância deve-se ao fato de apresentar o caráter abrangente da violência, ao explicitar suas dimensões física, psicológica e sexual. A violência contra as mulheres ficou definida da seguinte maneira: "Artigo 1º – Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado." (Cunha & Pinto, 2007:164).

Esses tratados internacionais, devidamente aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República, ganharam valor de emendas constitucionais e contribuíram para a ocorrência de novas jurisprudências e embates jurídicos importantes em defesa das mulheres vítimas de violência (Dias, 2007). Na contramão desse esforço de visibilidade para a violência contra as mulheres, a criação dos Juizados Especiais Criminais – JECrim –, por meio da Lei 9.099/1995, foi um tropeço para o esforço de erradicação desse tipo de violência. Ao mesmo tempo em que o movimento feminista avançava na definição da violência contras as mulheres e demandava do poder público ações efetivas para sua visibilidade e erradicação, na aplicação dessa Lei os agressores tinham penas atenuadas por transações penais e pagavam com cestas básicas pelas violências perpetradas (Campos, 2006; Araújo, 2003).

Além dessa banalização e minimização das experiências de violência, as audiências de conciliação funcionavam como instrumentos para demoverem as mulheres de sua busca por uma solução judicial e acabavam por reafirmarem o poder do parceiro agressor (Araújo, 2003; Herman, 2002). Uma vez que a grande maioria dos casos de violência contra as mulheres ocorre em meio a episódios de agressões e ameaças que seriam objeto de intervenção nos JECrim, a atuação em favor do agressor acabava por corroborar para a vitima sua situação de desamparo (Campos, 2006). Os episódios de violência contra mulheres ficaram jogados na vala comum dos casos de crimes de menor potencial ofensivo. Essa situação tornou ainda mais explícita a necessidade de se considerar as especificidades desse fenômeno para que as mulheres não fossem revitimizadas ao longo do processo de intervenção do Estado (Dias, 2007; Araújo, 2003; Herman, 2002).

Foi nesse contexto que o caso da farmacêutica Maria da Penha tornou-se ainda mais emblemático – ele fez escancarar a ineficácia do aparelho de justiça brasileiro para conter a violência doméstica contra as mulheres. Em maio de 1983, Maria da Penha recebeu, enquanto dormia, um tiro de seu marido, Marco Antônio Herédia Viveros, enquanto ele simulava uma situação de assalto. Esse tiro resultou em uma paraplegia. Em outubro do mesmo ano, durante um banho no chuveiro da própria casa, seu marido tenta eletrocutá-la simulando um acidente doméstico. Após essas agressões a família se mobilizou para retirá-la do convívio com o marido (Santos, 2006).

Somente em janeiro de 1984 Maria da Penha realizou seu primeiro depoimento no caso e foi oferecida a denúncia pelo Ministério Público. O processo penal se arrastou por mais de sete anos favorecido por diversas possibilidades de recurso e pela própria morosidade do sistema judiciário brasileiro. Nesse ínterim Maria da Penha teve de refazer sua vida sem nenhum tipo de proteção específica. Além disso, ela não teve nenhum tipo de facilidade para regularizar seu estado civil e reorganizar a rotina de vida com seus filhos. Seu marido passou incólume todos esses anos. Em 1991 Marco Antônio foi condenado a 15 anos de prisão, recorreu em liberdade e teve seu julgamento anulado pelo Tribunal de Alçada Criminal do Ceará em 1995. Em 1996 foi julgado novamente e condenado a uma pena de 10 anos e seis meses - recorreu em liberdade novamente. Já se somavam 12 anos sem que o Estado interviesse contra o agressor homicida ou protegesse efetivamente a vítima.

Diante da morosidade do poder judiciário brasileiro o caso foi levado em 1997 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 1999 – 15 anos após as duas tentativas de homicídio – o governo brasileiro recebe uma advertência por sua inação no caso Maria da Penha. Por quatro vezes a Comissão solicitou informações ao governo brasileiro recebendo apenas o silêncio como resposta. Somente em 2002 o governo brasileiro apresentou considerações e se comprometeu a cumprir as recomendações da Comissão. Após dezenove anos e seis meses o ex-marido agressor foi preso e cumpriu 2 anos de prisão, menos de um terço da pena imputada de 10 anos.

Esse episódio constituiu um ponto de convergência das ações do movimento feminista em âmbito internacional e do protagonismo da própria Maria da Penha na exposição da violência que ela sofreu e colocou um holofote sobre a ineficácia da justiça brasileira. O resultado desse processo foi a recomendação para que o Brasil tomasse providências para viabilizar a proteção de mulheres vítimas de violência e tornasse mais eficaz a ação estatal na persecução penal dos agressores (Santos, 2006; Dias, 2007; Cunha & Pinto, 2007). A pressão sofrida por parte da OEA e a exigência para que o governo brasileiro cumprisse as convenções e tratados internacionais dos quais era signatário resultaram em uma pressão política fundamental para viabilizar a elaboração e publicação da Lei 11.340/2006 (Dias, 2007). Cabe, portanto, discutir dimensões dessa Lei e sua importância no processo de afirmação dos direitos de proteção de mulheres vítimas de violência.

 

Lei Maria da Penha – O Esforço de Mudança Pessoal, Política e Estatal

A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi editada em agosto de 2006. Ela é resultado de um longo caminho que deixou evidente que a violência contra as mulheres demandava um novo processo jurídico que protegesse as mulheres, especialmente nos casos de maior risco. A ousadia dessa Lei consiste no fato de que ela busca lidar com cinco fatores que desafiaram as intervenções em casos de violência doméstica ao longo de quatro décadas: 1) lidar com a definição de violência contra a mulher com um status diferenciado dos demais crimes; 2) facilitar a manutenção das queixas e pronunciamento das denúncias; 3) garantir a segurança da mulher vítima através de medidas protetivas; 4) promover a ação de uma rede de serviços na prevenção e intervenção em casos de violência contra as mulheres; e 5) impedir as transações penais (especialmente o pagamento de cestas básicas) priorizando ações de educação e de ressocialização dos agressores.

A Lei 11.340/2006 tem como uma de suas características mais provocantes o fato de não ser destinada à proteção de todos os brasileiros. Ela de fato se propõe, corrigindo o viés de interpretação de alguns magistrados e outros operadores do direito, a defender as mulheres vítimas de violência. Não versa, portanto, sobre proteção aos homens que venham a sofrer agressões e ameaças semelhantes (Dias, 2007; Campos, 2008). A definição de violência contra a mulher apresentada no texto da Lei é uma transcrição quase literal da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica – Convenção de Belém do Pará, já mencionada anteriormente (Cunha & Pinto, 2007). Essa transcrição reafirma o compromisso do Brasil, diante da comunidade internacional em erradicar a violência contra as mulheres por meio da criação de meios eficazes para atingir esse objetivo. A definição clara do que constitui violência contra a mulher facilita a argumentação de operadores de direito que trabalham na persecução penal de agressores e torna-se uma clara referência para que as mulheres possam refletir sobre suas próprias experiências de agressão e interpretá-las como violência.

A dificuldade para a sustentação da queixa em casos de violência contra a mulher foi levada em consideração na Lei 11.340/2006. O reconhecimento formal dessa dificuldade é fundamental, pois possibilita uma reflexão conjunta entre o Ministério Público e a vítima anterior à suspensão da queixa (Lima, 2008). Quando uma vítima manifestar interesse na suspensão processual um promotor público deverá estar presente na audiência para avaliar junto com ela os fatores de risco de reincidência de violência e as possibilidades de sanções penais pertinentes para cada caso (Lima, 2008). Uma vez realizada a denúncia, que deve ser oferecida pelo Ministério Público, a vítima já não poderá retirá-la (Dias, 2007; Cunha & Pinto, 2007). Isso é extremamente importante, pois viabiliza que a denúncia constitua um processo de intervenção do Estado, ao representar os interesses coletivos por meio da figura do Ministério Público. Formalmente, a apresentação de queixa de violência, e, em última instância, a situação de violência contra a mulher deixa de ser uma iniciativa pessoal e passa a ser vista como ação de interesse público para que a sociedade se veja livre da violência contra as mulheres (Lima, 2008).

Alguns estudos apontam para a importância da afirmação da violência para que a vítima possa avaliar seu sofrimento e buscar alternativas para uma vida com maior segurança (Bruschi, Paula & Bordin, 2006; Ospina, Jaramillo, Uribe & Cabarcas-Iglesias, 2006; Walker, 2000; Soares, 1998; Ravazzola, 1997). A apresentação da queixa criminal permite que a mulher vítima perceba a gravidade da situação vivenciada, ofereça um limite para o parceiro agressor, compreenda as implicações criminais da violência e afirme os direitos que ela tem à integridade física e à segurança.

Muitas vezes a mulher vítima é "empurrada" para a denúncia por terceiros - amigos, familiares, desconhecidos, policiais; e, certamente, não teve ainda a oportunidade de fazer uma reflexão pessoal que a permita tomar decisões quanto a necessidade de uma persecução penal ou quanto às garantias necessárias para a sua segurança. O Ministério Público, com base na Lei 11.340/2006, e em função da participação de outros profissionais envolvidos no caso, tem a oportunidade de contribuir para que a mulher vitimada possa afirmar seu sofrimento de maneira legítima e possa buscar soluções para lidar com o relacionamento violento. Nesse contexto, a intervenção terapêutica tem sido bastante eficaz no sentido de promover uma reflexão ampliada com as vítimas que viabiliza melhores condições para a compreensão e superação do relacionamento violento (Roque, Moura, & Ghesti, 2006; Walker, 2000; Ravazzola, 1997).

A criminalização da violência contra as mulheres, expressa na Lei 11.340/2006, não eliminou o fato de que a maior parte das vítimas permanece não desejando a criminalização do agressor (Araújo, 2003; Hermann, 2002; Walker, 2000; Bandeira, 1999). Bruschi e col. (2006) e Schraiber e col. (2007) realizaram estudos de prevalência e procura de ajuda por mulheres vítimas de violência, no Brasil, e encontraram resultados em que apenas 10% a 24 % das vítimas de lesões graves buscaram a polícia ou a delegacia. A grande maioria das mulheres não formalizou queixa e trataram a violência no âmbito privado, negando a ocorrência de violência nos seus relacionamentos. Essa situação de negação da gravidade do episódio violento e do que ele representa em termos de risco tende a agravar a intensidade e frequência das agressões e costuma levar a um quadro de isolamento social.

Entender as motivações das vítimas para não criminalizarem as ações dos agressores e seu consequente retraimento social torna-se elemento importante para programar intervenções mais eficazes. Muitas razões são apontadas na literatura para explicar esse comportamento por parte de mulheres vítimas. Destacamos algumas delas: o risco de perder o apoio financeiro; os receios pela possibilidade de expor o agressor à barbárie dos presídios; o temor de que o afastamento do marido em relação aos filhos dificulte a educação e desenvolvimento saudável dos mesmos (Goodman & Epstein, 2008; Araújo, 2003; Hermann, 2002; Walker, 2000; Goldner, 1998). É fundamental observarmos que as mulheres buscam proteger os agressores das sanções penais mobilizadas pela responsabilidade de manter a família intacta e de cuidar de seus parceiros. Cabe destacar que esse sentimento de responsabilidade está ancorado em dimensões estruturantes dos estereótipos de gênero feminino no contexto do patriarcado (Ospina e col. 2006; Greenspum, 2002; Walker, 2000; Diniz, 1999; Goldner, 1998; Ravazzola, 1997).

A dificuldade para manter a queixa contra o agressor está, portanto, diretamente relacionada à natureza do relacionamento entre vítima e agressor e ao contexto ideológico e social no qual ambos estão inseridos. A mudança de atitude das vítimas demanda uma compreensão ampla do seu contexto social e das possibilidades de exercício da subjetividade para além dos papéis de mãe e esposa. Mulheres vítimas precisam de espaço de reflexão para que possam deslocar o foco de atenção dos outros para si mesmas, resgatando nesse processo as suas expectativas de realização como seres humanos autônomos (Ospina e col. 2006; Greeenspun, 2002; Walker, 2000; Goldner, 1999; Ravazzola, 1997).

O ciclo de violência ocorre de maneira que as mulheres vítimas buscam um limite para o escalonamento da violência podendo recorrer à polícia ou Justiça num momento de tensão máxima. Na medida em que o agressor se desculpa e busca compensar sua agressividade agindo de maneira romantizada ambos tendem a retomar o relacionamento novamente e dispensarem a ajuda do Estado e terceiros (Walker, 2000; Ravazzola, 1997). A retirada da queixa é parte desse processo de retomada do relacionamento. Daí que seja fundamental atentar para o fato de que a imensa maioria das mulheres não quer a restrição de liberdade para seus parceiros – elas querem que eles mudem para que o relacionamento possa ser mantido (Angelim, 2004).

A criminalização da violência contra as mulheres estabelece as condições para a intervenção do Estado. Contudo, as mulheres vítimas ao discordarem da necessidade dessa criminalização inviabilizam a própria ação do Estado (Lima, 2008). A imposição da definição de violência pelo Estado, em meio ao processo criminal, e a perseguição penal compulsória, sem chances de retirada das queixas têm se mostrado pouco eficazes para os casos de violência entre parceiros íntimos. Nessas situações as mulheres vítimas passam a evitar a ajuda oferecida por serviços públicos e a formalização das queixas (Goodman & Epstein, 2008; Zweig, Burt, & van Ness, 2003).

Nesse ponto a criminologia crítica feminista oferece soluções mais criativas para o fenômeno da violência contra as mulheres. Ao considerar outras formas de controle social da violência, que vão além da reclusão dos agressores, torna-se possível criar condições para aumentar a participação das mulheres vítimas e viabilizar o controle da violência pelo aparelho de Estado (Campos, 1999). Andrade (1999:114) resume bem esta postura ao afirmar: "...reconstruir um problema privado como um problema social, não significa que o melhor meio de responder a este problema seja convertê-lo, quase que automaticamente em um problema penal, ou seja em um crime."

Epstein (2002) afirma que na medida em que as vítimas sintam-se escutadas, compreendidas e tratadas respeitosamente fica mais provável que elas recorram ao aparelho de justiça se for necessária a intervenção contra o parceiro agressor. Na medida em que a vítima não encontra, ao longo do processo criminal, as condições de ajuda que permitam a sustentação da queixa ela retira a representação. A intervenção em casos de violência contra as mulheres por meio de um processo criminal enfrenta um desafio grande na medida em que se torna importante alcançar um equilíbrio entre a ação de controle do Estado e a autonomia da vítima para decidir o que ela pretende para o seu relacionamento com o agressor.

O sistema judicial de controle da violência contra as mulheres deve incluí-las como principais elos entre a ocorrência do fato e sua tipificação no processo penal. Torna-se imperativo, como parte do sistema de controle da violência, desenvolver metodologias alternativas que contribuam para a participação das vítimas em todas as fases de percepção e elaboração do sentido da violência sofrida, culminando, ou não, na denúncia oferecida pelo Ministério Público. O papel das medidas protetivas precisa ser pensado nesse contexto.

Na Lei 11.340/2006, o capítulo II versa sobre as medidas protetivas. Elas funcionam como um lembrete para agressores e vítimas de que a violência será coibida pelo Estado e possibilitam uma clara referência para que a mulher possa reorganizar sua vida e ter tempo para refletir sobre suas intenções em romper ou manter o relacionamento com o parceiro agressor. Além disso, as medidas protetivas oferecem referências claras para que a mulher possa perceber a violência do parceiro agressor se ele desrespeitar os limites explicitados no próprio texto da medida protetiva.

As medidas protetivas têm sido utilizadas, portanto, com bastante sucesso para adequar as necessidades de controle da violência por parte do Estado, à demanda das mulheres pela cessação das agressões ou afastamento dos parceiros agressores (Goodman & Epstein, 2008, Epstein, 2002). As medidas protetivas mais comuns são: afastamento do lar, domicílio ou local de convivência da mulher; proibição de condutas (aproximação da ofendida, de familiares ou amigos; contatos telefônicos); suspensão de visitas aos filhos comuns e suspensão ou restrição da posse de armas de fogo.

Dada a complexidade da tarefa de superação dos relacionamentos violentos a atuação de equipes multidisciplinares está preconizada na Lei 11.340/2006. Conforme previsto nos Artigos 29, 30 e 31, a equipe pode intervir na dinâmica relacional violenta de modo a avançar rumo tanto à afirmação dos direitos e necessidades da vítima quanto à ressocialização do agressor. Nesse tipo de intervenção, tanto as mulheres que pretendem manter o relacionamento quanto aquelas que querem a separação recebem uma atenção específica e dispõem de melhores condições para superarem a violência. Por meio de intervenções psicossociais as vítimas são legitimadas no relato de suas experiências de agressão, podem relacionar os estereótipos de gênero à vulnerabilidade para a manutenção do relacionamento violento, podem compreender o ciclo de violência e as agressões físicas, psicológicas e sexuais a que já se submeteram e perceberem a importância de resgatar a autonomia diante de seus desafios pessoais (Roque, Moura & Ghesti, 2006; Walker, 2000 e 1979; Goldner, 1999; Ravazzola, 1997).

Ao considerar a necessidade de abordar o relacionamento violento entre agressores e vítimas, a Lei Maria da Penha abre uma oportunidade para a realização de intervenções junto aos agressores. Tais intervenções têm como objetivo principal esclarecê-lo sobre a gravidade do uso da violência como estratégia de resolução de conflitos. O agressor é chamado a um processo de ressocialização em virtude de o Estado brasileiro se posicionar contra a violência de gênero. Os valores sociais e pessoais que justificam a violência perpetrada por eles precisam ser problematizados e reconsiderados de forma que eles possam compreender os direitos garantidos às mulheres. As intervenções terapêuticas com os agressores ainda não são muito comuns, mas são bastante eficazes em provocarem reflexões que possam resultar em mudanças importantes. Essas reflexões visam: oportunizar a compreensão da violência contra a mulher como um crime específico; ressaltar a importância de superar os valores machistas que impedem uma interação mais igualitária e saudável entre homens e mulheres; desenvolver estratégias de resolução de conflitos que permitam aos agressores evitarem reincidir nas agressões (Aguiar & Diniz, 2008).

A atuação por meio de intervenções terapêuticas com agressores e/ou vítimas tem sido apontada como medida efetiva e necessária para acabar com o padrão relacional violento (Aguiar & Diniz, 2008; Ospina e col. 2006; Hermann, 2003; Walker, 2000; Goldner, 1998; Ravazzola, 1997). O processo de intervenção deve levar em conta as condições de risco vivenciadas pelas vítimas, afirmar os direitos das mulheres, viabilizar o reconhecimento da história de violência por parte de ambos os parceiros e criar a possibilidade de mudança do padrão de relacionamento do casal, quando houver o interesse por parte de ambos de permanecerem juntos.

Esse tipo de intervenção oferece também subsídios importantes para a redação de pareceres que contribuam para elaboração das medidas protetivas ou sanções penais (Goodman & Epstein, 2008; Roque, Moura & Ghesti, 2006; Goldner, 1998). É importante que os(as) psicólogos( as) e demais profissionais envolvidos considerem a pertinência de apresentar um parecer pericial nos casos em que os operadores de direito julgarem necessário. Tal parecer tem por finalidade embasar a conversa da vítima com o promotor público para deliberação a respeito de uma possível retirada de queixa, para instrumentar o andamento do processo e para orientar os encaminhamentos a serem tomados.

A Lei Maria da Penha estabelece a violência contra a mulher como um crime específico e, diferentemente de outros dispositivos penais, vai além, ao oferecer a oportunidade de construção de novos modelos de relacionamento interpessoais e de intervenções do Estado que permitam as mudanças sociais que a referida Lei assegura e defende. Não se trata, tão somente, de tipificar a agressão contra mulheres como violência; trata-se de oferecer condições para que as mulheres possam reconhecer a violência que sofrem e buscar apoio nas agências do Estado para mudarem a forma como elas se relacionam com seus parceiros agressores.

A erradicação da violência contra as mulheres depende de um esforço conjugado para estabelecer possibilidades de mudança subjetiva para que as vítimas exercitem seus direitos à dignidade e integridade física e considerem como violências os episódios agressivos. A Lei 11.340/2006 convida a uma reflexão sobre os limites e sobre a importância da intervenção do Estado na construção dos processos subjetivos no contexto de uma sociedade democrática em transformação.

 

O Pessoal e o Político no Contexto da Violência: desafios para a Psicologia

A Lei Maria da Penha oferece grandes avanços ao ampliar a visibilidade da violência contra as mulheres e ao chamar atenção para as práticas de intervenção do Estado em casos de violência, para o respeito às vítimas em meios aos processos criminais e para a atuação interdisciplinar em âmbito jurídico. Maria da Penha exercitou sua subjetividade expondo-se internacionalmente para afirmar seu direito de perceber, denunciar e exigir a punição do seu agressor. Por meio da Lei 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha – o Estado brasileiro convida as mulheres ao exercício responsável de legitimação das suas subjetividades garantindo as condições necessárias para que elas se posicionem contra as várias formas de violência.

A intervenção multidisciplinar, preconizada na Lei, marca a necessidade de desenvolvimento de trabalhos interdisciplinar que se proponham à construção de novas subjetividades em meio à reflexão sobre a afirmação dos direitos humanos. Isso traz novos desafios para a psicologia na medida em que a subjetividade é compreendida de maneira contextualizada, ou seja, como produto de um processo dinâmico do qual fazem parte os avanços sociais, as mudanças nas estratégias de proteção do Estado e o esforço pessoal de compreensão da realidade. É nessa condição de exercício da subjetividade que reside a possibilidade de emancipação. É nesse contexto de um novo projeto político que conjuga subjetividade e cidadania que a psicologia precisa desenvolver novos referenciais teóricos e metodológicos para a sua prática.

 

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Endereço para correspondência
Fábio Pereira Angelim
E-mail: angelim@stj.gov.br

Glaucia Ribeiro Starling Diniz
E-mail: gdiniz@unb.br

Recebido em: 05/11/2009
Revisado em: 09/12/2009
Aceito em: 25/03/2010

 

 

* Psicologo, Mestrado em Psicologia e Doutorando em Psicologia Clínica e cultura Pela Universidade de Brasília – Brasil. Psicólogo no Superior Tribunal de Justiça – Brasil.
** Psicóloga e Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil; Doutora em Marriage and Family Therapy Program pela United States Intetrnational University – Estados Unidos da América e Professora Adjunta II da Universidade de Brasília – Brasil.