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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.19 São Paulo jan. 2010

 

ARTIGOS

 

Racialismo e antirracialismo em discursos de estudantes universitários

 

Racialism and antiracialism in discourses of universitary students

 

Racialismo y antirracialismo en discursos de estudiantes universitarios

 

 

Pedro de Oliveira Filho*, I; Isabella de Oliveira Santos** ; Michelle Beltrão Soares***, I

I Universidade Federal de Pernambuco – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo abordamos o conflito entre racialismo e antirracialismo em discursos de estudantes universitários da Universidade Federal de Pernambuco. Analisamos a produção de sentidos para o termo raça e para alguns termos usados para classificar as pessoas em relação à cor/raça no Brasil. O processo de análise fundamentou-se na orientação teórico-metodológica de um conjunto de autores que desenvolvem uma psicologia social discursivamente orientada. Foram identificados diferentes significados para o termo raça o que indica o seu caráter polissêmico no grupo em questão. Definições essencialistas para o termo raça, e para os termos usados para classificar as pessoas em termos de cor/raça, foram cuidadosamente evitadas. Diferentes estratégias discursivas foram mobilizadas para combater o racialismo.

Palavras-chave: Discurso, Psicologia social, Racialismo, Raça, Racismo.


ABSTRACT

This paper approach the conflict between racialism and antiracialism in discourses of universitary students at Federal University of Pernambuco. It focuses on the meaning of the term race and terms used to classify people according to color/race in Brazil. The process of analysis was based in the theorical-methodologic orientation of a set of authors that develop a discourse oriented social psycology. Different meanings were identified for the term race, what indicates its polysemic character in the studied group. Essencialist interpretations weren’t identified for the term race and terms used to classify people according to color/race in Brazil. Different discursive strategies were mobilized to combat the racialism.

Keywords: Discourse, Social psycology, Racialism, Race, Racism.


RESUMEN

En este artículo abordamos el conflicto entre racialismo y antirracialismo en los discursos de estudiantes universitarios de laUniversidad Federal de Pernambuco. Analizamos la producción de significados para el término raza e para algunos términos usados para clasificar a las personas en relación al color/raza en Brasil. El proceso de análisis se fundamenta en la orientación teórico-metodológica de um conjunto de autores que desenvuelven una psicología social discursivamente orientada. Fueron identificados diferentes significados para el término raza lo que indica su carácter polisémico en el grupo en cuestión. Fueron cuidadosamente evitadas definiciones esencialistas para el término raza y para los términos usados para clasificar a las personas en términos de color/raza. Fueron movilizadas diferentes estrategias discursivas para combatir el racismo.

Palabras clave: Discurso, Psicologia social, Racialismo, Raza, Racismo.


 

 

Introdução

O uso do termo raça para fazer referência a uma entidade biológica é relativamente recente. Como apontam diversos autores (Miles, 1989; Poliakov, 1974), esse termo só começa a ser usado com um sentido biológico entre o final do século XVIII e início do século XIX.

Antes desse período, era usado para nomear uma população de mesma origem, que compartilhava uma história comum. Na segunda metade do século XIX já era dominante o seu uso para nomear tipos biológicos de seres humanos; tipos biológicos que doravante passam a ser hierarquizados com base em supostas capacidades psicológicas e sociais (Miles, 1989).

Em 1850, o britânico Robert Knox afirmava o seguinte sobre o papel da raça na história humana: “Que a raça decida de tudo nos negócios humanos é simplesmente um fato, o fato mais notável, mais geral que a filosofia jamais anunciou. A raça é tudo: a Literatura, a Ciência, a Arte [...] a civilização dela depende” (Knox, 1962, citado por Poliakov, 1974).

Essa crença era tida como verdade inquestionável na segunda metade do século XIX. Os europeus (principalmente os do Norte) viam a si próprios como prova do papel decisivo da raça na produção das diferenças entre os povos.

No século XX tudo mudou. As hierarquias raciais que dividiam o mundo em raças superiores e raças inferiores foram sendo progressivamente desafiadas por teorias antropológicas que enfatizavam a importância da cultura na compreensão das especificidades grupais.

Na segunda metade do século XX, após a derrocada do regime nazista, o conceito de raça cai em descrédito na própria biologia. Para a biologia do pós-guerra as “diferenças fenotípicas entre indivíduos e grupos humanos, assim como diferenças intelectuais, morais e culturais, não podem ser atribuídas, diretamente, a diferenças biológicas, mas devem ser creditadas a construções socioculturais e a condicionantes ambientais” (Guimarães, 1999:22). As teorias biológicas contemporâneas que ainda vêem alguma utilidade no uso do termo raça não o usam com o sentido que ele tinha nas teorias biológicas do século dezenove (ver Frota-Pessoa, 1996).

E, no universo das pessoas comuns, qual a repercussão dessa desqualificação teórica do conceito de raça? Numa sociedade como a norteamericana em que a crença numa essência racial é historicamente muito forte, as pessoas lidam com o vocabulário racializado sem nenhum estranhamento. No Brasil, por outro lado, o vocabulário racializado parece causar constrangimentos em amplos setores da sociedade brasileira. Como afirma o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, no Brasil o termo raça é ausente “do vocabulário erudito” e da “boa linguagem” (Guimarães, 1999).

Mas não se trata somente de uma exclusão pública do vocabulário racialista. Esse antirracialismo discursivo, no Brasil, é acompanhado por um discurso recorrente que afirma e celebra a mestiçagem profunda do povo brasileiro (ver Santos e Maio, 2004).

A apologia da mestiçagem no discurso dos brasileiros é, em parte, uma decorrência da influência da obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (Freyre, 1969). Sua abordagem culturalista da questão racial brasileira, nos anos trinta do século passado, se constitui numa ruptura profunda com o passado, ruptura cujo impacto foi sentido rapidamente e cujas consequências sentimos até hoje. Freyre, mais do que qualquer outro autor nas três primeiras décadas do século vinte, destaca o papel positivo da mestiçagem e combate o prognóstico de que, por causa dela, estaríamos condenados ao atraso.

Não obstante o seu papel fundamental no combate às teses do racismo europeu, Gilberto Freyre tem sido recorrentemente criticado a partir da segunda metade do século passado por ter mobilizado o discurso da mestiçagem na defesa da tese segundo a qual o Brasil seria uma democracia racial, tese desafiada por diversos estudos empíricos (Fernandes, 1965; Hasenbalg, 1979; Costa Pinto, 1998) e apontada como um dos principais obstáculos no caminho da superação da desigualdade racial no Brasil.

O antirracialismo recorrente no discurso dos brasileiros é frequentemente citado em argumentos segundo os quais uma noção essencialista de raça seria estranha à subjetividade da maioria dos brasileiros; segundo os quais termos como raça, raça negra, brancos, negros etc., quando usados por brasileiros comuns, significam, muito frequentemente, tão somente rótulos para classificar as pessoas em termos de cor sem qualquer conotação racialista ou sem a pressuposição de uma essência racial.

Um autor como Guimarães (1999) certamente não daria muito crédito a tal hipótese. Para ele, no Brasil, o termo “cor” é usado como uma “imagem figurada de raça”.

Num outro escrito ele afirma que “a análise dessa categoria, no Brasil, nos leva à conclusão, sem grande dificuldade, de que a classificação por cor é orientada pela idéia de raça, ou seja, que a classificação das pessoas por cor é orientada por um discurso sobre qualidades, atitudes e essências transmitidas por sangue, que remontam a uma origem ancestral comum numa das ‘subespécies humanas’” (Guimarães, 2003:103).

O conceito de racialismo, tal como definido por Appiah (1990) e pelo próprio Guimarães (Guimarães, 1999), tornará mais claro o argumento desenvolvido por este último. Segundo Appiah (1990:4-5), uma visão racialista postula que existem “características hereditárias” nos seres humanos que permitem dividi-los em um pequeno número de raças cujos membros compartilham “certos traços e tendências” entre si que não compartilham com nenhum membro de outra raça. Tais traços e tendências formariam a “essência racial” dos grupos humanos; “essência racial” que vai além das características fenotípicas (características visíveis, como cor da pele, tipo de cabelo etc.).

É importante deixar claro que, para Appiah (1990), racismo e racialismo não são sinônimos. Para Appiah, o racialismo é uma crença falsa, mas não necessariamente perigosa. É um pressuposto das doutrinas racistas, mas não está necessariamente associado ao racismo em todos os contextos em que se manifesta.

Como Appiah, entendemos que o racialismo não implica necessariamente em racismo. Mas podemos compreender a crença em contrário. O raciocínio segundo o qual o racialismo resulta necessariamente em racismo é fundamentado num doloroso conjunto de experiências que marcaram os séculos XIX e XX no mundo ocidental. Se a ideia de essência racial não aparece sempre associada a práticas e discursos racistas, ela tem sido mobilizada no mundo ocidental com uma frequência assustadora para justificar a opressão de grupos sociais racializados, para justificar práticas e discursos racistas.

Mas não seguimos a linha argumentativa de Appiah em todos os seus desdobramentos. Sua concepção de racismo parece implicar na ideia de que o discurso racista deve ter um conteúdo ideológico específico (a ideia de essência racial) e não pensamos que esse discurso deve ser visto como portador de um conteúdo ideológico específico. As práticas discursivas de caráter racista usam diferentes conteúdos e somente a mobilização de um determinado conteúdo numa direção argumentativa específica nos permitirá qualificá-lo como racista.

Feitas essas ressalvas passemos à concepção de racialismo de Guimarães (1999). Esse autor, apesar de se inspirar no conceito de racialismo de Appiah, dá bem mais espaço ao papel das “marcas físicas” na doutrina racialista. Para Guimarães (1999:28) a “essência racial” é concebida por Appiah como se tivesse “características absolutas” que seriam idênticas ao modo norte-americano de definir raça. Por isso, modifica o conceito de racialismo de Appiah em dois pontos. Em primeiro lugar, afirma que o racialismo é um “sistema de marcas físicas” (entendidas como “indeléveis e hereditárias”): marcas estas às quais se associa uma essência formada por “valores morais, intelectuais e culturais”. Em segundo lugar, entende que todo racialismo necessita da ideia de “sangue”, mas reconhece que as “regras de transmissão” dos diferentes racialismos podem variar.

Seria ingenuidade negar a influência do racialismo no modo como os brasileiros e outras nações classificam os grupos sociais. Mas nos parece um equívoco pensar que o uso de termos como “branco”, “negro”, “moreno” é orientado, no Brasil, por um “discurso sobre qualidades, atitudes e essências transmitidas por sangue” sem qualquer resistência ou oposição autêntica por parte de sujeitos que historicamente estão em contato contínuo com discursos que categorizam o essencialismo racial como um discurso racista. O essencialismo racial, evidentemente, está presente na sociedade brasileira, circula no mundo subjetivo dos brasileiros e trabalha para moldar percepções e explicações sobre as relações sociais. Mas supor que o antirracialismo recorrente no discurso dos brasileiros é sempre uma fachada ideológica a esconder um essencialismo racial que atua à revelia dos sujeitos nos parece pouco convincente.

Quando um brasileiro afirma que “raça é de bicho”, como numa pesquisa realizada com sujeitos fenotipicamente brancos (Oliveira Filho, 2005), que argumentos teríamos para negar que tal frase e o discurso antirracialista do qual ela faz parte não possam ter qualquer repercussão no modo como esse sujeito relaciona-se com os discursos racialistas que também circulam em seu mundo subjetivo?

Se racialismo e antirracialismo agitam-se e travam um combate na sociedade brasileira e no mundo subjetivo dos brasileiros, seria o caso de se perguntar sobre o modo como se apresenta em termos discursivos esse combate. Que termos e argumentos são mobilizados na defesa implícita ou explícita de uma dessas posições ideológicas? Que inconsistências ou contradições discursivas são produzidas nos discursos dos indivíduos a partir dessa tensão social entre racialismo e antirracialismo?

Neste artigo, procurando trazer mais elementos empíricos para a reflexão sobre essa questão, analisamos, em discursos de estudantes universitários, os significados do termo raça e de termos usados para classificar as pessoas em termos de cor/raça no Brasil (negro, branco, pardo etc.). Procuraremos evidenciar o conflito e as tensões entre racialismo e antirracialismo no mundo subjetivo desses estudantes e refletir sobre as consequências sociais dos argumentos mobilizados em seus discursos.

 

Método

Participantes, instrumento e procedimentos

Com o uso de um roteiro de entrevista semiestruturada, contendo diversas questões sobre os grupos étnicos/raciais no Brasil e sobre suas relações, foram entrevistados 30 estudantes da Universidade Federal de Pernambuco. Suas idades variavam entre 18 e 30 anos, a média de idade é de 21, 97 anos e o desvio padrão de idade é de 3, 36. A partir da categorização realizada pelas entrevistadoras no momento da entrevista, os participantes foram distribuídos em grupos de raça/cor da seguinte maneira: três negros, quinze pardos e doze brancos. Em relação às áreas do conhecimento, os participantes da pesquisa se distribuíam da seguinte forma: quinze participantes da área de Ciências Humanas, oito participantes da área de Ciências da Saúde e sete participantes da área de Ciências Exatas.

Os sujeitos foram entrevistados no interior do Campus da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas. Para este trabalho privilegiamos a análise das respostas às questões do roteiro que indagavam os sujeitos sobre os significados do termo raça e de termos usados para classificar as pessoas em termos de cor/raça no Brasil. Utilizamos pseudônimos para todos os participantes cujas falas aparecem no interior deste trabalho.

Análise

O processo de análise fundamentou-se na orientação teórico-metodológica de um conjunto de autores que vêm desenvolvendo o que se convencionou denominar de psicologia social discursiva (Billig, 1985, 1987, 1991; Potter e Wetherell, 1987; Potter, Wetherell, Gill e Edwards, 1990; Potter, 1996; Wetherell e Potter, 1992; Wetherell, 1996).

Após a transcrição das entrevistas foram feitas leituras atentas e cuidadosas do material transcrito, um passo necessário para a codificação. A codificação, nessa perspectiva metodológica, é apenas uma análise preliminar cujo objetivo não é simplesmente encontrar resultados, mas organizar as categorias determinadas pelas questões de pesquisa para estudos mais aprofundados (Potter e Wetherrel, 1987; Gill, 2002).

Nessa abordagem, os discursos são vistos fundamentalmente como formas de ação social com as mais variadas consequências. O objetivo da análise é dar visibilidade à construção discursiva de categorias psicológicas, identidades e relações sociais e observar como tais entidades são mobilizadas em argumentos.

Para isto privilegia a mobilização dos repertórios interpretativos: conjuntos de termos e descrições agrupados ao redor de metáforas, figuras, imagens; sistemas de significação utilizados para construir versões de ações, do eu e das estruturas sociais; recursos usados para avaliar, construir versões tidas como verdadeiras e realizar ações específicas (Wetherell e Potter, 1992).

A uma abordagem discursiva interessa principalmente o modo como o discurso é organizado para tornar determinadas versões da realidade factuais, verdadeiras. Mas a análise deve ir além da versão ou do argumento que está sendo construído. Como se trata de uma abordagem atenta ao caráter retórico do discurso procura-se focalizar o modo pelo qual uma determinada argumentação procura desacreditar uma ou mais argumentações competitivas, argumentações ou versões frequentemente ausentes, não citadas (Wetherell & Potter, 1992).

 

Resultados e Discussão

O Significado de raça

Em uma das questões do roteiro de entrevista os participantes da pesquisa eram interrogados sobre o significado do termo raça. O termo, como esperado, é polissêmico. Não se apresenta com um único sentido tanto para o grupo como um todo quanto para parte de seus membros tomados individualmente.

No material analisado, destaca-se a completa ausência de definições essencialistas do termo raça, num sentido pleno, explícito. Ou seja, não foram encontrados discursos que o definem como um termo que nomeia grupos cujos membros compartilham entre si características morais, culturais e psicológicas determinadas biologicamente. Apresentaram-se, no entanto, definições em que o termo raça tem um significado biológico inequívoco, acompanhado, em pelo menos um caso, de termos que lembram o racialismo.

Lucas (curso: psicologia; cor/raça: pardo): Raça seria eh... eh... seria como uma herança genética, herança de genótipos, fenótipos, de características genéticas mesmo que a gente esteja dentro da mesma espécie, no caso de raças humanas.

Leandro (curso: geografia; cor/raça: pardo): Raça? Eu acho que engloba todos os tipos, assim não importa que seja negro ou que seja branco, é tipo a raça humana. Entendeu. É como se fosse um grupo maior pra ser sub-dividido depois em outras sub-raças, eu acho.

Entrevistadora: Sub-raças, como assim sub-raças?

Leandro: Sub-raças seria assim tipo branco, preto... entendeu? Porque eu acho que isso já é uma predisposição genética, uma característica genética como os animais também são divididos dentro de um grande grupo e se dividem como o lobo e o cachorro... entendeu? Eu acho que também seja de certa forma desta maneira, por pura questão genética.

Na fala de Lucas, as raças (claramente grupos que compõem a espécie humana) são entidades biológicas que se caracterizariam pela herança de genes e características fenotípicas. Não há qualquer alusão a atributos morais e psicológicos associados a essa herança genética.

A fala de Leandro é bem mais ambígua. Num primeiro momento o termo raça tem o sentido de espécie humana. Em seguida, Leandro usa o termo “sub-raças” para nomear os subgrupos (o “branco”, o “preto”) que comporiam a espécie humana, a “raça humana” A ideia de que os seres humanos podem ser classificados a partir de características genéticas, assim como os animais, e o uso do termo “predisposição genética”, sugerem, mesmo que essa não seja a intenção de Leandro, que, tal como no mundo animal, os grupos humanos racialmente distintos podem apresentar diferenças psicológicas, temperamentais etc.

Algumas falas associaram o termo raça ao fenótipo, às características somáticas dos indivíduos, principalmente à cor da pele, atribuindo um sentido biológico ao termo (o fenótipo é uma característica dos seres humanos que tem uma relação obvia com a biologia), mas sem o vocabulário da genética (genes, herança genética etc.):

Carla (curso: psicologia; cor/raça: negra): Raça? É muito complexo, né? Deixa eu ver...seria mais eh, tem relação com a cor, eu penso nisso. Eu não sei definir o termo raça, mas eu acho que tem relação com a cor assim, tipo aquela raça...

Maria (curso: terapia ocupacional; cor/raça: branca): Assim, no popular raça, é, é cor da pele, né? Pra mim no popular é isso, é, é cor da pele, é a origem mesmo.

Felipe (curso: direito; cor/raça: branca): No Brasil tem significado da, da, apenas da cor das pessoas, num quer dizer muito mais que isso não.

Nessas falas, o fenótipo não aparece vinculado à herança genética (com exceção talvez da fala de Maria na qual a expressão “origem” pode ser entendida como uma referência à origem racial) ou a grupos raciais historicamente constituídos. Isso não significa que os sujeitos desconhecem os outros sentidos do termo presente na sociedade brasileira. Essas falas devem ser vistas mais como uma tentativa de apresentar seus autores como pessoas que desejam que o termo não signifique mais do que isso na nossa sociedade do que como expressão de conceitos que os sujeitos realmente têm sobre raça. Expressões como “no popular é isso” ou “no Brasil tem significado” indicam o reconhecimento da existência de outros sentidos atuantes na sociedade brasileira ou fora dela.

Em outras falas, critica-se e rejeita-se o uso do termo raça com um sentido biológico. Num forte tom antidiferencialista, o termo em questão é recorrentemente combatido como sendo um termo inadequado quando aplicado a grupos humanos. As falas a seguir ilustram bem esse posicionamento.

Eduarda (curso: biomedicina; cor/raça: branca): Popularmente falando você logo lembra de cor, você remete logo a cor, você lembra logo da cor, mas cientificamente falando eu acredito que seja a raça humana, o ser humano espécie, ser mais espécie, parece mais com espécie.

Entrevistadora: E você acha que esse termo pode ser aplicado a grupos humanos?

Eduarda: Erroneamente! Eu acho assim, que se você disser “raça humana” sim, mas se você usar pra determinar espécies diferentes, seres diferentes: o que é branco, o que é negro ou o que é asiático, não!

Guilherme (curso: direito; cor/raça: pardo): Eu acho que pra mim, raça, pelos meus conhecimentos é um termo até certo ponto errado no que se refere a grupos humanos, eu acho que o termo certo seria no que se refere a grupos étnicos, neh? De acordo com a cultura, com a localidade do nascimento. Eu acho que raça é um termo muito preconceituoso já em si. Eu acho que biologicamente não existe raça entre os humanos.

Mário (curso: engenharia mecânica; cor/raça: branca): Olha, tu vai rir visse? Falar em raça assim sem... só é raça de, de, de cachorro, de, de coisa e pronto.

Na fala de Eduarda o termo só é admitido no sentido abrangente de “raça humana” ou de espécie humana. Reconhece que o termo tem, “popularmente falando”, o sentido de cor, mas essa sinonímia entre raça e cor é desqualificada, apresentada como cientificamente equivocada. Também para Guilherme o termo raça é “errado”, uma vez que, “biologicamente”, não existem raças humanas. Para ele o termo não deveria ser aplicado a grupos humanos; é apresentado como um termo “muito preconceituoso” que deveria ser eliminado e substituído pelo termo etnia. No discurso de Mário a aversão ao conceito de raça aparece de maneira mais incisiva. Raça, nesse discurso, é para animais não humanos, para coisas. Nos três discursos os sujeitos atualizam o discurso predominante na biologia que nega a existência de raças entre os humanos, combatem o essencialismo racial sem citá-lo.

Há nos discursos de Mario e Eduarda uma associação tácita entre racialismo e racismo, associação que no discurso de Guilherme é explicita. No Brasil, como foi visto anteriormente neste trabalho, a rejeição do conceito de raça é frequentemente motivada pelo pressuposto de que o racialismo está necessariamente associado a práticas e discursos racistas, à tensão e ao conflito entre os diferentes grupos sociais. Não surpreende, portanto, que a ênfase no racialismo e em seus supostos perigos seja frequente em argumentos utilizados para combater as cotas (ver Maggie e Fry, 2004).

O termo raça também aparece com o sentido de pertença a um grupo cultural com uma origem geográfica comum. Essa é uma outra maneira de dissociar o termo raça de um sentido biológico, genético. Essas falas usam o termo raça como sinônimo de etnia. Diferentemente das falas de Guilherme, Eduarda e Mário, são falas que não manifestam distanciamento ou aversão em relação ao uso desse termo.

Luana (curso: administração; cor/caça: parda): Hum... São várias pessoas com culturas diferentes com... Na questão de raça, índio, negro. São pessoas de culturas diferentes, que vivem numa mesma comunidade ou não.

Ricardo (curso: música; cor/raça: parda): Raça? Raça tem a ver com a bagagem cultural que cada um leva, que cada um traz. Claro que a cor também influencia muito no conceito de raça, mas a bagagem cultural é mais importante, ela é mais relevante pro que o individuo eh enquanto raça. A raça ta muito junta da cultura! Cultura africana, raça africana; indígena, cultura indígena... tá muito próximo também.

Em outros discursos o conceito de raça é definido como uma construção social que determina categorias para diversos tipos de pessoas. Nesses discursos, que poderíamos denominar de nominalistas, raça é apenas um nome para falar de determinados grupos, um nome sem referência biológica, mas com um significado social inequívoco.

Rafael (curso: geografia; cor/raça: branca): Bom, pra mim raça só existe na medida em que as pessoas se identificam enquanto pertencente a um determinado, uma determinada raça assim. Acho que podia até ter outro nome pra esse tipo de categoria, mas acho que existe nesse sentido de uma identificação cultural, acho que vai mais por ai.

Entrevistadora: Você acha que pode ser aplicado a grupos humanos o termo raça?

Rafael: Eu acho que não é o termo mais adequado mas eu acho que pode. Porque tem, tem gente que diz que não existe raça, neh? Tem esse debate na Antropologia, que eu já estudei um pouco, só que eu acho que as pessoas se identificam enquanto negro, branco, árabe ou alguma coisa assim, então eu acho que existe nesse sentido.

Antônia (curso: educação física; cor/raça: negra): Eu não tenho isso, eu não tenho assim uma, acho que assim tem a questão de cada um, de cada sociedade, uma população tem uma determinada di... um determinado conceito. Mas, é um conceito apenas pra diferenciar na sociedade, na verdade num, num posso, eu mesma assim não posso direcionar não um determ... é algo amplo, mas que não deve ser levado assim em consideração pra diferenciar a sociedade não, acho que no geral a gente pode até descartar, é só questão de denominação, de nomenclatura que tem a sociedade pra diferenciar as pessoas.

É interessante assinalar que esses sujeitos também negam que a raça seja uma realidade biológica como negaram alguns dos sujeitos cujas falas analisamos anteriormente, mas, diferentemente daqueles, esses sujeitos atribuem uma existência social às raças. Seus argumentos têm alguma semelhança com os argumentos encontrados em intelectuais ligados ao movimento negro, como Guimarães (2003), que defendem o uso do termo raça num sentido sociológico. No entanto, expressões como “eu acho que não é o termo mais adequado”, na fala de Rafael, ou “acho que no geral a gente pode até descartar”, na fala de Antônia, têm o efeito de sinalizar certo distanciamento crítico dos dois em relação ao termo em questão.

Categorias para cor/raça

Em determinado momento da entrevista, solicitávamos aos sujeitos que atribuíssem significado aos seguintes termos quando aplicados a indivíduos no Brasil: branco, negro, pardo, mulato e moreno. Não foram observados discursos nos quais esses nomes apareçam como categorias usadas para nomear grupos sociais diferenciados em termos psicológicos ou morais em decorrência de características genéticas, ou seja, não foram encontrados discursos nos quais esses termos apareçam como nomes usados para nomear grupos caracterizados por uma essência racial.

Um termo recorrente nos discursos é o termo cor. Os termos branco, negro, pardo, mulato e moreno seriam tão somente rótulos para classificar as pessoas em termos de cor. Esses discursos terminam por reforçar a ideia de Nogueira (1988) de que os brasileiros tendem a classificar as pessoas usando como critério a “marca”, o fenótipo, (a aparência da pessoa) ao invés da origem:

Entrevistadora: Sim, o que é negro pra você?

Leandro (curso: geografia; cor/raça: parda): O que é negro, certo! Negro pra mim... Pô, é o contrário de branco! (risos)

Entrevistadora: (Risos) E qual seria esse contrário?

Leandro: Seria uma cor... uma cor! E também no caso negro seria um nome dado a pessoa que tem a pele escura, certo?, por associar à cor preta.

Entrevistadora: Mulato.

Lucas (curso: psicologia; cor/raça: parda): Mulato? Eh uma eh.... seria uma, uma mistura, mas não seria necessariamente uma mistura no sentido de ser uma herança descendente de duas outras raças, mas uma cor específica de pele, que seria não muito escura e não muito clara.

Entrevistadora: E o moreno?

Ricardo (curso: música; cor/raça: parda): O moreno? O moreno seria semelhante ao pardo.

Entrevistadora: Semelhante, como assim semelhante?

Ricardo: Semelhante na sua coloração... uma coisa intermediaria entre o branco e o negro. O mulato um pouco mais escuro que o moreno, mas o pardo e o moreno numa cor intermediaria.

É visível nesses discursos o cuidado de evitar um sentido racial para os termos em questão. Isso é mais evidente na fala de Lucas, na qual o mulato seria uma mistura, mas sem o sentido de mistura de heranças raciais e sim no sentido de mistura de cores. Os sujeitos tentam se posicionar como pessoas guiadas por um critério de classificação baseado no fenótipo e não na origem racial, mas ao fazê-lo demonstram conhecimento de outros possíveis critérios, de maneira explícita, no caso de Lucas, de maneira implícita nos outros casos. Em outras falas os termos em questão continuam a aparecer como se fossem guiados por um critério de classificação baseado no fenótipo e não na origem racial, mas agora outros atributos somáticos são citados:

Entrevistadora: O que é uma pessoa negra pra você?

Carol (curso: administração; cor/raça: parda): Uma pessoa que tem a pele escura, que tem traços de negro, neh?, nariz... os traços, acho que não tem que ver só pela cor da pele tem que vê pelos traços.

Márcio (curso: administração; cor/raça: parda): Geralmente a gente usa branco assim, eh, eh, a cor da pele branca, olhos claros, cabelo um pouco mais claro, liso geralmente.

Márcio: Mulato seria assim também uma espécie de, já que a gente ta usando o termo pardo, sendo que mais puxado pras características da raça negra.

Em outros momentos os termos branco, negro, pardo, mulato e moreno aparecem como categorias usadas para diferenciar as pessoas em termos de pertença a grupos étnicos. Nessas falas, a cultura associada a características somáticas, ou isoladamente, é apresentada como o traço de um grupo que permite diferenciá-los em termos étnicos.

Entrevistadora: Então o que é ser pardo pra você?

Sofia (curso: pedagogia; cor/raça: parda): Eita danou-se (risos)... ser pardo tá no meio do caminho (risos), não... é brincadeira... Ser pardo? Ah, eu não sei... pra distinguir... Ave Maria, se tudo era pigmento... ser pardo? É ter as misturas das raças, não é?, desses povos, dessas cores, dessa cultura... eu acho que é o brasileiro assim neh?, não tem pardo não, acho que é bem negro mesmo (trecho incompreensível), mas ser pardo é ser misto culturalmente.

Entrevistadora: O negro.

Guilherme (curso: direito; cor/raça: parda): Negro que tem as características peculiares do grupo étnico que tem a origem na África.

Adriana (curso: filosofia; cor/raça: parda): Branco é uma pessoa que tem uma descendência europeia, pra mim parte desse princípio... mas, é, é só isso. Uma descendência europeia, né, uma etnia.

A substituição do termo cultura pelo termo raça num discurso, não significa necessariamente a ausência de essencialismo racial. O termo raça ou termos que façam referência a características somáticas podem ser substituídos por termos como grupo cultural, grupo étnico num discurso e tal discurso, ainda assim, pode transmitir um essencialismo profundo. Na Europa, por exemplo, certo diferencialismo racista argumenta, num vocabulário do qual o termo raça foi banido, que nações e grupos étnicos não são superiores nem inferiores uns em relação aos outros, são diferentes, e, para que preservem sua verdadeira natureza, devem manter-se separados (ver Wieviorka, 1992).

Esse não é o caso de nenhum desses discursos. O discurso de Sofia, que poderia ser entendido como essencialista, pois advoga implicitamente em determinado momento o uso do modo bipolar de classificação racial (“não tem pardo não, acho que é bem negro mesmo”), modo norte-americano definido como sinônimo de racialismo em diversas partes do mundo, na verdade parece pertencer ao universo discursivo da militância negra que advoga a ideia de que, por motivos políticos, deveríamos categorizar os pardos como negros no Brasil. Mas essa bipolaridade, de fato, não se apresenta de maneira consistente no trecho discursivo em questão: em outro momento Sofia trabalha implicitamente com um modo de classificação multipolar, “ser pardo tá no meio do caminho...”, ou seja, pardo não é negro nem branco. Mais do que apresentar o modo de classificação multipolar como um modo razoável de classificação no caso brasileiro, seu discurso reproduz o velho elogio da nossa “mistura racial”, tão característico dos brasileiros, quando afirma que ser pardo “é ter as misturas das raças, não é?, desses povos, dessas cores, dessa cultura...”

É bastante revelador da natureza das relações raciais no Brasil, o fato de que, nas falas dos trinta sujeitos entrevistados, termos como negro, branco, mulato etc. só foram associados explicitamente a determinadas posições sociais na fala de um sujeito, Sofia.

Sofia (curso: pedagogia; cor/raça: parda): O que é branco... Eu acho que topa com aquela primeira questão minha, da dificuldade que eu tenho de entender esses grupos isoladamente, até porque a composição é... como a gente, o Brasil foi formado e ainda continua e até hoje ainda não saiu dela é... a gente não tem esses limites muito bem definidos, a gente tem sim um preconceito muito grande, a gente percebe no imaginário mesmo, a diferença de cor, as possibilidades de uns, a ascensão de uns não é?, de uma maioria ou de uma minoria, ou melhor... as condições sociais de uma maioria ou minoria a gente percebe isso. Mas o que seria o branco? Ah pra mim é um... é um... sei lá uma distinção quase de pigmentos de cor, talvez (risos). É aquela coisa, acho que pra mim tá na característica do físico, né?, mas eu tenho consciência das outras implicações disso, não é? Isso seria talvez uma opinião pessoal ou talvez um olhar meu diante do valor dessa multiculturalidade racial. Mas eu sei que cada uma tem um espaço, tem uma condição, não é? Ora elas se juntam, ora elas se afastam e se combinam limitadas por suas condições.

Sofia: Na relação social eu vejo que é uma raça que foi consolidada ao longo dos tempos numa posição social, sei lá, privilegiada ou que vem se auto-afirmando ideologicamente através das instituições, da burocracia, do Estado e tudo mais... e que submeteu socialmente outras raças e que tira vantagens até hoje disso, apesar de que, da cor em si só eu acho que não é mais o que determina hierarquicamente essas condições sociais.

Sofia: O negro... tá... quando você me pergunta do branco a coisa fica mais teórica, mas quando você fala do negro eu tenho uma intimidade... eu tenho algo que me motiva mais efetivamente... não sei, eu convivo muito em terreiros, não é? Meu trabalho com arte é também com... Santa Fogo, o nome da companhia em que eu trabalho...

Entrevistadora: Santa...

Sofia: Fogo, Santa Fogo... tá ligado ao sentido de rebelião, de força muito grande e que pra mim é... a gente inclusive trabalha é... com a sonoridade toda de percussão está muito ligado aos terreiros, ao Candomblé... então eu tenho uma identidade muito forte, quando você fala negro. Eu sou negra, néh, sou descendente de negros, e... quando eu falo branco... a pergunta era o que é o branco pra mim, eu acho que é sinônimo de resistência, de força é... de humanidade, de ética, até mesmo de senso de coletividade...

Na fala de Sofia, o termo “branco” aparece como um grupo social caracterizado por possuir um determinado atributo físico, a cor branca, mas, ao mesmo tempo, aparece como um grupo racial dominante na sociedade brasileira, um grupo racial privilegiado “que vem se autoafirmando ideologicamente através das instituições, da burocracia, do Estado e tudo mais... e que submeteu socialmente outras raças”. Já o termo negro, aparece associado a uma posição social subordinada, estando associado também a atributos psicossociais como força, resistência, humanidade e ética.

Nesses discursos, a dissociação entre cor/raça e posição social, a obliteração do conflito e da hierarquização social baseada na cor/raça, demonstra de maneira insofismável a força do discurso da democracia racial na sociedade brasileira.

É importante assinalar que, no que diz respeito às categorias intermediárias no contínuo de cores da sociedade brasileira (“moreno”, “mulato”, “pardo”), percebemos que o termo moreno apresentou-se como o mais polissêmico. Dentre os significados apontados, os mais recorrentes foram: moreno como sinônimo de pardo, mulato ou negro; moreno significando pessoa com o cabelo preto (independente de sua cor de pele); moreno significando pessoa bronzeada. Vejamos algumas falas ilustrativas:

Carla (curso: psicologia; cor/raça: negra): Moreno? Eu acho que isso é só outra denominação pra pardo, pra negro... ou então chama negro ai não chama negro, chama moreno fica mais, mais suave, sei lá. Acho que tudo é negro e branco, num sei! Na verdade não é uma coisa só, não é? É tudo uma mistura... sei lá!

Rafael (curso: geografia; cor/raça: branco): Eh, o moreno... Bom pra mim moreno só quer dizer em ralação à cor do cabelo, quando você vai descrever uma pessoa ai diz assim: ah tem o cabelo moreno assim. Agora uma pessoa morena... acho que não é por ai, não existe.

Eduarda (curso: biomedicina; cor/raça: branca): É, o moreno já é o branco um pouco mais escurinho! (Risos) Um branco bronzeado, mais bronzeado, num sei alguma coisa assim!

Essa polissemia acentuada do termo moreno no Brasil é destacada na literatura sobre relações raciais no Brasil (ver: Fry, 1995/1996; Silva, 1996). Silva (1996:80), afirma que “o termo moreno parece ser aplicável no Brasil a qualquer tipo físico, com exceção das pessoas louras e ruivas”. A literatura também destaca o caráter contextual do termo moreno e dos outros termos usados para classificar as pessoas em termos de cor/raça (ver: Fry, 1995/1996; Moutinho, 2001), ou seja, um sujeito que é frequentemente categorizado como “moreno” pode, numa situação marcada pelo conflito, ser categorizado como “negro”.

Nas falas supracitadas, o termo moreno ora é sinônimo de negro (“eu acho que isso é só outra denominação pra pardo, pra negro...”), sendo colocado num extremo do contínuo de cores brasileiro, ora está próximo do pólo da branquitude (“um branco bronzeado”), o outro extremo do contínuo. Carla destaca em sua fala o eufemismo geralmente associado ao uso do termo moreno no Brasil. Seria mais “suave” do que negro ou mesmo pardo, em outras palavras, seria uma forma de evitar classificar abertamente alguns indivíduos no pólo menos valorizado na sociedade brasileira, uma forma de branqueamento.

 

Considerações Finais

Os resultados discutidos acima mostram o caráter polissêmico do termo raça entre os estudantes entrevistados. Observou-se também o cuidado dispensado na tentativa de evitar definições racialistas para o termo em questão. O simples uso do termo raça é associado implicitamente a posicionamentos racistas por alguns sujeitos.

Esse mesmo cuidado foi observado quando os sujeitos atribuíam significados aos termos usados no Brasil para classificar as pessoas em grupos de cor/raça. São associados à cor, aos traços físicos etc., mas nunca a uma essência racial ao modo dos norte-americanos.

Mesmo nos discursos daqueles para os quais as categorias intermediárias devem ser eliminadas, não poderíamos reconhecer uma defesa explícita e consistente de uma posição racialista. Em outras palavras, mesmo em discursos nos quais se afirma a necessidade de definições mais claras no que diz respeito aos grupos de raça/cor, como em discursos próximos ideologicamente do discurso da militância negra, não se fala da herança genética como o critério inquestionável para classificar as pessoas. Nesses discursos, a defesa da eliminação das categorias intermediárias de classificação racial está fundamentada implicitamente no argumento de que a eliminação dessas categorias aumentaria o contingente de pessoas classificadas como negras no Brasil.

É interessante observar que esse “racialismo pragmático”, não essencialista, é marcado pela ambiguidade. Na fala de um mesmo sujeito, pode-se observar a afirmação de que não há mulatos nem morenos, mas somente negros e, em outros momentos, afirmações que reforçam a ideia de Brasil como um país essencialmente mestiço.

A rejeição discursiva do racialismo poderia ser acompanhada, sem que isso fosse contraditório, pelo reconhecimento de que a cor/raça no Brasil é um fator determinante na posição social das pessoas. Mas não é isso que acontece. De maneira coerente com o discurso da democracia racial, a associação entre cor/raça e posição social é evitada pela esmagadora maioria dos sujeitos. É como se negros, brancos e mestiços vivessem todos num espaço social não hierarquizado, homogêneo, pacificado.

 

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Endereço para correspondência
Pedro de Oliveira Filho
E-mail: pedroofilho@ig.com.br

Isabella de Oliveira Santos
E-mail: bebellasantos@hotmail.com

Michelle Beltrão Soares
E-mail: michellinha@gmail.com

Recebido em: 04/07/2009
Aceito em: 14/04/2010

 

 

* Professor-Adjunto I da Universidade Federal de Pernambuco – Brasil.
** Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco – Brasil.
*** Mestranda em Educação na Universidade Federal de Pernambuco – Brasil.